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Artigos-->Memórias de um pequeno-burguês. -- 24/10/2002 - 21:44 (Lindolpho Cademartori) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos












“ Dou-me ao agradável e tacanho prazer de pensar, cá com meus botões, que a melhor parte de ser eu mesmo é que, no meu fraudulento xadrez cognitivo, sempre insurjo triunfante. Ou seja: não importa quantos equívocos eu venha a cometer, a síntese derradeira é sempre produto dos meus caprichos pavlovianos.”











O hoje não se fez notar e o dia deu o ar de sua graça com a mesmice monocromática que lhe é peculiar. Telefonei a um amigo que está em Pirenópolis. Fernando, que iria ser reprovado por falta em todas as disciplinas, abandonou a Faculdade e comunicou-me, com a mais soturna das naturalidades, que irá viajar pela América Latina – seu roteiro terá início em Machu Picchu, no Peru, e terminará em Cartagena das Índias, na Colômbia. Que fique o leitor surpreendido ao tomar conhecimento do fato de que Fernando não é rico e tampouco se enquadra na concepção “bobo” (bourgeois and bohemian) cunhada pelo ensaísta norte-americano David Brooks, em seu tratado de frivolidades intitulado Bobos in Paradise, obra eivada de descrições hilárias e frugais que enquadram o próprio autor no pejorativo arquétipo social que concebeu. E embora eu conheça Fernando há bons quatro anos, não poderia presumir que se trata de um boçalzinho pós-tudo que se presta ao serviço estúpido de difundir bravatas e lugares-comuns aborrecidos. Fernando, embora seja anacrônico, perfaz autenticidade – e sua autencidade reside no desprendimento genuíno e despretensioso com que se desfaz da contemporânea obrigação da felicidade compulsória. E, prezados, muitas histórias ele teria a nos contar.



Tão-logo Fernando comunicou-me sua decisão, permaneci mudo e cognitivamente estanque ao telefone. Em verdade, ensejei desprezo e inveja para com sua atitude. Desprezo porque, subpreticiamente juncado de convicções esclerosadas e arrogando-me da involuntária condição de conservador acadêmico de Direito, contemplei em Fernando um bastião da desordem e da subversão: o rapaz de vinte anos que resolve confeccionar artesanatos hippies e aprender o ofício de tatuar o corpo das pessoas constitui a semi-secular ameaça desordeira que acomete a dinâmica social: um dia foram os marxistas, noutra feita os anarquistas, um efêmero interregno de soberba fascista para alcançarmos os beatniks, os hippies e, ao termo, a cafona litania de ecumenismo cultural das “tribos jovens” dos anos 90. Mas Fernando é demasiado anacrônico para perfazer ameaça – meu caro amigo recorreu a uma concepção contracultural superada há mais de três décadas – o ideário hippie. Devo dizer, ainda, que fiquei preocupado com Fernando: em se tratando da minha metodologia ordinária, ele não deveria abandonar os estudos para se engalfinhar pelos Andes peruanos e pelas florestas tropicais colombianas repletas de guerrilheiros narco-traficantes e refinarias de cocaína; deveria ele, por bem, permanecer em Goiânia, nossa acolhedora Nashville brazuca, a prima pobre da Dallas norte-americana, a fazenda asfaltada (palavras do bisonho cantor e compositor Roberto Carlos) e o rincão onde o conceito de res publica não se aplica àqueles que possuem uma camionete. Eis, pois, o compêndio das razões pelas quais ensejei desprezo para com a atitude de Fernando: sua subversão de padrões e concepções morais e comportamentais o levaria ao nada, e, portanto, não era digna de tão custosa empresa por parte de meu amigo.



Aos poucos que me conhecem, as razões da minha inveja são mais do que clarividentes: paralelamente ao desprezo, invejei Fernando pela simples razão de não ter colhões para tomar uma atitude semelhante à dele. Imiscuído em passividade, auto-contemplação e frivolidades provincianas, não me furto a desfiar impropérios à cidade onde vivo, sem antes revestir-me de alguma dignidade, abandonar a Faculdade de Direito e assaltar uma agência bancária no intuito de conseguir alguns fundos para custear minha passagem de ida rumo a Viena ou Berlim. Em verdade, poder-se-ia dizer que a convergência da inveja e do desprezo culminam na admiração, admiração esta que eu dissimulo e à qual confiro uma roupagem desprezível. Grosso modo, é isso mesmo: ao invés de estar no meu confortável e amplo quarto divagando sobre ser a Conferência de Potsdam ou o advento da pipoca de microondas o fato de maior relevância para a segunda metade do século XX, ou sobre um hipotético encontro entre um ladrão de jóias de velhinhas inválidas chamado Adolf Hitler e um idoso Sherlock Holmes em um balneário em Wiesbaden, desejaria ter o desprendimento e a atitude ativa de Fernando ao prescindir das conquistas que julga menos importantes, e, desta forma, isolar-me em um espectro mais restrito e íntimo do Corpo Social. Mas as circunstâncias não me permitem: tenho uma graduação a concluir, uma reputação a construir, cinco ou seis idéias a concretizar, uma miríade de mediocridades a viabilizar e uma família e uma namorada a quem devo satisfações. Os meus objetivos vão de encontro aos meus métodos, e, embora eu não seja nem um gênio sem talento ou um talentoso sem genialidade – e tampouco gênio ou talentoso, in singulare -, ilustro a inevitável e tediosa síntese de perder uma guerra travada comigo mesmo. O meu pequeno Cosmo adornado por fenomenologias da pobreza se entretem com as próprias situações criadas para trapacear o ócio. De toda sorte, bem diria um alemão, “o que é feito por amor está além do bem e do mal”[1]. O problema, qual todos bem devem presumir, é que em momento algum eu agi por amor. Fi-lo tão-somente por egocentrismo, indisciplina e proselitismo esnobe. Diferentemente de mim, Fernando acreditou em suas convicções, a ponto de sacrificar as secundárias no intuito de lograr os propósitos individuais que sempre almejou. Mesmo que isso envolva transitar em florestas cheias de guerrilheiros das FARC e laboratórios de refino de cocaína.



Contei a mamãe sobre a decisão de Fernando. Previsivelmente, ela ficou horrorizada: “Aquele menino, tão bonzinho, não tem jeito mesmo...abandonar a Faculdade para viajar pela América Latina! Onde já se viu isso?” Não me dei ao trabalho de argumentar com ela, visto que não conseguiria mover um flanco de seu sólido conservadorismo por mim parcialmente herdado. Mamãe é protestante; Fernando não dá muita importância à Bíblia e prefere ler tratados de fenomenologia e hermenêutica filosófica. Mamãe ameaçou internar-me caso eu fizesse uma tatuagem; Fernando tem cinco ou seis espalhadas pelo corpo. Fernando arqueia defesa às suas convicções; eu submerjo em covardia e assinto aos ditames da minha progenitora. Mamãe – assim como eu – votou em José Serra; Fernando votou em Lula, mas, dada a imbecilização pseudo-intelectual que acomete toda a fleuma pensante esquerdista, tal fato não é de relevância precípua: depois que Vera Loyola e Paulo Maluf declararam-se eleitores do ingênuo e inexperiente Lula, lançou-se ao mesmo balaio todas as convicções e transformaram as ideologias em papel higiênico. Afinal, todos eles degustam caviar, trajam ternos de portentosas grifes européias e vergam-se ao conservadorismo kitsch e à pobreza de espírito coletiva constituídas pelos anseios populares. Mas isso não vem ao caso; ao momento, atenhamo-nos a Fernando e à sua brava e genuinamente não-altruísta decisão.



Dou-me ao agradável e tacanho prazer de pensar, cá com meus botões, que a melhor parte de ser eu mesmo é que, no meu fraudulento xadrez cognitivo, sempre insurjo triunfante. Ou seja: não importa quantos equívocos eu venha a cometer, a síntese derradeira é sempre produto dos meus caprichos pavlovianos. E há também outras vantagens em ser eu mesmo, ordinário e fleumático, proselitista e burguês, altivo e cáustico: enquanto Fernando vai a Machu Picchu, eu permaneço em Goiânia. Posso dormir tranqüilo, a gozar o nobre sono da classe média, e acordar às oito da manhã para ir à Faculdade. Sem incorrer no perigo ser picado por alguma cobra venenosa ou de me deparar com narco-guerrilheiros marxistas.







Lindolpho Cademartori







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[1] Friedrich Nietzsche in Além do Bem e do Mal

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