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Artigos-->A OFICINA DE TRADUÇÃO NO ENSINO DE LE E TEORIA LITERÁRIA -- 17/12/2002 - 03:20 (Marciano Lopes e Silva) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A OFICINA DE TRADUÇÃO NO ENSINO DE “LE” E TEORIA LITERÁRIA



Cássio David da Silva* e Marciano Lopes e Silva**



*Universidade Estadual de Maringá, Av. Colombo, 5790, 87020-900, Maringá, Paraná, Brasil, e-mail: cdsilva@uem.br

**Universidade Estadual de Maringá, Av. Colombo, 5790, 87020-900, Maringá, Paraná, Brasil, e-mail: marcianolopes@bol.com.br



RESUMO: Propõe-se o exercício da tradução de textos poéticos para o desenvolvimento da autonomia dos alunos no ensino de LE e Teoria Literária nos cursos de Letras. Para melhor esclarecer a proposta, apresentamos a análise de duas traduções do poema em prosa Énivrez-vous de Charles Baudelaire seguida de uma nova tradução.

Palavras-chave: tradução; ensino de LE; oficina de tradução; Charles Baudelaire.



ABSTRACT: Workshop of translation in Foreign Languages Teaching end Theory of Literature. We propose the practice of translation of poetic texts in order to develop the students autonomy in Foreign Language teaching and Theory of Literature courses in Letters academies. For better explain the proposition, we present an analysis of two translations of Énivrez-vous, Baudelaire’s prose poem, followed by a new translation.

Key words: translation; Foreign Language teaching; translation workshop; Charles Baudelaire.





Afinal, apenas se a tradução pudesse realmente ser uma operação transparente e inócua que não causasse nenhuma interferência no suposto “conteúdo” do que se diz e se escreve; ou seja, apenas se a tradução não fosse tão potencialmente subversiva, e tão potencialmente transformadora, poderia caber, sem atritos, nos moldes do ensino e da universidade tradicionalmente montados. (Arrojo, 1993, p. 137)





1. Tradução poética e autonomia



Consideramos a autonomia do estudante como sendo a sua capacidade de realizar uma leitura crítica não somente dos conteúdos escolares, mas também do mundo que o cerca, sendo capaz de agir sobre ele, modificando-o segundo as suas necessidades e o desenvolvimento das suas capacidades físico-cognitivo-emocionais. Nessa perspectiva, autonomia é sinônimo de maturidade intelectual e existencial, de capacidade crítica e criativa de apreender novos conteúdos e de relacioná-los de modo original entre si, produzindo, dessa forma, novos conhecimentos. Por tais características, sua busca exige uma prática educativa fora dos moldes tradicionais, em que o professor é o centro das atenções, concentrando na sua pessoa o conhecimento e atribuindo aos alunos a posição passiva de reprodutores do mesmo. Daí a importância que atribuímos às oficinas de ensino, pois elas concebem, para o seu funcionamento, uma relação professor-aluno que rompe com o direcionismo autoritário do ensino tradicional.

Tratando-se do ensino de língua e literatura, essas oficinas podem se apresentar com outros nomes: talleres, ateliers ou laboratórios de produção textual e/ou criação literária. Mas apesar das diferenças em seus nomes, objetivos e metodologias, a prática pedagógica nesses espaços tem em comum o estímulo ao trabalho centrado na produção e na participação dos seus membros, cabendo ao professor a condição de coordenador e orientador. Em sua tese de doutoramento, Oficina literária: o artesanato da escritura, Maria da Graça Aziz Cretton (1992) apresenta diferentes concepções de oficinas literárias desenvolvidas nos E.U.A., França, Espanha, Argentina, Cuba e Brasil, conferindo destaque, nos casos brasileiros, às experiências realizadas na UFRJ e no Rio Grande do Sul, especialmente na PUC-RS, por Luis Antonio de Assis Brasil, e na UFRGS, por Tânia Carvalhal. Sua preocupação maior também reside na necessidade de renovação dos métodos educacionais no ensino da língua e, em especial, da literatura.



A contribuição das Oficinas para o ensino da literatura e da teoria literária revela o seu valor pedagógico. Não se pretende aqui propor a substituição das duas disciplinas. O que se defende é a inclusão, no currículo de todas as Faculdades de Letras, de um curso de criação literária, em caráter optativo, como lugar privilegiado para se exercer o artesanato da escritura.

Em vários países, este tipo de experiência foi relacionado ao processo do ensino oficial, como um modo de resistência ou alternativa didática de trabalho. Também no Brasil, o surgimento e a multiplicação destes cursos revelam a falência do sistema educacional no que diz respeito ao estímulo às atividades criativas.

Ao dar à imaginação e à criatividade o lugar de destaque que elas devem ter no processo educativo, a Oficina propicia um campo fértil ao desenvolvimento da sensibilidade e do potencial criador do aluno. Deve, portanto, ser estendida, com as devidas adaptações, a outros níveis de ensino, inserida em um projeto mais amplo de uma pedagogia da criatividade, que visa a renovar a escola tradicional, pela constante experimentação e pelo exercício da criação (Cretton, 1992, p. 118-9).



A atividade de tradução desenvolvida em “laboratórios de textos”, conforme propõe Haroldo de Campos (1992), também constitui uma oficina de criação literária e como tal pode ser uma excelente estratégia não somente para o ensino da língua estrangeira e da prática da tradução, mas também para o desenvolvimento da autonomia do aluno e da consciência social e histórica da língua e das relações de identidade/alteridade entre diferentes culturas.

O tradutor que não incorre no equívoco do etno e do logocentrismo sabe que todo trabalho de tradução implica numa recriação, principalmente se o texto de partida tiver um alto grau de poeticidade. Assim como Rosemary Arrojo (1992), não concordamos com a postura “logocêntrica” de Haroldo de Campos (1992) quanto à “intradutibilidade” dos textos poéticos, embora seja certo que eles apresentam uma complexidade maior do que os de caráter informativo, visto que o exercício estético da forma (seja em prosa ou em verso) não se realiza independente do conteúdo, os quais, juntos, realizam a arquitetura da obra de arte (cf. Bakhtin, 1990). Por tal motivo, o exercício de tradução poética é, antes de tudo, “um processo de inutrição (sic), um refazer-se do poema autônomo, na língua-cultura de chegada” (Laranjeira, 1993, p. 36).



Vista a tradução do poema como reescritura de uma leitura do poema por um sujeito que tem a sua própria história social e individual, com tudo aquilo que aí se implica de ideologia e de pulsões corporais que agem como forças determinantes do seu fazer, o conceito de fidelidade não pode reduzir-se à simples superposição coincidente de duas estruturas-fora (sic) enquanto objetos. (Laranjeira, 1993, p. 123)



Traduzir os textos poéticos de modo a levar o leitor para a linguagem do autor constitui, segundo Schnaiderman (1987, p. 72), a “verdadeira tradução”, pois implica num mergulho na língua, na cultura e nas condições sociais e históricas que envolvem o texto original e o seu criador. A busca desse ideal, quando não marcada pela postura logocêntrica que reduz o tradutor e a sua tradução a posições subalternas, exige uma postura criativa e liberta de preconceitos e de etnocentrismo, de modo que ele possa diluir sua identidade “no espaço intermediário dessa enunciação terceira, assumindo a persona de quem escreve e de quem lê” (Souza, 1986, p. 182). Ao fazê-lo, o tradutor transforma-se também em ator, pois age como “um intérprete que renuncia a si próprio para se converter na personagem que encarna” (Junqueira, 1986, p. 218), promovendo, dessa forma, um equilíbrio dinâmico entre o Mesmo e o Outro, entre identidade e alteridade sem perder suas características próprias.

A necessidade do tradutor reconhecer o Outro e compreender a diferença é um dos aspectos mais saudáveis da atividade de tradução e provavelmente a sua mais importante virtude. Sem o reconhecimento da diferença e do mundo exterior ao Eu torna-se impossível o desenvolvimento de uma identidade própria e de uma personalidade madura e autônoma. Por tal motivo, a busca do equilíbrio que a atividade de tradutor proporciona e exige é outro aspecto muito importante a ser considerado, pois o mesmo é essencial para o desenvolvimento harmônico do indivíduo e da sua maturidade, condições fundamentais para a conquista da sua autonomia como Ser.

Se, por um lado, a atividade de tradução envolve o sentimento, o gosto e o prazer; por outro, é necessário muita racionalidade, o impulso oposto àquele que envolve os sentidos e a emoção. Sem uma profunda consciência da linguagem e das línguas em jogo, o tradutor não encontrará soluções adequadas para recriar o brilho e a magia do original. Por mais paradoxal que seja, desde Poe e Baudelaire tornou-se impossível alcançar a poesia somente pelos caminhos do sentimento e da inspiração. A razão pragmática e a lógica reguladora da máquina e da produção industrial, que impulsionam a modernidade, são incorporadas ao processo de criação poética. O artista torna-se detetive e tecelão: um analista a perseguir pistas com o apoio da lógica e da ciência e um artesão a tramar tapeçarias com os fios emaranhados da vida. No entanto, essa aparente contradição, se bem equacionada na prática do tradutor, pode se tornar uma grande virtude, posto que “preserva a verdade dos sentidos e reconcilia, na realidade da liberdade, as faculdades ‘inferiores’ e ‘superiores’ do homem, sensualidade e intelecto, prazer e razão” (Marcuse, 1968, p. 156).

Desconsiderando os aspectos historicamente determinados da contradição acima, a conjugação e a conciliação dos princípios opostos da racionalidade e da sensualidade estão na própria natureza da arte e têm sido objeto da estética desde sua formulação por Alexander Baumgarten em meados do século XVIII:



Nessa história, o fundamento da estética como disciplina filosófica independente compensa o domínio repressivo da razão: os esforços para demonstrar a posição central da função estética e para estabelecê-la como categoria existencial invocam os valôres de verdade inerentes aos sentidos, contra a sua depravação sob o princípio de realidade prevalecente. A disciplina da estética instala a ordem da sensualidade contra a ordem da razão. Introduzida na filosofia da cultura, essa noção almeja uma libertação dos sentidos que, longe de destruir a civilização, dar-lhe-ia uma base mais firme e incentivaria muito as suas potencialidades. Operando através de um impulso básico – nomeadamente, o impulso lúdico – a função estética “aboliria a compulsão e colocaria o homem, moral e fisicamente, em liberdade”. Harmonizaria os sentimentos e afeições com as idéias da razão, privaria as “leis da razão de sua compulsão moral” e “reconciliá-las-ia com o interêsse dos sentidos” (Marcuse, 1963, p. 163).



O ideal acima é o mesmo de Friedrich Schiller, que, aliás, é citado nas passagens marcadas por aspas. Em suas cartas para a educação estética do homem, Schiller (1994) atribui à arte uma importantíssima função humanizadora, pois através da satisfação do desejo lúdico que lhe é inerente o homem pode conciliar e harmonizar os impulsos formal e sensível, contraditórios em sua natureza. Postura semelhante à de Freud, que considera a atividade lúdica da arte como um recurso para a conciliação dos princípios de realidade e de prazer (cf. Marcuse, 1963).

Noutra perspectiva teórica, a formação da maturidade depende do equilíbrio entre três níveis da vida psiquíca: o psicofisiológico, o psicossocial e o racional-espiritual. Entre os três, o terceiro é essencial para que o homem conquiste o equilíbrio e a maturidade necessários a sua liberdade, pois, sem excluir os outros dois, esse nível garante a transcendência espiritual sobre as determinações da natureza. Segundo essa linha fenomenológica, “o homem é emoção e razão e ambos estes elementos interagem no momento da decisão” (Cencine & Manenti, 1988, p. 54), de modo que toda atitude saudável requer a resolução desse conflito.



O que se quer afirmar é a capacidade psíquica de executar um ato de vontade. O homem não está ligado ao imediatismo das emoções, pode descartar-se destas e tornar-se, assim, um agente moral. O juízo e a tomada de posição são possíveis somente sobre o fundamento da liberdade quanto aos vínculos do nível psicofisiológico e psicossocial.

Capacidade de distanciamento e de desinibição: aqui deve haver integração entre afetividade e racionalidade. Isso ocorre através da subordinação (e não eliminação) da afetividade à racionalidade (Cencine & Manenti, 1988, p. 69).



Descontando a polêmica sobre a necessidade ou não da subordinação do afetivo à racionalidade, podemos observar que as considerações de Cencine e Manenti também reafirmam a necessidade de harmonia entre os impulsos contrários da razão e dos instintos ou, segundo uma perspectiva freudiana, dos princípios de realidade e de prazer. E considerando que a tradução literária é também criação poética, conforme já observamos, nada mais indicado do que o seu uso no ensino, principalmente tratando-se do ensino de línguas estrangeiras em um curso superior de Letras. Graças ao caráter lúdico da atividade, tanto o professor como o aluno têm a possibilidade de buscar e desenvolver a harmonia dos sentimentos e das sensibilidade com a racionalidade e a moral, reconciliando-as entre si.





2. A prática da oficina: análise crítica das traduções



Conforme já apontamos, a oficina de tradução também é um espaço de criação literária. Como tal, ela deve centrar-se na produção dos participantes, que preferencialmente não devem exceder o número de doze, cabendo ao professor o papel de coordenador e de orientador, incentivando o desenvolvimento do pensamento crítico e da autonomia do aluno. O objetivo maior, portanto, é alcançar um grau de participação e de autonomia em que todos realizem, por conta própria, a análise crítica do texto original e sua tradução-recriação, que será discutida pelo grupo para posterior reeescritura individual. Mas, para isso, é necessário que o professor instaure na classe um clima de confiança, desinibição e companheirismo entre todos os participantes, sem o qual a experiência provavelmente será fadada ao fracasso. Para a instauração desse clima, a realização de outras atividades não ligadas ao programa do curso são imprescindíveis. Sem o intuito de expor todas as alternativas possíveis, sugerimos algumas práticas:



&
61623; realização de jogos, preferencialmente envolvendo habilidades lingüísticas e semióticas;

&
61623; colocação de painéis na sala para exposição de trabalhos dos alunos, de textos poéticos, fotos e artigos de interesse do grupo e selecionados espontaneamente por cada participante;

&
61623; apresentação oral aos colegas dos motivos que levaram o participante a escolher determinado texto para exposição no painel;

&
61623; exposição, no painel, das datas de aniversário dos participantes e a realização de uma pequena comemoração em sala nas ocasiões em que alguém complete anos;

&
61623; saídas com o grupo para assistir exposições, shows e apresentações teatrais;

&
61623; utilização de outros recursos – como fotos e música – para sensibilização do grupo antes de passar para a leitura do texto a ser estudado e traduzido.



Outro cuidado importante é a observação de etapas no desenvolvimento do trabalho de acordo com os graus de dificuldade e o nível da formação teórica dos participantes. Por esse motivo, é aconselhável que o professor inicie o curso desenvolvendo a análise crítica de traduções de modo a desenvolver, na prática, o exercício da análise e a revisão de aspectos da teoria literária pertinentes ao trabalho de tradução poética. Após a realização conjunta dessas análises, o passo seguinte é atribuir aos participantes, individualmente ou em grupos, a tarefa de retraduzir o texto em questão. Tal prática é salutar, pois contribui para desmistificar a idéia de autoria marcada pelo cunho da originalidade e, conseqüentemente, da propriedade e intradutibilidade do texto, posto que a desconstrução possibilita ao aluno reconhecer o caráter convencional e arbitrário tanto da criação como da tradução.



E para aprender a “escrever”, ou seja, para aprender a ser “autor” do texto que traduz terá que explicitar e compreender a relação transferencial que o amarra a esse texto e a seu autor “original”, aquele que supostamente detém o “direito” e a “autoridade” de decidir sobre o significado desse texto, aquele a quem supostamente se deve “fidelidade” e “respeito”. Terá que compreender que também a relação transferencial que o amarra a seu professor de prática de tradução, aquele a quem atribui o poder de “saber” traduzir e que supostamente “possui” as soluções “corretas” para os problemas de sua tradução. Com o auxílio do professor, a explicitação e a compreensão dos mecanismos dessas relações transferenciais devem permitir ao aluno assumir a responsabilidade pela tradução de que será, inescapavelmente, autor (Arrojo, 1993, p. 145-6).



Embora pareça evidente, não é demais lembrar que a análise e discussão críticas das traduções devem ser feitas pelos alunos-participantes sob a orientação do professor-coordenador. Para a sua realização, o grupo deverá contar com o apoio de uma bibliografia que trate dos seguintes pontos: teoria da literatura, teoria da tradução, estudos críticos e biográficos sobre a obra e a vida do autor, além, é claro, de bons dicionários em ambas as línguas (de sinônimos e antônimos, de expressões idiomáticas, etc.). No transcorrer do processo de análise e discussão das traduções em estudo, as polêmicas geradas constituir-se-ão em um ótimo e indispensável fermento para o crescimento do juízo crítico de cada participante e, por conseguinte, da sua autonomia. As inúmeras variantes de tradução observadas e sugeridas, além daquelas utilizadas pelos tradutores nos textos em análise, devem ser registradas, pois transformar-se-ão em um material indispensável para o trabalho de reescritura de uma nova tradução do TO (por parte de cada participante ou grupo) na etapa seguinte da oficina.

Para refletirmos sobre a prática pedagógica proposta, optamos por analisar e discutir duas traduções em língua portuguesa de um poema em prosa de Charles Baudelaire (Enivrez-vous). Dois são os motivos que nos levaram a essa decisão. O primeiro, de ordem racional, deve-se ao fato de esse gênero situar-se numa posição intermediária entre a prosa e a poesia, exigindo do tradutor a consideração dos diversos elementos estruturais (semânticos, sonoros, rítmicos e imagéticos) sem lhe impor a dura resistência da forma que normalmente o poema em versos apresenta (principalmente quando organizado com um ritmo e um metro bastante rígidos). O segundo motivo, como não poderia deixar de ser, é de ordem emocional e se encontra em nossa paixão por Baudelaire. As traduções analisadas são de Leda Tenório da Motta (1995, p. 12) e de Dorothée de Bruchard (1996, p. 180) e apresentam o mesmo título: Embriaguem-se. A primeira será indicada por TT1 e a segunda por TT2. O texto original será indicado por TO.



Il faut être toujours ivre. tout est lá: c’est l’unique question. Pour ne pas sentir l’horrible fardeau du Temps qui brise vos épaule et vous penche vers la terre, il faut vous enivrer sans trêve.

Mais de quoi? De vin, de poésie ou de vertu, à votre guise. Mais enivrez-vous.

Et si quelquefois, sur les marches d’un palais, sur l’herbe verte d’un fossé, dans la solitude morne de votre chambre, vous vous réveillez, l’ivresse déjà diminuée ou disparue, demandez au vent, à la vague, à l’etoile, à l’oiseau, à l’horloge, à tout ce qui fuit, à tout ce qui gémit, à tout ce qui roule, à tout ce qui chante, à tout ce qui parle, demandez quelle heure il est; et le vent, la vague, l’étoile, l’oiseau, l’horloge, vous répondront: “Il est l’heure de s’enivrer! Pour n’être pas les esclaves martyrisés du Temps, enivrez-vous, à votre guise (Baudelaire, 1996, p. 180 – TO).



É preciso estar sempre embriagado. Aí está: eis a questão. Para não sentirem o fardo horrível do Tempo, que verga e inclina para a terra, é preciso que se embriaguem sem descanso.

Com quê? Com vinho, poesia ou virtude, a escolher. Mas embriaguem-se.

E se, porventura, nos degraus de um palácio, sobre a relva verde de um fosso, na solidão morna do quarto, a embriaguez diminuir ou desaparecer quando você acordar, pergunte ao vento, à vaga, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo que flui, a tudo que geme, a tudo que gira, a tudo que canta, a tudo que fala, pergunte que horas são; e o vento, a vaga, a estrela, o pássaro, o relógio responderão: “É hora de embriagar-se! Para não serem os escravos martirizados do Tempo, embriaguem-se; embriaguem-se sem descanso! Com vinho, poesia ou virtude, a escolher” (TT1).



Há que estar sempre embriagado. Tudo está nisto: é a única questão. Para não sentir o terrível fardo do Tempo que lhes dilacera os ombros e os encurva para a terra, embriagar-se em [sic] cessar é preciso.

Mas de quê? De vinho, poesia ou virtude, a escolha é sua [sic]. Mas embriaguem-se.

E se às vezes, nas escadarias de um palácio, na verde relva de um barranco, na solidão morna de seu quarto, você [sic] acordar, com a embriaguez já diminuída ou sumida, perguntem ao relógio, ao vento, à vaga, às estrelas, a tudo o que foge, a tudo o que geme, a tudo o que rola, a tudo o que canta, a tudo o que fala, perguntem que horas são: e o relógio, o vento, a vaga, a estrela, as aves lhe [sic] responderão: “É hora de embriagar-se! Para não serem os escravos martirizados do Tempo, embriaguem-se; sem cessar embriaguem-se! De vinho, poesia ou virtude, a escolha é sua” (TT2)



Uma das maneiras possíveis de se iniciar o trabalho é discutindo a idéia de gramaticabilidade do poema proposta por Mário Laranjeira, posto que ela é essencial na definição do procedimento de tradução que defendemos e que considera os diversos níveis de elaboração do texto de modo integrado, ou seja, como diversas peças que compõem e dão movimento e funcionalidade a um sistema.



(...) Não duvidamos de que trazer a polissemia do poema original para o poema traduzido é fundamental, mas não se resume aí a empreitada da tradução poética. Há que se trazer também a “gramática” do poema, os jogos de equivalências fônicas, sintáticas, semânticas, de cujos acoplamentos se origina a estrutura poética atualizada naquele poema e não noutro, estrutura que lhe dá a individualidade e que, se eficazmente levada para o texto de chegada, fará dele a tradução daquele poema específico, não de outro. (Laranjeira, 1993, p. 62)



O que Mário Laranjeira chama de “gramática” do poema é equivalente à idéia de forma “arquitetônica” desenvolvida por Bakhtin em seus ensaio sobre o problema da forma na estética do romance. Segundo ele, a forma não pode ser considerada somente em sua realização material separadamente do conteúdo e da maneira como se relaciona axiologicamente com ele. Em outras palavras, deve-se encarar o problema segundo a seguinte perspectiva: “como a forma composicional – a organização do material – realiza uma forma arquitetônica – a unificação e a organização dos valores cognitivos e éticos” (Bakhtin, 1990, p. 57)? Para responder essa questão, ele considera que a principal tarefa da estética é o estudo do objeto artístico na sua singularidade, cabendo-lhe “compreender a forma e o conteúdo na sua inter-relação essencial e necessária: compreender a forma como forma do conteúdo, e o conteúdo como conteúdo da forma, compreender a singularidade e a lei das suas inter-relações” (Bakhtin, 1990, p. 69).

Quando consideramos o ato de tradução segundo a perspectiva proposta acima, uma das primeiras dificuldades que surge é a de recriar a magia do ritmo e da musicalidade do TO sem alterar em demasia o nível semântico.

Nas duas traduções do poema em prosa Enivrez-vous, o primeiro parágrafo parece ser o mais problemático. Embora ambas as tradutoras sejam bastante fiéis à significação das palavras originais, realizando uma tradução predominantemente literal, perde-se bastante da expressividade gerada pelo ritmo e pela sonoridade. Nem sempre há uma recriação dos elementos rítmicos e sonoros capaz de manter o tom e a sua significação originais. No TO, ele é mais imperativo e demonstra de modo mais irônico o sentimento de revolta. Nas traduções, devido à distensão do ritmo e à maior nasalização, torna-se mais melancólico e menos irônico.

No TO, os dois primeiros períodos apresentam um ritmo rápido e marcado por sons agudos e explosivos que conferem uma sonoridade mais agressiva ao primeiro parágrafo: Il faut être toujours ivre. Tout est lá: c’est l’unique question.

Note-se a aliteração da consoante oclusiva [t] e a assonância da vogal [&
61509;], de sonoridade aguda, que, juntas, formam o eco [t&
61509;]. No conjunto, as assonâncias do [&
61509;] e do [i] e a vogal aberta [a] (em “lá”), sempre marcando os acentos do ritmo, conferem força e agressividade aos enunciados. Força que permanece no restante do parágrafo acrescida da aliteração da consoante oclusiva [p] e coroada pelo eco [t&
61509;] – que também se repetem nos momentos de acento rítmico. Entretanto, nas traduções esses elementos se perdem. Nelas, a predominância da nasalização colabora para imprimir um tom de tristeza e de cansaço e as oclusivas, embora existam, não possuem a mesma força por não se encontrarem nos pontos de acento rítmico. No TT1, o enfraquecimento da sonoridade original é ainda mais sensível. Nessa tradução, o adjetivo ivre encontra um equivalente semântico na palavra “embriagado”, mas essa é por demais longa (o que distensiona o ritmo) e a vogal [a], embora aberta e sonora, não ecoa no restante do parágrafo com a mesma força que o som agudo do [i] (presente em diversas palavras: unique, sentir, horrible, qui, brise, il e enivrer). Além disso, a nasalisação do [e], que se repete nos momentos finais e decisivos do parágrafo (“que se embriaguem sem descanso.”), produz uma sonoridade abafada e obscura, expressiva de um tom melancólico.

Diversamente, no TT2, a tradutora consegue manter melhor a força do original. Embora também traduza ivre por “embriagado”, ela opta pelo uso do verbo haver (“Há”) e do infinitivo verbal (“embriagar-se” e “cessar”) ao fim do parágrafo, o que lhe permite obter a sonora assonância do [a] acompanhada da vibração do [r] em quatro acentos rítmicos.

Outro aspecto importante a ser considerado é, juntamente com o ritmo, a presença de metros internos ao parágrafo e aos períodos. Comparando-se o terceiro período do primeiro parágrafo entre o TO e as suas traduções pode-se observar que ambas as tradutoras tentam recriar a presença do ritmo através de outros metros mais adequados à língua de chegada.



Pour / ne / pas / sen/tir / l’ho/rri/ble/ far/deau /du / Temps

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12

Qui / bri/se / vo/ sé / pau/le et

1 2 3 4 5 6 vous / pen/che / vers / la / te/rre,

1 2 3 4 5 6

il / faut / vou / se /ni/vrer / sans / trê/ve

1 2 3 4 5 6 7 8



TT1

Pa/ra/ não/ sen/ti/rem o/ far/do ho/rrí/vel/ do/ Tem/ po,

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12

Que/ ver/ga e in/cli/na/ pa/ra a/ te/rra,

1 2 3 4 5 6 7 8

é/ pre/ci/so/ que/ se em/bri/a/guem/ sem/ des/can/so.

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12



TT2

Pa/ra/ não/ sen/tir/ o/ te/rrí/vel/ far/do/ do/ Tem/po

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13

Que/ lhes/ di/la/ce/ra os/ om/bros

1 2 3 4 5 6 7 e os/ en/cur/va/ pa/ra a/ te/rra,

1 2 3 4 5 6 7

Em/bri/a/gar/-se/ sem/ ce/ssar/ é/ pre/ci/so

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11



Através dos quadros acima pode-se observar como os diversos níveis de composição (métrico, rítmico, sonoro e semântico) se encontram profundamente interligados. A recriação do alexandrino é praticamente perfeita nas duas traduções Ambas mantêm a aliteração do [t] nas mesmas posições (5a e 12a sílabas) e o som do [r] vibrante – que acentua a significação da palavra horrible – graças à proximidade lingüística entre as duas línguas. No entanto, a recriação dos outros três metros já não apresenta a mesma proximidade.

No TT1, a substituição dos hexassílabos por um octassílabo atenua a intensidade emocional do TO, pois não possibilita a pausa do hemistíquio (que confere ênfase, através da suspensão da fala, a cada hexassílabo) e nem o paralelismo resultante da aliteração das consoantes oclusivas ( [b]-[p] e [p]-[t]) na segunda e sexta sílabas tônicas que marcam o acento rítmico de cada hexassílabo. Além disso, em nível semântico, perde-se a imagem dos ombros (épaule) dilacerados e dobrados em direção à terra – embora esta imagem possa ser subentendida. Para encerrar o parágrafo, a tradutora recria o octassílabo como alexandrino, mas a escolha desse metro clássico leva à tradução de sans trêve por “sem descanso” no lugar do equivalente “sem trégua”, que seria muito mais próximo do original tanto semântica quanto métrica e sonoramente. Devido a essa escolha, conforme apontamos acima, resulta uma perda da sonoridade agresssiva e tensa do [tr&
61509;] em troca da nasalisação do [a].

Com relação a esses pontos, o TT2 é melhor, pois recria de modo mais satisfatório as relações existentes em TO. Os dois metros heptassílabos são mais felizes que o octassílabo anterior, pois mantêm a pausa (e a suspensão da fala) assim como a assonância aguda e agressiva do [&
61509;], que acentua a imagem dos ombros dilacerados, expressando de modo incisivo a violência resultante da ação do Tempo.

No terceiro parágrafo, a enumeração e as anáforas possibilitam uma tradução muito mais próxima do original nos trechos em que elas ocorrem. Logo no início, os elementos enumerados (vague, étoile, oiseau, horloge) juntamente com as anáforas (das preposições e dos artigos que os acompanham) constituem na maioria trissílabos com um ritmo ternário ascendente (_ _ _/). Essa característica é adequadamente recriada no TT1, pois são mantidos os recursos estilísticos do TO. No entanto, em TT2 a tradutora altera a posição de alguns substantivos enumerados, além de variá-los, juntamente com os respectivos artigos, quanto ao número, traduzindo alguns no singular e outros no plural. Além disso, omite a tradução de l’oiseau, o que pode ser um erro de impressão (embora injustificável, tratando-se de uma segunda edição revista).



TO: au / vent,/ à/ la/ va/gue, à é/toi/le,/ à/ loi/seau,/ à/ l’hor/loge



TT1: ao/ ven/to,/ à/ va/ga,/ à es/tre/la,/ ao/ pá/ssa/ro, ao/ re/lógio



TT2: ao/ re/ló/gio,/ ao/ ven/to,/ à/ va/ga,/ às es/trelas



A próxima seqüência de enumerações também introduzidas por anáforas é bem realizada pelas duas tradutoras, pois ambas mantêm o metro e o ritmo originais, cujas unidades formam versos pentassílabos com acento na segunda e na quinta sílabas ( _ _/ _ _ _/):



TO TT1 TT2

à tout ce qui fuit

à tout ce qui gémit*

à tout ce qui roule

à tout ce qui chante

à tout ce qui parle

_ _/ _ _ _/

a tudo que flui

a tudo que geme

a tudo que gira

a tudo que canta

a tudo que fala

_ _/ _ _ _/

a tudo o que foge

a tudo o que geme

a tudo o que rola

a tudo o que canta

a tudo o que fala

_ _/ _ _ _/



&
61623; Para a manutenção do metro e do ritmo apontados no TO, é necessário uma alteração de leitura em “à tout ce Qui gémit” com a aglutinação do advérbio com o pronome: [tus].



No quadro acima há duas diferenças entre TT1 e TT2. Uma reside no uso do pronome demonstrativo “o” (TT2), decorrente da tradução literal do pronome demonstrativo ce não realizada no TT1. A segunda reside na escolha de diferentes palavras (“gira” e “rola”) para traduzir roule. No entanto, nenhuma delas é significativa como as que ocorrem no início do parágrafo.

No início do primeiro período, a palavra fossé é traduzida por “fosso” em TT1 e por “barranco” em TT2. A diferença semântica, métrica e sonora, com relação ao termo original, é muito grande em TT2 e não se justifica, visto que “fosso” é um termo equivalente que se aproxima muito bem se considerado sob os três critérios, salvo que o motivo da escolha em TT2 resida na aliteração do [r] vibrante.

Ainda com relação à escolha da palavra “barranco” para substituir fossé, é importante observar que a mesma possui um alcance semântico mais profundo do que aparenta. Considerando-se a intertextualidade com os outros textos do conjunto da obra de Baudelaire, veremos que a antítese “alto-baixo” resultante da oposição marches-fossé é extremamente significativa, pois se inscreve num conjunto de imagens recorrentes e expressivas do que Max Milner (1974) chama de la poétique de la chute (poética da queda). Enquanto a palavra fossé inscreve-se no mesmo campo semântico e imagético de abïme e gouffre, a palavra marches é uma metonímia de escalier, outra imagem extremamente significativa: “c’est sous la forme d’un escalier que Baudelaire se répresente le passage qui fait communiquer la conscience claire avec les régions ténébreuses de l’être humain où s’agitent les images du cauchemar et de la folie” (Milner, 1974, p. 95).

Na obra de Baudelaire, o sentimento de desencanto que se alastrou pela literatura no fim do século XIX, principalmente entre simbolistas, decadentistas e últimos românticos, se cristaliza em uma idealidade vazia e na representação do cristianismo em ruínas, temas que expressam o lamento pelo crepúsculo dos ideais platônicos e, em especial, românticos. Segundo Marcel Raymond:



(...) Baudelaire desenvolve o tema romântico da revolta e da evasão até o mais alto grau do trágico. De forma que o segredo da ação decisiva de seu livro sobre a sensibilidade moderna encontra-se nesta concordância fundamental, e que se demorou tanto a perceber, entre os sentimentos e as aspirações aos quais ele deu forma e a alma obscura e sequiosa de seu século” (Raymond, 1997, p. 17).



O conflito resultante do desejo de ascensão e purificação – de origem platônica e místico-cristã – que se frustra perante o vazio da idealidade e o tempo escatológico gera um movimento de ascensão e queda marcado pelo paroxismo. “Daí, a paridade de ‘ideal’ e ‘abismo’, daí expressões, como ‘ideal corroente’, ‘estou acorrentado à fossa do ideal’, ‘azul inacessível’” (Friedrich, 1991, p. 48) e outras que marcam os pólos do mal satânico e da idealidade vazia. Por tais motivos, Baudelaire está



(...) condenado à insatisfação perpétua, forçado a sobrecarregar uma natureza enfraquecida e a procurar continuamente novos meios de não sentir “o horrível fardo do tempo”. As condições “normais” da vida terrestre não poderiam trazer-lhe, doravante, nenhum gozo que logo não se transformasse em dor e somente o esquecimento de um mundo deploravelmente relativo pode elevá-lo, por um momento, acima das terras cinzentas do tédio” (Raymond, 1997, p. 17).



Como vemos, há um movimento de “invariável decepção” na obra de Baudelaire. Invariável decepção com os ideais que resulta sempre na queda, mergulho na escuridão do abismo e da angústia terrestres. E com base nessas considerações, somente possíveis graças à leitura intertextual (com outras obras de baudelaire e/ou com estudos críticos sobre elas), podemos considerar que a palavra “barranco” não constitui um bom equivalente para fossé, pois com o seu uso se perdem a idéias de abismo, claustro e escuridão existentes em “fosso”. Afinal, o barranco nada mais é do que um desnível entre dois planos, sendo, portanto, uma superfície inclinada a céu aberto. Mas, por outro lado, ao substituir marches/degraus por “escadarias”, Bruchard obtém, no TT2, a assonância do [a] e desfaz a metonímia, conferindo realce à metáfora da escada. Além disso, ela mantém a anáfora da preposição de lugar (sur) e do artigo definido (le/s) ao traduzi-los pela contração “na(s)” – diversamente do que faz Da Motta no TT1, que ora usa uma alternativa (“sobre”), ora usa outra (“na”), demonstrando uma incoerência.

Outro aspecto importante a considerar é a tradução do pronomes de tratamento vous, uma vez que ele encontra equivalência em três diferentes formas no idioma português: você, vocês e vós. Em TT1, Motta traduz o pronome pessoal “vous” (2a pessoa) por “vocês” (terceira pessoa), o que confere um tom coloquial ao discurso. O mesmo procura fazer Bruchard, porém ela oscila entre o uso do “vocês” e do “você”, o que não se justifica. Aliás, somos da opinião que melhor seria traduzir o pronome por “vós”, embora ele quase não seja mais usado no português brasileiro. Tal procedimento manteria a aliteração do [v], que perpassa todo o TO, e o tom irônico – que oscila entre o respeito formal e o sarcasmo – com que Baudelaire costuma se dirigir ao leitor. Tom claramente observável em vários textos do Spleen de Paris, entre os quais se destaca Le chien et le flacon (Baudelaire, 1996, p. 46), que muito lembra a dedicatória ao leitor presente na abertura de Les fleurs du mal:



C’est l’Ennui! – L’oe il chargé d’un pleur involontaire,

Il rêve d’échafauds en fumant son houka.

Tu le connais, lecteur, ce monstre délicat,

– Hypocrite lecteur, – mon semblable, – mon frère!

(Baudelaire, 196? , p. 16)



Ao se traduzir vous por “você” ou “vocês”, perde-se a formalidade do tratamento existente no uso do referido pronome, uma vez que, na França, ele é utilizado em situações de formalidade, geralmente expressando uma distinção entre os interlocutores (de hierarquia, idade, classe etc.). Na realidade brasileira, os dois pronomes apontados são utilizados em situações informais e de proximidade social entre os falantes, cabendo o uso do “senhor” em situações de formalidade. Em contrapartida, o uso do pronome “vós” mantém o tratamento respeitoso e, por ser uma forma não mais utilizada, confere uma aura de antigüidade ao texto, criando um distanciamento no tempo que sintoniza o discurso com a época do original.

A perda do tom irônico também ocorre de modo significativo no segundo parágrafo de ambas traduções. A substituição da expressão “à votre guise” por “ao seu modo” manteria a sonoridade do [&
61581;] e permaneceria bastante próxima da original, mas em ambas as traduções abandona-se o uso de uma expressão lingüística mais polida, o que banaliza um pouco o texto, desfazendo a tensão existente entre a forma polida de dirigir-se ao leitor e o tom imperativo da sugestão pouco educada e social de embriagar-se. Além disso, o verbo “escolher” não expressa uma atitude tão pessoal quanto o substantivo “modo”, que significa um jeito próprio de ser e agir.





3. Considerações finais e uma nova tradução



Após a análise das traduções, o professor poderá discutir as seguintes questões com os seus alunos:



1. o poema em prosa possui características semelhantes ao poema em versos, pois também apresenta ritmo, sonoridade, metro e figuras de linguagem;

2. para a tradução do texto poético é necessário, além da lingüística, o conhecimento de teoria literária;

3. a escolha dos procedimentos de tradução depende da relação entre forma e conteúdo;

4. por mais que o tradutor se esforce para aproximar o TT do TO, ele terá que recriar o texto levando em consideração outros níveis estruturais além do semântico;

5. a tradução literal nem sempre é um bom caminho no trato do texto poético;

6. na tradução de um mesmo texto pode-se privilegiar um ou outro aspecto estrutural;

7. o aspecto estrutural eleito determinará as diversas escolhas quanto aos procedimentos de tradução e aos recursos estilísticos;

8. a consideração da intertextualidade do TO com outros textos do mesmo autor pode ser profícuo para a sua melhor compreensão;

9. o tradutor deve ter como alvo recriar a “gramática do poema” (Laranjeira, 1993), ou seja, a sua “forma arquitetônica” (Bakhtin, 1990) original.



Realizada a discussão teórica, os participantes deverão realizar individualmente ou em grupo uma nova tradução resultante do trabalho realizado para discussão na classe. Na realização dessa atividade, todas as anotações teóricas e de possíveis variantes de tradução feitas na etapa anterior serão extremamente úteis no trabalho. Ao ter que optar por uma variante entre outras, o participante é obrigado a transcender os níveis de análise e crítica rumo ao desenvolvimento da sua criatividade, vivenciando a experiência de elaboração do texto artístico – condição fundamental para a consciência da plasticidade da língua e dos percalços que dificultam a criação, assim como para a formação do respeito necessário a qualquer julgamento maduro e digno da necessidade da arte. E para que esse processo de amadurecimento crítico e criativo possa ser consolidado, é também indispensável que as traduções sejam apresentadas ao grande grupo (o coletivo da classe) para uma nova discussão e apreciação críticas, podendo, posteriormente, serem expostas em painéis e/ou publicadas, tornando-se públicas. Em suma, podemos sintetizar o trabalho da oficina nas seguintes etapas:



1. Familiarização com a obra do autor: os participantes deverão ler outros textos (literários ou não) do autor além daquele a ser traduzido de modo a se familiarizar com seus temas, linguagem e estilos.

2. Leitura, análise e discussão críticas: os participantes deverão analisar e discutir criticamente as traduções do TO sob orientação do coordenador. É importante que os participantes registrem todas as variantes possíveis de tradução que forem discutidas assim como todas as observações teóricas que forem pertinentes às traduções em estudo.

3. Escritura de uma nova tradução: os participantes realizarão individualmente ou em grupos uma nova tradução para o TO, aproveitando-se, para isso, das discussões e anotações feitas nas etapas anteriores. É importante que cada participante, ou grupo, tenha plena liberdade para optar pelas soluções estilísticas que considerar mais apropriadas, sem a interferência do coordenador.

4. Apresentação das novas traduções: cada participante, ou grupo, deverá, nessa etapa, apresentar para o grande grupo a sua tradução para que essa seja avaliada criticamente por todos. Após a discussão das traduções cada participante, ou grupo, poderá reescrever seu texto, aproveitando as sugestões e críticas dos colegas.

5. Exposição pública dos trabalhos: para encerrar o processo de criação, os trabalhos podem ser expostos ao público, seja em painéis ou em publicações (como jornais e livros). Nada melhor do que uma exposição acompanhada do lançamento da publicação e de uma vernissage para coroar o trabalho desenvolvido na oficina.



Para que todo esse processo seja realmente coroado com êxito, há um aspecto final a ser considerado: a avaliação.

A avaliação, do modo que é feita tradicionalmente, é um instrumento exigido pelo sistema escolar que pode facilmente levar a experiência ao fracasso, pois o que diferencia o trabalho do jogo não é a atividade em si, mas a finalidade – ou a ausência desta – que lhe é atribuída.



(...) O reino da necessidade, da labuta e do trabalho não é o da liberdade, visto que a existência humana, nesse domínio, é determinada por objetivos e funções que não são pròpriamente seus e que não permitem o livre jôgo das faculdades e desejos humanos (Marcuse, 1963, p. 172).



O jogo “anula as características repressivas e exploradoras do trabalho e do lazer” porque “é improdutivo e inútil” (Marcuse, 1968, p. 173). Ao avaliar o desempenho dos participantes na oficina com algum instrumento que meça a participação, o crescimento e os resultados obtidos (seja através de nota ou conceito), o professor insere na prática da oficina um elemento externo ao jogo e ao prazer lúdico dele decorrente. Por conseguinte, o aluno deixa de participar motivado pelo prazer da descoberta e do crescimento e, inevitavelmente, passa a considerar que seu trabalho deverá resultar em uma “nota” que lhe permita a aprovação no curso. É claro que o professor poderá lançar mão de um processo de auto-avaliação para minimizar o problema, mas, mesmo assim, ele persistirá, uma vez que a disciplina esteja inserida numa grade curricular. Por tal motivo, consideramos, assim como Maria da Graça Cretton, que a situação ideal para o desenvolvimento de oficinas é extracurricular, como disciplina optativa ou como curso de extensão.

A oferta da oficina como curso de extensão apresenta duas outras vantagens: pode ser aberta para o público em geral (respeitando-se, é claro, o pré-requisito da língua estrangeira) e pode ser desenvolvida de modo mais elástico, sendo proposta como oficina de tradução e criação poética. Dessa maneira, ela pode abranger um público maior e que também tenha interesse em participar de oficinas de poesia, em geral bastante raras. Na maioria dos casos, elas são voltadas para a criação de narrativas, o que talvez seja conseqüência da maior facilidade metodológica de se trabalhar com esse gênero. A poesia moderna, muito mais do que a narrativa, implica numa relação demasiadamente subjetiva com o texto, de tal modo que cada poeta procura desenvolver uma linguagem e uma forma arquitetônica próprias, o que dificulta bastante a elaboração de métodos e modelos voltados para o exercício dessa criação.

A prática da tradução de poesias pode ser um excelente caminho para o desenvolvimento das técnicas de escritura poética, principalmente porque amplia o diálogo dos participantes com a literatura de outros povos, possibilitando-lhes, através da intertextualidade e da diferença, a renovação do seu acervo literário pessoal. Sem o conhecimento dos clássicos é impossível a realização de novas grandes obras, seja para dar continuidade ou para contestar e romper com a tradição, conforme já afirmava T. S. Eliot em seu famoso ensaio Tradição e talento individual. Quanto ao público, não deverá ser escasso, conforme muitos possam acreditar. Em sua introdução à Poética da tradução, Mário Laranjeira apresenta ao leitor um fato bastante surpreendente e que contraria o senso comum com relação à falta de leitores para a poesia no Brasil:



(...) Em dezembro de 1987, contudo, ao ler a seção de “Lançamentos do Mês” da revista Leia, tive uma grande surpresa: na coluna “Literatura Brasileira”, contei vinte e um livros de poesia entre os quarenta e um títulos mencionados. Mais de cinqüenta por cento! Posteriormente, alarguei a minha pesquisa para o período de um ano, pois achei que a alta porcentagem de poesia na massa de publicações de um só mês poderia ser fruto do acaso. Os resultados obtidos não foram menos surpreendentes. Primeiro, a relação existente entre o volume de traduções e o de textos originais: em seiscentos e noventa e oito títulos citados, trezentos e noventa eram textos traduzidos (55, 87%). Em segundo lugar, a proporção da poesia se mantém alta na produção nacional (45,05%), mas cai a níveis insignificantes no conjunto das traduções publicadas no país (apenas 2,3%).

(...) Cabe, sem dúvida, a indagação: diante da evidente aceitação dos textos poéticos pelo público leitor brasileiro, comprovada pelo alto índice de publicações, a que atribuir a quase ausência das traduções de poemas no rol das obras que vêm a lume no país? (...) A meu ver, a complexidade da tradução poética intimida o tradutor, que dela se afasta, temeroso de não estar à altura de tal empreendimento. A isso se acrescenta o preconceito amplamente difundido, mesmo entre poetas e tradutores, que coloca a tradução de poesia como impossível por natureza ou, pelo menos, como uma atividade segunda e secundária, incapaz de produzir textos que tenham a validade dos originais (Laranjeira, 1993, p. 10).



Por fim, para completar o nosso trabalho, mantendo a coerência da proposta, pedimos licença para a liberdade e a audácia de apresentarmos a nossa tradução, que esclarecerá muito do que não foi dito, mas ficou subentendido durante as análises.



EMBRIAGAI-VOS!



Há que estar ébrio, sempre. Tudo está nisto: nesta única questão. Para não sentir o horrível fardo do Tempo, que lacera vossos ombros e vos dobra para a terra, é necessário embriagar-vos sem trégua.

Com o quê? Com vinho, poesia ou virtude, ao vosso modo. Mas embriagai-vos.

Mas se porventura, nas escadas de um palácio, na verde relva de um fosso, na solidão morna do vosso quarto, vós vos acordardes, a embriaguez já pequena ou esquecida, perguntai ao vento, à vaga, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo que flui, a tudo que geme, a tudo que gira, a tudo que canta, a tudo que fala, perguntai que horas são; e o vento, a vaga, a estrela, o pássaro, o relógio, vos responderão: “É hora de vos embriagar! Para não serdes os escravos martirizados do Tempo, embriagai-vos; embriagai-vos sem cessar! Com vinho, poesia ou virtude, ao vosso modo.”



Agora, leitor, cabe a você a avaliação crítica do nosso trabalho e a aventura de realizar a sua tradução. Mãos à obra e enivrez-vous de la jouissance de jouer!





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BAUDELAIRE, C. O spleen de Paris: pequenos poemas em prosa (apresentação e tradução de Leda Tenório da Motta). Rio de Janeiro: Imago, 1995. 160 p.



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