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Artigos-->O personagem equívoco de Gabriel García Márquez -- 14/05/2001 - 22:01 (Bruno Freitas) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Para quem gosta do Amor nos tempos do cólera, de Gabriel García Márquez, está é uma tradução de um esclarecimento sobre o personagem Jeremiah de Saint-Amour, que desapareceu, para a tristeza dos leitores, tão prematuramente no mesmo romance.





Esta é a pergunta que mais ouvi, dos leitores sobre o Amor nos tempos do cólera: Por que o personagem Jeremiah de Saint-Amour desaparece das páginas do livro, tão cedo? Nunca me demorei muito pensando nas respostas, e cada vez me divirto em inventar uma nova. Hoje quero fazer um esforço sobrenatural para responder com a verdade.



De todo0s os protagonistas de minhas novelas, nenhum se parece tanto com a vida real quanto Jeremiah de Saint-Amour. Ao menos, fiz um exercício de evocação e retórica para que o mesmo fora o mais parecido com o que conheci, e já é bem sabido que a memória das crianças, pode ser bem perigosa ao recordar os fatos. Nunca soube seu nome, nem quem foi, pois, todos o chamavam de Don Emilio, o Belga. Havia aparecido em Aracataca - cidade natal de Márquez – depois da primeira guerra mundial, e não duvido que fora Belga por suas recordações de navegante e seu acento aturdido. E o único outro ser vivo que compartilhava sua moradia, era um cachorro enorme, surdo e pederasta, que se chamava como o presidente dos Estados Unidos – Woodrow Wilson.



Conheci o Belga, quando tinha quatro anos e meu avô me levava em seu atelier, para jogarem partidas de xadrez, mudas e intermináveis. Podia ter uns sessenta anos, e não deve ter vivido muito mais que um ano depois de me conhecer, pois, morreu antes de meu avô, e este morreu depois que eu completara cinco anos. Desde a primeira noite, me assustei, pois, não havia nada em sua casa, que eu soubesse a serventia. Pois, era um artista, e vivia no meio de suas próprias obras: paisagens marítimas em pastel, fotografias de crianças em aniversários, e primeiras comunhões, cópias de jóias asiáticas, figuras feitas com chifres de bois, móveis de épocas e estilos dispersos uns em cima dos outros.



Meu avô me apresentou-o com seu jeito natural de tratar as crianças, como adultos. Ele me saudou com um aperto de mão, tão apertado como uma chave turca, e não voltou a olhar-me pelo resto de sua vida. O que me chamou a atenção, foi sua pele carcomida e grudada aos ossos, e da mesma cor dos cabelos amarelos, que lhe caíam a cara, e estorvavam o falar. Sempre chupava um cachimbo de lobo do mar, que somente acendia para jogar xadrez, e meu avô dizia-me que era uma técnica de confundir o adversário. Tinha um olho de vidro dosorbitado, que parecia pender mais que o outro são. Estava inválido da cintura para baixo, encurvado para frente e torcido a sua esquerda, mas navegava como um peixe por entre os escombros de seu atelier, mais rápido que se estivesse usando muletas. Nunca ouvi-o falar de suas navegações, e que pareciam ser muitas e intrépidas. A única paixão que tinha longe de sua terra, era o cinema, e não faltava a nenhuma sessão nos fins de semana.



Nunca soube com certeza, quando teria chegado a Aracataca. A primeira guerra mundial era uma referência freqüente em seu passado, e nela se supunha a origem de sua desgraça. Mas nunca consegui imaginar que tipo de batalha tivesse sido aquela, para lhe deixar naquele estado de escombros, a não ser que houvesse passado um trem por cima. Nunca quis saber, e muito menos durante as intermináveis partidas de xadrez, em que se demoravam horas para moverem uma única peça, enquanto eu já caia de sono pelos cantos. Uma noite o encontrei tão inválido que não tardei a dá-lo como morto, que senti pena por ele. Mas demorava tanto entre uma jogada e outra, que acabei por ansiando sua morte de todo coração.



Porém ele saiu na frente, ao meu desejo maldoso, e com uma poção de cianureto de ouro – que compartilhou com seu cachorro – depois de assistir Sem novidade no front, uma película de Louis Milestone, sobre a novela de Erich Maria Remarque. A intuição popular, que sempre encontrava a verdade onde quer que estivesse, entendeu e proclamou que o Belga não havia resitido a comoção de ver-se, ele mesmo, humilhando-se com sua patrulha nos pântanos da Normandia. O que menos me esqueço daquele inusitado dia, foi a alegria de meu avô, ao meu despertar, e a má notícia: “O pebre Don Emilio, nunca mais vai poder jogar xadrez”. E a verdade, foi que se disse como o disse, foi porque não saberia dizer de outra maneira que doesse menos.



Agora bem? Por que este personagem tão equívoco, no início de uma novela de amores, e que não tem nada a ver com ele, e que na realidade, quando aparece realmente na novela, já esta morto, entretanto, parece inesquecível para alguns leitores que gostariam de poder ter seguido sua leitura, amando-o – ou odiando-o de amor – em primeiro plano?



Sinceramente: sempre acreditei que uma novela, um romance, ou até mesmo um conto, devem agarrar o leitor pelo colo desde a primeira linha, como conseguiu Franz Kafka com sua máxima maior: “Aquela manhã, ao término de um sono agitado, Gregório Samsa despertou convertido num monstruoso inseto”. Meu problema, era que o amor de Florentino Azira e Fermina Daza – protagonistas centrais da novela – tinha que ser eterno e parcimonioso, e corria o risco que os leitores mais acelerados, não suportassem a espera de quarenta páginas macissas, em que ninguém se apaixonaria por ninguém. Ali, iniciaria a novela de verdade, a qual eu queria escrever com toda alma, aquela dos amores contrariados dos meus pais, mas necessitava do fio invisível de um personagem que levasse o leitor até onde quisesse, como se conduzissem-os pelo cabresto.



A solução, que pensei, era criar um caráter fulminante e impositivo que surpreendesse o leitor desde a primeira linha, e o levasse são e salvo até os amores dos protagonistas tivessem domínio próprio. Porém, não muito adiante, pois, bem sabemos que aumentar um personagem a força, pode ser a melhor maneira de matar-lo. Foi assim que me ocorreu o recurso providencial de Jeremiah de Saint-Amour, amarrado a seu âmbito de Aracataca e sem corrigir, nem distorcer nada de minhas recordações. Até mesmo seu nome me caiu do céu, quando provei minha primeira garrafa do vinho sagrado de Saint-Amour, num boteco de Saint Germain dès Près, em Paris, com um amigo que se chamava Jeremiah, e me ensinou a grafia de seu nome. De modo que meu único mérito na criação do personagem, foi colocar-le a salvo das vaidades de minha memória e de minha imaginação aventureira, com a ilusão que se encalharia nos corações dos leitores, como esteve no meu durante sessenta anos. E sem mais detalhes que caibam em outra resposta.



Em contrapartida, uma das debilidades irreparáveis do livro, é a amante escondida de Saint-Amour, uma negra suculenta, que nem sequer tem nome, e cujo espaço no primeiro capítulo, não chega nem a cinco páginas. Em mal momento, me pareceu indispensável, não só na vida de Saint-Amour, como para o crédito do próprio livro, antecipando um amor de verdade, numa novela com tantos outros amores de mentira. Ao final, ela serviu para contar, o que devíamos saber sobre a última noite de seu amante.



Além do mais, meia dúzia de mulheres postiças, de vidas curtas, que também foram inventadas com o propósito de simples comodidades na cama, que atender aos apelos sexuais de Florentino Azira, e nada mais. Como é o caso de América Vicuña, a bela adolescente que se escapou no final da novela, com um choro de láudano, quando eu já não sabia o que fazer com ela, ou de Leona Cassiani, a mulata perfeita, que Florentino Azira encontrou na rua, e subiu até o topo da empresa escalando todos degraus possíveis dos bons serviços, e sem permitir sequer que lhe desse um beijo, se deitando com quem quis, mas menos com ele. Ninguém me perguntou, entretanto, se Leona Cassiani não seria um personagem de relevo, preparado pelo autor, para em alguma eventualidade, destronar Fermina Daza.



Em todo caso, creio que estas divagações de salão, são divertidas, mas viciosas, porque existem muitos elementos subjetivos num debate, que possui mais de carpintaria narrativa, do que criação poética. Eu sei, porque também sou um leitor insaciável, e perguntador, e não consegui curar-me da raiva que sinto ao descobrir que o autor do livro que estou lendo, me tenha roubado a carteira dos bolsos da calça. Mas também, sou impressionável como escritor, até o ponto de que eu mesmo tenha começado a me perguntar – enquanto escrevia esta nota – se não era verdade que Jeremiah de Saint-Amour tenha se acabado antes do tempo.







Este artigo foi encontrado na internet no endereço: http://www.revistacambio.com/



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