As noções de língua literária e língua usual capacitam a compreender por que o latim com que os latinistas convivem, nas obras de César, Cícero, Vergílio e Horácio, e que é uma língua literária, não pode ser, sob todos os aspectos, o mesmo latim falado em Roma, em todas as camadas de sua população – uma língua de uso corrente, coloquial. Tendo ainda em vista que a população romana era constituída de classes sociais bastante diversificadas, somos levados a concluir que, ao lado das naturais diferenças entre a língua literária e a falada, outras existiram na área desta última, a qual, por isso mesmo, se deixava mostrar sob variadas modalidades.
Os próprios romanos tinham consciência desse fato. Assim, quando, por via de seus escritos, ainda hoje nos falam de SERMO QUOTIDIANUS, SERMO URBANUS, SERMO PLEBEIUS, SERMO MILITARIS OU SERMO RUSTICUS, o que fazem é atestar que, também entre eles, a idéia de uma língua usual ou corrente, longe de apresentar um padrão regular, era apenas um ideal que mantinha os laços da comunidade.
As características de constituição social da cidade romana levam a admitir que as modalidades da língua falada eram ali bem mais pronunciadas do que as que se observam, em qualquer comunidade lingüística moderna. As diferentes classes sociais se definiam de maneira mais acentuada do que nas nações atuais, onde o ideal democrático concorre para a interação dos indivíduos. Desse modo, das duas classes por que primitivamente se distribuía o povo – os patrícios e os plebeus -, a primeira, repousando na consciência do sangue comum, constituía principalmente uma elite que se caracterizava pela educação e pelos costumes refinados, ao passo que a segunda, mescla de elementos emigrados de toda a parte, representava a grande massa dos habitantes de Roma e das regiões por ela romanizadas. Enquanto a aristocracia dos patrícios, conservadora de tradições e habituada à vida do fórum, era herdeira de um patrimônio a que se apegava por vezes formalisticamente, os plebeus, em grande parte cruzados com adventícios que se davam a trabalhos humildes, não sabiam de onde vinham e não chegavam a incorporar em si um ideal de cultura.
A língua que falavam não podia, pois, ser a mesma em todos os aspectos: ao lado do latim aristocrático (SERMO URBANUS), que, estilizado na língua literária, viria a constituir o LATIM CLÁSSICO, reconheciam os próprios romanos a existência de um LATIM VULGAR sob diferentes modalidades da língua falada (SERMO QUOTIDIANUS, BUSTICUS, PLEBEIUS, RURALIS, PEDESTRIS, USUALIS, VULGARIS, enfim), o qual não nos chegou senão através de fragmentos imperfeitos.
Assim sendo, LATIM CLÁSSICO é definido como a língua literária dos romanos, estilizada artificialmente sobre a base da língua de uma sociedade culta e educada – o latim aristocrático: por seu lado, o LATIM VULGAR representa aquela concepção ideal de uma língua corrente e comum que, em verdade, só se manifesta em suas modalidades sociais ou regionais.
Cumpre, todavia, considerar Roma na sua feição de império. O território que os romanos vieram a ocupar, na sua expansão chamava-se România e era constituída de diversas províncias, como a HISPÂNIA, a Gália e a Dácia, todas as quais se sentiram integradas as unidades imperiais até o século V, depois de Cristo, enquanto durou o fastígio e apogeu do Império Romano. Daí por diante, à vista de contínuas invasões de bárbaros, perdeu-se a unidade nacional e cada uma das províncias, entregues ao próprio destino, passou a ter vida e evolução independente. Era natural, que a língua, já alterada em suas modalidades, se fosse aos poucos modificando. Desse modo, o francês é o estado atual do latim antes falado ao Norte da Gália, o romeno é a continuação do latim que interiormente se falou na Lusitânia, região a oeste da Península Ibérica.
As línguas românicas, sob as formas do português, francês, espanhol, italiano, etc, são, pois, a continuação de uma língua anterior – o latim -, e representam, diversificadamente, as fases atuais do latim vulgar outrora falado em todo o Império Romano.
Não existem obras escritas com o propósito de documentar o latim falado. Ainda que existissem, o testemunho de tais obras seria insuficiente para um conhecimento científico do latim usual: ou registraria uma ou algumas das suas modalidades, já que não poderia haver um padrão uniforme, ou, na reprodução escrita, padeceria das mesmas imprecisões apontadas no texto que teve em vista fixar uma modalidade de dialeto brasileiro.
Contudo em alguns casos, encontram-se denúncias da língua falada dos romanos; são obras escritas por autores de limitada cultura literária ou por escritores que tiveram em mira uma circulação maior entre as camadas mais humildes da sociedade ou, ainda, por outros que, por preocupações artísticas, procuram retratar personagens rústicos, conservando-lhe tanto quanto possível, a linguagem típica. Conservam-se vestígios da língua vulgar latina nas inscrições que foram gravadas, em sua maioria nos muros e paredes, por artifícios mal instruídos. Essas inscrições, que vêm sendo publicadas a partir de 1863 pela Academia de Ciências de Berlim, formam a coleção Corpus Inscriptionun Latinarum e apresentam sobre as obras escritas duas vantagens: tem menor preocupação de correção lingüística do que os textos literários e revelam uma redação original de que carecem as obras dos escritores, conservadas por cópias tardias que sofreram prováveis adulterações. Outra fonte de conhecimento da língua usual dos romanos é o testemunho de seus gramáticos. Condenando o erro e prescrevendo a forma correta, transmitiram-nos, sem querer, através do que condenavam, exemplos da língua vulgar então correntes. O mais precioso desses documentos é o Appendix Probi, uma relação de formas condenadas pelo bom uso latino, acompanhadas das respectivas correções, a qual foi encontrada apensa a uma obra do gramático Probo, o que, de modo nenhum, significa fosse ele o seu autor. Ao contrário, desconhece-se o censor do benemérito códice, que conta duzentos e vinte e sete verbetes redigidos pelo modelo: oculus non oclus; nurus non nura; vobiscum non voscum, etc.
Todos esses testemunhos, a começar pelos dos gramáticos e escritores, nem sempre documentam fenômenos de um latim vulgar relativamente comum, a que se costuma chamar IMPERIAL. Tem-se assinalado que a menção de formas errôneas por parte sobretudo dos gramáticos latinos nem sempre é confirmada no território da România, o que mostra que se trata algumas vezes de fatos lingüísticos regionais de escassa vitalidade.
Por isso mesmo, o estudo comparativo das línguas românicas pode ser apontado como a principal fonte de conhecimento do latim vulgar, pois permite a reconstrução de uma língua falada que desapareceu sem deixar documentos escritos e confirma, através da sobrevivência de formas na área por onde se expandiu, os vulgarismos de uso mais geral ou comum. Desse modo, a existência, em português, de um verbo como trabalhar (a que correspondem: em francês, travailler; em espanhol, trabajar; em italiano travagliare) faz supor, pelas transformações fonéticas peculiares cada uma das línguas românicas, um latim vulgar tripaliatre, desconhecido do latim escrito, que seria formado do substantivo tripalium, designativo, entre os latinos, de um instrumento de tortura, Edéia que, sob certo aspecto, se conforma com a noção de trabalho.
A verdade é que o latim vulgar, tomada a expressão, abstratamente, como um denominador comum das diferentes modalidades da língua usual ou corrente dos romanos, apresenta caracteres que explicam os principais aspectos da formação das línguas românicas.
Em tempos de Augusto, a Península Ibérica viria a ser dividida em três províncias – a Tarraconense, A Bética e a Lusitânia. Tão completa foi a assimilação do gentio ao invasor, que Estrabão, geógrafo grego do século I, depois de Cristo, pôde afirmar: “os turdetanos, e mormente os ribeirinhos do Bétis, adotaram de todo os costumes romanos, e até nem já se lembram da própria língua”. O latim, certamente contaminado de elementos celtas e ibéricos, designativos na maioria de coisas peculiares da região, toma naturalmente feições especiais, interessando-nos sobretudo o LATIM LUSITÂNICO, falado até o século V, na Lusitânia.
A partir de então, e até o começo do século IX, tais foram às modificações sofridas pela antiga língua dos romanos na região, que uma nova fase evolutiva passa a existir sob a denominação de ROMANCE ou ROMANÇO, ou, mais especificamente, de ROMANCE LUSITÂNEO, uma vez que o termo ROMANCE é geral, e significa um falar intermediário entre o latim vulgar e qualquer língua românica. Para se ter uma idéia das inovações lingüísticas surgidas com o ROMANCE LUSITÃNICO, basta lembrar que foi durante a sua implantação na Península que o território sofreu, no século V, a invasão dos Bárbaros, com a fixação dos suevos ao noroeste e dos visigodos pelo resto da região. Embora não fossem portadores de uma cultura que lhes permitisse absorver, pelo domínio político, o ROMANCE falado em toda a Lusitânia, de algum modo nele se insinuaram com germanismos que acabaram por se fixar no léxico geral.
Corrido o tempo, nos princípios do século VIII – precisamente no ano 711 -, iria a Península ser de novo objeto de invasão e conquista, desta vez por parte dos Árabes, que a dominaram quase inteiramente. Detentores de civilização superior, ainda assim o seu reflexo sobre a cultura indígena não foi o que era de esperar de cerca de quatro séculos de presença. Com efeito, como falassem uma língua completamente distinta do latim, não a impuseram aos vencidos: como professaram uma religião diversa da cristã, foram tolerantes e permitiram que os subjugados continuassem a rezar pelo seu Evangelho.
A fase do ROMANCE LUSITÂNICO encerra-se no século IX, pois, à vista das transformações a que cada vez mais se sujeitou o latim primitivo, pode-se afirmar que, a partir daí, existia a Língua Portuguesa, muito embora, como simples instrumento de comunicação falada, não fosse ainda escrita. É o português PROTO-HISTÓRICO, segundo denominação proposta pelo filólogo Leite de Vasconcelos.
Desde cedo, porém, os cristãos não se conformaram com o domínio maometano e começaram a organizar a resistência. Refugiados ao Norte, na região montanhosa dos Montes Cantábricos, sustentaram, sob o comando de Pelágio, guerrilhas e escaramuças que, aos poucos, foram expulsando os árabes, empurrando-os para o Sul. Inicia-se dessa maneira, o movimento que tem o nome de Reconquista, o qual culmina por reunir contra os mouros não só as populações de Leão, Castela, mas cristãos de várias outras partes. Caberia, por fim a D Afonso Henriques, filho de Henrique de Borgonha – um nobre francês a quem Afonso VI concedera a mão de sua filha D Tareja e o governo do Condado Portucalense em reconhecimento de seus feitos – a tarefa de rechassar definitivamente, na Batalha de Ourique, de 1139, a horda invasora, vindo a sagrar-se rei de Portugal.
O idioma português é, pois, um dos produtos da România, nome que se dá ao Império Romano e, em especial, ao conjunto das suas províncias onde o Latim veio a vingar duradouramente como língua de civilização. A fase histórica do português tem início com a constituição da nacionalidade, no momento em que a língua, deixando de ser instrumento de comunicação de um povo sem coesão nacional, passa a ser escrita e tem por si o fato de ser a expressão de um país autônomo e independente. A partir de meados do século XIV, O Português comum e literário resulta de uma rápida fusão e evolução lingüística realizada sobretudo em Lisboa, com grande influência dos dialetos meridionais, que deu à fonética portuguesa certas características talvez moçárabes. Se já nas cantigas de D Dinis, por exemplo, de fins do século XIII, se observam alguns traços distintivos relativamente ao Galego, por início do século XV os próprios poetas da Galiza estão sensivelmente castelhanizados, e sua fala, antes tão florescente (isto é, de Entre Douro e Minho) cedo fez, também, figura de arcaico, e por início do século XVI Gil Vicente atribuía aos camponeses da Beira o linguajar que usava como nota cósmica de rusticidade, a maneira daquilo que no teatro espanhol se fazia então com o Leonês. A Língua Portuguesa passara desde cerca de 1385 até á sua época pré-clássica, ou média, já no século XVI, por uma rápida evolução fonética.
BIBLIOGRAFIA
CARDOSO, Nilton e CUNHA. Celso. Português através de textos. Belo Horizonte: Bernardo Álvares, 1970.
SARAIVA, António José e LOPES, Oscar. História da literatura portuguesa. Porto: Porto, 17ª ed., 1996.