“Se um indivíduo do sexo feminino portar um exemplar de A Montanha Mágica e afirmar estar lendo-o, é porque trata-se de uma mulher esteticamente feia. Quanto a estas, podem ser apenas boas amigas, porque eu, embora não seja bonito, adoro mulheres bonitas. Mesmo que elas não leiam Thomas Mann.”
Tratava-se de um tempo em que eu me mantinha absorto em um cosmo consciencioso. E lá estava eu, uma mochila de libido atrelada às costas, a observar uma garota, uns vinte e dois anos de contundência e deleite estético, uma Ariadne pós-Nintendo, a carregar um exemplar de A Montanha Mágica, de Thomas Mann. Eivado de entusiasmo, eis que fui, um sorriso emblemático a emoldurar-me a face, falar com o meu vislumbre de perfeição. “O livro é do meu pai”, respondeu-me ela. “Não, eu jamais o li.”, tornou a responder.
Talvez eu estivesse mesmo pedindo demais e assentando platonismos em uma podridão genérica e previsível. Como fui eu, justo eu, um anti-herói totalitário e megalômano, crer na mera possibilidade de que aquele éden de carne, ornado por uma beleza cândida e diáfana, poderia dedicar uma parca fração de seu orgásmico tempo à leitura de um ícone do modernismo alemão? Trata-se, por óbvio, de uma hipótese absurda. A garota atestou para a lógica e comprovou minha ingenuidade ao dizer que o livro pertencia ao pai, numa alusão clara de que mulheres bonitas não desperdiçãm um par de horas que seja a ler um livro de Thomas Mann. Perfazendo pragmatismo, as eleitas da libido põem-se a turbinar seus dotes físicos, a aperfeiçoarem suas aptidões atrativas e a encontrar um provedor que insufle-lhes o ego, a conta bancária e o clitóris. E que venha a mim a falange das pseudo-moderninhas polêmicas, a rotular-me com a pecha de machista, determinista, retrógrado e cretino. Prossigam! Chafurdem-me á vontade! Mulheres bonitas, malgrado a réplica das bisonhas feministas, não lêem Thomas Mann. É um fato empiricamente comprovado, e, quanto a vocês - feministas e “modernas”, “polêmicas” e “instruídas”, órfãs rebeldes e parte de uma geração posterior às fogueiras de sutiãs e aos orgasmos comunitários -, tampouco importam-me suas opiniões. O dogma de que mulheres bonitas não lêem Thomas Mann é inexpugnável. Podem elas, por bem, ler Shakespeare, Milan Kundera, e, quem sabe, inspirar-se em Goethe. E se um indivíduo do sexo feminino portar um exemplar de A Montanha Mágica e afirmar estar lendo-o, é porque trata-se de uma mulher esteticamente feia. Quanto a estas, podem ser apenas boas amigas, porque eu, embora não seja bonito, adoro mulheres bonitas. Mesmo que elas não leiam Thomas Mann.
Cumpre-me dizer, porém, que, como de praxe, dei-me mal em meus vaticínios. A vaguear pelos límbicos corredores da modorrenta Universidade, conheci uma garota, belíssima, de traços sutis e feições receptivas, a exibir em sua pasta um exemplar de O Processo, de Kafka. Conclusão analítica e imediata: mulheres bonitas lêem Franz Kafka. E esta garota, também acadêmica de Direito, discreta e tempestiva, coerente e ponderada (não troquei mais de três dezenas de palavras com ela), portava em sua valise uma declaração de guerra ao conformismo e à homogeneidade. Gostaria muito de poder conhecer melhor Marisa, bem como as razões pelas quais uma garota bonita carregava um livro de Kafka. Por que diabos ela não estava a desfiar asneiras com suas amigas tacanhas e a abafar flertes incipientes para com o garoto cujo bíceps é o maior da turma? Por que, ao invés de Kafka, Marisa não estava a ler Paulo Coelho ou Zibia Gasparetto, bastiões de vômito lírico e pobreza literária? E por que – a dúvida entrava em desvãos enxovalhados – ela foi-se tão brevemente, sem antes dar-me três ou cinco minutos de seu precioso tempo kafkiano?
Repito-lhes: em muito me satisfaria ter podido conversar com Marisa. Tenho, porém, uma breve miríade de perguntas. Todas, com efeito, endereçadas a ela: qual a razão que a fez ler Kafka? Adiante: você é bonita por que lê Kafka ou lê Kafka por que é bonita? Que outras garotas com o seu perfil estético leriam a obra do venial autor tcheco? Você perfaz exceção ou uma singularidade capaz de influenciar as demais? Suplico-lhe as respostas.
Alegrou-me, em meio a hiperespaços soturnos e bucólicos blecautes cerebrais, saber que algumas de minhas esperanças ainda gozam de respaldo. Marisa, muito embora eu não a conheça, é a porta-voz de tão romântica expectativa. Que o leitor disperso não infira estar este que vos escreve apaixonado: eu sou mais um daqueles rapazes que, aos vinte anos, acreditam que seus corações já se partiram tantas vezes que é simplesmente impossível ao torpor da paixão dominar este músculo vergado à dureza. Assim, pois, penso. E divago – sobre Heidegger, Kafka, Thomas Mann e Marisa. Passo então a fomentar outra dúvida tão inútil quanto este texto: a de que, embora seja bonita e leia Kafka, Marisa não lê Thomas Mann. E tomara que não leia mesmo, ou meu dogma imbecil não se furtará a cair por terra.
Ao leitor, já enfastiado de tantos espasmos subjetivos, o anúncio do termo. E um beijo a Marisa. Então é mesmo verdade que mulheres bonitas lêem Franz Kafka? Que o seja. E que minha esperança prossiga na valise de Marisa, mulher de belo perfil,estética impecável, bom gosto literário, e que, queira Deus, não lê Thomas Mann.
