Usina de Letras
Usina de Letras
49 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 


Artigos ( 62744 )
Cartas ( 21341)
Contos (13287)
Cordel (10462)
Crônicas (22563)
Discursos (3245)
Ensaios - (10531)
Erótico (13585)
Frases (51133)
Humor (20114)
Infantil (5540)
Infanto Juvenil (4863)
Letras de Música (5465)
Peça de Teatro (1379)
Poesias (141062)
Redação (3339)
Roteiro de Filme ou Novela (1064)
Teses / Monologos (2439)
Textos Jurídicos (1964)
Textos Religiosos/Sermões (6296)

 

LEGENDAS
( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )
( ! )- Texto com Comentários

 

Nossa Proposta
Nota Legal
Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Contos-->Os Sertões / Euclides da Cunha - VOLUME I -- 06/06/2008 - 08:07 (CARLOS CUNHA / o poeta sem limites) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos









O poeta sem limites apresenta em

Grandes nomes da Literatura




OS SERTÕES – VOLUME 1


( Euclides da Cunha )



Nota Preliminar

Escrito nos raros intervalos de folga de uma carreira fatigante, este livro, que a princípio se resumia à história da Campanha de Canudos, perdeu toda a atualidade, remorada a sua publicação em virtude de causas que temos por escusado apontar.
Demos-lhe, por isto, outra feição, tornando apenas variante de assunto geral o tema, a princípio dominante, que o sugeriu.
Intentamos esboçar, palidamente embora, ante o olhar de futuros historiadores, os traços atuais mais expressivos das sub-ra-ças sertanejas do Brasil. E fazemo-lo porque a sua instabilidade de complexos de fatores múltiplos e diversamente combinados, aliada às vicissitudes históricas e deplorável situação mental em que jazem, as tornam talvez efêmeras, destinadas a próximo desaparecimento ante as exigências crescentes da civilização e a concorrência mate¬rial intensiva das correntes migratórias que começam a invadir profundamente a nossa terra.
O jagunço destemeroso, o tabaréu ingênuo e o caipira simplório serão em breve tipos relegados às tradições eva¬nes¬centes, ou extintas.
Primeiros efeitos de variados cruzamentos, destinavam-se talvez à formação dos princípios imediatos de uma grande raça. Faltou-lhes, porém, uma situação de parada ou equilíbrio, que lhes não permite a velocidade adquirida pela marcha dos povos neste século. Retardatários hoje, amanhã se extinguirão de todo.
A civilização avançará nos sertões impelida por essa implacável “força motriz da História” que Gumplowicz, maior do que Hobbes, lobrigou, num lance genial, no esmagamento inevitável das raças fracas pelas raças fortes.
A campanha de Canudos tem por isto a significação inegável de um primeiro assalto, em luta talvez longa. Nem enfraquece o asserto o termo-la realizado nós, filhos do mesmo solo, porque, etnologicamente indefinidos, sem tradições nacionais uniformes, vivendo parasitariamente à beira do Atlântico dos princípios civilizadores elaborados na Europa, e armados pela indústria alemã — tivemos na ação um papel singular de mercenários inconscientes. Além disso, mal unidos àqueles extraordinários patrícios pelo solo em parte desconhecido, deles de todo nos separa uma coordenada histórica — o tempo.
Aquela campanha lembra um refluxo para o passado.
E foi, na significação integral da palavra, um crime.
Denunciemo-lo.
E tanto quanto o permitir a firmeza do nosso espírito, façamos jus ao admirável conceito de Taine sobre o narrador sincero que encara a história como ela o merece:

...“Il s’irrite contre les demi-verités qui sont des demi-faussetés, contre les auteurs qui n’altèrent ni une date, ni une généalogie, mais dénaturent les sentiments et les moeurs, qui gardent le dessin des événements et en changent la couleur, qui copient les faits et défigurent l’âme; il veut sentir en barbare, parmi les barbares, et parmi les anciens, en ancien.”

EUCLIDES DA CUNHA
São Paulo — 1901



A TERRA

1. PRELIMINARES / A entrada do sertão. Terra ignota. Em caminho para Monte Santo. Primeiras impressões.
Um sonho de geólogo.
II . Golpe de vista do alto de Monte Santo. Do alto da Favela.
III . O clima. Higrômetros singulares.
IV . As secas. Hipóteses sobre a sua gênese. As caatingas.
V . Uma categoria geográfica que Hegel não citou. Como se faz um deserto. Como se extingue o deserto. O martírio secular da terra.

I

O planalto central do Brasil desce, nos litorais do Sul, em escarpas inteiriças, altas e abruptas. Assoberba os mares; e desata-se em chapadões nivelados pelos visos das cordilheiras marítimas, distendidas do Rio Grande a Minas. Mas ao derivar para as terras setentrionais diminui gradualmente de altitude, ao mesmo tempo que descamba para a costa oriental em andares, ou repetidos socalcos, que o despem da primitiva grandeza afastando-o consideravelmente para o interior.
De sorte que quem o contorna, seguindo para o norte, observa notáveis mudanças de relevos: a princípio o traço contínuo e dominante das montanhas, precintando-o, com destaque saliente, sobre a linha projetante das praias, depois, no segmento de orla marítima entre o Rio de Janeiro e o Espírito Santo, um aparelho litoral revolto, feito da envergadura desarticulada das serras, riçado de cumeadas e corroído de angras, e escancelando-se em baías, e repartindo-se em ilhas, e desagregando-se em recifes desnudos, à maneira de escombros do conflito secular que ali se trava entre os mares e a terra; em seguida, transposto o 15º paralelo, a atenuação de todos os acidentes — serranias que se arredondam e suavizam as linhas dos taludes, fracionadas em morros de encostas indistintas no horizonte que se amplia; até que em plena faixa costeira da Bahia, o olhar, livre dos anteparos de serras que até lá o repulsam e abreviam, se dilata em cheio para o ocidente, mergulhando no âmago da terra amplíssima lentamente emergindo num ondear longínquo de chapadas...
Este facies geográfico resume a morfogenia do grande maciço continental.
Demonstra-o análise mais íntima feita por um corte meridiano qualquer, acompanhando a bacia do S. Francisco.
Vê-se, de fato, que três formações geognósticas díspares, de idades mal determinadas, aí se substituem, ou se entrelaçam, em estratificações discordantes, formando o predomínio exclusivo de umas, ou a combinação de todas, os traços variáveis da fisionomia da terra. Surgem primeiro as possantes massas gnaissegraníticas, que a partir do extremo sul se encurvam em desmedido anfiteatro, alteando as paisagens admiráveis que tanto encantam e iludem as vistas inexpertas dos forasteiros. A princípio abeiradas do mar progridem em sucessivas cadeias, sem rebentos laterais, até às raias do litoral paulista, feito dilatado muro de arrimo sustentando as formações sedimentares do interior. A terra sobranceia o oceano, dominante, do fastígio das escarpas; e quem a alcança, como quem vinga a rampa de um majestoso palco, justifica os exageros descritivos — do gongorismo de Rocha Pita às extravagâncias geniais de Buckle — que fazem deste país região privilegiada, onde a natureza armou a sua mais portentosa oficina.
É que, de feito, sob o tríplice aspecto astronômico, topográfico e geológico — nenhuma se afigura tão afeiçoada à Vida.
Transmontadas as serras, sob a linha fulgurante do trópico, vêem-se estirados para o ocidente e norte, extensos chapadões cuja urdidura de camadas horizontais de grés argiloso, intercaladas de emersões calcárias, ou diques de rochas eruptivas básicas, do mesmo passo lhes explica a exuberância sem par e as áreas complanadas e vastas. A terra atrai irresistivelmente o homem, arrebatando-o na própria correnteza dos rios que, do Iguaçu ao Tietê, traçando originalíssima rede hidrográfica, correm da costa para os sertões, como se nascessem nos mares e canalizassem as suas energias eternas para os recessos das matas opulentas. Rasgam facilmente aqueles estratos em traçados uniformes, sem talvegues deprimidos, e dão ao conjunto dos terrenos até além do Paraná a feição de largos plainos ondulados, desmedidos.
Entretanto, para leste a natureza é diversa.
Estereografa-se, duramente, nas placas rígidas dos aflo¬ramentos gnáissicos; e o talude dos planaltos dobra-se no socalco da Mantiqueira, onde se encaixa o Paraíba, ou desfaz-se em rebentos que, após apontarem as alturas de píncaros centralizados pelo Itatiaia, levam até ao âmago de Minas as paisagens alpestres do litoral. Mas ao penetrar-se este estado nota-se, malgrado o tumultuar das serranias, lenta descensão geral para o norte. Como nos altos chapadões de São Paulo e do Paraná, todas as caudais revelam este pendor insensível com derivarem em leitos contorcidos e vencendo, contrafeitas, o antagonismo permanente das montanhas: o Rio Grande rompe, rasgando-a com a força viva da corrente, a Serra da Canastra, e, norteados pela meridiana, abrem-se adiante os fundos vales de erosão do Rio das Velhas e do S. Francisco. Ao mesmo tempo, transpostas as sublevações que vão de Barbacena a Ouro Preto, as formações primitivas desaparecem, mesmo nas maiores eminências, e jazem sotopostas a complexas séries de xistos metamórficos, infiltrados de veeiros fartos, nas paragens lendárias do ouro.
A mudança estrutural origina quadros naturais mais imponentes que os da borda marítima. A região continua alpestre. O caráter das rochas, exposto nas abas dos cerros de quartzito, ou nas grimpas em que se empilham as placas de itacolomito avassalando as alturas, aviva todos os acidentes, desde os maciços que vão de Ouro Branco a Sabará, à zona diamantina expandindo-se para nordeste nas chapadas que se desenrolam nivelando-se às cimas da Serra do Espinhaço; e esta, apesar da sugestiva denominação de Eschwege, mal sobressai, entre aquelas lombadas definidoras de uma situação dominante. Dali descem, acachoantes, para o levante, tombando em catadupas ou saltando travessões sucessivos, todos os rios que do Jequi¬tinhonha ao Doce procuram os terraços inferiores do planalto arrimados à Serra dos Aimorés; e volvem águas remansadas para o poente os que se destinam à bacia de captação do S. Francisco, em cujo vale, depois de percorridas ao sul as interessantes formações calcárias do Rio das Velhas, salpintadas de lagos, solapadas de sumidouros e ribeirões subterrâneos, onde se abrem as cavernas do homem pré-histórico de Lund, se acentuam outras transições na contextura superficial do solo.
De fato, as camadas anteriores, que vimos superpostas às rochas graníticas, decaem, por sua vez, sotopondo-se a outras, mais modernas, de espessos estratos de grés.
Novo horizonte geológico reponta com um traço original e interessante. Mal estudado embora, caracteriza-o notável significação orográfica, porque as cordilheiras dominantes do Sul ali se extinguem, soterradas, numa inumação estupenda, pelos possantes estratos mais recentes, que as circundam. A terra, porém, permanece elevada, alongando-se em planuras amplas, ou avultando em falsas montanhas, de denudação, descendo em aclives fortes, mas tendo os dorsos alargados em plainos inscritos num horizonte de nível, apenas apontoado a leste pelos vértices dos albardões distantes, que perlongam a costa.
Verifica-se, assim, a tendência para um aplainamento geral.
Porque neste coincidir das terras altas do interior e a depressão das formações arqueanas, a região montanhosa de Minas se vai prendendo, sem ressaltos, à extensa zona dos tabuleiros do norte.
A Serra do Grão-Mogol, raiando as lindes da Bahia, é o primeiro espécimen dessas esplêndidas chapadas imitando cordilheiras, que tanto perturbam aos geógrafos descuidados; e as demais que a convizinham, da do Cabral mais próxima, à da Mata da Corda alongando-se para Goiás, modelam-se de maneira idêntica. Os sulcos de erosão que as retalham são cortes geológicos expressivos. Ostentam em plano vertical, sucedendo-se a partir da base, as mesmas rochas que vimos se substituí¬rem em alongado roteiro pela superfície: embaixo os rebentos graníticos decaídos pelo fundo dos vales, em cômoros esparsos; à meia encosta, inclinadas, as placas xistosas mais recentes; no alto, sobrepujando-as, ou circuitando-lhes os flancos em vales monoclínicos, os lençóis de grés, predominantes e oferecendo aos agentes meteóricos plasticidade admirável aos mais caprichosos modelos. Sem linhas de cumeadas, as maiores serranias nada mais são que planuras altas, extensas rechãs terminando de chofre em encostas abruptas, na molduragem golpeante do regime torrencial sobre o terreno permeável e móvel. Caindo por ali há séculos as fortes enxurradas, derivando a princípio em linhas divagantes de drenagem, foram pouco a pouco reprofundando-as, talhando-as em quebradas que se fizeram canyons, e se fizeram vales em declive, até orlarem de escar¬pamentos e despenhadeiros aqueles plainos soerguidos. E consoante a resistência dos materiais trabalhados variaram nos aspectos: aqui apontam, rijamente, sobre as áreas de nível, os últimos fragmentos das rochas enterradas, desvendando-se, em fraguedos que mal relembram, na altura, o antiqüíssimo “Hi¬malaia brasileiro”, desbarrancado em desintegração contínua, por todo o curso das idades; adiante, mais caprichosos, se escalonam em alinhamentos incorretos de menires colossais, ou em círculos enormes, recordando na disposição dos grandes blocos superpostos, em rimas, muramentos desmantelados de ciclópicos coliseus em ruínas; ou então, pelos visos das escarpas, oblíquos e sobranceando as planuras que, interpostos, ladeiam, lembram aduelas desconformes, restos da monstruosa abóbada da antiga cordilheira, desabada...
Mas desaparecem de todo em vários pontos.
Estiram-se então planuras vastas. Galgando-as pelos taludes, que as soerguem dando-lhes a aparência exata de tabuleiros suspensos, topam-se, a centenas de metros, extensas áreas ampliando-se, boleadas, pelos quadrantes, numa prolongação indefinida, de mares. É a paragem formosíssima dos campos gerais, expandida em chapadões ondulantes — grandes tablados onde campeia a sociedade rude dos vaqueiros...
Atravessemo-la.
Adiante, a partir de Monte Alto, estas conformações naturais se bipartem: do rumo firme do norte a série do grés figura-se progredir até ao platô atenoso do Açuruá, associando-se ao calcário que aviva as paisagens na orla do grande rio, prendendo-as às linhas dos cerros talhados em diáclase, tão bem expressos no perfil fantástico do Bom Jesus da Lapa; enquanto para nordeste, graças a degradações intensas (porque a Serra Geral segue por ali como anteparo aos alísios, condensando-os em diluvianos aguaceiros) se desvendam, ressurgindo, as formações antigas.
Desenterram-se as montanhas.
Reponta a região diamantina, na Bahia, revivendo inteiramente a de Minas, como um desdobramento ou antes um prolongamento, porque é a mesma formação mineira rasgando, afinal, os lençóis de grés, e alteando-se com os mesmos contornos alpestres e perturbados, nos alcantis que irradiam da Tromba ou avultam para o norte nos xistos huronianos das cadeias paralelas de Sincorá.
Deste ponto em diante, porém, o eixo da Serra Geral se fragmenta, indefinido. Desfaz-se. A cordilheira eriça-se de contrafortes e talhados de onde saltam, acachoando, em despenhos, para o levante, as nascentes do Paraguaçu, e um dédalo de serranias tortuosas, pouco elevadas mas inúmeras, cruza-se embaralhadamente sobre o largo dos gerais, cobrindo-os. Trans¬muda-se o caráter topográfico, retratando o desapoderado embater dos elementos, que ali reagem há milênios entre montanhas derruídas, e a queda, até então gradativa, dos planaltos começa a derivar em desnivelamentos consideráveis. Revela-os o S. Francisco, no vivo infletir com que torce para o levante, indicando do mesmo passo a transformação geral da região.
Esta é mais deprimida e mais revolta.
Cai para os terraços inferiores, entre um tumultuar de morros, incoerentemente esparsos. Último rebento da serra principal, a da Itiúba reúne-lhe alguns galhos indecisos, fundindo as expansões setentrionais das da Furna, Cocais e Sincorá. Alteia-se um momento, mas descai logo para todos os rumos: para o norte, originando a corredeira de quatrocentos quilômetros a jusante do Sobradinho; para o sul, em segmentos dispersos que vão até além do Monte Santo; e para leste, passando sob as chapadas de Jeremoabo, até se desvendar no salto prodigioso de Paulo Afonso.
E o observador que seguindo este itinerário deixa as paragens em que se revezam, em contraste belíssimo, a amplitude dos gerais e o fastígio das montanhas, ao atingir aquele ponto estaca surpreendido...

A entrada do sertão

Está sobre um socalco do maciço continental, ao norte.
Demarca-o de uma banda, abrangendo dous quadrantes, em semicírculo, o Rio de S. Francisco; e de outra, encurvando também para sudeste, numa normal à direção primitiva, o curso flexuoso do Itapicuruaçu. Segundo a mediana, correndo quase paralelo entre aqueles, com o mesmo descambar expressivo para a costa, vê-se o traço de um outro rio, o Vaza-Barris, o Irapiranga dos tapuias, cujo trecho de Jeremoabo para as cabeceiras é uma fantasia de cartógrafo. De fato, no estupendo degrau, por onde descem para o mar ou para jusante de Paulo Afonso as rampas esbarrancadas do planalto, não há situações de equilíbrio para uma rede hidrográfica normal. Ali reina a drenagem caótica das torrentes, imprimindo naquele recanto da Bahia facies excepcio¬nal e selvagem.

Terra ignota

Abordando-o, compreende-se que até hoje escasseiem sobre tão grande trato de território, que quase abarcaria a Holanda (9º11’ — 10º20’ de lat. e 4º — 3º, de long. O.R.J.), notícias exatas ou pormenorizadas. As nossas melhores cartas, enfei¬xando informes escassos, lá têm um claro expressivo, um hiato, Terra ignota, em que se aventura o rabisco de um rio problemático ou idealização de uma corda de serras.
É que transpondo o Itapicuru, pelo lado do sul, as mais avançadas turmas de povoadores estacaram em vilarejos minúsculos — Maçacará, Cumbe ou Bom Conselho — entre os quais o decaído Monte Santo tem visos de cidade: transmontada a Itiúba, a sudoeste, disseminaram-se pelos povoados que a abeiram acompanhando insignificantes cursos de água, ou pelas raras fazendas de gado, estremados todos por uma tapera obscura — Uauá; ao norte e a leste pararam às margens do S. Francisco, entre Capim Grosso e Santo Antônio da Glória.
Apenas naquele último rumo se avantajou uma vila secular, Jeremoabo, balizando o máximo esforço de penetração em tais lugares, evitados sempre pelas vagas humanas, que vinham do litoral baiano procurando o interior.
Uma ou outra o cortou, rápida, fugindo, sem deixar traços.
Nenhuma lá se fixou. Não se podia fixar. O estranho território, a menos de quarenta léguas da antiga metrópole, pre¬destinava-se a atravessar absolutamente esquecido os quatrocentos anos da nossa história. Porque enquanto as bandeiras do sul lhe paravam à beira e envesgando, depois, pelos flancos da Itiúba, se lançavam para Pernambuco e Piauí até ao Maranhão, as do levante, repelidas pela barreira intransponível de Paulo Afonso, iam procurar no Paraguaçu e rios que lhe demoram ao sul, linhas de acesso mais praticáveis. Deixavam-no de permeio, inabordável, ignoto.
É que mesmo trilhando o último daqueles rumos, adstritas a itinerário menos longo, as salteava impressionadoramente o aspecto estranho da terra, repontando em transições imprevistas.
Deixando a orla marítima e seguindo em cheio para o ocidente, tinham, transcorridas poucas léguas, amolentada ou desinfluída a atração das entradas aventurosas, e extinta a miragem do litoral opulento. Logo a partir de Camaçari as formações antigas cobrem-se de escassas manchas terciárias, alternando com exíguas bacias cretáceas, revestidas do terreno arenoso de Alagoinha que mal esgarçam, a leste, as emersões calcárias de Inhambupe. A vegetação em roda transmuda-se, copiando estas alternativas com precisão de um decalque. Rarefazem-se as matas, ou empobrecem. Extinguem-se, por fim, depois de lançarem rebentos esparsos pelo topo das serranias; e estas mesmo, aqui e ali, cada vez mais raras, ilham-se ou avançam em promontório nas planuras desnudas dos campos, onde uma flora característica — arbustos flexuosos entressachados de bromélias rubras — prepondera exclusiva em largas áreas, mal dominada pela vegetação vigorosa irradiante da Pojuca sobre o massapé feraz das camadas cretáceas decompostas.
Deste lugar em diante, reaparecem os terrenos terciários esterilizadores, sobre os mais antigos que, entretanto, depois, dominam em toda a zona centralizada em Serrinha. Os morros do Lopes e do Lajedo aprumam-se, à maneira de disformes pirâmides de blocos arredondados e lisos; e os que se sucedem, beirando de um e outro lado as abas das serras da Saúde e da Itiúba, até Vila Nova da Rainha e Juazeiro, copiam-lhes os mesmos contornos das encostas estaladas, exumando a ossatura partida das montanhas.
O observador tem a impressão de seguir torneando a truncadura malgradada da borda de um planalto.
Calca, de fato, estrada três vezes secular, histórica vereda por onde avançavam os rudes sertanistas nas suas excursões para o interior.
Não a alteraram nunca.
Não a variou, mais tarde, a civilização, justapondo aos rastros do bandeirante os trilhos de uma via férrea.
Porque o caminho em cuja longura de cem léguas, da Bahia ao Juazeiro, se entroncam numerosíssimos desvios para o poente e para o sul, jamais comportou, a partir de seu trecho médio, variante apreciável para leste e para o norte.
Calcando-o, em demanda do Piauí, Pernambuco, Maranhão e Pará, os povoadores, consoante vários destinos, dividiam-se em Serrinha. E progredindo para Juazeiro, ou volvendo à direita, pela estrada real do Bom Conselho que desde o século XVII os levava a Santo Antônio da Glória e Pernambuco — uns e outros contorneavam sempre, evitando-a sempre, a paragem sinistra e desolada, subtraindo-se a uma travessia torturante.
De sorte que aquelas duas linhas de penetração, que vão interferir o S. Francisco em pontos afastados — Juazeiro e Santo Antônio da Glória — formavam, desde aqueles tempos, as lindes de um deserto.

Em caminho para Monte Santo

No entanto quem se abalança a atravessá-lo, partindo de Queimadas para nordeste, não se surpreende a princípio. Recurvo em meandros, o Itapicuru alenta vegetação vivaz; e as barrancas pedregosas do Jacurici debruam-se de pequenas matas. O terreno, areento e chão, permite travessia desafogada e rápida. Aos lados do caminho ondulam tabuleiros rasos. A pedra, aflorando em lajedos horizontais, mal movimenta o solo, esgarçando a tênue capa das areias que o revestem.
Vêem-se, porém, depois, lugares que se vão tornando crescentemente áridos.
Varada a estreita faixa de cerrados, que perlongam aquele último rio, está-se em pleno agreste, no dizer expressivo dos matutos: arbúsculos quase sem pega sobre a terra escassa, enredados de esgalhos de onde irrompem, solitários, cereus rígidos e silentes, dando ao conjunto a aparência de uma margem de deserto. E o facies daquele sertão inóspito vai-se esboçando, lenta e impressionadoramente...
Galga-se uma ondulação qualquer — e ele se desvenda ou se deixa adivinhar, ao longe, no quadro tristonho de um horizonte monótono em que se esbate, uniforme, sem um traço diversamente colorido, o pardo requeimado das caatingas.
Intercorrem ainda paragens menos estéreis, e nos trechos em que se operou a decomposição in situ do granito, originando algumas manchas argilosas, as copas virentes dos ouri¬curizeiros circuitam — parênteses breves abertos na aridez geral — as bordas das ipueiras. Estas lagoas mortas, segundo a bela etimologia indígena, demarcam obrigatória escala ao caminhante. Associando-se às cacimbas e caldeirões, em que se abre a pedra, são-lhe recurso único na viagem penosíssima. Verdadeiros oásis, têm, contudo, não raro, um aspecto lúgubre: localizados em depressões, entre colinas nuas, envoltas pelos mandacarus despidos e tristes, como espectros de árvores; ou num colo de chapada, recortando-se com destaque no chão poento e pardo, graças à placa verde-negra das algas unicelulares que as revestem.
Algumas denotam um esforço dos filhos do sertão. Encontram-se, orlando-as, erguidos como represas entre as encostas, toscos muramentos de pedra seca. Lembram monumentos de uma sociedade obscura. Patrimônio comum dos que por ali se agitam nas aperturas do clima feroz, vêm, em geral, de remoto passado. Delinearam-nos os que se afoitaram primeiro com as vicissitudes de uma entrada naquelas bandas. E persistem indestrutíveis, porque o sertanejo, por mais escoteiro que siga, jamais deixa de levar uma pedra que calce as suas junturas vacilantes.
Mas transpostos estes pontos — imperfeita cópia das barragens romanas remanescentes na Tunísia, — entra-se outra vez nos areais exsicados. E avançando célere, sobretudo nos trechos em que se sucedem pequenas ondulações, todas da mesma forma e do mesmo modo dispostas, o viajante mais rápido tem a sensação da imobilidade. Patenteiam-se-lhe, uniformes, os mesmos quadros, num horizonte invariável que se afasta à medida que ele avança. Raras vezes, como no povoado minúsculo de Cansanção, larga emersão de terreno fértil se recama de vegetação virente.
Despontam vivendas pobres; algumas desertas pela retirada dos vaqueiros que a seca espavoriu; em ruínas, outras; agravando todas no aspecto paupérrimo, o traço melancólico das paisagens...
Nas cercanias de Quirinquinquá, porém, começa a movimentar-se o solo. O pequeno sítio ali erecto alevanta-se já sobre alta expansão granítica, e atentando-se para o norte divisa-se região diversa — riçada de vales e serranias, perdendo-se ao longe em grimpas fugitivas. A Serra de Monte Santo, com um perfil de todo oposto aos redondos contornos que lhe desenhou o ilustre Martius, empina-se, a pique, na frente, em possante dique de quartzito branco, de azulados tons, em relevo sobre a massa gnáissica que constitui toda a base do solo. Dominante sobre a várzea que se estende para sudeste, com a linha de cumeadas quase retilínea, o seu enorme paredão, vincado pelas linhas dos estratos, expostas pela erosão eólia, afigura-se cortina de muralha monumental. Termina em crista altíssima, extremando-lhe o desenvolvimento no rumo de 13º NE, a cavaleiro da vila que se lhe erige no sopé. Centraliza um horizonte vasto. Observa-se, então, que atenuados para o sul e leste, os acidentes predominantes da terra progridem avassalando os quadrantes do norte.
O sítio do Caldeirão, três léguas adiante, ergue-se à margem dessa sublevação metamórfica; e alcançando-o, e transpondo-o, entra-se, afinal, em cheio, no sertão adusto...

Primeiras impressões

É uma paragem impressionadora.
As condições estruturais da terra lá se vincularam à violência máxima dos agentes exteriores para o desenho de relevos estupendos. O regime torrencial dos climas excessivos, sobrevindo, de súbito, depois das insolações demoradas, e embatendo naqueles pendores, expôs há muito, arrebatando-lhes para longe todos os elementos degradados, as séries mais antigas daqueles últimos rebentos das montanhas: todas as variedades cristalinas, e os quartzitos ásperos, e as filades e calcários, revezando-se ou entrelaçando-se, repontando duramente a cada passo, mal cobertos por uma flora tolhiça — dispondo-se em cenários em que ressalta, predominante, o aspecto atormentado das paisagens.
Porque o que estas denunciam — no enterroado do chão, no desmantelo dos cerros quase desnudos, no contorcido dos leitos secos dos ribeirões efêmeros, no constrito das gargantas e no quase convulsivo de uma flora decídua embaralhada em esgalhos — é de algum modo o martírio da terra, brutalmente golpeada pelos elementos variáveis, distribuídos por todas as modalidades climáticas. De um lado a extrema secura dos ares, no estio, facilitando pela irradiação noturna a perda instantânea do calor absorvido pelas rochas expostas às soalheiras, impõe-lhes a alternativa de alturas e quedas termométricas repentinas; e daí um jogar de dilatações e contrações que as disjunge, abrindo-as segundo os planos de menor resistência. De outro, as chuvas que fecham, de improviso, os ciclos adurentes das secas, precipitam estas reações demoradas.
As forças que trabalham a terra atacam-na na contextura íntima e na superfície, sem intervalos na ação demolidora, substituindo-se, com intercadência invariável, nas duas estações únicas da região.
Dissociam-na nos verões queimosos, degradam-na nos invernos torrenciais. Vão do desequilíbrio molecular, agindo surdamente, à dinâmica portentosa das tormentas. Ligam-se e completam-se. E consoante o preponderar de uma e outra, ou o entrelaçamento de ambas, modificam-se os aspectos naturais. As mesmas assomadas gnáissicas caprichosamente cindidas em planos quase geométricos, à maneira de silhares, que surgem em numerosos pontos, dando, às vezes, a ilusão de encontrar-se, de repente, naqueles ermos vazios, majestosas ruinarias de castelos — adiante se cercam de fraguedos, em desordem, mal seguros sobre as bases estreitas, em ângulo de queda, incum¬bentes e instáveis, feito loggans oscilantes, ou grandes desmoronamentos de dólmens; e mais longe desaparecem sob acervos de blocos, com a imagem perfeita desses “mares de pedra” tão característicos dos lugares onde imperam os regimes excessivos. Pelas abas dos cerros, que tumultuam em roda — restos de velhíssimas chapadas corroídas — se derramam ora em alinhamentos relembrando velhos caminhos de geleiras, ora esparsos a esmo, espessos lastros de seixos e lajes fraturadas, delatando idênticas violências. As arestas dos fragmentos, onde persistem ainda cimentados ao quartzo os cristais de feldspato, são novos atestados desses efeitos físicos e mecânicos que despedaçando as rochas, sem que se decomponham os seus elementos formadores, se avantajaram ao vagar dos agentes químicos em função dos fatos meteorológicos normais.
Deste modo se tem a cada passo, em todos os pontos, um lineamento incisivo de rudeza extrema. Atenuando-o em parte, deparam-se várzeas deprimidas, sedes de antigos lagos, extintos agora em ipueiras apauladas, que demarcam os pousos dos vaqueiros. Recortam-nas, no entanto, abertos em caixão, os leitos as mais das vezes secos de ribeirões que só se enchem nas breves estações das chuvas. Obstruídos, na maioria, de espessos lastros de blocos entre os quais, fora das enchentes súbitas, defluem tênues fios de águas são uma reprodução completa dos uedes que marginam o Saara. Despontam-lhes, em geral, normais às barrancas, estratos de um talcoxisto azul-escuro em placas brunidas reverberando a luz em fulgurar metálico — e sobre elas, cobrindo extensas áreas, camadas menos resistentes de argila vermelha, cindidas de veios de quartzo, interceptando-lhes, discordantes, os planos estratigráficos. Estas últimas formações, silurianas talvez, cobrem de todo as demais à medida que se caminha para NE e apropriam-se a contornos mais corretos. Esclarecem a gênese dos tabuleiros rasos, que se desatam, cobertos de uma vegetação resistente, de mangabeiras, até Jeremoabo.
Para o norte, porém, inclinam-se mais fortemente as camadas. Sucedem-se cômoros despidos, de pendores resvalantes, descaindo em quebradas onde enxurram torrentes periódicas, solapando-os; e pelos seus topos divisam-se, alinhadas em fileiras, destacadas em lâminas, as mesmas infiltrações quartzosas, expostas pela decomposição dos xistos em que se embebem.
À luz crua dos dias sertanejos aqueles cerros aspérrimos rebrilham, estonteadoramente — ofuscantes, num irradiar ardentíssimo...
As erosões constantes quebram, porém, a continuidade desses estratos que ademais, noutros pontos, desaparecem sob as formações calcárias. Mas o conjunto pouco se transmuda. À feição ruiniforme destas, casa-se bem à dos outros acidentes. E nos trechos em que elas se estiram, planas, pelo solo, desa¬brigadas de todo ante a acidez corrosiva dos aguaceiros tempestuosos, crivam-se, escarificadas, de cavidades circulares e acanaladuras fundas, diminutas mas inúmeras, tangenciando-se em quinas de rebordos cortantes, em pontas e duríssimos estrepes que impossibilitam as marchas.
Deste modo, por qualquer vereda, sucedem-se acidentes pouco elevados mas abruptos, pelos quais tornejam os caminhos, quando não se justapõem por muitas léguas aos leitos vazios dos ribeirões esgotados. E por mais inexperto que seja o observador — ao deixar as perspectivas majestosas, que se desdobram ao Sul, trocando-as pelos cenários emocionantes daquela natureza torturada, tem a impressão persistente de calcar o fundo recém-sublevado de um mar extinto, tendo ainda estereotipada naquelas camadas rígidas a agitação das ondas e das voragens...

Um sonho de geólogo

É uma sugestão empolgante.
Vai-se de boa sombra com um naturalista algo romântico1 imaginando-se que por ali turbilhonaram, largo tempo, na idade terciária, as vagas e as correntes.
Porque, a despeito da escassez de dados permitindo uma dessas profecias retrospectivas, no dizer elegante de Huxley, capaz de esboçar a situação daquela zona em idades remotas, todos os caracteres que sumariamos reforçam a concepção aventurosa.
Alentam-na ainda: o estranho desnudamento da terra; os alinhamentos notáveis em que jazem os materiais fraturados, orlando, em verdadeiras curvas de nível, os flancos de serranias; as escarpas dos tabuleiros terminando em taludes a prumo, que recordam falésias; e até certo ponto, os restos da fauna pliocena, que fazem dos caldeirões enormes ossuários de mastodontes, cheios de vértebras desconjuntadas e partidas, como se ali a vida fosse, de chofre, salteada e extinta pelas energias revoltas de um cataclismo.
Há também a presunção derivada de situação anterior, exposta em dados positivos. As pesquisas de Fred. Hartt, de fato, estabelecem, nas terras circunjacentes a Paulo Afonso, a existência de inegáveis bacias cretáceas; e sendo os fósseis que as definem idênticos aos encontrados no Peru e México e contemporâneos dos que Agassiz descobriu no Panamá — todos estes elementos se acolchetam no deduzir-se que vasto oceano cretáceo rolou as suas ondas sobre as terras fronteiras das duas Américas, ligando o Atlântico ao Pacífico. Cobria, assim, grande parte dos estados setentrionais brasileiros, indo bater contra os terraços superiores dos planaltos, onde extensos depósitos sedimentários denunciam idade mais antiga, o paleozóico médio.
Então, destacadas das grandes ilhas emergentes, as grimpas mais altas das nossas cordilheiras mal apontavam ao norte, na solidão imensa das águas...
Não existiam os Andes, e o Amazonas, largo canal entre as altiplanuras das Guianas e as do continente, separava-as, ilhadas. Para as bandas do sul o maciço de Goiás — o mais antigo do Mundo — segundo a bela dedução de Gerber, o de Minas e parte do planalto paulista, onde fulgurava, em plena atividade, o vulcão de Caldas, constituíam o núcleo do continente futuro...
Porque se operava lentamente uma sublevação geral: as massas graníticas alteavam-se ao norte arrastando o conjunto geral das terras numa rotação vagarosa em torno de um eixo, imaginado por Em. Liais entre os chapadões de Barbacena e a Bolívia. Simultaneamente, ao abrir-se a época terciária, se realiza o fato prodigioso do alevantamento dos Andes; novas terras afloram nas águas; tranca-se, num extremo, o canal amazônico, transmudando-se no maior dos rios; ampliam-se os arquipélagos esparsos, e ganglionam-se em istmos, e fundem-se; arredondam-se, maiores, os contornos das costas; e integra-se, lentamente, a América.
Então os terrenos da extrema setentrional da Bahia, que se resumiam nos cachopos de quartzito de Monte Santo e visos da Itiúba, esparsos pelas águas, avolumaram-se, num ascender contínuo. Mas nesse vagaroso altear-se, enquanto as regiões mais altas, recém-desvendadas, se salpintavam de lagos, toda a parte média daquela escarpa permanecia imersa. Uma corrente impetuosa, de que é forma decaída a atual da nossa costa, enlaçava-a. E embatendo-a longamente, enquanto o resto do país, ao sul, se erigia já constituído, e corroendo-a, e triturando-a, remoinhando para oeste e arrebatando todos os materiais desagregados, modelava aquele recanto da Bahia até que ele emergisse de todo, seguindo o movimento geral das terras, feito informe amontoado de montanhas derruídas.
O regime desértico ali se firmou, então, em flagrante antagonismo com as disposições geográficas: sobre uma escarpa, onde nada recorda as depressões sem escoamento dos desertos clássicos.
Acredita-se que a região incipiente ainda está preparando-se para a Vida: o líquen ainda ataca a pedra, fecundando a terra. E lutando tenazmente com o flagelar do clima, uma flora de resistência rara por ali entretece a trama das raízes, obstando, em parte, que as torrentes arrebatem todos os princípios exsolvidos — acumulando-os pouco a pouco na conquista da paragem desolada cujos contornos suaviza — sem impedir, contudo, nos estilos longos, as insolações inclementes e as águas selvagens, degradando o solo.
Daí a impressão dolorosa que nos domina ao atravessarmos aquele ignoto trecho de sertão — quase um deserto — quer se aperte entre as dobras de serranias nuas ou se estire, monotonamente, em descampados grandes...

II

Do alto de Monte Santo

Do alto da Serra de Monte Santo atentando-se para a região, estendida em torno num raio de quinze léguas, nota-se, como num mapa em relevo, a sua conformação orográfica. E vê-se que as cordas de serras ao invés de se alongarem para o nascente, medianas aos traçados do Vaza-Barris e Itapicuru, formando-lhes o divortium aquarum, progridem para o norte.
Mostram-se as serras Grande e do Atanásio, correndo, e a princípio distintas, uma para NO e outra para N e fundindo-se na do Acaru, onde abrolham os mananciais intermitentes do Bendegó e seus tributários efêmeros. Unificadas, aliam-se às de Caraíbas e do Lopes e nestas de novo se embebem, formando-se as massas do Cambaio, de onde irradiam as pequenas cadeias do Coxomongó e Calumbi, e para o noroeste os píncaros torreantes do Caipã. Obediente à mesma tendência, a do Aracati, lançando-se a NO, à borda dos tabuleiros de Jere¬moabo, progride, descontínua, naquele rumo e, depois de entalhadas pelo Vaza-Barris em Cocorobó, inflete para o poente, repartindo-se nas da Canabrava e Poço de Cima, que a prolongam. Todas traçam, afinal, elíptica curva fechada ao sul por um morro, o da Favela, em torno de larga planura ondeante onde se erigia o arraial de Canudos — e daí para o norte de novo se dispersam e descaem até acabarem em chapadas altas à borda do S. Francisco.
Deste modo, no ascender para o norte, procurando o chapadão que o Parnaíba escava, aquele talude dos planaltos parece dobrar-se num ressalto, perturbando toda a área de drenagem do S. Francisco abaixo da confluência do Patamoté, num traçado de torrentes sem nome, inapreciáveis na mais favorável escala, e impondo ao Vaza-Barris um curso tortuoso do qual ele se liberta em Jeremoabo, ao infletir para a costa.
Este é um rio sem afluentes. Falta-lhe conformidade com o declive da terra. Os seus pequenos tributários, o Bendegó e o Caraíbas, volvendo águas transitórias, dentro dos leitos rudemente escavados, não traduzem as depressões do solo. Têm a existência fugitiva das estações chuvosas. São, antes, canais de esgotamento, abertos a esmo pelos enxurros — ou correntes velozes que, adstritas aos relevos topográficos mais próximos, estão, não raro, em desarmonia com as disposições orográficas gerais. São rios que sobem. Enchem-se de súbito; transbordam, reprofundam os leitos, anulando o obstáculo do declive geral do solo; rolam por alguns dias para o rio principal; e desaparecem, volvendo ao primitivo aspecto de valores em torcicolos, cheios de pedras, e secos.
O próprio Vaza-Barris, rio sem nascentes em cujo leito viçam gramíneas e pastam os rebanhos, não teria o traçado atual se corrente perene lhe assegurasse um perfil de equilíbrio, através de esforço contínuo e longo. A sua função como agente geológico é revolucionária. As mais das vezes cortado, fracionando-se em gânglios estagnados, ou seco, à maneira de larga estrada poenta e tortuosa, quando cresce, empanzinado, nas cheias, captando as águas selvagens que estrepitam nos pendores, volve por algumas semanas águas barrentas e revoltas, extinguindo-se logo em esgotamento completo, vazando, como o indica o dizer português, substituindo-lhe com vantagem a antiga denominação indígena. É uma onda tombando das vertentes da Itiúba, multiplicando a energia da corrente no apertado dos desfiladeiros, e correndo veloz entre barrancos, ou entalada em serras, até Jeremoabo.
Vimos como a natureza, em roda, lhe imita o regime brutal — calcando-o em terreno agro, sem os cenários opulentos das serras e dos tabuleiros ou dos sem-fins das chapadas — mas feito um misto em que tais disposições naturais se baralham, em confusão pasmosa: planícies que de perto revelam séries de cômoros, retalhados de algares; morros que o contraste das várzeas faz de grande altura e estão poucas dezenas de metros sobre o solo, e tabuleiros que em sendo percorridos mostram a acidentação caótica de boqueirões escancelados e brutos. Nada mais dos belos efeitos das denudações lentas, no remodelar os pendores, no desapertar os horizontes e no desatar — am¬plíssimos — os gerais pelo teso das cordilheiras, dando aos quadros naturais a encantadora grandeza de perspectivas em que o céu e a terra se fundem em difusão longínqua e surpreendedora de cores...
Entretanto, inesperado quadro esperava o viandante que subia, depois desta travessia em que supõe pisar escombros de terremotos, as ondulações mais próximas de Canudos.

Do alto da Favela

Galgava o topo da Favela. Volvia em volta o olhar, para abranger de um lance o conjunto da terra. — E nada mais divisava recordando-lhe os cenários contemplados. Tinha na frente a antítese do que vira. Ali estavam os mesmos acidentes e o mesmo chão, embaixo, fundamente revolto, sob o indumento áspero dos pedregais e caatingas estonadas... Mas a reunião de tantos traços incorretos e duros — arregoados divagantes de algares, sulcos de despenhadeiros, socavas de bocainas, criava-lhe perspectivas inteiramente novas. E quase compreendia que os matutos crendeiros, de imaginativa ingênua, acreditassem que “ali era o céu...”
O arraial, adiante e embaixo, erigia-se no mesmo solo perturbado. Mas vistos daquele ponto, de permeio a distância suavizando-lhes as encostas e aplainando-os — todos os serrotes breves e inúmeros, projetando-se em plano inferior e estendendo-se, uniformes, pelos quadrantes, davam-lhe a ilusão de uma planície ondulante e grande.
Em roda uma elipse majestosa de montanhas...
A Canabrava, a nordeste, de perfil abaulado e simples; a do Poço de Cima, próxima, mais íngreme e alta; a de Cocorobó, no levante, ondulando em seladas, dispersa em esporões; as vertentes retilíneas do Calumbi ao sul; as grimpas do Cambaio, no correr para o poente; e, para o norte, os contornos agitados do Caipã — ligam-se e articulam-se no infletir gradual traçando, fechada, a curva desmedida.
Vendo ao longe, quase de nível, trancando-lhe o horizonte, aquelas grimpas altaneiras, o observador tinha a impressão alentadora de se achar sobre platô elevadíssimo, páramo incomparável repousando sobre as serras.
Na planície rugada, embaixo, mal se lobrigavam os pequenos cursos d’água, divagando, serpeantes...
Um único se distinguia, o Vaza-Barris. Atravessava-a, torcendo-se em meandros. Presa numa dessas voltas via-se uma depressão maior, circundada de colinas... E atulhando-a, enchendo-a toda de confusos tetos incontáveis, um acervo enorme de casebres.

III

O clima

Dos breves apontamentos indicados, resulta que os caracteres geológicos e topográficos, a par dos demais agentes físicos, mutuam naqueles lugares as influências características de modo a não se poder afirmar qual o preponderante.
Se, por um lado, as condições genéticas reagem fortemente sobre os últimos, estes, por sua vez, contribuíram para o agravamento daquelas; — e todas persistem nas influências recíprocas. Deste perene conflito feito num círculo vicioso indefinido, ressalta a significação mesológica do local. Não há abrangê-la em todas as modalidades. Escasseiam-nos as observações mais comuns, mercê da proverbial indiferença com que nos volvemos às cousas desta terra, com uma inércia cômoda de mendigos fartos.
Nenhum pioneiro da ciência suportou ainda as agruras daquele rincão sertanejo, em prazo suficiente para o definir.
Martius por lá passou, com a mira essencial de observar o aerólito, que tombara à margem do Bendegó e era já, desde 1810, conhecido nas academias européias, graças a F. Mornay e Wollaston. Rompendo, porém, a região selvagem, desertus australis, como a batizou, mal atentou para a terra recamada de uma flora extravagante, silva horrida no seu latim alarmado. Os que o antecederam e sucederam, palmilharam, ferretoados da canícula, as mesmas trilhas rápidas, de quem foge. De sorte que sempre evitado, aquele sertão, até hoje desconhecido, ainda o será por muito tempo.
O que se segue são vagas conjecturas. Atravessamo-lo no prelúdio de um estio ardente e, vendo-o apenas nessa quadra, vimo-lo sob o pior aspecto. O que escrevemos tem o traço defeituoso dessa impressão isolada, desfavorecida, ademais, por um meio contraposto à serenidade do pensamento, tolhido pelas emoções da guerra. Além disto os dados de um termômetro único e de um aneróide suspeito, misérrimo arsenal científico com que ali lidamos, nem mesmo vagos lineamentos darão de climas que divergem segundo as menores disposições topográficas, criando aspectos díspares entre lugares limítrofes. O de Monte Santo, por exemplo, que é, ao primeiro comparar, muito superior ao de Queimadas, diverge do dos lugares que lhe demoram ao norte, sem a continuidade que era lícito prever de sua situação intermédia. A proximidade das massas montanhosas torna-o estável, lembrando um regime marítimo em pleno continente: escala térmica oscilando em amplitudes insignificantes; firmamento onde a transparência dos ares é completa e a limpidez inalterável; e ventos reinantes, o SE no inverno e o NE no estio — alternando-se com rigorismo raro. Mas está insulado. Para qualquer das bandas, deixa-o o viajante num dia de viagem. Se vai para o norte, salteiam-se transições fortíssimas: a temperatura aumenta; carrega-se o azul dos céus; embaciam-se os ares: e as ventanias rolam desorientadamente de todos os quadrantes — ante a tiragem intensa dos terrenos desabri¬gados, que dali por diante se estiram. Ao mesmo tempo espelha-se o regime excessivo: o termômetro oscila em graus disparatados passando, já em outubro, dos dias em 35º à sombra para as madrugadas frias.
No ascender do verão acentua-se o desequilíbrio. — Crescem a um tempo as máximas e as mínimas, até que no fastígio das secas transcorram as horas num intermitir inaturável dos dias queimosos e noites enregeladas.
A terra desnuda tendo contrapostas, em permanente conflito, as capacidades emissiva e absorvente dos materiais que a formam, do mesmo passo armazena os ardores das soalheiras e deles se esgota, de improviso. Insola-se e enregela-se, em 24 horas. Fere-a o sol e ela absorve-lhe os raios, e multiplica-os, e reflete-os, e refrata-os, num reverberar ofuscante: pelo topo dos cerros, pelo esbarrancado das encostas, incendeiam-se as acendalhas da sílica fraturada; rebrilhantes, numa trama vibrátil de centelhas; a atmosfera junto ao chão vibra num ondular vivíssimo de bocas de fornalha em que se pressente visível, no expandir das colunas aquecidas, a efer¬vescência dos ares; e o dia, incomparável no fulgor, fulmina a natureza silenciosa, em cujo seio se abate, imóvel, na quietude de um longo espasmo, a galhada sem folhas da flora sucumbida.
Desce a noite, sem crespúsculo, de chofre — um salto da treva por cima de uma franja vermelha do poente — e todo este calor se perde no espaço numa irradiação intensíssima, caindo a temperatura de súbito, numa queda única, assombrosa...
Ocorrem, todavia, variantes cruéis. Propelidas pelo nordeste, espessas nuvens, tufando em cumulus, pairam ao entardecer sobre as areias incendidas. Desaparece o Sol e a coluna mercurial permanece imóvel, ou, de preferência, sobe. A noite sobrevém em fogo; a terra irradia como um Sol escuro, porque se sente uma dolorosa impressão de faúlhas invisíveis; mas toda a ardência reflui sobre ela, recambiada pelas nuvens. O barômetro cai, como nas proximidades das tormentas; e mal se respira no bochorno inaturável em que toda a adustão golfada pela soalheira se concentra numa hora única da noite.
Por um contraste explicável, este fato jamais sucede nos paroxismos estivais das secas, em que prevalece a intercadência de dias esbraseados e noites frigidíssimas, agravando todas as angústias dos martirizados sertanejos.
Copiando o mesmo singular desequilíbrio das forças que trabalham a terra, os ventos ali chegam, em geral, turbilhonando revoltos, em rebojos largos. E, nos meses em que se acentua, o nordeste grava em tudo sinais que lhe recordam o rumo.
Estas agitações dos ares desaparecem, entretanto, por longos meses, reinando calmarias pesadas — ares imóveis sob a placidez luminosa dos dias causticantes. Imperceptíveis exercem-se, então, as correntes ascensionais dos vapores aquecidos sugando à terra a umidade exígua; e quando se prolongam esboçando o prelúdio entristecedor da seca, a secura da atmosfera atinge a graus anormalíssimos.

Higrômetros singulares

Não a observamos através do rigorismo de processos clássicos, mas graças a higrômetros inesperados e bizarros.
Percorrendo certa vez, nos fins de setembro, as cercanias de Canudos, fugindo à monotonia de um canhoneiro frouxo de tiros espaçados e soturnos, encontramos, no descer de uma encosta, anfiteatro irregular, onde as colinas se dispunham circulando um vale único. Pequenos arbustos, icozeiros virentes viçando em tufos intermeados de palmatórias de flores rutilantes, davam ao lugar a aparência exata de algum velho jardim em abandono. Ao lado uma árvore única, uma quixabeira alta, sobranceando a vegetação franzina.
O sol poente desatava, longa, a sua sombra pelo chão e protegido por ela — braços largamente abertos, face volvida para os céus — um soldado descansava.
Descansava... havia três meses.
Morrera no assalto de 18 de julho. A coronha da Mannlicher estrondada, o cinturão e o boné jogados a uma banda, e a farda em tiras, diziam que sucumbira em luta corpo a corpo com adversário possante. Caíra, certo, derreando-se à violenta pancada que lhe sulcara a fronte, manchada de uma escara preta. E ao enterrar-se, dias depois, os mortos, não fora percebido. Não compartira, por isto, a vala comum de menos de um côvado de fundo em que eram jogados, formando pela última vez juntos, os companheiros abatidos na batalha. O destino que o removera do lar desprotegido fizera-lhe afinal uma concessão: livrara-o da promiscuidade lúgubre de um fosso repugnante; e deixara-o ali há três meses — braços largamente abertos, rosto voltado para os céus, para os sóis ardentes, para os luares claros, para as estrelas fulgurantes...
E estava intacto. Murchara apenas. Mumificara conservando os traços fisionômicos, de modo a incutir a ilusão exata de um lutador cansado, retemperando-se em tranqüilo sono, à sombra daquela árvore benfazeja. Nem um verme — o mais vulgar dos trágicos analistas da matéria — lhe maculara os tecidos. Volvia ao turbilhão da vida sem decomposição repugnante, numa exaustão imperceptível. Era um aparelho revelando de modo absoluto, mas sugestivo, a secura extrema dos ares.
Os cavalos mortos naquele mesmo dia semelhavam espécimens empalhados, de museus. O pescoço apenas mais alongado e fino, as pernas ressequidas e o arcabouço engelhado e duro.
À entrada do acampamento, em Canudos, um deles, sobre todos, se destacava impressionadoramente. Fora a montada de um valente, o alferes Wanderley; e abatera-se, morto juntamente com o cavaleiro. Ao resvalar, porém, estrebuchando malferido, pela rampa íngreme, quedou, adiante, a meia encosta, entalado entre fraguedos. Ficou quase em pé, com as patas dianteiras firmes num ressalto da pedra... E ali estacou feito um animal fantástico, aprumado sobre a ladeira, num quase curvetear, no último arremesso da carga paralisada, com todas as aparências de vida, sobretudo quando, ao passarem as rajadas ríspidas do nordeste, se lhe agitavam as longas crinas ondulantes...
Quando aquelas lufadas, caindo a súbitas, se compunham com as colunas ascendentes, em remoinhos turbilhonantes, à maneira de minúsculos ciclones, sentia-se, maior, a exsicação do ambiente adusto; cada partícula de areia suspensa do solo gretado e duro irradiava em todos os sentidos, feito um foco calorífico, a surda combustão da terra.
Fora disto — nas longas calmarias, fenômenos óticos bizarros.
Do topo da Favela, se a prumo dardejava o Sol e a atmosfera estagnada imobilizava a natureza em torno, atentando-se para os descampados, ao longe, não se distinguia o solo.
O olhar fascinado perturbava-se no desequilíbrio das camadas desigualmente aquecidas, parecendo varar através de um prisma desmedido e intáctil, e não distinguia a base das montanhas, como que suspensas. Então, ao norte da Canabrava, numa enorme expansão dos plainos perturbados, via-se um ondular estonteador; estranho palpitar de vagas longínquas; a ilusão maravilhosa de um seio de mar, largo, irisado, sobre que caísse, e refrangesse, e ressaltasse a luz esparsa em cintilações ofuscantes...

IV

As secas

O sertão de Canudos é um índice sumariando a fisiografia dos sertões do Norte. Resume-os, enfeixa os seus aspectos predominantes numa escala reduzida. É-lhes de algum modo uma zona central comum.
De fato, a inflexão peninsular, extremada pelo cabo de S. Roque, faz que para ele convirjam as lindes interiores de seis estados — Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Ceará e Piauí — que o tocam ou demoram distantes poucas léguas.
Desse modo é natural que as vicissitudes climáticas daqueles nele se exercitem com a mesma intensidade, nomeadamente em sua manifestação mais incisiva, definida numa palavra que é o terror máximo dos rudes patrícios que por ali se agitam — a seca.
Escusamo-nos de longamente a estudar, averbando o desbarate dos mais robustos espíritos no aprofundar-lhe a gênese, tateantes ao través de sem-número de agentes complexos e fugitivos. Indiquemos, porém, inscrita num traçado de números inflexíveis, esta fatalidade inexorável.
De fato, os seus ciclos — porque o são no rigorismo técnico do termo — abrem-se e encerram-se com um ritmo tão notável, que recordam o desdobramento de uma lei natural, ainda ignorada.
Revelou-o, pela primeira vez, o senador Tomás Pompeu, traçando um quadro por si mesmo bastante eloqüente, em que os aparecimentos das secas, no século passado e atual, se defrontam em paralelismo singular, sendo de presumir que ligeiras discrepâncias indiquem apenas defeitos de observação ou desvios na tradição oral que as registrou.
De qualquer modo ressalta à simples contemplação uma coincidência repetida bastante para que se remova a intrusão do acaso.
Assim, para citarmos apenas as maiores, as secas de 1710-1711, 1723-1727, 1736-1737, 1744-1745, 1777-1778, do século XVIII, se justapõem às de 1808-1809, 1824-1825, 1835-1837, 1844-1845, 1877-1879, do atual.
Esta coincidência, espelhando-se quase invariável, como se surgisse do decalque de uma quadra sobre outra, acentua-se ainda na identidade das quadras remansadas e longas, que, em ambas, atreguaram a progressão dos estragos.
De fato, sendo, no século passado, o maior interregno de 32 anos (1745-1777), houve no nosso outro absolutamente igual e, o que é sobremaneira notável, com a correspondência exatíssima das datas (1845-1877). Continuando num exame mais íntimo do quadro, destacam-se novos dados fixos e positivos, aparecendo com um rigorismo de incógnitas que se desvendam. Observa-se, então, uma cadência rara perturbada na marcha do flagelo, intercortado de intervalos pouco díspares entre 9 e 12 anos, e sucedendo-se de maneira a permitirem previsões seguras sobre a sua irrupção.
Entretanto, apesar desta simplicidade extrema nos resultados imediatos, o problema, que se pode traduzir na fórmula aritmética mais simples, permanece insolúvel.

Hipótese sobre a gênese das secas

Impressionado pela razão desta progressão raro alterada, e fixando-a um tanto forçadamente em onze anos, um naturalista, o barão de Capanema, teve o pensamento de rastrear nos fatos extraterrestres, tão característicos pelos períodos invioláveis em que se sucedem, a sua origem remota. E encontrou na regularidade com que repontam e se extinguem, intermitentemente, as manchas da fotosfera solar, um símile completo.
De fato, aqueles núcleos obscuros, alguns mais vastos que a Terra, negrejando dentro da cercadura fulgurante das fáculas, lentamente derivando à feição da rotação do Sol, têm, entre o máximo e o mínimo da intensidade, um período que pode variar de nove a doze anos. E como desde muito a intuição genial de Herschel lhes descobrira o influxo apreciável na dosagem de calor emitido para a Terra, a correlação surgia inabalável, neste estear-se em dados geométricos e físicos acolchetando-se num efeito único.
Restava equiparar o mínimo das manchas, anteparo à irradia¬ção do grande astro, ao fastígio das secas no planeta torturado — de modo a patentear, cômpares, os períodos de uma e outras.
Falhou neste ponto, em que pese à sua forma atraentíssima, a teoria planeada: raramente coincidem as datas do paroxismo estival, no Norte, com as daquele.
O malogro desta tentativa, entretanto, denuncia menos a desvalia de uma aproximação imposta rigorosamente por circunstâncias tão notáveis, do que o exclusivismo de atentar-se para uma causa única. Porque a questão, com a complexidade imanente aos fatos concretos, se atém, de preferência, a razões secundárias, mais próximas e enérgicas, e estas, em modalidades progredindo, contínuas, da natureza do solo à disposição geográfica, só serão definitivamente sistematizadas quando extensa série de observações permitir a definição dos agentes preponderantes do clima sertanejo.
Como quer que seja, o penoso regime dos estados do Norte está em função de agentes desordenados e fugitivos, sem leis ainda definidas, sujeitas às perturbações locais, derivadas da natureza da terra, e a reações mais amplas, promanadas das disposições geográficas. Daí as correntes aéreas que o desequilibram e variam.
Determina-o em grande parte, e talvez de modo preponderante, a monção de nordeste, oriunda da forte aspiração dos planaltos interiores que, em vasta superfície alargada até ao Mato Grosso, são, como se sabe, sede de grandes depressões barométricas, no estio. Atraído por estas, o nordeste vivo, ao entrar, de dezembro a março, pelas costas setentrionais, é singularmente favorecido pela própria conformação da terra, na passagem célere por sobre os chapadões desnudos que irradiando intensamente lhe alteiam o ponto de saturação diminuindo as probabilidades das chuvas, e repelindo-o, de modo a lhe permitir acarretar para os recessos do continente, intacta, sobre os mananciais dos grandes rios, toda a umidade absorvida na travessia dos mares.
De fato, a disposição orográfica dos sertões, à parte ligeiras variantes — cordas de serras que se alinham para nordeste paralelamente à monção reinante — facilita a travessia desta. Canaliza-a. Não a contrabate num antagonismo de encostas, abar¬reirando-a, alteando-a, provocando-lhe o resfriamento, e a condensação em chuvas.
Um dos motivos das secas repousa, assim, na disposição topográfica.
Falta às terras flageladas do Norte uma alta serrania que, correndo em direção perpendicular àquele vento, determine a dynamic colding, consoante um dizer expressivo.
Um fato natural de ordem mais elevada esclarece esta hi¬pótese.
Assim é que as secas aparecem sempre entre duas datas fixadas há muito pela prática dos sertanejos, de 12 de dezembro a 19 de março. Fora de tais limites não há um exemplo único de extinção de secas. Se os atravessam, prolongam-se fatalmente por todo o decorrer do ano, até que se reabra outra vez aquela quadra. Sendo assim e lembrando-nos que é precisamente dentro deste intervalo que a longa faixa das calmas equatoriais, no seu lento oscilar em torno do equador, paira no zênite daqueles estados, levando a borda até aos extremos da Bahia, não poderemos considerá-la, para o caso, com a função de uma montanha ideal que, correndo de leste a oeste e corrigindo momentaneamente lastimável disposição orográfica, se anteponha à monção e lhe provoque a parada, a ascensão das correntes, o resfriamento subseqüente e a condensação imedia¬ta nos aguaceiros diluvianos que tombam então, de súbito, sobre os sertões?
Este desfiar de conjecturas tem o valor único de indicar quantos fatores remotos podem incidir numa questão que duplamente nos interessa, pelo seu traço superior na ciência, e pelo seu significado mais íntimo no envolver o destino de extenso trato do nosso país. Remove, por isto, a segundo plano o influxo até hoje inutilmente agitado dos alísios, e é de alguma sorte fortalecido pela intuição do próprio sertanejo para quem a persistência do nordeste, — o vento da seca, como o batiza expressivamente — equivale à permanência de uma situação irremediável e crudelíssima.
As quadras benéficas chegam de improviso.
Depois de dous ou três anos, como de 1877-1879, em que a insolação rescalda intensamente as chapadas desnudas, a sua própria intensidade origina um reagente inevitável. Decai afinal, por toda a parte, de modo considerável, a pressão atmosférica. Apruma-se, maior e mais bem definida, a barreira das correntes ascensionais dos ares aquecidos, antepostas às que entram pelo litoral. E entrechocadas umas e outras, num desencadear de tufões violentos, alteiam-se, retalhadas de raios, nublando em minutos o firmamento todo, desfazendo-se logo depois em aguaceiros fortes sobre os desertos recrestados.
Então parece tornar-se visível o anteparo das colunas ascendentes, que determinam o fenômeno, na colisão formidável com o nordeste.
Segundo numerosas testemunhas — as primeiras bátegas despenhadas da altura não atingem a terra. A meio caminho se evaporam entre as camadas referventes que sobem, e volvem, repelidas, às nuvens, para, outra vez condensando-se, precipitarem-se de novo e novamente refluírem; até tocarem o solo que a princípio não umedecem, tornando ainda aos espaços com rapidez maior, numa vaporização quase como se houvessem caído sobre chapas incandescentes; para mais uma vez descerem, numa permuta rápida e contínua, até que se formem, afinal, os primeiros fios de água derivando pelas pedras, as primeiras torrentes em despenhos pelas encostas, afluindo em regatos já avolumados entre as quebradas, concentrando-se tumultuariamente em ribeirões correntosos; adensando-se, estes, em rios barrentos traçados ao acaso, à feição dos declives, em cujas correntezas passam velozmente os esgalhos das árvores arrancadas, rolando todos e arrebentando na mesma onda, no mesmo caos de águas revoltas e escuras...
Se ao assalto subitâneo se sucedem as chuvas regulares, transmudam-se os sertões, revivescendo. Passam, porém, não raro, num giro célebre, de ciclone. A drenagem rápida do terreno e a evaporação, que se estabelece logo mais viva, tornam-nos, outra vez, desolados e áridos. E penetrando-lhes a atmosfera ardente, os ventos duplicam a capacidade higrométrica, e vão, dia a dia, absorvendo a umidade exígua da terra — reabrindo o ciclo inflexível das secas...

As caatingas

Então, a travessia das veredas sertanejas é mais exaustiva que a de uma estepe nua.
Nesta, ao menos, o viajante tem o desafogo de um horizonte largo e a perspectiva das planuras francas.
Ao passo que a caatinga o afoga; abrevia-lhe o olhar; agride-o e estonteia-o; enlaça-o na trama espinescente e não o atrai; repulsa-o com as folhas urticantes, com o espinho, com os gravetos estalados em lanças; e desdobra-se-lhe na frente léguas e léguas, imutável no aspecto desolado: árvores sem folhas, de galhos estorcidos e secos, revoltos, entrecruzados, apontando rijamente no espaço ou estirando-se flexuosos pelo solo, lembrando um bracejar imenso, de tortura, da flora agonizante...
Embora esta não tenha as espécies reduzidas dos desertos — mimosas tolhiças ou eufórbias ásperas sobre o tapete das gramíneas murchas — e se afigure farta de vegetais distintos, as suas árvores, vistas em conjunto, semelham uma só família de poucos gêneros, quase reduzida a uma espécie invariável, divergindo apenas no tamanho, tendo todas a mesma conformação, a mesma aparência de vegetais morrendo, quase sem troncos, em esgalhos logo ao irromper do chão. É que por um efeito explicável de adaptação às condições estreitas do meio ingrato, evolvendo penosamente em círculos estreitos, aquelas mesmo que tanto se diversificam nas matas ali se talham por um molde único. Transmudam-se, e em lenta metamorfose vão tendendo para limitadíssimo número de tipos caracterizados pelos atributos dos que possuem maior capacidade de resistência.
Esta impõe-se, tenaz e inflexível.
A luta pela vida, que nas florestas se traduz como uma tendência irreprimível para a luz, desatando-se os arbustos em cipós, elásticos, distensos, fugindo ao afogado das sombras e alteando-se presos mais aos raios do Sol do que aos troncos seculares — ali, de todo oposta, é mais obscura, é mais original, é mais comovedora. O Sol é o inimigo que é forçoso evitar, iludir ou combater. E evitando-o pressente-se de algum modo, como o indicaremos adiante, a inumação da flora moribunda, enterrando-se os caules pelo solo. Mas como este, por seu turno, é áspero e duro, exsicado pelas drenagens dos pendores ou esterilizado pela sucção dos estratos completando as insolações, entre dous meios desfavoráveis — espaços candentes e terrenos agros — as plantas mais robustas trazem no aspecto anormalíssimo, impressos, todos os estigmas desta batalha surda.
As leguminosas, altaneiras noutros lugares, ali se tornam anãs. Ao mesmo tempo ampliam o âmbito das frondes, alargando a superfície de contacto com o ar, para a absorção dos escassos elementos nele difundidos. Atrofiam as raízes mestras batendo contra o subsolo impenetrável e substituem-nas pela expansão irradiante das radículas secundárias, ganglionando-as em tubérculos túmidos de seiva. Amiúdam as folhas. Fitam-nas rijamente, duras como cisalhas, à ponta dos galhos para diminuírem o campo de insolação. Revestem de um indumento protetor os frutos, rígidos, às vezes, como estróbilos. Dão-lhes na deiscência perfeita com que as vagens se abrem, estalando como se houvessem molas de aço, admiráveis aparelhos para propagação das sementes, espalhando-as profusamente pelo chão. E têm, todas, sem excetuar uma única, no perfume suavíssimo das flores,1 anteparos intácteis que nas noites frias sobre elas se alevantam e se arqueiam obstando a que sofram de chofre as quedas de temperatura, tendas invisíveis e encantadoras, resguardando-as...
Assim disposta, a árvore aparelha-se para reagir contra o regime bruto.
Ajusta-se sobre os sertões o cautério das secas; esterilizam-se os ares urentes; empedra-se o chão, gretando, recrestado; ruge o nordeste nos ermos; e, como um cilício dilacerador, a caatinga estende sobre a terra as ramagens de espinhos... Mas, reduzidas todas as funções, a planta, estivando em vida latente, alimenta-se das reservas que armazena nas quadras remansadas e rompe os estios, pronta a transfigurar-se entre os deslumbramentos da primavera.
Algumas, em terrenos mais favoráveis, iludem ainda melhor as intempéries, em disposição singularíssima.
Vêem-se, numerosos, aglomerados em caapões ou salpin¬tando, isolados, as macegas, arbúsculos de pouco mais de um metro de alto, de largas folhas espessas e luzidas, exuberando floração ridente em meio da desolação geral. São os cajueiros anões, os típicos anacardium humile das chapadas áridas, os cajuís dos indígenas. Estes vegetais estranhos, quando abla¬queados em roda, mostram raízes que se entranham a surpreendente profundura. Não há desenraizá-los. O eixo descendente aumenta-lhes maior à medida que se escava. Por fim se nota que ele vai repartindo-se em divisões dicotômicas. Progride pela terra dentro até a um caule único e vigoroso, embaixo.
Não são raízes, são galhos. E os pequeninos arbúsculos, esparsos, ou repontando em tufos, abrangendo às vezes largas áreas, uma árvore única e enorme, inteiramente soterrada.
Espancado pelas canículas, fustigado dos sóis, roído dos enxurros, torturado pelos ventos, o vegetal parece derrear-se aos embates desses elementos antagônicos e abroquelar-se daquele modo, invisível, no solo sobre que alevanta apenas os mais altos renovos da fronde majestosa.
Outros, sem esta conformação, se aparelham de outra sorte.
As águas que fogem ao volver selvagem das torrentes, ou entre as camadas inclinadas dos xistos, ficam retidas, longo tempo, nas espatas das bromélias, aviventando-as. No pino dos verões, um pé de macambira é para o matuto sequioso um copo d’água cristalina e pura. Os caroás verdoengos, de flores triunfais e altas; os gravatás e ananases bravos, traçados em touceiras impenetráveis, copiam-lhe a mesma forma, adrede feita àquelas paragens estéreis. As suas folhas ensiformes, lisas e lustrosas, como as da maioria dos vegetais sertanejos, facilitam a con¬densação dos vapores escassos trazidos pelos ventos, por maneira a debelar-se o perigo máximo à vida vegetativa, resultante da larga evaporação pelas folhas, esgotando e vencendo a absorção pelas radículas.
Sucedem-se outros, diversamente apercebidos, sob novos aprestos, mas igualmente resistentes.
As nopáleas e cactos, nativas em toda a parte, entram na categoria das fontes vegetais, de Saint-Hilaire. Tipos clássicos da flora desértica, mais resistentes que os demais, quando decaem a seu lado, fulminadas, as árvores todas, persistem inalteráveis ou mais vívidos talvez. Afeiçoaram-se aos regimes bárbaros; repelem os climas benignos em que estiolam e definham. Ao passo que o ambiente em fogo dos desertos parece estimular melhor a circulação da seiva entre os seus cladódios túmidos.
As favelas, anônimas ainda na ciência — ignoradas dos sábios, conhecidas demais pelos tabaréus — talvez um futuro gênero cauterium das leguminosas, têm, nas folhas de células alongadas em vilosidades, notáveis aprestos de condensação, absorção e defesa. Por um lado, a sua epiderme ao resfriar-se, à noite, muito abaixo da temperatura do ar, provoca, a despeito da secura deste, breves precipitações de orvalho; por outro, a mão que a toca, toca uma chapa incandescente de ardência inaturável.
Ora quando, ao revés das anteriores, as espécies não se mostram tão bem armadas para a reação vitoriosa, observam-se dispositivos porventura mais interessantes; unem-se, intimamente abraçadas, transmudando-se em plantas sociais. Não podendo revidar isoladas, disciplinam-se, congregam-se, arregimentam-se. São deste número todas as cesalpinas e as catingueiras, constituindo, nos trechos em que aparecem, sessenta por cento das caatingas; os alecrins-dos-tabuleiros, e os canudos-de-pito, heliotrópicos arbustivos de caule oco, pintalgado de branco e flores em espigas, destinados a emprestar o nome ao mais lendário dos vilarejos...
Não estão no quadro das plantas sociais brasileiras, de Humboldt, e é possível que as primeiras vicejem, noutros climas, isoladas. Ali se associam. E, estreitamente solidárias as suas raízes, no subsolo, em apertada trama, retêm as águas, retêm as terras que se desagregam, e formam, ao cabo, num longo esforço o solo arável em que nascem, vencendo, pela capilaridade do inextricável tecido de radículas enredadas em malhas numerosas, a sucção insaciável dos estratos e das areias. E vivem. Vivem é o termo — porque há, no fato, um traço superior à passividade da evolução vegetativa...

O juazeiro

Têm o mesmo caráter os juazeiros, que raro perdem as folhas de um verde intenso, adrede modeladas às reações vigorosas da luz. Sucedem-se meses e anos ardentes. Empobrece-se inteiramente o solo aspérrimo. Mas, nessas quadras cruéis, em que as soalheiras se agravam, às vezes, com os incêndios espontaneamente acesos pelas ventanias atritando rijamente os galhos secos e estonados — sobre o depauperamento geral da vida, em roda, eles agitam as ramagens virentes, alheios às estações, floridos sempre, salpintando o deserto com as flores cor de ouro, álacres, esbatidas no pardo dos restolhos — à maneira de oásis verdejantes e festivos.
A dureza dos elementos cresce, entretanto, em certas quadras, ao ponto de os desnudar: é que se enterroaram há muito os fundos das cacimbas, e os leitos endurecidos das ipueiras mostram, feito enormes carimbos, em moldes, os rastros velhos das boiadas; e o sertão de todo se impropriou à vida.
Então, sobre a natureza morta, apenas se alteiam os cereus esguios e silentes, aprumando os caules circulares repartidos em colunas poliédricas e uniformes, na simetria impecável de enormes candelabros. E avultando ao descer das tardes breves sobre aqueles ermos, quando os abotoam grandes frutos vermelhos destacando-se, nítidos, à meia luz dos crepúsculos, eles dão a ilusão emocionante de círios enormes, fincados a esmo no solo, espalhados pelas chapadas, e acesos...
Caracterizam a flora caprichosa na plenitude do estio.
Os mandacarus (cereus jaramacaru) atingindo notável altura, raro aparecendo em grupos, assomando isolados acima da vegetação caótica, são novidade atraente, a princípio. Atuam pelo contraste. Aprumam-se tesos, triunfalmente, enquanto por toda a banda a flora se deprime. O olhar perturbado pelo acomodar-se à contemplação penosa dos acervos de ramalhos estorcidos, descansa e retifica-se percorrendo os seus caules direitos e corretos. No fim de algum tempo, porém, são uma obsessão acabrunhadora. Gravam em tudo monotonia inaturável, sucedendo-se constantes, uniformes, idênticos todos, todos do mesmo porte, igualmente afastados, distribuídos com uma ordem singular pelo deserto.
Os xiquexiques (cactus peruvianus) são uma variante de proporções inferiores, fracionando-se em ramos fervilhantes de espinhos, recurvos e rasteiros, recamados de flores alvíssimas. Procuram os lugares ásperos e ardentes. São os vegetais clássicos dos areais queimosos. Aprazem-se no leito abrasante das lajes graníticas feridas pelos sóis.
Têm como sócios inseparáveis neste habitat, que as próprias orquídeas evitam, os cabeças-de-frade, deselegantes e monstruosos melocactos de forma elipsoidal, acanalada, de gomos espinescentes, convergindo-lhes no vértice superior formado por uma flor única, intensamente rubra. Aparecem, de modo inexplicável, sobre a pedra nua, dando, realmente, no tamanho, na conformação, no modo por que se espalham, a imagem singular de cabeças decepadas e sanguinolentas jogadas por ali, a esmo, numa desordem trágica. É que estreitíssima frincha lhes permitiu insinuar, através da rocha, a raiz longa e capilar até à parte inferior onde acaso existam, livres de evaporação, uns restos de umidade.
E a vasta família, revestindo todos os aspectos, decai, a pouco e pouco, até aos quipás reptantes, espinhosos, humílimos, trançados sobre a terra à maneira de espartos de um capacho dilacerador; às ripsálides serpeantes, flexuosas, como víboras verdes pelos ramos, de parceria com os frágeis cactos epífitas, de um glauco empalecido, presos por adligantes aos estípites dos ouricurizeiros, fugindo do solo bárbaro para o remanso da copa da palmeira.
Aqui, ali, outras modalidades: as palmatórias-do-inferno, opúntias de palmas diminutas, diabolicamente eriçadas de espinhos, — com o vivo carmim das cochonilhas que alimentam; orladas de flores rutilantes, quebrando alacremente a tristeza solene das paisagens...
E pouco mais especializa quem anda, pelos dias claros, por aqueles ermos, entre árvores sem folhas e sem flores. Toda a flora, como em uma derrubada, se mistura em baralhamento indescritível. É a caatanduva, mato doente, da etimologia indígena, dolorosamente caída sobre o seu terrível leito de espinhos!
Vingando um cômoro qualquer, postas em torno as vistas, perturba-as o mesmo cenário desolador: a vegetação agonizante, doente e informe, exausta, num espasmo doloroso...
É a silva aestu aphylla, a silva horrida, de Martius, abrindo no seio iluminado da natureza tropical um vácuo de deserto.
Compreende-se, então, a verdade da frase paradoxal de Aug. de Saint-Hilaire: “Há, ali, toda a melancolia dos invernos, com um sol ardente e os ardores do verão!”
A luz crua dos dias longos flameja sobre a terra imóvel e não a anima. Reverberam as infiltrações de quartzo pelos cerros calcários, desordenadamente esparsos pelos ermos, num alvejar de banquisas; e oscilando à ponta dos ramos secos das árvores inteiriçadas, dependuram-se as tilândsias alvacentas, lembrando flocos esgarçados, de neve, dando ao conjunto o aspecto de uma paisagem glacial, de vegetação hibernante, nos gelos...

A tormenta

Mas no empardecer de uma tarde qualquer, de março, rápidas tardes sem crepúsculos, prestes afogadas na noite, as estrelas pela primeira vez cintilam vivamente.
Nuvens volumosas abarreiram ao longe os horizontes, recortando-os em relevos imponentes de montanhas negras.
Sobem vagarosamente; incham, bolhando em lentos e desmesurados rebojos, na altura; enquanto os ventos tumultuam nos plainos, sacudindo e retorcendo as galhadas.
Embruscado em minutos, o firmamento golpeia-se de relâmpagos precípites, sucessivos, sarjando fundamente a imprimadura negra da tormenta. Reboam ruidosamente as trovoadas fortes. As bátegas de chuva tombam, grossas, espaçadamente, sobre o chão, aduando-se logo em aguaceiro diluviano...

Ressurreição da flora

E ao tornar da travessia o viajante, pasmo, não vê mais o de¬serto.
Sobre o solo, que as amarílis atapetam, ressurge triunfalmente a flora tropical.
É uma mutação de apoteose.
Os mulungus rotundos, à borda das cacimbas cheias, estadeiam a púrpura das largas flores vermelhas, sem esperar pelas folhas, as caraíbas e baraúnas altas refrondescem à margem dos ribeirões refertos; ramalham, ressoantes, os marizeiros esgalhados, à passagem das virações suaves; assomam, vivazes, amortecendo as truncaduras das quebradas, as quixabeiras de folhas pequeninas e frutos que lembram contas de ônix; mais virentes, adensam-se os icozeiros pelas várzeas, sob o ondular festivo das copas dos ouricuris: ondeiam, móveis, avivando a paisagem, acamando-se nos plainos, arredondando as encostas, as moitas floridas do alecrim-os-tabuleiros, de caules finos e flexíveis; as umburanas perfumam os ares, filtrando-os nas frondes enfolhadas, e — dominando a revivescência geral — não já pela altura senão pelo gracioso do porte, os umbuzeiros alevantam dous metros sobre o chão, irradiantes em círculo, os galhos numerosos.

O umbuzeiro

É a árvore sagrada do sertão. Sócia fiel das rápidas horas felizes e longos dias amargos dos vaqueiros. Representa o mais frisante exemplo de adaptação da flora sertaneja. Foi, talvez, de talhe mais vigoroso e alto — e veio descaindo, pouco a pouco, numa intercadência de estios flamívomos e invernos torrenciais,¬ modificando-se a feição do meio, desinvoluindo, até se preparar para a resistência e reagindo, por fim, desafiando as secas duradouras, sustentando-se nas quadras miseráveis, mercê da energia vital que economiza nas estações benéficas, das reservas guardadas em grande cópia nas raízes.
E reparte-as com o homem. Se não existisse o umbuzeiro aquele trato de sertão, tão estéril que nele escasseiam os carnaubais tão providencialmente dispersos nos que os convizinham até ao Ceará, estaria despovoado. O umbu é para o infeliz matuto que ali vive o mesmo que a mauritia, para os garaúnos dos llanos.
Alimenta-o e mitiga-lhe a sede. Abre-lhe o seio acariciador e amigo, onde os ramos recurvos e entrelaçados parecem de propósito feitos para a armação das redes bamboantes. E ao chegarem os tempos felizes dá-lhe os frutos de sabor esquisito para o preparo da umbuzada tradicional.
O gado, mesmo nos dias de abastança, cobiça o sumo acidulado das suas folhas. Realça-se-lhe, então, o porte, levantada, em recorte firme, a copa arredondada, num plano perfeito sobre o chão, à altura atingida pelos bois mais altos, ao modo de plantas ornamentais entregues à solicitude de práticos jardineiros. Assim decotadas semelham grandes calotas esféricas. Dominam a flora sertaneja nos tempos felizes, como os cereus melancólicos nos paroxismos estivais.

A jurema

As juremas, prediletas dos caboclos — o seu haxixe capitoso, fornecendo-lhes, grátis, inestimável beberagem, que os revigora depois das caminhadas longas, extinguindo-lhes as fadigas em momentos, feito um filtro mágico — derramam-se em sebes, impenetráveis tranqueiras disfarçadas em folhas diminutas; refrondam os marizeiros raros — misteriosas árvores que pressagiam a volta das chuvas e das épocas aneladas do verde e o termo da magrém1 — quando, em pleno flagelar da seca, lhes porejam na casca ressequida dos troncos algumas gotas d’água; reverdecem os angicos; lourejam os juás em moitas; e as baraúnas de flores em cachos, e os araticuns à ourela dos banhados... mas, destacando-se, esparsos pelas chapadas, ou no bolear dos cerros, os umbuzeiros, estrelando flores alvíssimas, abrolhando em folhas, que passam em fugitivos cambiantes de um verde pálido ao róseo vivo dos rebentos novos, atraem melhor o olhar, são a nota mais feliz do cenário deslumbrante.

O Sertão é um paraíso

E o sertão é um paraíso...
Ressurge ao mesmo tempo a fauna resistente das caatingas: disparam pelas baixadas úmidas os caititus esquivos; passam, em varas, pelas tigüeras, num estrídulo estrepitar de maxilas percutindo, os queixadas de canela ruiva; correm pelo tabuleiros altos, em bandos, esporeando-se com os ferrões de sob as asas, as emas velocíssimas; e as seriemas de vozes lamentosas, e as sericóias vibrantes, cantam nos balsedos, à fímbria dos banhados onde vem beber o tapir estacando um momento no seu trote brutal, inflexivelmente retilíneo, pela caatinga, derribando árvores; e as próprias suçuaranas, aterrando os mocós espertos que se aninham aos pares nas luras dos fraguedos, pulam, alegres, nas macegas altas, antes de quedarem nas tocaias traiçoeiras aos veados ariscos ou novilhos desgarrados...

Manhãs sertanejas

Sucedem-se manhãs sem par, em que o irradiar do levante incendido retinge a púrpura das eritrinas e destaca melhor, engrinaldando as umburanas de casca arroxeada, os festões multicores das bignônias. Animam-se os ares numa palpitação de asas, céleres, ruflando. — Sulcam-nos notas de clarins estranhos. Num tumultuar de desencontrados vôos passam, em bandos, as pombas bravas que remigram, e rolam as turbas turbulentas das maritacas estridentes... enquanto feliz, deslembrado de mágoas, segue o campeiro pelos arrastadores, tangendo a boiada farta, e entoando a cantiga predileta...
Assim se vão os dias.
Passam-se um, dous, seis meses venturosos, derivados da exuberância da terra, até que surdamente, imperceptivelmente, num ritmo maldito, se despeguem, a pouco e pouco, e caiam, as folhas e as flores, e a seca se desenhe outra vez nas ramagens mortas das árvores decíduas...

V

Uma categoria geográfica que Hegel não citou

Resumamos; enfeixemos estas linhas esparsas.
Hegel delineou três categorias geográficas como elementos fundamentais colaborando com outros no reagir sobre o homem, criando diferenciações étnicas:
As estepes de vegetação tolhiça, ou vastas planícies áridas; os vales férteis, profusamente irrigados; os litorais e as ilhas.
Os llanos da Venezuela: as savanas que alargam o vale do Mississippi, as pampas desmedidas e o próprio Atacama desatado sobre os Andes — vasto terraço onde vagueiam dunas — inscrevem-se rigorosamente nos primeiros.
Em que pese aos estios longos, às trombas formidáveis de areia, e ao saltear de súbitas inundações não se incompatibilizam com a vida.
Mas não ficam o homem à terra.
A sua flora rudimentar, de gramíneas e ciperáceas, reviçando vigorosa nas quadras pluviosas, é um incentivo à vida pastoril, às sociedades errantes dos pegureiros, passando móveis, num constante armar e desarmar de tendas, por aqueles plainos — rápidas, dispersas aos primeiros fulgores do verão.
Não atraem. Patenteiam sempre o mesmo cenário de uma monotonia acabrunhadora, com a variante única da cor: um oceano imóvel, sem vagas e sem praias.
Têm a força centrífuga do deserto: repelem; desunem; dispersam. Não se podem ligar à humanidade pelo vínculo nupcial do sulco dos arados. São um isolador étnico como as cordilheiras e o mar, ou as estepes da Mongólia, varejadas, em corridas doudas, pelas catervas turbulentas dos tártaros errabundos.
Aos sertões do Norte, porém, que à primeira vista se lhes equiparam, falta um lugar no quadro do pensador germânico.
Ao atravessá-los no estio, crê-se que entram, de molde, naquela primeira subdivisão; ao atravessá-los no inverno, acredita-se que são parte essencial da segunda.
Barbaramente estéreis; maravilhosamente exuberantes...
Na plenitude das secas são positivamente o deserto. Mas quando estas não se prolongam ao ponto de originarem penosíssimos êxodos, o homem luta como as árvores, com as reservas armazenadas nos dias de abastança e, neste combate feroz, anônimo, terrivelmente obscuro, afogado na solidão das chapadas, a natureza não o abandona de todo. Ampara-o muito além das horas de desesperança, que acompanham o esgotamento das últimas cacimbas.
Ao sobrevir das chuvas, a terra, como vimos, transfigura-se em mutações fantásticas, contrastando com a desolação ante¬rior. Os vales secos fazem-se rios. Insulam-se os cômoros escal¬vados, repentinamente verdejantes. A vegetação recama de flores, cobrindo-os, os grotões escancelados, e disfarça a dureza das barrancas, e arredonda em colinas os acervos de blocos disjungidos — de sorte que as chapadas grandes, intermeadas de convales, se ligam em curvas mais suaves aos tabuleiros altos. Cai a temperatura. Com o desaparecer das soalheiras anula-se a secura anormal dos ares. Novos tons na paisagem: a transparência do espaço salienta as linhas mais ligeiras, em todas as variantes da forma e da cor.
Dilatam-se os horizontes. O firmamento, sem o azul carregado dos desertos, alteia-se, mais profundo, ante o expandir revivescente da terra.
E o sertão é um vale fértil. É um pomar vastíssimo, sem dono.
Depois tudo isto se acaba. Voltam os dias torturantes; a atmosfera asfixiadora; o empedramento do solo; a nudez da flora; e nas ocasiões em que os estios se ligam sem a intermitência das chuvas — o espasmo assombrador da seca.
A natureza compraz-se em um jogo de antíteses.
Eles impõem por isto uma divisão especial naquele quadro. A mais interessante e expressiva de todas — posta, como mediadora, entre os vales nimiamente férteis e os estepes mais áridos.
Relegando a outras páginas a sua significação como fator de diferenciação étnica, vejamos o seu papel na economia da terra.
A natureza não cria normalmente os desertos. Combate-os, repulsa-os. Desdobram-se, lacunas inexplicáveis, às vezes sob as linhas astronômicas definidoras da exuberância máxima da vida. Expressos no tipo clássico do Saara — que é um termo genérico da região maninha dilatada do Atlântico ao Índico, entrando pelo Egito e pela Síria, assumindo todos os aspectos da enorme depressão africana ao platô arábico ardentíssimo e Nedjed e avançando daí para as areias do bejabãs, na Pérsia — são tão ilógicos que o maior dos naturalistas lobrigou a gênese daquele na ação tumultuária de um cataclismo, uma irrupção do Atlântico, precipitando-se, águas revoltas, num irresistível remoinhar de correntes, sobre o norte da África e desnudando-a furiosamente.
Esta explicação de Humboldt, embora se erija apenas como hipótese brilhante, tem um significado superior.
Extinta a preponderância do calor central e normalizados os climas, do extremo norte e do extremo sul, a partir dos pólos inabitáveis, a existência vegetativa progride para a linha equinocial. Sob esta ficam as zonas exuberantes por excelência, onde os arbustos de outras se fazem árvores e o regime, oscilando em duas estações únicas, determina uniformidade favorável à evolução dos organismos simples, presos diretamente às varia¬ções do meio. A fatalidade astronômica da inclinação da eclíptica, que coloca a Terra em condições biológicas inferiores às de outros planetas, mal se percebe nas paragens onde uma montanha única sintetiza, do sopé às cumeadas, todos os climas do mundo.
Entretanto, por elas passa, interferindo a fronteira ideal dos hemisférios, o equador termal, de traçado perturbadíssimo de inflexões vivas, partindo-se nos pontos singulares em que a vida é impossível; passando dos desertos às florestas, do Saara, que o repuxa para o norte, à Índia opulentíssima, depois de tangenciar a ponta meridional da Arábia paupérrima; varando o Pacífico num longo traço — rarefeito colar de ilhas desertas e escalvadas — e abeirando, depois, em lento descambar para o sul, a Hylaea portentosa do Amazonas.
Da extrema aridez à exuberância extrema...
É que a morfologia da Terra viola as leis gerais dos climas. Mas todas as vezes que o facies geográfico não as combate de todo, a natureza reage. Em luta surda, cujos efeitos fogem ao próprio raio dos ciclos históricos, mas emocionante, para quem consegue lobrigá-la ao través dos séculos sem conto, entorpecida sempre pelos agentes adversos, mas tenaz, incoercível, num evolver seguro, a Terra, como um organismo, se transmuda por intuscepção, indiferente aos elementos que lhe tumultuam à face.
De sorte que se as largas depressões eternamente condenadas, a exemplo da Austrália, permanecem estéreis, se anulam, noutros pontos, os desertos.
A própria temperatura abrasada acaba por lhe dar um mínimo de pressão atraindo o afluxo das chuvas; e as areias móveis, riscadas pelos ventos, negando largo tempo a pega à planta mais humilde, imobilizam-se, a pouco e pouco, presas nas radículas das gramíneas; o chão ingrato e a rocha estéril decaem sob a ação imperceptível dos líquens, que preparam a vinda das lecídeas frágeis; e, por fim, os platôs desnudos, llanos e pampas de vegetação escassa, as savanas e as estepes mais vivazes da Ásia central surgem, num crescendo, refletindo sucessivas fases de transfigurações maravilhosas.

Como se faz um deserto

Ora, os sertões do Norte, a despeito de uma esterilidade menor, contrapostos a este critério natural, figuram talvez o ponto singular de uma evolução regressiva.
Imaginamo-los há pouco, numa retrospecção em que, certo, a fantasia se insurgiu contra a gravidade da ciência, a emergirem, geologicamente modernos, de um vasto mar terciário.
À parte essa hipótese absolutamente instável, porém, o certo é que um complexo de circunstâncias lhes tem dificultado regime contínuo, favorecendo flora mais vivaz.
Esboçamos anteriormente algumas.
Esquecemo-nos, todavia, de um agente geológico notável — o homem.
Este, de fato, não raro reage brutalmente sobre a terra e entre nós, nomeadamente, assumiu, em todo o decorrer da História, o papel de um terrível fazedor de desertos.
Começou isto por um desastroso legado indígena.
Na agricultura primitiva dos silvícolas era instrumento fundamental — o fogo.
Entalhadas as árvores pelos cortantes djis de diorito; encoivarados, depois de secos, os ramos, alastravam-lhes por cima, crepitando, as caiçaras, em bulcão de fumo, tangidas pelos ventos. Inscreviam, depois, nas cercas de troncos combustos das caiçaras, a área em cinzas onde fora a mata exuberante. Cultivavam-na. Renovavam o mesmo processo na estação seguinte, até que, de todo exaurida aquela mancha de terra, fosse, imprestável, abandonada em caapuera — mato extinto — como a denuncia a etimologia tupi, jazendo dali por diante irremediavelmente estéril porque, por uma circunstância digna de nota, as famílias vegetais que surgiam subsecutivamente no terreno calcinado eram sempre de tipos arbustivos enfezados, de todo distintos dos da selva primitiva. O aborígine prosseguia abrindo novas roças, novas derrubadas, novas queimas, alargando o círculo dos estragos em novas caapueras, que ainda uma vez deixava para formar outras noutros pontos, aparecendo maninhas, num evolver enfezado, inaptas para reagir com os elementos exteriores, agravando, à medida que se ampliavam, os rigores do próprio clima que as flagelava, e entretecidas de carrascais, afogados em macegas, espelhando aqui o aspecto adoentado da caatanduva sinistra, além a braveza convulsiva da caatinga brancacenta.
Veio depois o colonizador e copiou o mesmo proceder. Engravesceu-o ainda com o adotar, exclusivo, no centro do país, fora da estreita faixa dos canaviais da costa, o regime francamente pastoril.
Abriram-se desde o alvorecer do século XVII, nos sertões abusivamente sesmados, enormíssimos campos, compáscuos sem divisas, estendendo-se pelas chapadas em fora.
Abria-os, de idêntico modo, o fogo livremente aceso, sem aceiros, avassalando largos espaços, solto nas lufadas violentas do nordeste. Aliou-se-lhe ao mesmo tempo o sertanista ganancioso e bravo, em busca do silvícola e do ouro. Afogado nos recessos de uma flora estupenda que lhe escurentava as vistas e sombreava perigosamente as tocaias do tapuia e as tocas do canguçu temido, dilacerou-a golpeando-a de chamas, para desafogar os horizontes e destacar bem perceptíveis, tufando nos descampados limpos, as montanhas que o norteavam, balizando a marcha das bandeiras.
Atacou a fundo a terra, escarificando-a nas explorações a céu aberto; esterilizou-a com os lastros das grupiaras; feriu-a a pontaços de alvião; degradou-a corroendo-a com as águas selvagens das torrentes; e deixou, aqui, ali, em toda a parte, para sempre estéreis, avermelhando nos ermos com o intenso colorido das argilas revolvidas, onde não medra a planta mais exígua, as grandes catas, vazias e tristonhas, com a sua feição sugestiva de imensas cidades mortas, derruídas...
Ora estas selvatiquezas atravessaram toda a nossa História. Ainda em meados deste século, no atestar de velhos habitantes das povoações ribeirinhas do S. Francisco, os exploradores que em 1830 avançaram, a partir da margem esquerda daquele rio, carregando em vasilhas de couro indispensáveis provisões de água, tinham, na frente, alumiando-lhes a rota, abrindo-lhes a estrada e devastando a terra, o mesmo batedor sinistro, o incêndio. Durante meses seguidos viram, eles, no poente, entrando pelas noites dentro, o reflexo rubro das queimadas.
Imaginem-se os resultados de semelhante processo aplicado, sem variantes, no decorrer de séculos...
Previu-os o próprio governo colonial. Desde 1713 sucessivos decretos visaram opor-lhes paradeiros. E ao terminar a seca lendária de 1791-1792, a grande seca, como dizem ainda os velhos sertanejos, que sacrificou todo o Norte, da Bahia ao Ceará, o governo da metrópole figura-se tê-la atribuído aos inconvenientes apontados estabelecendo desde logo, como corretivo único, severa proibição ao corte das florestas.
Esta preocupação dominou-o por muito tempo. Mostram-no-lo as cartas régias de 17 de março de 1796, nomeando um juiz conservador das matas; e a 11 de junho de 1799, decretando que “se coíba a indiscreta e desordenada ambição dos habitantes (da Bahia e Pernambuco) que têm assolado a ferro e fogo preciosas matas... que tanto abundavam e já hoje ficam a distâncias consideráveis, etc.”
Aí estão dizeres preciosos relativos diretamente à região que palidamente descrevemos.
Há outros, cômpares na eloqüência.
Deletreando-se antigos roteiros dos sertanistas do Norte, destemerosos catingueiros que pleiteavam parelhas com os bandeirantes do Sul, nota-se a cada passo uma alusão incisiva à bruteza das paragens que atravessavam, perquirindo as chapadas, em busca das “minas de prata” de Melchior Moréia — e passando quase todos à margem do sertão de Canudos, com escala em Monte Santo, então o Piquaraçá dos tapuias. E falam nos “campos frios (certamente à noite, pela irradiação intensa do solo desabrigado) cortando léguas de caatinga sem água nem caravatá que a tivesse e com raízes de umbu e mandacaru, remediando a gente” no penoso desbravar das veredas.1
Já nessa época, como se vê, tinham função proverbial as plantas, para as quais, hoje, apelam os nossos sertanejos.
É que o mal é antigo. Colaborando com os elementos meteorológicos, com o nordeste, com a sucção dos estratos, com as canículas, com a erosão eólia, com as tempestades subitâneas — o homem fez-se uma componente nefasta entre as forças daquele clima demolidor. Se o não criou, trans¬mudou-o, agravando-o. Deu um auxiliar à degradação das tormentas, o machado do catingueiro; um supletivo à insolação, a queimada.
Fez, talvez o deserto. Mas pode extingui-lo ainda, corrigindo o passado. E a tarefa não é insuperável. Di-lo uma comparação histórica.

Como se extingue o deserto

Quem atravessa as planícies elevadas da Tunísia, entre Beja e Bizerta, à ourela do Saara, encontra ainda, no desembocar dos vales, atravessando normalmente o curso caprichoso e em torcicolos dos uedes, restos de antigas construções romanas. Velhos muradais derruídos, embrechados de silhares e blocos rolados, cobertos em parte pelos detritos de enxurros de vinte séculos, aqueles legados dos grandes colonizadores delatam a um tempo a sua atividade inteligente e o desleixo bárbaro dos árabes que os substituíram.
Os romanos, depois da tarefa da destruição de Cartago, tinham posto ombros à empresa incomparavelmente mais séria de vencer a natureza antagonista. E ali deixaram belíssimo traço de sua expansão histórica.
Perceberam com segurança o vício original da região, estéril menos pela escassez das chuvas do que pela sua péssima distribuição adstrita aos relevos topográficos. Corrigiram-no. O regime torrencial que ali aparece, intensíssimo em certas quadras, determinando alturas pluviométricas maiores que as de outros países férteis e exuberantes, era, como nos sertões do nosso país, além de inútil, nefasto. Caía sobre a terra desabrigada, desarraigando a vegetação mal presa a um solo endurecido; turbilhonava por algumas semanas nos regatos transbordantes, alagando as planícies; e desaparecia logo, derivando em escarpamentos, pelo norte e pelo levante, no Mediterrâneo, deixando o solo, depois de uma revivescência transitória, mais desnudo e estéril. O deserto ao sul, parecia avançar, dominando a paragem toda, vingando-lhe os últimos acidentes que não to¬lhiam a propulsão do simum.
Os romanos fizeram-no recuar. Encadearam as torrentes; represaram as correntezas fortes, e aquele regime brutal, tenazmente combatido e bloqueado, cedeu, submetido inteiramente, numa rede de barragens. Excluído o alvitre de irrigações sistemáticas dificílimas, conseguiram que as águas permanecessem mais longo tempo sobre a terra. As ravinas recortando-se em gânglios estagnados dividiram-se em açudes abarreirados pelas muralhas que trancavam os vales, e os uedes, parando, intumesciam-se entre os morros, conservando largo tempo as grandes massas líquidas, até então perdidas, ou levando-as, no transbordarem, em canais laterais aos lugares próximos mais baixos, onde se abriam em sangradouros e levadas, irradiantes por toda a parte, e embebendo o solo. De sorte que este sistema de represas, além de outras vantagens, criara um esboço de irrigação geral. Ademais, todas aquelas superfícies líquidas, esparsas em grande número e não resumidas a um Quixadá único — monumental e inútil — expostas à evaporação, acabaram reagindo sobre o clima, melhorando-o. Por fim a Tunísia, onde haviam aproado os filhos prediletos dos fenícios, mas que até então se reduzira a um litoral povoado de traficantes ou númidas erradios, com suas tendas de tetos curvos branqueando nos areais como quilhas encalhadas — se fez, transfigurada, a terra clássica da agricultura antiga. Foi o celeiro da Itália; a fornecedora, quase exclusiva, de trigo, dos romanos.
Os franceses, hoje, copiam-lhe em grande parte os processos, sem necessitarem alevantar muramentos monumentais e dispendiosos. Represam por estacadas, entre muros de pedras secas e terras, à maneira de palancas, os uedes mais bem dispostos, e talham pelo alto das suas bordas, em toda a largura das serranias que os ladeiam, condutos derivando para os terrenos circunjacentes, em redes irrigadoras.
Deste modo as águas selvagens estavam, remansam-se, sem adquirir a força acumulada das inundações violentas, disseminando-se, afinal, estas, amortecidas, em milhares de válvulas, pelas derivações cruzadas. E a histórica paragem, liberta da apatia do muslim inerte, transmuda-se volvendo de novo à fisionomia antiga. A França salva os restos da opulenta herança da civilização romana, depois desse declínio de séculos.
Ora, quando se traçar, sem grande precisão embora, a carta hipsométrica dos sertões do Norte, ver-se-á que eles se apropriam a uma tentativa idêntica, de resultados igualmente seguros.
A idéia não é nova. Sugeriu-a há muito, em memoráveis sessões do Instituto Politécnico do Rio, em 1877, o belo espírito do conselheiro Beaurepaire Rohan, talvez sugestionado pelo mesmo símile, que acima apontamos.
Das discussões então travadas, onde se enterreiraram os melhores cientistas do tempo — da sólida experiência de Capanema à mentalidade rara de André Rebouças — foi a única cousa prática, factível, verdadeiramente útil que ficou.
Idearam-se, naquela ocasião, luxuosas cisternas de alvenarias; miríades de poços artesianos, perfurando as chapadas; depósitos colossais, ou armazéns desmedidos para as reservas acumuladas; açudes vastos, feitos cáspios artificiais; e por fim, como para caracterizar bem o desbarate completo da engenharia, ante a enormidade do problema, estupendos alambiques para a destilação das águas do Atlântico!...
O alvitre mais modesto, porém, efeito imediato de um ensinamento histórico, sugerido pelo mais elementar dos exemplos, suplanta-os. Porque é, além de prático, evidentemente o mais lógico.

O martírio secular da terra

Realmente, entre os agentes determinantes da seca se intercalam, de modo apreciável, a estrutura e a conformação do solo. Qualquer que seja a intensidade das causas complexas e mais remotas que anteriormente esboçamos, a influência daquelas é manifesta desde que se considere que a capacidade absorvente e emissiva dos terrenos expostos, a inclinação dos estratos, que os retalham, e a rudeza dos relevos topográficos, agravam, do mesmo passo, a crestadura dos estios e a degradação intensiva das torrentes. De sorte que, saindo das insolações demoradas para as inundações subitâneas, a terra, mal protegida por uma vegetação decídua, que as primeiras requeimam e as segundas erradicam, se deixa, a pouco e pouco, invadir pelo regime francamente desértico.
As fortes tempestades que apagam o incêndio surdo das secas, em que pese à revivescência que acarretam, preparam de algum modo a região para maiores vicissitudes. Desnudam-na rudemente, expondo-a cada vez mais desabrigada aos verões seguintes; sulcam-na numa molduragem de contornos ásperos; golpeiam-na e esterilizam-na; e ao desaparecerem, deixam-na ainda mais desnuda ante a adusão dos sóis. O regime decorre num intermitir deplorável, que lembra um círculo vicioso de catástrofes.1
Deste modo a medida única a adotar-se deve consistir no corretivo destas disposições naturais. Pondo de lado os fatores determinantes do flagelo, oriundos da fatalidade de leis astronômicas ou geográficas inacessíveis à intervenção humana, são, aquelas, as únicas passíveis de modificações apreciáveis.
O processo que indicamos, em breve recordação histórica, pela sua própria simplicidade dispensa inúteis pormenores técnicos.
A França copia-o hoje, sem variantes, revivendo o traçado de construções velhíssimas.
Abarreirados os vales, inteligentemente escolhidos, em pontos pouco intervalados, por toda a extensão do território sertanejo, três conseqüências inevitáveis decorreriam: atenuar-se-iam de modo considerável a drenagem violenta do solo, e as suas conseqüências lastimáveis; formar-se-lhes-iam à ourela, inscritas na rede das derivações, fecundas áreas de cultura; e fixar-se-ia uma situação de equilíbrio para a instabilidade do clima, porque os numerosos e pequenos açudes uniformemente distribuídos e constituindo dilatada superfície de evaporação, teriam, naturalmente, no correr dos tempos, a influência moderadora de um mar interior, de importância extrema.
Não há alvitrar-se outro recurso. As cisternas, poços artesianos e raros, ou longamente espaçados lagos como o de Quixadá, têm um valor local, inapreciável. Visam, de um modo geral, atenuar a última das conseqüências da seca — a sede; e o que há a combater e a debelar nos sertões do Norte — é o deserto.
O martírio do homem, ali, é o reflexo da tortura maior, mais ampla, abrangendo a economia geral da Vida.
Nasce do martírio secular da Terra...

O HOMEM

I . Complexidade do problema etnológico no Brasil. Variabilidade do meio físico e sua reflexão na História. Ação do meio na fase inicial da formação das raças. A formação brasileira no Norte.
II . Gênese do jagunço; colaterais prováveis dos paulistas. Função histórica do rio S. Francisco. O vaqueiro, mediador entre o bandeirante e o padre. Fundações jesuíticas na Bahia. Um parêntese irritante. Causas favoráveis à formação mestiça dos sertões, distinguindo-a dos cruzamentos no litoral. Uma raça forte.
III . O sertanejo. Tipos díspares: o jagunço e o gaúcho. Os vaqueiros. Servidão inconsciente; vida primitiva. A vaquejada e a arribada. Tradições. A seca. Insulamento no deserto. Religião mestiça; seus fatores históricos. Caráter variável da religiosidade sertaneja: a Pedra Bonita e Monte Santo. As missões atuais.
IV . Antônio Conselheiro, documento vivo de atavismo. Um gnóstico bronco. Grande homem pelo avesso, representante natural do meio em que nasceu. Antecedentes de família: os Maciéis. Uma vida bem auspiciada. Primeiros reveses; e a queda. Como se faz um monstro. Peregrinações e martírios. Lendas. As prédicas. Preceitos de montanista. Profecias. Um heresiarca do século II em plena idade moderna. Tentativas de reação legal. Hégira para o sertão.
V . Canudos — antecedentes — aspecto original — e crescimento vertiginoso. Regime da urbs. Polícia de bandidos. População multiforme. O templo. Estrada para o céu. As rezas. Agrupamentos bizarros. Por que não pregar contra a República? Uma missão abordada. Maldição sobre a Jerusalém de taipa.

I

Complexidade do problema etnológico no Brasil

Adstrita às influências que mutuam, em graus variáveis, três elementos étnicos, a gênese das raças mestiças do Brasil é um problema que por muito tempo ainda desafiará o esforço dos melhores espíritos.
Está apenas delineado.
Entretanto no domínio das investigações antropológicas brasileiras se encontram nomes altamente encarecedores do nosso movimento intelectual. Os estudos sobre a pré-história indígena patenteiam modelos de observação sutil e conceito crítico brilhante, mercê dos quais parece definitivamente firmado, contravindo ao pensar dos caprichosos construtores da ponte Alêutica, o autoctonismo das raças americanas.
Neste belo esforço, rematado pela profunda elaboração paleontológica de Wilhelm Lund, destacam-se o nome de Morton, a intuição genial de Frederico Hartt, a inteiriça organização científica de Meyer, a rara lucidez de Trajano de Moura, e muitos outros cujos trabalhos reforçam os de Nott e Gliddon no definir, de uma maneira geral mas completa, a América como um centro de criação desligado do grande viveiro da Ásia Central. Erige-se autônomo entre as raças o homo americanus.
A face primordial da questão ficou assim aclarada. Quer resultem do “homem da Lagoa Santa” cruzado com o pré-colombiano dos “sambaquis”; ou se derivem, altamente modificados por ulteriores cruzamentos e pelo meio, de alguma raça invasora do Norte, de que se supõem oriundos dos tupis tão numerosos na época do descobrimento — os nossos silvícolas, com seus frisantes caracteres antropológicos, podem ser considerados tipos evanescentes de velhas raças autóctones da nossa terra.
Esclarecida deste modo a preliminar da origem do elemento indígena, as investigações convergiram para a definição da sua psicologia especial; e enfeixaram-se, ainda, em algumas conclusões seguras.
Não precisamos revivê-las. Sobre faltar-nos competência, nos desviaríamos muito de um objetivo prefixado.
Os dous outros elementos formadores, alienígenas, não originaram idênticas tentativas. O negro banto, ou cafre, com as suas várias modalidades, foi até neste ponto o nosso eterno desprotegido. Somente nos últimos tempos um investigador tenaz, Nina Rodrigues, subordinou a uma análise cuidadosa a sua religiosidade original e interessante. Qualquer, porém, que tenha sido o ramo africano para aqui transplantado trouxe, certo, os atributos preponderantes do homo afer, filho das paragens adustas e bárbaras, onde a seleção natural, mais que em quaisquer outras, se faz pelo exercício intensivo da ferocidade e da força.
Quanto ao fator aristocrático de nossa gens, o português, que nos liga à vibrátil estrutura intelectual do celta, está, por sua vez, malgrado o complicado caldeamento de onde emerge, de todo caracterizado.
Conhecemos, deste modo, os três elementos essenciais, e, imperfeitamente embora, o meio físico diferenciador — e ainda, sob todas as suas formas, as condições históricas adversas ou favoráveis que sobre eles reagiram. No considerar, porém, todas as alternativas e todas as fases intermédias desse entrelaçamento de tipos antropológicos de graus díspares nos atributos físicos e psíquicos, sob os influxos de um meio variável, capaz de diversos climas, tendo discordantes aspectos e opostas condições de vida, pode afirmar-se que pouco nos temos avantajado. Escrevemos todas as variáveis de uma fórmula intricada, traduzindo sério problema; mas não desvendamos todas as incógnitas.
É que, evidentemente, não basta, para o nosso caso, que postos uns diante de outros o negro banto, o indo-guarani e o branco, apliquemos ao conjunto a lei antropológica de Broca. Esta é abstrata e irredutível. Não nos diz quais os reagentes que podem atenuar o influxo da raça mais numerosa ou mais forte, e causas que o extingam ou atenuem quando ao contrário da combinação binária, que pressupõe, despontam três fatores diversos, adstritos às vicissitudes da história e dos climas.
É uma regra que nos orienta apenas no indagarmos a verdade. Modifica-se, como todas as leis, à pressão dos dados objetivos. Mas ainda quando por extravagante indisciplina mental alguém tentasse aplicá-la, de todo despeada da intervenção daqueles, não simplificaria o problema.
É fácil demonstrar.
Abstraiamos de inúmeras causas perturbadoras, e consideremos os três elementos constituintes de nossa raça em si mesmos, intactas as capacidades que lhes são próprias.
Vemos, de pronto, que, mesmo nesta hipótese favorável, deles não resulta o produto único imanente às combinações binárias, numa fusão imediata em que se justaponham ou se resumam os seus caracteres, unificados e convergentes num tipo intermediário. Ao contrário a combinação ternária inevitável determina, no caso mais simples, três outras, binárias. Os elementos iniciais não se resumem, não se unificam; desdobram-se; originam número igual de subformações — substituindo-se pelos derivados, sem redução alguma, em uma mestiçagem embaralhada onde se destacam como produtos mais característicos o mulato, o mameluco ou curiboca, e o cafuz.1 As sedes iniciais das indagações deslocam-se apenas mais perturbadas, graças a reações que não exprimem uma redução, mas um desdobramento. E o estudo destas subcategorias substitui o das raças elementares agravando-o e dificultando-o, desde que se considere que aquelas comportam, por sua vez, inúmeras mo- dalidades consoante as dosagens variáveis do sangue.
O brasileiro, tipo abstrato que se procura, mesmo no caso favorável acima afirmado, só pode surgir de um entrelaçamento consideravelmente complexo.
Teoricamente ele seria o pardo, para que convergem os cruzamentos sucessivos do mulato, do curiboca e do cafuz.
Avaliando-se, porém, as condições históricas que têm atuado diferente nos diferentes tratos do território; as disparidades climáticas que nestes ocasionam reações diversas diversamente suportadas pelas raças constituintes; a maior ou menor densidade com que estas cruzaram nos vários pontos do país; e atendendo-se ainda à intrusão — pelas armas na quadra colonial e pelas imigrações em nossos dias — de outros povos, fato que por sua vez não foi e não é uniforme, vê-se bem que a realidade daquela formação é altamente duvidosa, senão absurda.
Como quer que seja, estas rápidas considerações explicam as disparidades de vistas que reinam entre os nossos antropólogos. Forrando-se, em geral, à tarefa penosa de subordinar as suas pesquisas a condições tão complexas, têm atendido sobremaneira ao preponderar das capacidades étnicas. Ora, a despeito da grave influência destas, e não a negamos, elas foram entre nós levadas ao exagero, determinando a irrupção de uma meia-ciência difundida num extravagar de fantasias, sobre ousadas, estéreis. Há como que um excesso de subjetivismo no ânimo dos que entre nós, nos últimos tempos, cogitam de cousas tão sérias, com uma volubilidade algo escandalosa, atentas às proporções do assunto. Começam excluindo em grande parte os materiais objetivos oferecidos pelas circunstâncias mesológica e histórica. Jogam, depois, e entrelaçam, e fundem as três raças consoante os caprichos que os impelem no momento. E fazem repontar desta metaquímica sonhadora alguns precipitados fictícios.
Alguns firmando preliminarmente, com autoridade discutível, a função secundária do meio físico e decretando preparatoriamente a extinção quase completa do silvícola e a influência decrescente do africano depois da abolição do tráfico, prevêem a vitória final do branco, mais numeroso e mais forte, como termo geral de uma série para o qual tendem o mulato, forma cada vez mais diluída do negro, e o caboclo, em que se apagam, mais depressa ainda, os traços característicos do aborígine.
Outros dão maiores largas aos devaneios. Ampliam a influência do último. E arquitetam fantasias que caem ao mais breve choque da crítica; devaneios a que nem faltam a metrificação e as rimas, porque invadem a ciência na vibração rítmica dos versos de Gonçalves Dias.
Outros vão terra a terra demais. Exageram a influência do africano, capaz, com efeito, de reagir em muitos pontos contra a absorção da raça superior. Surge o mulato. Proclamam-no o mais característico tipo da nossa subcategoria étnica.
O assunto assim vai derivando multiforme e dúbio.
Acreditamos que isto sucede porque o escopo essencial destas investigações se tem reduzido à pesquisa de um tipo étnico único, quando há, certo, muitos.
Não temos unidade de raça.
Não a teremos, talvez, nunca.
Predestinamo-nos à formação de uma raça histórica em futuro remoto, se o permitir dilatado tempo de vida nacional autônoma. Invertemos, sob este aspecto, a ordem natural dos fatos. A nossa evolução biológica reclama a garantia da evolução social.
Estamos condenados à civilização.
Ou progredimos, ou desaparecemos.
A afirmativa é segura.
Não a sugere apenas essa heterogeneidade de elementos ancestrais. Reforça-a outro elemento igualmente ponderável: um meio físico amplíssimo e variável, completado pelo variar de situações históricas, que dele em grande parte decorreram.
A este propósito não será desnecessário considerá-lo por alguns momentos.

Variabilidade do meio físico

Contravindo à opinião dos que demarcam aos países quentes um desenvolvimento de 30º de latitude, o Brasil está longe de se incluir em todo em tal categoria. Sob um duplo aspecto, astronômico e geográfico, aquele limite é exagerado. Além de ultrapassar a demarcação teórica vulgar, exclui os relevos naturais que atenuam ou reforçam os agentes meteorológicos, criando climas equatoriais em altas latitudes ou regimes temperados entre os trópicos. Toda a climatologia, inscrita nos amplos linea¬mentos das leis cosmológicas gerais, desponta em qualquer parte adicta de preferência às causas naturais mais próximas e particulares. Um clima é como que a tradução fisiológica de uma condição geográfica. E definindo-o deste modo concluímos que o nosso país, pela sua própria estrutura, se impropria a um regime uniforme.
Demonstram-no os resultados mais recentes, e são os únicos dignos de fé, das indagações meteorológicas. Estas o subdividem em três zonas claramente distintas: a francamente tropical, que se expande pelos estados do Norte até ao sul da Bahia, com uma temperatura média de 26º; temperada, de S. Paulo ao Rio Grande, pelo Paraná e Santa Catarina, entre os isotermos 15º e 20º; e, como transição, — a subtropical, alongando-se pelo centro e norte de alguns estados, de Minas ao Paraná.
Aí estão, claras, as divisas de três habitats distintos.
Ora, mesmo entre as linhas mais ou menos seguras destes despontam modalidades, que ainda os diversificam.
Indiquemo-las a traços rápidos.
A disposição orográfica brasileira, possantes massas sublevadas que se orientam perlongando o litoral perpendicularmente ao rumo do SE, determina as primeiras distinções em largos tratos de território que demoram ao oriente, criando anomalia climatológica expressiva.
De fato, o clima aí inteiramente subordinado ao facies geográfico, viola as leis gerais que o regulam. A partir dos trópicos para o equador a sua caracterização astronômica, pelas latitudes, cede às causas secundárias perturbadoras. Define-se, anormalmente, pelas longitudes.
É um fato conhecido. Na extensa faixa da costa, que vai da Bahia a Paraíba, se vêem transições mais acentuadas, acompanhando os paralelos, no rumo do ocidente, do que os meridianos, demandando o norte. As diferenças no regime e nos aspectos naturais, que segundo este rumo são imperceptíveis, patenteiam-se, claras, no primeiro. Distendida até às paragens setentrionais extremas, a mesma natureza exuberante ostenta-se sem variantes nas grandes matas que debruam a costa, fazendo que a observação rápida do estrangeiro prefigure dilatada região vivaz e feracíssima. Entretanto a partir do 13º paralelo as florestas mascaram vastos territórios estéreis, retratando nas áreas desnudas as inclemências de um clima em que os graus termo¬métrico e higrométrico progridem em relação inversa, extre¬mando-se exageradamente.
Revela-o curta viagem para o ocidente, a partir de um ponto qualquer daquela costa. Quebra-se o encanto de ilusão belíssima. A natureza empobrece-se; despe-se das grandes matas; abdica o fastígio das montanhas; erma-se e deprime-se — trans¬mudando-se nos sertões exsicados e bárbaros, onde correm rios efêmeros, e desatam-se chapadas nuas, sucedendo-se, indefinidas, formando o palco desmedido para os quadros dolorosos das secas.
O contraste é empolgante.
Distante menos de cinqüenta léguas, apresentam-se regiões de todo opostas, criando opostas condições à vida.
Entra-se, de surpresa, no deserto.
E, certo, as vagas humanas que nos dous primeiros séculos do povoamento embateram as plagas do Norte tiveram na translação para o ocidente, demandando o interior, obstáculos mais sérios que a rota agitada dos mares e das montanhas, na travessia das caatingas ralas e decíduas. O malogro da expansão baiana, que entretanto precedera à paulista no devassar os recessos do país, é um exemplo frisante.
O mesmo não sucede, porém, dos trópicos para o sul.
Aí a urdidura geológica da terra, matriz de sua morfogenia interessante, persiste inalterável, abrangendo extensas superfícies para o interior, criando as mesmas condições favoráveis, a mesma flora, um clima altamente melhorado pela altitude, e a mesma feição animadora dos aspectos naturais.
A larga antemural da cordilheira granítica derivando a prumo para o mar, nas vertentes interiores descamba suavemente em vastos plainos ondulados.
É a escarpa abrupta e viva dos planaltos.
Sobre estes os cenários, sem os traços exageradamente dominadores das montanhas, revelam-se mais opulentos e amplos. A terra patenteia essa manageability of nature, de que nos fala Buckle, e o clima, temperado quente, desafia na benignidade o admirável regime da Europa meridional. Não o regula mais, como mais para o norte, exclusivamente, o SE. Rolando dos altos chapadões do interior, o NO prepondera então, em toda extensíssima zona que vai das terras elevadas de Minas e do Rio ao Paraná, passando por S. Paulo.
Ora, estas largas divisões, esboçadas, mostram já uma diferença essencial entre o Sul e o Norte, absolutamente distintos pelo regime meteorológico, pela disposição da terra e pela transição variável entre o sertão e a costa.
Descendo à análise mais íntima desvendaremos aspectos particulares mais incisivos ainda.
Tomemos os casos mais expressivos, evitando extensa explanação do assunto.
Vimos em páginas anteriores que o SE, sendo o regulador predominante do clima na costa oriental, é substituído, nos estados do Sul, pelo NO e nas extremas setentrionais pelo NE. Ora, estes, por sua vez, desaparecem no âmago do planalto, ante o SO que, como um hausto possante dos pampeiros, se lança pelo Mato Grosso, originando desproporcionadas amplitudes termométricas, agravando a instabilidade do clima continental, e submetendo as terras centrais a um regime brutal, diverso dos que vimos rapidamente delineando.
Com efeito, a natureza em Mato Grosso balanceia os exageros de Buckle. É excepcional e nitidamente destacada. Nenhuma se lhe assemelha. Toda a imponência selvagem, toda a exuberância inconceptível, unidas à brutalidade máxima dos elementos, que o preeminente pensador, em precipitada generalização, ideou no Brasil, ali estão francas, rompentes em cená¬rios portentosos. Contemplando-as, mesmo através da frieza das observações de naturalistas pouco vezados a efeitos descritivos, vê-se que aquele regime climatológico anômalo é o mais fundo traço da nossa variabilidade mesológica.
Nenhum se lhe equipara, no jogar das antíteses. A sua feição aparente é a de benignidade extrema: — a terra afeiçoada à vida; a natureza fecunda erguida na apoteose triunfal dos dias deslumbrantes e calmos; e o solo abrolhando em vegetação fantástica — farto, irrigado de rios que irradiam pelos quatro pontos cardeais. Mas esta placidez opulenta esconde, paradoxalmente, germens de cataclismos, que irrompendo, sempre com um ritmo inquebrável, no estio, traindo-se nos mesmos prenúncios infalíveis ali tombam com a finalidade irresistível de uma lei.
Mal poderemos traçá-los. Esbocemo-los.
Depois de soprarem por alguns dias as rajadas quentes e úmidas de NE, os ares imobilizam-se, por algum tempo, estagnados. Então “a natureza como que se abate extática, assustada; nem as grimpas das árvores balouçam; as matas, numa quietude medonha, parecem sólidos inteiriços. As aves se achegam nos ninhos, suspendendo os vôos e se escondem”.1
Mas, volvendo-se o olhar para os céus, nem uma nuvem! O firmamento límpido arqueia-se alumiado ainda por um Sol obscurecido, de eclipse. A pressão, entretanto, decai vagarosamente, numa descensão contínua, afogando a vida. Por momentos um cumulus compacto, de bordas acobreado-escuras, negreja no horizonte, ao sul. Deste ponto sopra, logo depois, uma viração, cuja velocidade cresce rápida em ventanias fortes. A temperatura cai em minutos e, minutos depois, os tufões sacodem violentamente a terra. Fulguram relâmpagos; estrugem trovoadas nos céus já de todo bruscos e um aguaceiro torrencial desce logo sobre aquelas vastas superfícies, apagando, numa inundação única, o divortium aquarum indeciso que as atravessa, adu¬nando todas as nascentes dos rios e embaralhando-lhes os leitos em alagados indefinidos...
É um assalto subitâneo. O cataclismo irrompe arrebatadamente na espiral vibrante de um ciclone. Descolmam-se as casas; dobram-se, rangendo, e partem-se, estalando, os carandás seculares; ilham-se os morros; alagoam-se os plainos...
E uma hora depois o Sol irradia triunfalmente no céu puríssimo! A passarada irrequieta descanta pelas frondes gotejantes; suavizam os ares virações suaves — e o homem, deixando os refúgios a que se acolhera trêmulo, contempla os estragos entre a revivescência universal da vida. Os troncos e galhos das árvores rachadas pelos raios, estorcidas pelos ventos; as choupanas estruídas, colmos por terra; as últimas ondas barrentas dos ribeirões, transbordantes; a erva acamada pelos campos, como se sobre eles passassem búfalos em tropel — mal relembram a investida fulminante do flagelo...
Dias depois, os ventos rodam outra vez, vagarosamente, para leste; e a temperatura começa a subir de novo; a pressão a pouco diminui; e cresce continuamente o mal-estar, até que se reate nos ares imobilizados a componente formidável do pampeiro e ressurja, estrugidora, a tormenta, em rodéos turbilhonantes, enquadrada pelo mesmo cenário lúgubre, revivendo o mesmo ciclo, o mesmo círculo vicioso de catástrofes.
Ora — avançando para o norte — desponta, contrastando com tais manifestações, o clima do Pará. Os brasileiros de outras latitudes mal o compreendem, mesmo através das lúcidas observações de Bates. Madrugadas tépidas, de 23º centígrados, sucedendo-se inesperadamente a noites chuvosas; dias que irrompem como apoteoses fulgurantes revelando transmutações inopinadas: árvores, na véspera despidas, aparecendo juncadas de flores; brejos apaulados transmudando-se em prados. E logo depois, no círculo estreitíssimo de vinte e quatro horas, mutações completas: florestas silenciosas, galhos mal vestidos pelas folhas requeimadas ou murchas; ares vazios e mudos; ramos viúvos das flores recém-abertas, cujas pétalas exsicadas se despegam e caem, mortas, sobre a terra imóvel sob o espasmo enervante de um bochorno de 35º, à sombra. “Na manhã seguinte, o Sol se alevanta sem nuvens e deste modo se completa o ciclo — primavera, verão e outono num só dia tropical.”1
A constância de tal clima faz que se não percebam as estações que, entretanto, como em um índice abreviado, se delineiam nas horas sucessivas de um só dia, sem que a temperatura quotidiana tenha durante todo o ano uma oscilação maior que 1º ou 1,5º. Assim a vida se equilibra numa constância imper¬turbável.
Entretanto, a um lado, para o ocidente, no Alto Amazonas manifestações diversas caracterizam novo habitat. E este, não há negá-lo, impõe aclimação penosa a todos os filhos dos próprios territórios limítrofes.
Ali, no pleno dos estios quentes, quando se diluem, mortas nos ares parados, as últimas lufadas de leste, o termômetro é substituído pelo higrômetro na definição do clima. As existências derivam numa alternativa dolorosa de vazantes e enchentes dos grandes rios. Estas alteiam-se sempre de um modo assombrador. O Amazonas referto salta fora do leito, levanta em poucos dias o nível das águas, de dezessete metros; expande-se em alagados vastos, em furos, em paranamirins, en¬trecruzados em rede complicadíssima de mediterrâneo cindido de correntes fortes, dentre as quais emergem, ilhados, os igapós verdejantes.
A enchente é uma parada na vida. Preso nas malhas dos igarapés, o homem aguarda, então, com estoicismo raro ante a fatalidade incoercível, o termo daquele inverno paradoxal, de temperaturas altas. A vazante é o verão. É a revivescência da atividade rudimentar dos que ali se agitam, do único modo compatível com a natureza que se demasia em manifestações díspares tornando impossível a continuidade de quaisquer esforços.
Tal regime acarreta o parasitismo franco. O homem bebe o leite da vida sugando os vasos túmidos das sifônias...
Mas neste clima singular e típico destacam-se outras anomalias, que ainda mais o agravam. Não bastam as intermitências de cheias e estiagens, sobrevindo rítmicas como a sístole e a diástole da maior artéria na Terra. Outros fatos tornam ao forasteiro inúteis todas as tentativas de aclimação real.
Muitas vezes, em plena enchente, em abril ou maio, no correr de um dia calmoso e claro, dentro da atmosfera ardente do Amazonas difundem-se rajadas frigidíssimas do Sul.
É como uma bafagem enregelada do pólo...
O termômetro desce, então, logo, numa queda única e forte, de improviso. Estabelece-se por alguns dias uma situação inaturável.
Os regatões espertos que esporeados pela ganância se avantajam até ali, e os próprios silvícolas enrijados pela adaptação, acolhem-se aos tijupás, tiritantes, abeirando-se das fogueiras. Cessam os trabalhos. Abre-se um novo hiato nas atividades. Despovoam-se aquelas grandes solidões alagadas; morrem os peixes nos rios, enregelados; morrem as aves nas matas silenciosas, ou emigram; esvaziam-se os ninhos; as próprias feras desaparecem, encafurnadas nas tocas mais profundas; — e aquela natureza maravilhosa do equador, toda remodelada pela reação esplêndida dos sóis, patenteia um simulacro crudelíssimo de desolamento polar e lúgubre. É o tempo da friagem.
Terminemos, porém, esses debuxos rápidos.
Os sertões do Norte, vimo-lo anteriormente, refletem, por sua vez, novos regimes, novas exigências biológicas. Ali a mesma intercadência de quadras ramansadas e dolorosas se espelha mais duramente talvez, sob outras formas.
Ora, se considerarmos que estes vários aspectos climáticos não exprimem casos excepcionais, mas aparecem todos, desde as tormentas do Mato Grosso aos ciclos das secas do Norte, com a feição periódica imanente às leis naturais invioláveis, conviremos em que há no nosso meio físico variabilidade completa.
Daí os erros em que incidem os que generalizam, estudando a nossa fisiologia própria, a ação exclusiva de um clima tropical. Esta exercita-se, sem dúvida, originando patologia sui generis, em quase toda a faixa marítima do Norte e em grande parte dos estados que lhe correspondem, até ao Mato Grosso. O calor úmido das paragens amazonenses, por exemplo, deprime e exaure. Modela organizações tolhiças em que toda a atividade cede ao permanente desequilíbrio entre as energias impulsivas das funções periféricas fortemente excitadas e a apatia das funções centrais: inteligências marasmáticas, adormidas sob o explodir das paixões; inervações periclitantes, em que pese à acuidade dos sentidos, e mal reparadas ou refeitas pelo sangue empobrecido nas hematoses incompletas...
Daí todas as idiossincrasias de uma fisiologia excepcional: o pulmão que se reduz, pela deficiência da função, e é substituído, na eliminação obrigatória do carbono, pelo fígado, sobre o qual desce pesadamente a sobrecarga da vida: organizações combalidas pela alternativa persistente de exal¬tações impulsivas e apatias enervadoras, sem a vibra¬tilidade, sem o tônus muscular enérgico dos temperamentos robustos e sangüíneos. A seleção natural, em tal meio, opera-se à custa de compromissos graves com as funções centrais, do cérebro, numa progressão inversa prejudicialíssima entre o desenvolvimento intelectual e o físico, firmando inexo¬ravelmente a vitória das expansões instintivas e visando o ideal de uma adaptação que tem, como conseqüências únicas, a máxima energia orgânica, a mínima fortaleza moral. A aclimação traduz uma evolução regressiva. O tipo deperece num esvaecimento contínuo, que se lhe transmite à descendência até à extinção total. Como o inglês nas Barbadas, na Tasmânia ou na Austrália, o português no Amazonas, se foge ao cruzamento, no fim de poucas gerações tem alterados os caracteres físicos e morais de uma maneira profunda, desde a tez, que se acobreia pelos sóis e pela eliminação incompleta do carbono, ao temperamento, que se debilita despido das qualidades primitivas. A raça inferior, o selvagem bronco, domina-o; aliado ao meio vence-o, esmaga-o, anula-o na concorrência formidável ao impaludismo, ao hepatismo, às pirexias esgotantes, às canículas abrasadoras, e aos alagadiços maleitosos.
Isto não acontece em grande parte do Brasil central e em todos os lugares do Sul.
Mesmo na maior parte dos sertões setentrionais o calor seco, altamente corrigido pelos fortes movimentos aéreos provindos dos quadrantes de leste, origina disposições mais animadoras e tem ação estimulante mais benéfica.
E volvendo ao Sul, no território que no norte de Minas para o sudoeste progride ao Rio Grande, deparam-se condições incomparavelmente superiores:
Uma temperatura anual média oscilando de 17º a 20º, num jogo mais harmônico de estações; um regime mais fixo das chuvas que, preponderantes no verão, se distribuem no outono e na primavera de modo favorável às culturas. Atingindo o inverno, a impressão de um clima europeu é precisa: sopra o SO frigidíssimo sacudindo chuvisqueiros finos e esgarçando garoas; a neve rendilha as vidraças; gelam os banhados, e as geadas branqueiam pelos campos...

...e sua reflexão na História

A nossa história traduz notavelmente estas modalidades mesológicas.
Considerando-a sob uma feição geral, fora da ação pertur¬badora de pormenores inexpressivos, vemos, logo na fase colonial, esboçarem-se situações diversas.
Enfeudado o território, dividido pelos donatários felizes, e iniciando-se o povoamento do país com idênticos elementos, sob a mesma indiferença da metrópole, voltada ainda para as últimas miragens da “Índia portentosa”, abriu-se separação radical entre o Sul e o Norte.
Não precisamos rememorar os fatos decisivos das duas regiões. São duas histórias distintas, em que se averbam movimentos e tendências opostas. Duas sociedades em formação, alheadas por destinos rivais — uma de todo indiferente ao modo de ser da outra, ambas, entretanto, envolvendo sob os influxos de uma administração única. Ao passo que no Sul se debuxavam novas tendências, uma subdivisão maior na atividade, maior vigor no povo mais heterogêneo, mais vivaz, mais prático e aventureiro, um largo movimento progressista em suma — tudo isto contrastava com as agitações, às vezes mais brilhantes mas sempre menos fecundas, do Norte — capitanias esparsas e incoerentes, jungidas à mesma rotina, amorfas e imóveis, em função estreita dos alvarás da corte remota.
A história é ali mais teatral, porém menos eloqüente.
Surgem heróis, mas a estrutura avulta-lhes, maior, pelo contraste com o meio; belas páginas vibrantes mas truncadas, sem objetivo certo, em que colaboram, de todo desquitadas entre si, as três raças formadoras.
Mesmo no período culminante, a luta com os holandeses, acampam, claramente distintos em suas tendas de campanha, os negros de Henrique Dias, os índios de Camarão e os lusitanos de Vieira. Mal unidos na guerra, distanciam-se na paz. O drama de Palmares, as correrias dos silvícolas, os conflitos na orla dos sertões, violam a transitória convergência contra o batavo.
Preso no litoral, entre o sertão inabordável e os mares, o velho agregado colonial tendia a chegar ao nosso tempo, imutável, sob o emperramento de uma centralização estúpida, realizando a anomalia de deslocar para uma terra nova o ambiente moral de uma sociedade velha.
Bateu-o, felizmente, a onda impetuosa do Sul.
Aqui, a aclimação mais pronta, em meio menos adverso, emprestou, cedo, mais vigor aos forasteiros. Da absorção das primeiras tribos surgiram os cruzados das conquistas sertanejas, os mamalucos audazes. O paulista — e a significação histórica deste nome abrange os filhos do Rio de Janeiro, Minas, S. Paulo e regiões do Sul — erigiu-se como um tipo autônomo, aventuroso, rebelde, libérrimo, com a feição perfeita de um dominador da terra, emancipando-se, insurrecto, da tutela longínqua, e afastando-se do mar e dos galeões da metrópole, investindo com os sertões desconhecidos, delineando a epopéia inédita das bandeiras...
Este movimento admirável reflete o influxo das condições mesológicas. Não houvera distinção alguma entre os colonizadores de um e outro lado. Em todos prevaleciam os mesmos elementos, que eram o desespero de Duarte Coelho.
“Piores qua na terra que peste...”
Mas no Sul a força viva restante no temperamento dos que vinham de romper o mar imoto não se delia num clima enervante; tinha nova componente na própria força da terra; não se dispersava em adaptações difíceis. — Alterava-se, melhorando. O homem sentia-se forte. Deslocado apenas o teatro dos grandes cometimentos, podia volver para o sertão impérvio a mesma audácia que o precipitara nos périplos africanos.
Além disto — frisemos este ponto escandalizando embora os nossos minúsculos historiógrafos — a disposição orográfica libertava-o da preocupação de defender o litoral, onde aproava a cobiça do estrangeiro.
A Serra do Mar tem um notável perfil em nossa história. A prumo sobre o Atlântico desdobra-se como a cortina de baluarte desmedido. De encontro às suas escarpas embatia, flagílima, a ânsia guerreira dos Cavendish e dos Fenton. No alto, volvendo o olhar em cheio para os chapadões, o forasteiro sentia-se em segurança. Estava sobre ameias intransponíveis que o punham do mesmo passo a cavaleiro do invasor e da metrópole. Transposta a montanha — arqueada como a precinta de pedra de um continente — era um isolador étnico e um isolador histórico. Anulava o apego irreprimível ao litoral, que se exercia ao norte; reduzia-o a estreita faixa de mangues e restingas, ante a qual se amorteciam todas as cobiças, e alteava, sobranceira às frotas, intangível no recesso das matas, a atração misteriosa das minas...
Ainda mais — o seu relevo especial torna-a um condensador de primeira ordem, no precipitar a evaporação oceânica.
Os rios que se derivam pelas suas vertentes nascem de algum modo no mar. Rolam as águas num sentido oposto à costa. Entranham-se no interior, correndo em cheio para os sertões. Dão ao forasteiro a sugestão irresistível das entradas.
A terra atrai o homem; chama-o para o seio fecundo; encanta-o pelo aspecto farmosíssimo; arrebata-o, afinal, irresistivelmente, na correnteza dos rios.
Daí o traçado eloqüentíssimo do Tietê, diretriz preponderante nesse domínio do solo. Enquanto no S. Francisco, no Parnaíba, no Amazonas, e em todos os cursos d’água da borda oriental, o acesso para o interior seguia ao arrepio das correntes, ou embatia nas cachoeiras que tombam dos socalcos dos planaltos, ele levava os sertanistas, sem uma remada, para o Rio Grande e daí ao Paraná e ao Paranaíba. Era a penetração em Minas, em Goiás, em Santa Catarina, no Rio Grande do Sul, no Mato Grosso, no Brasil inteiro. Segundo estas linhas de menor resistência, que definem os lineamentos mais claros da expansão colonial, não se opunham, como ao norte, renteando o passo às bandeiras, a esterilidade da terra, a barreira intangível dos descampados brutos.
Assim é fácil mostrar como esta distinção de ordem física esclarece as anomalias e contrastes entre os sucessos nos dous pontos do país, sobretudo no período agudo da crise colonial, no século XVII.
Enquanto o domínio holandês, centralizando-se em Per¬nambuco, reagia por toda a costa oriental, da Bahia ao Maranhão, e se travavam recontros memoráveis em que, solidárias, enterreiravam o inimigo comum as nossas três raças formadoras, o sulista, absolutamente alheio àquela agitação, revelava, na rebeldia aos decretos da metrópole, completo divórcio com aqueles lutadores. Era quase um inimigo tão perigoso quanto o batavo. Um povo estranho de mestiços levantadiços, expandindo outras tendências, norteando por outros destinos, pisando, resoluto, em demanda de outros rumos, bulas e alvarás entibiadores. Volvia-se em luta aberta com a corte portuguesa, numa reação tenaz contra os jesuítas. Estes, olvidando o holandês e dirigindo-se com Ruiz de Montoya a Madri e Díaz Taño a Roma, apontavam-no como inimigo mais sério.
De feito, enquanto em Pernambuco as tropas de van Schkoppe preparavam o governo de Nassau, em São Paulo se arquitetava o drama sombrio de Guaíra. E quando a restauração em Portugal veio alentar em toda a linha a repulsa ao invasor, congregando de novo os combatentes exaustos, os sulistas frisaram ainda mais esta separação de destinos, aproveitando-se do mesmo fato para estadearem a autonomia franca, no reinado de um minuto de Amador Bueno.
Não temos contraste maior na nossa história. Está nele a sua feição verdadeiramente nacional. Fora disto mal a vislumbramos nas cortes espetaculosas dos governadores, na Bahia, onde imperava a Companhia de Jesus com o privilégio da conquista das almas, eufemismo casuístico disfarçando o monopólio do braço indígena.
Na plenitude do século XVII o contraste se acentua.
Os homens do Sul irradiam pelo país inteiro. Abordam as raias extremas do equador. Até aos últimos quartéis do século XVIII, o povoamento segue as trilhas embaralhadas das bandeiras. Seguiam sucessivas, incansáveis, com a fatalidade de uma lei, porque traduziam, com efeito, uma queda de potenciais, as grandes caravanas guerreiras, vagas humanas desencadeadas em todos os quadrantes, invadindo a própria terra, batendo-a em todos os pontos, descobrindo-a depois do descobrimento, desvendando-lhe o seio rutilante da minas.
Fora do litoral, em que se refletia a decadência da metrópole e todos os vícios de uma nacionalidade em decomposição insanável, aqueles sertanistas, avantajando-se às terras extremas de Pernambuco ao Amazonas, semelhavam uma outra raça, no arrojo temerário e resistência aos reveses.
Quando as correrias do bárbaro ameaçavam a Bahia, ou Pernambuco, ou a Paraíba, e os quilombos se escalonavam pelas matas, nos últimos refúgios do africano revoltoso — o sulista, di-lo a grosseira odisséia de Palmares, surgia como o debelador clássico desses perigos, o empreiteiro predileto das grandes hecatombes.
É que o filho do Norte não tinha um meio físico que o blindasse de igual soma de energias. Se tal acontecesse as bandeiras irromperiam também do oriente e do norte e, esmagado num movimento convergente, o elemento indígena desapareceria sem traços remanescentes. Mas o colono nortista, nas entradas para o este ou para o sul, batia logo de encontro à natureza adversa. Refluía prestes ao litoral sem o atrevimento dos dominadores, dos que se sentem à vontade sobre uma terra amiga, sem as ousadias oriundas da própria atração das paragens opulentas e acessíveis. As explorações ali iniciadas, na segunda metade do século XVI, por Sebastião Tourinho, no Rio Doce, Bastião Álvares, no S. Francisco, e Gabriel Soares, pelo norte da Bahia até às cabeceiras do Paraguaçu, embora tivessem depois os estímulos enérgicos das Minas de Prata de Belchior Dias, são um pálido arremedo das arremetidas do Anhangüera ou de um Pascoal de Araújo.
Apertados entre os canaviais da costa e o sertão, entre o mar e o deserto, num bloqueio engravecido pela ação do clima perderam todo o aprumo e este espírito de revolta, eloqüentíssimo, que ruge em todas as páginas da história do Sul.
Tal contraste não se baseia, por certo, em causas étnicas primordiais.
Delineada, deste modo, a influência mesológica em nosso movimento histórico, deduz-se a que exerceu sobre a nossa formação étnica.

Ação do meio na fase inicial da formação das raças

Volvamos ao ponto de partida.
Convindo em que o meio não forma as raças, no nosso caso especial variou demais nos diversos pontos do território as dosagens de três elementos essenciais. Preparou o advento de sub-raças diferentes pela própria diversidade das condições de adaptação. Além disto (é hoje fato inegável) as condições exteriores atuam gravemente sobre as próprias sociedades constituídas, que se deslocam em migrações seculares aparelhadas embora pelos recursos de uma cultura superior. Se isto se verifica nas raças de todo definidas abordando outros climas, protegidas pelo ambiente de uma civilização, que é como o plasma sanguíneo desses grandes organismos coletivos, que não diremos da nossa situação muito diversa? Neste caso — é evidente — a justaposição dos caracteres coincide com íntima transfusão de tendências e a longa fase de transformação correspondente erige-se como período de fraqueza, nas capacidades das raças que se cruzam, alteando o valor relativo da influência do meio. Este como que estampa, então, melhor, no corpo em fusão, os seus traços característicos. Sem nos arriscarmos demais a paralelo ousado, podemos dizer que para essas reações biológicas complexas, ele tem agentes mais enérgicos que para as reações químicas da matéria.
Ao calor e à luz, que se exercitam em ambas, adicionam-se, então, a disposição da terra, as modalidades do clima e essa ação de presença inegável, essa espécie de força catalítica misteriosa que difundem os vários aspectos da natureza.
Entre nós, vimo-lo, a intensidade destes últimos está longe da uniformidade proclamada. Distribuíram, como o indica a história, de modo diverso as nossas camadas étnicas, originando uma mestiçagem dissímil.
Não há um tipo antropológico brasileiro.

A formação brasileira no norte

Procuremos, porém, neste intricado caldeamento a miragem fugitiva de uma sub-raça, efêmera talvez. Inaptos para discriminar as nossas raças nascentes, acolhamo-nos ao nosso assunto. Definamos rapidamente os antecedentes históricos do jagunço.
Ante o que vimos a formação brasileira do Norte é mui diversa da do Sul. As circunstâncias históricas, em grande parte oriundas das circunstâncias físicas, originaram diferenças iniciais no enlace das raças, prolongando-as até ao nosso tempo.
A marcha do povoamento, do Maranhão à Bahia, revela-as.

Os primeiros povoadores

Foi vagaroso. As gentes portuguesas não abordavam o litoral do Norte robustecidas pela força viva das migrações compactas, grandes massas invasoras capazes, ainda que destacadas do torrão nativo, de conservar, pelo número, todas as qualidades adquiridas em longo tirocínio histórico. Vinham esparsas, parceladas em pequenas levas de degredados ou colonos contrafeitos, sem o desempeno viril dos conquistadores.
Deslumbrava-as ainda o Oriente.
O Brasil era a terra do exílio; vasto presídio com que se amedrontavam os heréticos e os relapsos, todos os passíveis do morra per ello da sombria justiça daqueles tempos. Deste modo nos primeiros tempos o número reduzido de povoadores contrasta com a vastidão da terra e a grandeza da população indígena. As instruções dadas, em 1615, ao capitão Fragoso de Albuquerque, a fim de regular com o embaixador espanhol em França o tratado de tréguas com La Ravardière, são claras a respeito. Ali se afirma “que as terras do Brasil não estão despovoadas porque nelas existem mais de três mil portugueses”.
Isto para o Brasil todo — mais de cem anos após o descobrimento...
Segundo observa Aires de Casal1 “a população crescia tão devagar que na época da perda do Sr. D. Sebastião (1580) ainda não havia um estabelecimento fora da ilha de Itamaracá cujos vizinhos andavam por uns 200, com 3 engenhos de açúcar”.
Quando alguns anos mais tarde se povoou melhor a Bahia, a desproporção entre o elemento europeu e dos dous outros continuou desfavorável, em progressão aritmética perfeita. Segundo Fernão Cardim, ali existiam 2.000 brancos, 4.000 negros e 6.000 índios. É visível durante muito tempo a predominância do elemento autóctone. Nos primeiros cruzados, portanto, ele deve ter influído muito.
Os forasteiros que aproavam àquelas plagas eram, ademais, de molde para essa mistura em larga escala. Homens de guerra, sem lares, afeitos à vida solta dos acampamentos, ou degredados e aventureiros corrompidos, norteava-os a todos como um aforismo o ultra aequinoctialem non peccari, na frase de Barleus. A mancebia com as caboclas descambou logo em franca devassidão, de que nem o clero se isentava. O padre Nóbrega definiu bem o fato, na célebre carta ao rei (1549) em que, pintando com ingênuo realismo a dissociação dos costumes, declara estar o interior do país cheio de filhos de cristãos, multiplicando-se segundo os hábitos gentílicos. Achava conveniente que lhe enviassem órfãs, ou mesmo mulheres que fossem erradas, que todas achariam maridos, por ser a terra larga e grossa. A primeira mestiçagem fez-se, pois, nos primeiros tempos, intensamente, entre o europeu e o silvícola. “Desde cedo, dilo Casal, os tupiniquins, gentio de boa índole, foram cristianizados e aparentados com os europeus, sendo inúmeros os brancos naturais do país com casta tupiniquina.”
Por outro lado, embora existissem em grande cópia mesmo no reino, os africanos tiveram, no primeiro século, uma função inferior. Em muitos lugares rareavam. Eram poucos, diz aquele narrador sincero, no Rio Grande do Norte “onde os índios há largo tempo que foram reduzidos, apesar da sua ferocidade e cujos descendentes por meio das alianças com os europeus e africanos têm aumentado as classes dos brancos e dos pardos”.
Estes excertos são expressivos.
Sem idéia alguma preconcebida, pode-se afirmar que a extinção do indígena, no Norte, proveio, segundo o pensar de Varnhagen, mais em virtude de cruzamentos sucessivos que de verdadeiro extermínio.
Sabe-se ainda que havia no ânimo dos donatários a preocupação de aproveitar-lhes o mais possível a aliança, captando-lhes o apego. Este proceder refletia os intuitos da metrópole. Demonstram-no-lo as sucessivas cartas régias que, de 1570 a 1758 — em que pese “a uma série nunca interrompida de hesitações e contradições”1 — apareceram como minorativo à ganância dos colonos visando a escravização do selvagem. Sendo que algumas, como a de 1680, estendiam a proteção ao ponto de decretar que se concedessem ao gentio terras “ainda mesmo as já dadas a outros de sesmaria” visto que deviam ter preferência os mesmos índios “naturais senhores da terra”.
Contribuiu para esta tentativa persistente de incorporação a Companhia de Jesus que, obrigando-se no Sul a transigências forçadas, dominava no Norte. Excluindo quaisquer intenções condenáveis, os jesuítas ali realizaram tarefa nobilitadora. Foram ao menos rivais do colono ganancioso. No embate estúpido da perversidade contra a barbaria, apareceu uma função digna àqueles eternos condenados. Fizeram muito. Eram os únicos homens disciplinados do seu tempo. Embora quimérica a tentativa de alçar o estado mental do aborígine às abstrações do monoteísmo, ela teve o valor de o atrair por muito tempo, até à intervenção oportuna de Pombal, para a nossa história.
O curso das missões, no Norte, em todo o trato de terras do Maranhão à Bahia, patenteia sobretudo um lento esforço de penetração no âmago das terras sertanejas, das fraldas da Ibiapaba às da Itiúba, que completa de algum modo a movimentação febril das bandeiras. Se estas difundiam largamente o sangue das três raças pelas novas paragens descobertas, provocando um entrelaçamento geral, a despeito das perturbações que acarretavam — os aldeamentos, centros da força atrativa do apostolado, fundiam as malocas em aldeias; unificavam as cabildas; integravam as tribos. Penetrando fundo nos sertões, graças a um esforço secular, os missionários salvaram em parte este favor das nossas raças. Surpreendidos vários historiadores pela vinda, em grandíssima escala, do africano, que iniciada em fins do século XVI nunca mais parou até ao nosso (1850) e considerando que ele foi o melhor aliado do português na quadra colonial, dão-lhe geralmente influência exagerada na formação do sertanejo do Norte. Entretanto, em que pese a esta invasão de vencidos e infelizes, e à sua fecundidade rara, e a suas qualidades de adaptação, apuradas na África adusta, é discutível que ela tenha atingido profundamente os sertões.
É certo que o consórcio afro-lusitano era velho, anterior mesmo ao descobrimento, porque se consumara desde o século XV, com os azenegues e jalofos de Gil Eanes e Antão Gonçalves. Em 1530 salpintavam as ruas de Lisboa mais de dez mil negros, e o mesmo sucedia noutros lugares. Em Évora tinham maioria sobre os brancos.
Os versos de um contemporâneo, Garcia de Rezende, são um documento:

“Vemos no reyno metter,
Tantos captivos crescer,
Irem-se os naturaes
Que, se assim for, serão mais
Elles que nós, a meu ver.”

A gênese do mulato

Assim a gênese do mulato teve uma sede fora do nosso país. A primeira mestiçagem com o africano operou-se na metrópole. Entre nós, naturalmente, cresceu. A raça dominada, porém, teve, aqui, dirimidas pela situação social, as faculdades de desenvolvimento. Organização potente afeita à humildade extrema, sem as rebeldias do índio, o negro teve, de pronto, sobre os ombros toda a pressão da vida colonial. Era a besta de carga adstrita a trabalhos sem folga. As velhas ordenações, estatuindo o “como se podem enjeitar os escravos e bestas por os acharem doentes ou mancos”, denunciam a brutalidade da época. Além disto — insistamos num ponto incontroverso, as numerosas importações de escravos se acumulavam no litoral. A grande tarja negra debruava a costa da Bahia ao Maranhão, mas pouco penetrava o interior. Mesmo em franca revolta, o negro humilde feito quilombola temeroso, agrupando-se nos mocambos, parecia evitar o âmago do país. Palmares, com seus trinta mil mocambeiros, distava afinal poucas léguas da costa.
Nesta última a uberdade da terra fixara simultaneamente dous elementos, libertando o indígena. A cultura extensiva da cana, importada da Madeira, determinara o olvido dos sertões. Já antes da invasão holandesa1 do Rio Grande do Norte à Bahia havia cento e sessenta engenhos. E esta exploração, em dilatada escala, progrediu depois em rápido crescendo.
O elemento africano de algum modo estacou nos vastos canaviais da costa, agrilhoado à terra e determinando cruzamento de todo diverso do que se fazia no recesso das capitanias. Aí campeava, livre, o indígena inapto ao trabalho e rebelde sempre, ou mal tolhido nos aldeamentos pela tenacidade dos missio¬nários. A escravidão negra, constituindo-se derivativo ao egoís¬mo dos colonos, deixava aqueles mais desembaraçados que no Sul, nos esforços da catequese. Os próprios sertanistas ao chegarem, ultimando as rotas atrevidas, àquelas paragens, tinham extinta a combatividade.
Alguns, como Domingos Sertão, cerravam a vida aventureira, atraídos pelos lucros das fazendas de criação, abertas naqueles grandes latifúndios.
Deste modo se estabeleceu distinção perfeita entre os cruzamentos realizados no sertão e no litoral.
Com efeito, admitido em ambos como denominador comum o elemento branco, o mulato erige-se como resultado principal do último e o curiboca do primeiro.

II

A gênese do jagunço

A demonstração é positiva. Há um notável traço de originalidade na gênese da população sertaneja, não diremos do Norte, mas no Brasil subtropical.
Esbocemo-lo; e para não nos delongarmos demais, afastemo-nos pouco do teatro em que se desenrolou o drama histórico de Canudos, percorrendo rapidamente o rio de S. Francisco, “o grande caminho da civilização brasileira”, conforme o dizer feliz de um historiador.1
Vimos, de relance, em páginas anteriores, que ele atravessa as regiões mais díspares. Ampla nas cabeceiras, a sua dilatada bacia colhe na rede de numerosos afluentes a metade de Minas, na zona das montanhas e das florestas. Estreita-se depois passando na parte mediana pela paragem formosíssima dos gerais. No curso inferior, a jusante de Juazeiro, constrita entre pendores que a desnivelam torcendo-a para o mar, torna-se pobre de tributários, quase todos efêmeros, derivando, apertada por uma corredeira única de centenares de quilômetros, até Paulo Afonso — e corta a região maninha das caatingas.
Ora, sob esta tríplice disposição, é um diagrama da nossa marcha histórica, refletindo, paralelamente, as suas modalidades variáveis.
Balanceia a influência do Tietê.
Enquanto este, de traçado incomparavelmente mais próprio à penetração colonizadora, se tornou o caminho predileto dos sertanistas visando sobretudo a escravização e o descimento do gentio, o S. Francisco foi, nas altas cabeceiras, a sede essencial da agitação mineira, no curso inferior o teatro das missões, e na região média a terra clássica do regime pastoril, único compatível com a situação econômica e social da colônia.
Bateram-lhe por igual as margens o bandeirante, o jesuíta e o vaqueiro.
Quando, mais tarde, maior cópia de documentos permitir a reconstrução da vida colonial, do século XVI ao fim do XVIII, é possível que o último, de todo olvidado ainda, avulte com o destaque que merece na formação da nossa gente. Bravo e destemeroso como o primeiro, resignado e tenaz como o segundo, tinha a vantagem de um atributo supletivo que faltou a ambos — a fixação ao solo.
As bandeiras, sob os dous aspectos que mostram, já destacados, já confundidos, investindo com a terra ou com o homem, buscando o ouro ou o escravo, desvendavam desmedidas paragens, que não povoavam e deixavam porventura mais desertas, passando rápidas sobre as “malocas” e as “catas”.
A sua história, às vezes inextricável como os dizeres adrede obscuros dos roteiros, traduz a sucessão e enlace destes estímulos únicos, revezando-se quer consoante a índole dos aventureiros, quer de acordo com a maior ou menor praticabilidade das empresas planeadas. E neste permanente oscilar entre aqueles dous desígnios, a sua função realmente útil, no desvendar o desconhecido, repontava com incidente obrigado, conseqüência inevitável em que se não cuidava.
Assim é que extinta com a expedição de Glimmer (1601) a visão enganadora da Serra das Esmeraldas, que desde meados do século XVI atraíra para os flancos do Espinhaço, um após outros, inacessíveis a constantes malogros, Bruzzo Spinosa, Sebastião Tourinho, Dias Adorno e Martins Carvalho, e desaparecendo ao norte o país encantado que idealizara a imaginação romântica de Gabriel Soares, grande parte do século XVII é dominada pelas lendas sombrias dos caçadores de escravos, centralizados pela figura brutalmente heróica de Antônio Raposo. É que se haviam apagado quase que ao mesmo tempo as miragens da misteriosa Sabarabuçu e as das Minas de Prata, eternamente inatingíveis; até que, renovadas pelas pesquisas indecisas de Pais Leme, que avivou, depois de um apagamento quase secular, as veredas de Glimmer; alentadas pelas oitavas de ouro de Arzão pisando em 1693 as mesmas trilhas de Tourinho e Adorno; e ao cabo francamente ressurgindo logo depois com Bartolomeu Bueno, em Itaberaba, e Miguel Garcia, no Ribeirão do Carmo, as entradas sertanejas volvessem ao anelo primitivo e, irradiando do distrito de Ouro Preto, se espraiassem de novo, mais fortes, pelo país inteiro.
Ora, durante este período em que, aparentemente, só se observam, no litoral a luta contra o batavo e no âmago dos planaltos o espantoso ondular das bandeiras, surgira na região que interfere o médio S. Francisco um notável povoamento do qual os resultados somente depois apareceram.

Função histórica do rio S. Francisco

Formara-se obscuramente. Determinaram-no, em começo, as entradas à procura das minas de Moréia que embora anônimas e sem brilho parecem ter-se prolongado até ao governo de Lencastre, levando até às serranias de Macaúbas, além do Paramirim, sucessivas turmas de povoadores.1 Vedado nos caminhos direitos e normais à costa, mais curtos porém interrompidos pelos paredões das serras ou trancados pelas matas, o acesso fazia-se pelo S. Francisco. Abrindo aos exploradores duas entradas únicas à nascente e à foz, levando os homens do Sul ao encontro dos homens do Norte, o grande rio erigia-se desde o princípio com a feição de um unificador étnico, longo traço de união entre as duas sociedades que se não conheciam. Porque provindos dos mais diversos pontos e origens, ou fossem os paulistas de Domingos Sertão, ou os baianos de Garcia d’Ávila, ou os pernambucanos de Francisco Caldas, com os seus pequenos exércitos de tabajaras aliados, ou mesmo os portugueses de Manuel Nunes Viana, que dali partiu da sua fazenda do Escuro, em Carinhanha, para comandar os emboabas no Rio das Mortes, os forasteiros, ao atingirem o âmago daquele sertão, raro voltavam.
A terra, do mesmo passo exuberante e acessível, compensava-lhes a miragem desfeita das minas cobiçadas. A sua estrutura geológica original criando conformações topográficas em que as serranias, últimos esporões e contrafortes da cordilheira marítima, têm a atenuante dos tabuleiros vastos; a sua flora complexa e variável, em que se entrelaçam florestas sem a vastidão e o trançado impenetrável das do litoral, com o “mimoso” das planuras e o “agreste” das chapadas desafogadas, todas, salteadamente, nos vastos claros das caatingas; a sua conformação hidrográfica especial de afluentes que se ajustam, quase simétricos, para o ocidente e o oriente ligando-a, de um lado à costa, de outro, ao centro dos planaltos — foram laços preciosos para a fusão desses elementos esparsos, atraindo-os, entrelaçando-os. E o regime pastoril ali se esboçou como uma sugestão dominadora dos gerais.
Nem faltava para isto, sobre a rara fecundidade do solo recamado de pastagens naturais, um elemento essencial, o sal, gratuito, nas baixadas salobras dos “barreiros”.1

:1“Todos os animais buscam com sofreguidão esses lugares, não só mamíferos como aves e reptis.
O gado lambe o chão atolando-se nas poças, bebe com delícia aquela água e come o barro.” Escragnolle Taunay.
Tratando dos lugares a montante da Barra do Rio Grande, diz Aires de Casal: “Há várias lagoas pequenas em maior ou menor distância do rio, todas de água mais ou menos salobra, em cujas margens o calor do sol faz aparecer sal como geada.
A água destas lagoas (e mesmo a doce) filtrada por uma porção de terra adjacente em cochos de pau ou de couro finamente furados e exposta em tabuleiros ao tempo em oito dias cristaliza ficando sal alvo como marinho.
Quase todo esse sal para o centro de Minas Gerais.” Corografia Basílica, II, p. 169.

Constitui-se, desta maneira favorecida, a extensa zona de criação de gado que já no alvorecer do século XVIII ia das raias setentrionais de Minas a Goiás, ao Piauí, aos extremos do Maranhão e Ceará pelo ocidente e norte, e às serranias das lavras baianas, a leste. Povoara-se e crescera autônoma e forte, mas obscura, desadorada dos cronistas do tempo, de todo esquecida não já pela metrópole longínqua senão pelos próprios governadores e vice-reis. Não produzia impostos ou rendas que interessavam o egoísmo da coroa. Refletia, entretanto, contraposta à turbulência do litoral e às aventuras das minas, “o quase único aspecto tranqüilo da nossa cultura”.1 À parte os raros contingentes de povoadores pernambucanos e baianos, a maioria dos criadores opulentos, que ali se formaram, vinha do Sul, constituída pela mesma gente entusiasta e enérgica das bandeiras.

Os jagunços: colaterais prováveis dos paulistas

Segundo o que se colhe em preciosas páginas de Pedro Taques,2 foram numerosas as famílias de S. Paulo que, em contínuas migrações, procuraram aqueles rincões longínquos e acredita-se, aceitando o conceito de um historiógrafo perspicaz, que o “vale de S. Francisco já aliás muito povoado de paulistas e de seus descendentes desde o século XVII, tornou-se uma como colônia quase exclusiva deles”.3 É natural por isto que Bartolomeu Bueno, ao descobrir Goiás, visse, surpreendido, sinais evidentes de predecessores, anônimos pioneiros que ali tinham chegado, certo, pelo levante, transmontando a Serra do Paranã; e que ao se reabrir em 1697 o ciclo mais notável das pesquisas do ouro, nas agitadas e ruidosas vagas de imigrantes, que rolavam dos flancos orientais da Serra do Espinhaço ao talvegue do Rio das Velhas, passassem mais fortes talvez, talvez precedendo as demais do descobrimento das minas de Caeté, e sulcando-as de meio a meio, e avançando em direção contrária como um refluxo promanado do Norte, as turmas dos “baianos”, termo que como o de “paulista” se tornara genérico no abranger os povoadores setentrionais.1

O vaqueiro

É que já se formara no vale médio do grande rio uma raça de cruzados idênticos àqueles mamalucos estrênuos que tinham nascido em S. Paulo. E não nos demasiamos em arrojada hipótese admitindo que este tipo extraordinário do paulista, surgindo e decaindo logo no Sul, numa degeneração completa ao ponto de declinar no próprio território que lhe deu o nome, ali renascesse e, sem os perigos das migrações e do cruzamento, se conservasse prolongando, intacta, ao nosso tempo, a índole varonil e aventureira dos avós.
Porque ali ficaram, inteiramente divorciados do resto do Brasil e do mundo, murados a leste pela Serra Geral, tolhidos no ocidente pelos amplos campos gerais, que se desatam para o Piauí e que ainda hoje o sertanejo acredita sem fins.
O meio atraía-os e guardava-os.
As entradas de um e outro lado da meridiana, impróprias à dispersão, facilitavam antes o entrelaçamento dos extremos do país. Ligavam-nos no espaço e no tempo. Estabelecendo no interior a contigüidade do povoamento, que faltava ainda em parte na costa, e surgindo entre os nortistas que lutavam pela autonomia da pátria nascente e os sulistas, que lhe alargavam a área, abastecendo-os por igual com as fartas boiadas que subiam para o vale do Rio das Velhas ou desciam até às cabeceiras do Parnaíba, aquela rude sociedade, incompreendida e olvidada, era o cerne vigoroso da nossa nacionalidade.
Os primeiros sertanistas que a criaram, tendo suplantado em toda a linha o selvagem, depois de o dominarem escravizaram-no e captaram-no, aproveitando-lhe a índole na nova indústria que abraçavam.
Veio subseqüentemente o cruzamento inevitável. E despontou logo uma raça de curibocas puros quase sem mescla de sangue africano, facilmente denunciada, hoje, pelo tipo normal daqueles sertanejos. Nasciam de um amplexo feroz de vitoriosos e vencidos. Criaram-se numa sociedade revolta e aventurosa, sobre a terra farta; e tiveram, ampliando os seus atributos ancestrais, uma rude escola de força e coragem naqueles gerais amplíssimos, onde ainda hoje ruge impune o jaguar e vagueia a ema velocíssima, ou nas serranias de flancos despedaçados pela mineração superficial, quando as lavras baianas, mais tarde, lhes deram esse derivativo à faina dos rodeios.
Fora longo traçar-lhes a evolução do caráter. Caldeadas a índole aventureira do colono e a impulsividade do indígena, tiveram, ulteriormente, o cultivo do próprio meio que lhes propiciou, pelo insulamento, a conservação dos atributos e hábitos avoengos, ligeiramente modificados apenas consoante as novas exigências da vida. — E ali estão com as suas vestes características, os seus hábitos antigos, o seu estranho aferro às tradições mais remotas, o seu sentimento religioso levado até ao fanatismo, e o seu exagerado ponto de honra, e o seu folclore belíssimo de rimas de três séculos...
Raça forte e antiga, de caracteres definidos e imutáveis mesmo nas maiores crises — quando a roupa de couro do vaqueiro se faz a armadura flexível do jagunço — oriunda de elementos convergentes de todos os pontos, porém diversa das demais deste país, ela é inegavelmente um expressivo exemplo do quanto importam as reações do meio. Expandindo-se pelos sertões limítrofes ou próximos, de Goiás, Piauí, Maranhão, Ceará e Pernambuco, tem um caráter de originalidade completa expressa mesma nas fundações que erigiu. Todos os povoados, vilas ou cidades, que lhe animam hoje o território, têm uma origem uniforme bem destacada da dos demais que demoram ao norte e ao sul.
Enquanto deste lado se levantaram nas cercanias das minas ou à margem das catas, e no extremo norte, a partir de dilatada linha entre a Itiúba e Ibiapaba, sobre o local de antigas aldeias das missões, ali surgiram, todas, de antigas fazendas de gado.
Escusamo-nos de apontar exemplos por demais numerosos. Quem considera as povoações do S. Francisco, das nascentes à foz, assiste à sucessão dos três casos apontados.
Deixa as regiões alpestres, cidades alcandoradas sobre serras, refletindo o arrojo incomparável das bandeiras; atravessa depois os grandes gerais, desmedidas arenas feitas à sociedade rude, libérrima e forte dos vaqueiros; e atinge por fim as paragens pouco apetecidas, amaninhadas pelas secas, eleitas aos roteiros lentos e penosos das missões...
É o que indicam, completando estes ligeiros confrontos, os traçados das fundações jesuíticas, no trato de terras que há pouco demarcamos.

Fundações jesuísticas na Bahia

Com efeito, ali, totalmente diversos na origem, os atuais povoados sertanejos se formaram de velhas aldeias de índios, arrebatadas, em 1758, do poder dos padres pela política severa de Pombal. Resumindo-nos aos que ainda hoje existem, próximos e em torno do lugar onde existia há cinco anos a Tróia de taipa dos jagunços, vemos, mesmo em tão estreita área, os melhores exemplos.
De fato, em toda esta superfície de terras, que abusivas concessões de sesmarias subordinaram à posse de uma só família, a de Garcia d’Ávila (Casa da Torre), acham-se povoados anti¬qüíssimos. De Itapicuru de Cima a Jeremoabo e daí acompanhando o S. Francisco até os sertões de Rodelas e Cabrobó, avançaram logo no século XVII as missões num lento caminhar que continuaria até ao nosso tempo.
Não tiveram um historiador.
A extraordinária empresa apenas se retrata, hoje, em raros documentos, escassos demais para traçarem a sua continuidade. Os que existem, porém, são eloqüentes para o caso espe¬cial que consideramos. Dizem, de modo iniludível, que enquanto o negro se agitava na azáfama do litoral, o indígena se fixava em aldeamentos que se tornariam cidades. A solicitude calculada do jesuíta e a rara abnegação dos capuchinhos e fran¬ciscanos incorporavam as tribos à nossa vida nacional; e quando no alvorecer do século XVIII os paulistas irromperam em Pambu e na Jacobina, deram de vistas, surpresos, nas paró¬quias que, ali, já centralizavam cabildas. O primeiro daqueles lugares, vinte e duas léguas a montante de Paulo Afonso, desde 1682 se incorporara à administração da metrópole. Um capuchinho dominava-o, desfazendo as dissensões tribais e imperando, humílimo, sobre os morubixabas mansos. No segundo preponderava, igualmente exclusivo, o elemento indígena da velhíssima missão do Saí.
Jeremoabo aparece, já em 1698, como julgado, o que permite admitir-se-lhe origem muito mais remota. Aí o elemento indígena se mesclava ligeiramente com o africano, o canhembora ao quilombola.1 Incomparavelmente mais animado do que hoje, o humilde lugarejo desviava para si, não raro, a atenção de João de Lencastre, governador-geral do Brasil, principalmente quando se exacerbavam as rivalidades dos chefes índios, munidos com as patentes, perfeitamente legais, de capitães. Em 1702 a primeira missão dos franciscanos disciplinou aqueles lugares, tornando-se mais eficaz que as ameaças do governo. Harmonizaram-se as cabildas; e o afluxo de silvícolas captados pela igreja foi tal que em um só dia o vigário de Itapicuru batizou 3.700 catecúmenos.1
Perto se erigia, também vetusta, a missão de Maçacará, onde, em 1687, tinha o opulento Garcia d’Ávila uma companhia de seu regimento.2 Mais para o sul avultavam outras: Natuba, também bastante antiga aldeia, erecta pelos jesuítas, Inhambupe, que no elevar-se a paróquia originou larga controvérsia entre os padres e o rico sesmeiro precitado; Itapicuru (1639), fundada pelos franciscanos.
Mais para o norte, ao começar o século XVIII, o povoamento, com os mesmos elementos, continuou mais intenso, diretamente favorecido pela metrópole.
Na segunda metade do século XVII surgira no sertão de Rodelas a vanguarda das bandeiras do Sul. Domingos Sertão centralizou na sua fazenda do Sobrado o círculo animado da vida sertaneja. A ação desse rude sertanista, naquela região, não tem tido o relevo que merece. Quase na confluência das capitanias setentrionais, próximo ao mesmo tempo do Piauí, do Ceará, de Pernambuco e da Bahia, o rústico landlord colonial aplicou no trato de suas cinqüenta fazendas de criação a índole aventurosa e irrequieta dos curibocas. Ostentando como os outros dominadores do solo um feudalismo achamboado — que o levava a transmudar em vassalos os foreiros humildes e em servos os tapuias mansos — o bandeirante atingindo aquelas paragens, e havendo conseguido o seu ideal de riqueza e poderio, aliava-se na mesma função integradora ao seu tenaz e humilde adversário, o padre. É que a metrópole, no Norte, secundava, sem vacilar, os esforços deste último. Firmara-se desde muito o princípio de combater o índio com o próprio índio, de sorte que cada aldeamento de catecúmenos era um reduto ante as incursões dos silvícolas soltos e indomáveis.
Ao terminar o século XVII, Lencastre fundou com o indígena catequizado o arraial da Barra, para atenuar as depredações do Acaroazes e Mocoazes. E daquele ponto à feição da corrente do São Francisco, sucederam-se os aldeamentos e as missões, em N. S. do Pilar, Sorobabé, Pambu, Aracapá, Pontal, Pajeú, etc. É evidente, pois, que precisamente no trecho dos sertões baianos mais ligado aos dos demais estados do Norte — em toda a orla do sertão de Canudos — se estabeleceu desde o alvorecer na nossa história um farto povoamento, em que sobressaía o aborígine amalgamando-se ao branco e ao negro, sem que estes se avolumassem ao ponto de dirimir a sua influência inegável.
As fundações ulteriores à expulsão dos jesuítas calcaram-se no mesmo método. Do final do século XVIII ao nosso, em Pombal, no Cumbe, em Bom Conselho e Monte Santo, etc., perseverantes missionários, de que é modelo belíssimo Apolônio de Todi, continuaram até aos nossos dias o apostolado penoso.
Ora toda essa população perdida num recanto dos sertões, lá permaneceu até agora, reproduzindo-se livre de elementos estranhos, como que insulada, e realizando, por isso mesmo, a máxima intensidade de cruzamento uniforme capaz de justificar o aparecimento de um tipo mestiço bem definido, completo.
Enquanto mil causas perturbadoras complicavam a mes¬tiçagem no litoral revolvido pelas imigrações e pela guerra; e noutros pontos centrais outros empeços irrompiam no rastro das bandeiras — ali, a população indígena, aliada aos raros mocambeiros foragidos, brancos escapos à justiça ou aventureiros audazes, persistiu dominante.

Causas favoráveis à formação mestiça dos sertões distinguindo-as dos cruzamentos no litoral

Não sofismemos a história. Causas muito enérgicas determinaram o insulamento e conservação da autóctone. Des¬taque¬mo-las.
Foram, primeiro, as grandes concessões de sesmarias, definidoras da feição mais durável do nosso feudalismo tacanho.
Os possuidores do solo, de que são modelos clássicos os herdeiros de Antônio Guedes de Brito, eram ciosos dos dilatados latifúndios, sem raias, avassalando a terra. A custo toleravam a intervenção da própria metrópole. A ereção de capelas, ou paróquias, em suas terras fazia-se sempre através de controvérsias com os padres; e embora estes afinal ganhassem a partida caíam de algum modo sob o domínio dos grandes potentados. Estes dificultavam a entrada de novos povoadores ou concorrentes e tornavam as fazendas de criação, dispersas em torno das freguesias recém-formadas, poderosos centros de atração à raça mestiça que delas promanava.
Assim, esta se desenvolveu fora do influxo de outros elementos. E entregues à vida pastoril, a que por índole se afeiçoa¬vam, os curibocas ou cafusos trigueiros, antecedentes diretos dos vaqueiros atuais, divorciados inteiramente das gentes do Sul e da colonização intensa do litoral, evolveram, adquirindo uma fisionomia original. Como que se criaram num país diverso.
A carta régia de 7 de fevereiro de 1701 foi, depois, uma medida supletiva desse isolamento. Proibira, cominando severas penas aos infratores, quaisquer comunicações daquela parte dos sertões com o Sul, com as minas de S. Paulo. Nem mesmo as relações comerciais foram toleradas; interditas as mais simples trocas de produtos.
Ora, além destes motivos, sobreleva-se, considerando a gênese do sertanejo no extremo norte, um outro; o meio físico dos sertões em todo o vasto território que se alonga do leito do Vaza-Barris ao do Parnaíba, no ocidente. Vimos-lhe a fisionomia original: a flora agressiva, o clima impiedoso, as secas periódicas, o solo estéril crespo de serranias desnudas, insulado entre os esplendores do majestoso araxá1 do centro dos planaltos e as grandes matas, que acompanham e orlam a curvatura das costas. Esta região ingrata para a qual o próprio tupi tinha um termo sugestivo, pora-porai-eima,2 remanescente ainda numa das serranias que a fecham pelo levante (Borborema), foi o asilo do tapuia. Batidos pelo português, pelo negro e pelo tupi coligados, refluindo ante o número, os indômitos cariris encontraram proteção singular naquele colo duro da terra, escalavrado pelas tormentas, endurado pela ossamenta rígida das pedras, ressequido pelas soalheiras, esvurmando espinheiras e caatingas. Ali se amorteciam, caindo no vácuo das chapadas, onde ademais nenhuns indícios se mostravam dos minérios apetecidos, os arremessos das bandeiras. A tapui-retama3 misteriosa ataviara-se para o estoicismo do missionário. As suas veredas multívias e longas retratavam a marcha lenta, torturante e dolorosa dos apóstolos. As bandeiras que a alcançavam, decampavam logo, seguindo, rápidas, fugindo, buscando outras paragens.
Assombrava-as a terra, que se modelara para as grandes batalhas silenciosas da Fé. Deixavam-na, sem que nada lhes determinasse a volta; e deixavam em paz o gentio.
Daí a circunstância revelada por uma observação feliz, de predominarem ainda hoje, nas denominações geográficas daqueles lugares, termos de origem tapuia resistentes às absorções do português e do tupi, que se exercitaram noutros pontos. Sem nos delongarmos demais, resumamos às terras circun¬jacentes a Canudos a exemplificação deste fato de linguagem, que tão bem traduz uma vicissitude histórica.
“Transpondo o S. Francisco em direção ao sul, penetra-se de novo numa região ingrata pela inclemência do céu, e vai-se atravessando a bacia elevada do Vaza-Barris, antes de ganhar os trechos esparsos e mais deprimidos das chapadas baianas que, depois do salto de Paulo Afonso, depois de Canudos e de Monte Santo, levam a Itiúba, ao Tombador e ao Açuruá. Aí, nesse trecho do pátrio território, aliás dos mais ingratos, onde outrora se refugiaram os perseguidos destroços dos Orizes, Procás e Cariris, de novo aparecem, designando os lugares, os nomes bárbaros de procedência tapuia, que nem o português nem o tupi logrou suplantar.
Lêem-se então no mapa da região com a mesma freqüência dos acidentes topográficos os nomes como Pambu, Patamoté, Uauá, Bendegó, Cumbe, Maçacará, Cocorobó, Jeremoabo, Tragagó, Canché, Xorroxó, Quincuncá, Conchó, Centocé, Açuruá, Xiquexique, Jequié, Sincorá, Caculé ou Catolé, Orobó, Mocujé e outros, igualmente bárbaros e estranhos.”1
É natural que grandes populações sertanejas, de par com as que se constituíram no médio S. Francisco, se formassem ali com a dosagem preponderante do sangue tapuia. E lá ficassem ablegadas, evolvendo em círculo apertado durante três séculos, até à nossa idade, num abandono completo, de todo alheias aos nossos destinos, guardando, intactas, as tradições do passado. De sorte que, hoje, quem atravessa aqueles lugares observa uma uniformidade notável entre os que os povoam: feições e estaturas variando ligeiramente em torno de um modelo único, dando a impressão de um tipo antropológico invariável, logo ao primeiro lance de vistas distinto do mestiço proteiforme do litoral. Porque enquanto este patenteia todos os cambiantes da cor e se erige ainda indefinidos, segundo o predomínio variável dos seus agentes formadores, o homem do sertão parece feito por um molde único, revelando quase os mesmos caracteres físicos, a mesma tez, variando brevemente do mamaluco bronzeado ao cafuz trigueiro; cabelo corredio e duro ou levemente ondeado; a mesma envergadura atlética, e os mesmos caracteres morais traduzindo-se nas mesmas superstições, nos mesmos vícios, e nas mesmas virtudes.
A uniformidade, sob estes vários aspectos, é impres¬sionadora. O sertanejo do Norte é, inegavelmente, o tipo de uma subcategoria étnica já constituída.

Um parêntese irritante

Abramos um parêntese...
A mistura de raças mui diversas é, na maioria dos casos, prejudicial. Ante as conclusões do evolucionismo, ainda quando reaja sobre o produto o influxo de uma raça superior, despontam vivíssimos estigmas da inferior. A mestiçagem extremada é um retrocesso. O indo-europeu, o negro e o brasílio- guarani ou o tapuia exprimem estádios evolutivos que se fronteiam, e o cruzamento, sobre obliterar as qualidades preeminentes do primeiro, é um estimulante à revivescência dos atributos primitivos dos últimos. De sorte que o mestiço — traço de união entre as raças, breve existência individual em que se comprimem esforços seculares — é, quase sempre, um desequilibrado. Foville compara-os, de um modo geral, aos histéricos. Mas o desequilíbrio nervoso, em tal caso, é incurável: não há terapêutica para este embater de tendências antagonistas, de raças repentinamente aproximadas, fundidas num organismo isolado. Não se compreende que após divergirem extremamente, através de largos períodos entre os quais a história é um momento, possam dous ou três povos convergir de súbito, combinando constituições mentais diversas, anulando em pouco tempo distinções resultantes de um lento trabalho seletivo. Como nas somas algébricas, as qualidades dos elementos que se justapõem, não se acrescentam, subtraem-se ou destroem-se segundo os caracteres positivos e negativos em presença. E o mestiço — mulato, mameluco ou cafuz — menos que um intermediário, é um decaído, sem a energia física dos ascendentes selvagens, sem a altitude intelectual dos ancestrais superiores. Contrastando com a fecundidade que acaso possua, ele revela casos de hibridez moral extraordinários: espíritos fulgurantes, às vezes, mas frágeis, irrequietos, inconstantes, deslumbrando um momento e extinguindo-se prestes, feridos pela fatalidade das leis biológicas, chumbados ao plano inferior da raça menos favorecida. Impotente para formar qualquer solidariedade entre as gerações opostas, de que resulta, reflete-lhes os vários aspectos predominantes num jogo permanente de antíteses. E quando avulta — não são raros os casos — capaz das grandes generalizações ou de associar as mais complexas relações abstratas, todo esse vigor mental repousa (salvante os casos excepcionais cujo destaque justifica o conceito) sobre uma moralidade rudimentar, em que se pressente o automatismo impulsivo das raças inferiores.
É que nessa concorrência admirável dos povos, evolvendo todos em luta sem tréguas, na qual a seleção capitaliza atributos que a hereditariedade conserva, o mestiço é um intruso. Não lutou; não é uma integração de esforços; é alguma cousa de dispersivo e dissolvente; surge, de repente, sem caracteres próprios, oscilando entre influxos opostos de legados discordes. A tendência à regressão às raças matrizes caracteriza a sua instabilidade. É a tendência instintiva a uma situação de equilíbrio. As leis naturais pelo próprio jogo parecem extinguir, a pouco e pouco, o produto anômalo que as viola, afogando-o nas próprias fontes geradoras. O mulato despreza então, irresistivelmente, o negro e procura com uma tenacidade ansiosíssima cruzamentos que apaguem na sua prole o estigma da fronte escurecida; o mamaluco faz-se o bandeirante inexorável, precipitando-se, ferozmente, sobre as cabildas aterradas...
Esta tendência é expressiva. Reata, de algum modo, a série contínua da evolução, que a mestiçagem partira. A raça supe¬rior torna-se o objetivo remoto para onde tendem os mestiços deprimidos e estes, procurando-a, obedecem ao próprio instinto da conservação e da defesa. É que são invioláveis as leis do desenvolvimento das espécies; e se toda a sutileza dos missionários tem sido impotente para afeiçoar o espírito do selvagem às mais simples concepções de um estado mental superior; se não há esforços que consigam do africano, entregue à solicitude dos melhores mestres, o aproximar-se sequer do nível intelectual médio do indo-europeu — porque todo o homem é antes de tudo uma integração de esforços da raça a que pertence e o seu cérebro uma herança, — como compreender-se a normalidade do tipo antropológico que aparece, de improviso, enfeixando tendências tão opostas?

Uma raça forte

Entretanto a observação cuidadosa do sertanejo do Norte mostra atenuado esse antagonismo de tendências e uma quase fixidez nos caracteres fisiológicos do tipo emergente.
Este fato, que contrabate, ao parecer, as linhas anteriores, é a sua contraprova frisante.
Com efeito, é inegável que para a feição anormal dos mestiços de raças mui diversas contribui bastante o fato de acarretar o elemento étnico mais elevado mais elevadas condições de vida, de onde decorre a acomodação penosa e difícil para aqueles. E desde que desça sobre eles a sobrecarga intelectual e moral de uma civilização, o desequilíbrio é inevitável.
A índole incoerente, desigual e revolta do mestiço, como que denota um íntimo e intenso esforço de eliminação dos atributos que lhe impedem a vida num meio mais adiantado e complexo. Reflete — em círculo diminuto — esse combate surdo e formidável, que é a própria luta pela vida das raças, luta comovedora e eterna caracterizada pelo belo axioma de Gumplowicz como a força motriz da história. O grande professor de Gratz não a considerou sob este aspecto. A verdade, porém, é que se todo o elemento étnico forte “tende subordinar ao seu destino o elemento mais fraco ante o qual se acha”, encontra na mestiçagem um caso perturbador. A expansão irresistível do seu círculo singenético, porém, por tal forma iludida, retarda-se apenas. Não se extingue. A luta transmuda-se, tornando-se mais grave. Volve do caso vulgar, do extermínio franco da raça inferior pela guerra, à sua eliminação lenta, à sua absorção vagarosa, à sua diluição no cruzamento. E durante o curso deste processo redutor, os mestiços emergentes, variáveis, com todas as mudanças da cor, da forma e do caráter, sem feições definidas, sem vigor, e as mais das vezes inviáveis, nada mais são, em última análise, do que os mutilados inevitáveis do conflito que perdura, imperceptível, pelo correr das idades.
É que neste caso a raça forte não destrói a fraca pelas armas, esmaga-a pela civilização.
Ora os nossos rudes patrícios dos sertões do Norte forraram-se a esta última. O abandono em que jazeram teve função benéfica. Libertou-os da adaptação penosíssima a um estádio social superior, e, simultaneamente, evitou que descambassem para as aberrações e vícios os meios adiantados.
A fusão entre eles operou-se em circunstâncias mais compatíveis com os elementos inferiores. O fator étnico preeminente transmitindo-lhes as tendências civilizadoras não lhes impôs a civilização.
Este fato destaca fundamentalmente a mestiçagem dos sertões da do litoral. São formações distintas, senão pelos elementos, pelas condições do meio. O contraste entre ambas ressalta ao paralelo mais simples. O sertanejo tomando em larga escala, do selvagem, a intimidade com o meio físico, que ao invés de deprimir enrija o seu organismo potente, reflete, na índole e nos costumes, das outras raças formadoras apenas aqueles atributos mais ajustáveis à sua fase social incipiente.
É um retrógrado; não é um degenerado. Por isto mesmo que as vicissitudes históricas o libertaram, na fase delica¬díssima da sua formação, das exigências desproporcionadas de uma cultura de empréstimo, prepararam-no para a conquistar um dia.
A sua evolução psíquica, por mais demorada que esteja destinada a ser, tem, agora, a garantia de um tipo fisicamente constituído e forte. Aquela raça cruzada surge autônoma e, de algum modo, original, transfigurando, pela própria combinação, todos os atributos herdados; de sorte que, despeada afinal da existência selvagem, pode alcançar a vida civilizada por isto mesmo que não a atingiu de repente.
Aparece logicamente.
Ao invés da inversão extravagante que se observa nas cidades do litoral, onde funções altamente complexas se impõem a órgãos mal constituídos, comprimindo-os e atrofiando-os antes do pleno desenvolvimento — nos sertões a integridade orgânica do mestiço desponta inteiriça e robusta, imune de estranhas mesclas, capaz de evolver, diferenciando-se, acomodando-se a novos e mais altos destinos, porque é a sólida base física do desenvolvimento moral ulterior.

Deixemos, porém, este divagar pouco atraente.
Prossigamos considerando diretamente a figura original dos nossos patrícios retardatários. Isto sem método, despretensiosamente, evitando os garbosos neologismos etnológicos.
Faltaram-nos, do mesmo passo, tempo e competência para nos enredarmos em fantasias psíquico-geométricas, que hoje se exageram num quase materialismo filosófico, medindo o ângulo facial, ou traçando a norma verticalis dos jagunços.
Se nos embaraçássemos nas imaginosas linhas dessa espécie de topografia psíquica, de que tanto se tem abusado, talvez não os compreendêssemos melhor. Sejamos simples copistas.
Reproduzamos, intactas, todas as impressões, verdadeiras ou ilusórias, que tivemos quando, de repente, acompanhando a celeridade de uma marcha militar, demos de frente, numa volta do sertão, com aqueles desconhecidos singulares, que ali estão — abandonados — há três séculos.

III

O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral.
A sua aparência, entretanto, ao primeiro lance de vista, revela o contrário. Falta-lhe a plástica impecável, o desempeno, a estrutura corretíssima das organizações atléticas.
É desgracioso, desengonçado, torto. Hércules-Quasímodo, reflete no aspecto a fealdade típica dos fracos. O andar sem firmeza, sem aprumo, quase gigante e sinuoso, aparenta a translação de membros desarticulados. Agrava-o a postura normalmente abatida, num manifestar de displicência que lhe dá um caráter de humildade deprimente. A pé, quando parado, recosta-se invariavelmente ao primeiro umbral ou parede que encontra; a cavalo, se sofreia o animal para trocar duas palavras com um conhecido, cai logo sobre um dos estribos, descansando sobre a espenda da sela. Caminhando, mesmo a passo rápido, não traça trajetória retilínea e firme. Avança celeremente, num bambolear característico, de que parecem ser o traço geométrico os meandros das trilhas sertanejas. E se na marcha estaca pelo motivo mais vulgar, para enrolar um cigarro, bater o isqueiro, ou travar ligeiramente conversa com um amigo, cai logo — cai é o termo — de cócoras, atravessando largo tempo numa posição de equilíbrio instável, em que todo o seu corpo fica suspenso pelos dedos grandes dos pés, sentado sobre os calcanhares, com uma simplicidade a um tempo ridícula e adorável.
É o homem permanentemente fatigado.
Reflete a preguiça invencível, a atonia muscular perene, em tudo: na palavra remorada, no gesto contrafeito, no andar desaprumado, na cadência langorosa das modinhas, na tendência constante à imobilidade e à quietude.
Entretanto, toda esta aparência de cansaço ilude.
Nada é mais surpreendedor do que vê-lo desaparecer de improviso. Naquela organização combalida operam-se, em segundos, transmutações completas. Basta o aparecimento de qualquer incidente exigindo-lhe o desencadear das energias ador- mecidas. O homem transfigura-se. Empertiga-se, estadeando novos relevos, novas linhas na estatura e no gesto; e a cabeça firma-se-lhe, alta, sobre os ombros possantes, aclarada pelo olhar desassombrado e forte; e corrigem-se-lhe, prestes, numa descarga nervosa instantânea, todos os efeitos do relaxamento habitual dos órgãos; e da figura vulgar do tabaréu canhestro, reponta, inesperadamente, o aspecto dominador de um titã acobreado e potente, num desdobramento surpreendente de força e agilidade extraordinárias.
Este contraste impõe-se ao mais leve exame. Revela-se a todo o momento, em todos os pormenores da vida sertaneja — caracterizado sempre pela intercadência impressionadora entre extremos impulsos e apatias longas.
É impossível idear-se cavaleiro mais chucro e deselegante; sem posição, pernas coladas ao bojo da montaria, tronco pendido para a frente e oscilando à feição da andadura dos pequenos cavalos do sertão, desferrados e maltratados, resistentes e rápidos como poucos. Nesta atitude indolente, acompanhando morosamente, a passo, pelas chapadas, o passo tardo das boiadas, o vaqueiro preguiçoso quase transforma o campeão que cavalga na rede amolecedora em que atravessa dous terços da existência.
Mas se uma rês alevantada envereda, esquiva, adiante, pela caatinga garranchenta, ou se uma ponta de gado, ao longe, se trasmalha, ei-lo em momentos transformado, cravando os acicates de rosetas largas nas ilhargas da montaria e partindo como um dardo, atufando-se velozmente nos dédalos inextricáveis das juremas.
Vimo-lo neste steeple chase bárbaro.
Não há contê-lo, então, no ímpeto. Que se lhe antolhem quebradas, acervos de pedras, coivaras, moitas de espinhos ou barrancas de ribeirões, nada lhe impede encalçar o garrote desgarrado, porque por onde passa o boi passa o vaqueiro com o seu cavalo...
Colado ao dorso deste, confundindo-se com ele, graças à pressão dos jarretes firmes, realiza a criação bizarra de um centauro bronco: emergindo inopinadamente nas clareiras; mergulhando nas macegas altas; saltando valos e ipueiras; vingando cômoros alçados; rompendo, célere, pelos espinheirais mordentes; precipitando-se, a toda brida, no largo dos tabu¬leiros...
A sua compleição robusta ostenta-se, nesse momento, em toda a plenitude. Como que é o cavaleiro robusto que empresta vigor ao cavalo pequenino e frágil, sustendo-o nas rédeas improvisadas de caroá, suspendendo-o nas esporas, arrojando-o na carreira — estribando curto, pernas encolhidas, joelhos fincados para a frente, torso colado no arção, — escanchado no rastro do novilho esquivo: aqui curvando-se agilíssimo, sob um ramalho, que lhe roça quase pela sela; além desmontando, de repente, como um acrobata, agarrado às crinas do animal, para fugir ao embate de um tronco percebido no último momento e galgando, logo depois, num pulo, o selim; — e galopando sempre, através de todos os obstáculos, sopesando à destra sem a perder nunca, sem a deixar no inextricável dos cipoais, a longa aguilhada de ponta de ferro encastoado em couro, que por si só constituiria, noutras mãos, sérios obstáculos à travessia...
Mas terminada a refrega, restituída ao rebanho a rês dominada, ei-lo, de novo caído sobre o lombilho retovado, outra vez desgracioso e inerte, oscilando à feição da andadura lenta, com a aparência triste de um inválido esmorecido.

Tipos díspares: o jagunço e o gaúcho

O gaúcho do Sul, ao encontrá-lo nesse instante, sobreolhá-lo-ia comiserado.
O vaqueiro do Norte é a sua antítese. Na postura, no gesto, na palavra, na índole e nos hábitos não há equipará-lo. O primeiro, filho dos plainos sem fins, afeito às correrias fáceis nos pampas e adaptado a uma natureza carinhosa que o encanta, tem, certo, feição mais cavalheirosa e atraente. A luta pela vida não lhe assume o caráter selvagem da dos sertões do Norte. Não conhece os horrores da seca e os combates cruentos com a terra árida e exsicada. Não o entristecem as cenas periódicas da devastação e da miséria, o quadro assombrador da absoluta pobreza do solo calcinado, exaurido pela adustão dos sóis bravios do equador. Não tem, no meio das horas tranqüilas da felicidade, a preocupação do futuro, que é sempre uma ameaça, tornando aquela instável e fugitiva. Desperta para a vida amando a natureza deslumbrante que o aviventa; e passa pela vida, aventureiro, jovial, diserto, valente e fanfarrão, despreocupado, tendo o trabalho como uma diversão que lhe permite as disparadas, domando distâncias, nas pastagens planas, tendo aos ombros, palpitando aos ventos, o pala inseparável, como uma flâmula festivamente desdobrada.
As suas vestes são um traje de festa, ante a vestimenta rústica do vaqueiro. As amplas bombachas, adrede talhadas para a movimentação fácil sobre os baguais, no galope fechado ou no corcovear raivoso, não se estragam em espinhos dilace¬radores de caatingas. O seu poncho vistoso jamais fica perdido, embaraçado nos esgalhos das árvores garranchentas. E, rompendo pelas coxilhas, arrebatadamente na marcha do redomão desensofrido, calçando as largas botas russilhonas, em que retinem as rosetas das esporas de prata; lenço de seda, encarnado, ao pescoço; coberto pelo sombreiro de enormes abas flexíveis e tendo à cinta, rebrilhando, presas pela guaiaca, a pistola e a faca — é um vitorioso jovial e forte. O cavalo, sócio inseparável desta existência algo romanesca, é quase objeto de luxo. Demonstra-o o arreamento complicado e espe¬taculoso. O gaúcho andrajoso sobre um pingo bem aperado, está decente, está corretíssimo. Pode atravessar sem vexames os vilarejos em festa.

O vaqueiro

O vaqueiro, porém, criou-se em condições opostas, em uma intermitência, raro, perturbada, de horas felizes e horas cruéis, de abastança e misérias — tendo sobre a cabeça, como ameaça perene, o Sol, arrastando de envolta no volver das estações períodos sucessivos de desvastações e desgraças.
Atravessou a mocidade numa intercadência de catástrofes. Fez-se homem, quase sem ter sido criança. Salteou-o, logo, intercalando-lhe agruras nas horas festivas da infância, o espantalho das secas no sertão. Cedo encarou a existência pela sua face tormentosa. É um condenado à vida. Compreendeu-se envolvido em combate sem tréguas, exigindo-lhe imperiosamente a convergência de todas as energias.
Fez-se forte, esperto, resignado e prático.
Aprestou-se, cedo, para a luta.
O seu aspecto recorda, vagamente, à primeira vista, o de guerreiro antigo exausto da refrega. As vestes são uma armadura. Envolto no gibão de couro curtido, de bode ou de vaqueta; apertado no colete também de couro; calçando as perneiras, de couro curtido ainda, muito justas, cosidas às pernas e subindo até as virilhas, articuladas em joelheiras de sola; e resguardados os pés e as mãos pelas luvas e guarda-pés de pele de veado — é como a forma grosseira de um campeador medieval desgarrado em nosso tempo.
Esta armadura, porém, de um vermelho pardo, como se fosse de bronze flexível, não tem cintilações, não rebrilha ferida pelo Sol. É fosca e poenta. Envolve ao combatente de uma batalha sem vitórias...
A sela da montaria, feita por ele mesmo, imita o lombilho rio-grandense, mas é mais curta e cavada, sem os apetrechos luxuosos daquele. São acessórios uma manta de pele de bode, um couro resistente, cobrindo as ancas do animal, peitorais que lhe resguardam o peito, e as joelheiras apresilhadas às juntas.
Este equipamento do homem e do cavalo talha-se à feição do meio. Vestidos doutro modo não romperiam, incólumes, as caatingas e os pedregais cortantes.
Nada mais monótono e feio, entretanto, do que esta ves¬timenta original, de uma só cor — o pardo avermelhado do couro curtido — sem uma variante, sem uma lista sequer diversamente colorida. Apenas, de longe em longe, nas raras encamisadas, em que aos descantes da viola o matuto deslembra as horas fatigadas, surge uma novidade — um colete vistoso de pele de gato do mato ou de suçuarana com o pêlo mosqueado virado para fora, ou uma bromélia rubra e álacre fincada no chapéu de couro.
Isto, porém, é incidente passageiro e raro.
Extintas as horas do folguedo, o sertanejo perde o desgarre folgazão — largamente expandido nos sapateados, em que o estalo seco das alpercatas sobre o chão se parte nos tinidos das esporas e soalhas dos pandeiros, acompanhando a cadência das violas vibrando nos rasgados — e cai na postura habitual, tosco, deselegante e anguloso, num estranho manifestar de desnervamento e cansaço extraordinários.
Ora, nada mais explicável do que este permanente contraste entre extremas manifestações de força e agilidade e longos intervalos de apatia.
Perfeita tradução moral dos agentes físicos da sua terra, o sertanejo do Norte teve uma árdua aprendizagem de re¬veses. Afez-se, cedo, a encontrá-los, de chofre, e a reagir, de pronto.
Atravessa a vida entre ciladas, surpresas repentinas de uma natureza incompreensível, e não perde um minuto de tréguas. É o batalhador perenemente combalido e exausto, perenemente audacioso e forte; preparando-se sempre para um recontro que não vence e em que se não deixa vencer; passando da máxima quietude à máxima agitação; da rede preguiçosa e cômoda para o lombilho duro, que o arrebata, como um raio, pelos arras¬tadores estreitos, em busca das malhadas. Reflete, nestas aparências que se contrabatem, a própria natureza que o rodeia — passiva ante o jogo dos elementos e passando, sem transição sensível, de uma estação à outra, da maior exuberância à penúria dos desertos incendidos, sob o reverberar dos estios abrasantes.
É inconstante como ela. É natural que o seja. Viver é adaptar-se. Ela o talhou à sua imagem: bárbaro, impetuoso, abrupto...

O gaúcho

O gaúcho, o pealador valente, é certo, inimitável numa carga guerreira; precipitando-se, ao ressoar estrídulo dos clarins vibrantes, pelos pampas, como o conto da lança enristada, firme no estribo; atufando-se loucamente nos entreveros; desaparecendo, com um grito triunfal, na voragem do combate, onde espadanam cintilações de espadas; transmudando o cavalo em projétil e varando quadrados e levando de rojo o adversário no rompão das ferraduras, ou tombando, preste, na luta, em que entra com despreocupação soberana pela vida.

O jagunço

O jagunço é menos teatralmente heróico; é mais tenaz; é mais resistente; é mais perigoso; é mais forte; é mais duro.
Raro assume esta feição romanesca e gloriosa. Procura o adversário com o propósito firme de o destruir, seja como for.
Está afeiçoado aos prélios obscuros e longos, sem expansões entusiásticas. A sua vida é uma conquista arduamente feita, em faina diuturna. Guarda-a como capital precioso. Não esperdiça a mais ligeira contração muscular, a mais leve vibração nervosa sem a certeza do resultado. Calcula friamente o pugilato. Ao riscar da faca não dá um golpe em falso. Ao apontar a lazarina longa ou o trabuco pesado, dorme na pontaria...
Se ineficaz o arremesso fulminante, o contrário enterreirado não baqueia, o gaúcho, vencido ou pulseado, é fragílimo nas aperturas de uma situação inferior ou indecisa.
O jagunço, não. Recua. Mas no recuar é mais temeroso ainda. É um negacear demoníaco. O adversário tem, daquela hora em diante, visando-o pelo cano da espingarda, um ódio inextinguível, oculto no sombreado das tocaias...

Os vaqueiros

Esta oposição de caracteres acentua-se nas quadras normais.
Assim todo sertanejo é vaqueiro. À parte a agricultura rudimentar das plantações da vazante pela beira dos rios, para a aquisição de cereais de primeira necessidade, a criação de gado é, ali, a sorte de trabalho menos impropriada ao homem e à terra.
Entretanto não há vislumbrar nas fazendas do sertão a azáfama festiva das estâncias do Sul.
Parar o rodeio é para o gaúcho uma festa diária, de que as cavalhadas espetaculosas são ampliação apenas. No âmbito estreito das mangueiras ou em pleno campo, ajuntando o gado costeado ou encalçando os bois esquivos, pelas sangas e banhados, os pealadores, capatazes e peões, preando à ilhapa dos laços o potro bravio, ou fazendo tombar, fulminando pelas bolas silvantes, o touro alçado, nas evoluções rápidas das carreiras, como se tirassem argolinhas, seguem no alarido e na alacridade de uma diversão tumultuosa. Nos trabalhos mais calmos, quando nos rodeios marcam o gado, curam-lhe as feridas, apartam os que se destinam às charqueadas, separam os novilhos tambeiros ou escolhem os baguais condenados às chilenas do domador, — o mesmo fogo que encandesce as marcas dá as brasas para os ágapes rudes de assados com couro ou ferve a água para o chimarrão amargo.
Decorre-lhes a vida variada e farta.

Servidão inconsciente

O mesmo não acontece ao Norte. Ao contrário do estancieiro, o fazendeiro dos sertões vive no litoral, longe dos dilatados domínios que nunca viu, às vezes. Herdaram velho vício histórico. Como os opulentos sesmeiros da colônia, usufruem, parasitariamente, as rendas das suas terras, sem divisas fixas. Os vaqueiros são-lhes servos submissos.
Graças a um contrato pelo qual percebem certa percentagem dos produtos, ali ficam, anônimos — nascendo, vivendo e morrendo na mesma quadra de terra — perdidos nos arras¬tadores e mocambos; e cuidando, a vida inteira, fielmente, dos rebanhos que lhes não pertencem.
O verdadeiro dono, ausente, conhece-lhes a fidelidade sem par. Não os fiscaliza. Sabe-lhes, quando muito, os nomes.
Envoltos, então, no traje característico, os sertanejos encourados erguem a choupana de pau-a-pique à borda das cacimbas, rapidamente, como se armassem tendas; e entregam-se, abnegados, à servidão que não avaliam.
A primeira cousa que fazem, é aprender o a b c e, afinal, toda a exigência da arte em que são eméritos: conhecer os ferros das suas fazendas e os das circunvizinhas. Chamam-se assim os sinais de todos os feitios, ou letras, ou desenhos caprichosos como siglas, impressas, por tatuagem a fogo nas ancas do animal, completados pelos cortes, em pequenos ângulos, nas orelhas. Ferrado o boi, está garantido. Pode romper tranqueiras e tresmalhar-se. Leva, indelével, a indicação que o reporá na solta1 primitiva. Porque o vaqueiro, não se contentando com ter de cor os ferros de sua fazenda, aprende os das demais. Chega, às vezes, por extraordinário esforço de memória a conhecer, uma por uma, não só as reses de que cuida, como as dos vizinhos, incluindo-lhes a genealogia e hábitos característicos, e os nomes, e as idades, etc. Deste modo, quando surge no seu logrador um animal alheio, cuja marca conhece, o restitui de pronto. No caso contrário, conserva o intruso, tratando-o como aos demais. Mas não o leva à feira anual, nem o aplica em trabalho algum; deixa-o morrer de velho. Não lhe pertence.
Se é uma vaca e dá cria, ferra a esta com o mesmo sinal desconhecido, que reproduz com perfeição admirável; e assim pratica com toda a descendência daquela. De quatro em quatro bezerros, porém, separa um para si. É a sua paga. Estabelece com o patrão desconhecido o mesmo convênio que tem com o outro. E cumpre estritamente, sem juízes e sem testemunhas, o estranho contrato, que ninguém escreveu ou sugeriu.
Sucede muitas vezes ser decifrada, afinal, uma marca somente depois de muitos anos e o criador feliz receber, ao invés de peça única que lhe fugira e da qual se deslembrara, numa ponta de gado, todos os produtos dela.
Parece fantasia este fato, vulgar, entretanto, nos sertões.
Indicamo-lo como traço encantador da probidade dos matutos. Os grandes proprietários da terra e dos rebanhos a conhecem. Têm, todos, com o vaqueiro o mesmo trato de parceria resumido na cláusula única de lhe darem em troca dos cuidados que ele despende, um quarto dos produtos da fazenda. E sabem que nunca se violará a percentagem.
O ajuste de contas faz-se no fim do inverno e realiza-se, ordinariamente, sem que esteja presente a parte mais interessada. É formalidade dispensável. O vaqueiro separa escrupulosamente a grande maioria de novas cabeças pertencentes ao patrão (nas quais imprime o sinal da fazenda) das poucas, um quarto, que lhe couberam por sorte. Grava nestas o seu sinal particular; e conserva-as ou vende-as. Escreve ao patrão,1 dando-lhe conta minuciosa de todo o movimento do sítio, alongando-se aos mínimos pormenores; e continua na faina ininterrupta.

A vaquejada

Esta, ainda que, em dadas ocasiões, fatigante, é a mais rudimentar possível. Não existe no Norte uma indústria pastoril. O gado vive e multiplica-se à gandaia. Ferrados em junho, os garrotes novos perdem-se nas caatingas, com o resto das malhadas. Ali os rareiam epizootias intensas, em que se sobrelevam o rengue e o mal triste. Os vaqueiros mal procuram atenuá-las. Restringem a atividade às corridas desabaladas pelos arras¬tadores. Se a bicheira devasta a tropa, sabem de específico mais eficaz que o mercúrio: a reza. Não precisam de ver o animal doente. Voltam-se apenas na direção em que ele se acha e rezam, tracejando no chão inextricáveis linhas cabalísticas. Ou então, o que é ainda mais transcendente, curam-no pelo rastro.
E assim passam numa agitação estéril.
Raro, um incidente, uma variante alegre, quebra a sua vida monótona.
Solidários todos, auxiliam-se incondicionalmente em todas as conjunturas. Se foge a algum um boi levantadiço, toma da guiada,1 põe pernas ao campeão, e ei-lo escanchado no rastro, jogado pelas veredas tiradas a facão. Se não pode levar avante a empresa, pede campo, frase característica daquela cavalaria rústica, aos companheiros mais vizinhos, e lá seguem todos, aos dez, aos vinte, rápidos, ruidosos, amigos — campeando, voando pelos tombadores e esquadrinhando as caatingas até que o bruto, desautorizado, dê a venta no termo da corrida, ou tombe, de rijo, mancornado às mãos possantes que se lhe aferram aos chifres.
Esta solidariedade de esforços evidencia-se melhor na vaquejada, trabalho consistindo essencialmente no reunir, e discriminar depois, os gados de diferentes fazendas convizinhas, que por ali vivem em comum, de mistura em um compáscuo único e enorme, sem cercas e sem valos.
Realizam-na de junho a julho.
Escolhido um lugar mais ou menos central, as mais das vezes uma várzea complanada e limpa, o rodeador, congrega-se a vaqueirama das vizinhanças. Concertam nos dispositivos da empresa. Distribuem-se as funções que a cada um caberão na lide. E para logo, irradiantes pela superfície da arena, arremetem com as caatingas que a envolvem os encou¬rados atléticos.
O quadro tem a movimentação selvagem e assombrosa de uma corrida de tártaros.
Desaparecem em minutos os sertanejos, perdendo-se no matagal circundante. O rodeio permanece por algum tempo deserto...
De repente estruge ao lado um estrídulo tropel de cascos sobre pedras, um estrépito de galhos estalando, um estalar de chifres embatendo; tufa nos ares, em novelos, uma nuvem de pó; rompe, a súbitas, na clareira, embolada, uma ponta de gado; e, logo após, sobre o cavalo que estava esbarrado, o vaqueiro, teso nos estribos...
Traz apenas exígua parte do rebanho. Entrega-a aos companheiros que ali ficam, de esteira; e volve em galope desabalado, renovando a pesquisa. Enquanto outros repontam, além, mais outros, sucessivamente, por toda a banda, por todo o âmbito do rodeio, que se anima, e tumultua em disparos: bois às marradas ou escarvando o chão, cavalos curveteando, confundidos e embaralhados sobre os plainos vibrantes num prolongado rumor de terremoto. Aos lados, na caatinga, os menos felizes se agitam às voltas com os marruás recalcitrantes. O touro largado ou o garrote vadio em geral refoge à revista. Afunda na caatinga. Segue-o vaqueiro. Cose-lhe no rastro. Vai com ele às últimas bibocas. Não o larga; até que surja o ensejo para um ato decisivo: alcançar repentinamente o fugitivo, de arranco; cair logo para o lado da sela, suspenso num estribo e uma das mãos presa às crinas do cavalo; agarrar com a outra a cauda do boi em disparada e com um repelão fortíssimo, de banda, derribá-lo pesadamente em terra. Põe-lhe depois a peia ou a máscara de couro, levando-o jugulado ou vendado para o rodeador.
Ali o recebem ruidosamente os companheiros. Conta-lhes a façanha. Contam-lhe outras idênticas; e trocam-se as impressões heróicas numa adjetivação ad hoc, que vai num crescendo do destalado ríspido ao temero pronunciado num trêmulo enrouquecido e longo.
Depois, ao findar do dia, a última tarefa: contam as cabeças reunidas. Apartam-nas. Separam-se, seguindo cada uma para sua fazenda tangendo por diante as reses respectivas. E pelos ermos ecoam melancolicamente as notas do aboiado...1
Entretanto, mesmo ao cabo desta faina penosa, surgem outras maiores.

A arribada

Segue a boiada vagarosamente, à cadência daquele canto triste e preguiçoso. Escanchado, desgraciosamente, na sela, o vaqueiro, que a revê unida e acrescida de novas crias, rumina os lucros prováveis: o que toca ao patrão, e o que lhe toca a ele, pelo trato feito. Vai dali mesmo contando as peças destinadas à feira; considera, aqui, um velho boi que ele conhece há dez anos e nunca levou à feira, mercê de uma amizade antiga; além um mumbica claudicante, em cujo flanco se enterra estrepe agudo, que é preciso arrancar; mais longe, mascarado, cabeça alta e desafiadora, seguindo apenas guiado pela compressão dos outros, o garrote bravo, que subjugou, pegando-o, de saia, de derrubando-o, na caatinga; acolá, soberbo, caminhando folgado, porque os demais o respeitam, abrindo-lhe em roda um claro, largo pescoço, envergadura de búfalo, o touro vigoroso, inveja de toda a redondeza, cujas armas rígidas e curtas relembram, estaladas, rombas e cheias de terra, guampaços formidáveis, em luta com os rivais possantes, nos logradouros; além, para toda a banda, outras peças, conhecidas todas, revivendo-lhe todas, uma a uma, um incidente, um pormenor qualquer da sua existência primitiva e simples.
E prosseguem, em ordem, lentos, ao toar merencório da cantiga, que parece acalentá-los, embalando-os com o refrão monótono:

Ê cou mansão...
Ê cou... ê cão!

ecoando saudoso nos descampados mudos...

Estouro de boiada

De súbito, porém, ondula um frêmito sulcando, num estre¬meção repentino, aqueles centenares de dorsos luzidios. Há uma parada instantânea. Entrebatem-se, enredam-se, traçam-se e alteiam-se fisgando vivamente o espaço, e inclinam-se, e em¬baralham-se milhares de chifres. Vibra uma trepidação no solo; e a boiada estoura...1
A boiada arranca.
Nada explica, às vezes, o acontecimento, aliás vulgar, que é o desespero dos campeiros.
Origina-o o incidente mais trivial — o súbito vôo rasteiro de uma araquã ou a corrida de um mocó esquivo. Uma rês se espanta e o contágio, uma descarga nervosa subitânea, transfunde o espanto sobre o rebanho inteiro. É um solavanco único, assombroso, atirando, de pancada, por diante, revoltos, misturando-se embolados, em vertiginosos disparos, aqueles maciços corpos tão normalmente tardos e morosos.
E lá se vão: não há mais contê-los ou alcançá-los. Acamam-se as caatingas, árvores dobradas, partidas, estalando em lascas e gravetos; desbordam de repente as baixadas num marulho de chifres; estrepitam, britando e esfarelando as pedras, torrentes de cascos pelos tombadores; rola surdamente pelos tabuleiros ruído soturno e longo de trovão longínquo...
Destroem-se em minutos, feito montes de leivas, antigas roças penosamente cultivadas; extinguem-se, em lameiros revolvidos, as ipueiras rasas; abatem-se, apisoados, os pousos; ou esvaziam-se, deixando-os os habitantes espavoridos, fugindo para os lados, evitando o rumo retilíneo em que se despenha a “arribada”, — milhares de corpos que são um corpo único, monstruoso, informe, indescritível, de animal fantástico, precipitado na carreira douda. E sobre este tumulto, arrodeando-o, ou arremessando-se impetuoso na esteira de destroços, que deixa após si aquela avalanche viva, largado numa disparada estupenda sobre barrancas, e valos, e cerros, e galhadas — enristado o ferrão, rédeas soltas, soltos os estribos, estirado sobre o lombilho, preso às crinas do cavalo — o vaqueiro!
Já se lhe têm associado, em caminho, os companheiros, que escutaram, de longe, o estouro da boiada. Renova-se a lida: novos esforços, novos arremessos, novas façanhas, novos riscos e novos perigos, a despender, a atravessar e a vencer, até que o boiadão, não já pelo trabalho dos que o encalçam e rebatem pelos flancos senão pelo cansaço, a pouco e pouco afrouxe e estaque, inteiramente abombado.
Reaviam-no à vereda da fazenda; e ressoam, de novo, pelos ermos, entristecedoramente, as notas melancólicas do aboiado.

Tradições

Volvem os vaqueiros ao pouso e ali, nas redes bamboantes, relatando as peripécias da vaquejada ou famosas aventuras de feira, passam as horas matando, na significação completa do termo, o tempo, e desalterando-se com a umbuzada sabo¬rosíssima, ou merendando a iguaria incomparável de jerimum com leite.
Se a quadra é propícia, e vão bem as plantações da vazante, e viça o panasco e o mimoso nas soltas dilatadas, e nada revela o aparecimento da seca, refinam a ociosidade nos braços da preguiça benfazeja. Seguem para as vilas se por lá se fazem festas de cavalhadas e mouramas, divertimentos anacrônicos que os povoados sertanejos reproduzem, intactos, com os mesmos programas de há três séculos. E entre eles a exótica encamisada, que é o mais curioso exemplo do aferro às mais remotas tradições. Velhíssima cópia das vetustas quadras dos fossados ou arrancadas noturnas, na Península, contra os castelos árabes, e de todo esquecida na terra onde nasceu, onde a sua mesma significação é hoje inusitado arcaísmo,1 esta diversão dispendiosa e interessante, feita à luz de lanternas e archotes, com os seus longos cortejos de homens a pé, vestidos de branco, ou à maneira de muçulmanos, e outros a cavalo em animais estranhamente ajaezados, desfilando rápidos, em escaramuças e simulados recontros, é o encanto máximo dos matutos folgazãos.

Danças

Nem todos, porém, a compartem. Baldos de recursos para se alongarem das rancharias, agitam-se, então, nos folguedos costumeiros. Encourados de novo, seguem para os sambas e cateretês ruidosos, os solteiros, famanazes no desafio, sobraçando os machetes, que vibram no choradinho ou baião, e os casados levando toda a obrigação, a família. Nas choupanas em festas recebem-se os convivas com estrepitosas salvas de rouqueiras e como em geral não há espaço para tantos, arma-se fora, no terreiro varrido, revestido de ramagens, mobiliado de cepos, e troncos, e raros tamboretes, mais imenso, alumiado pelo luar e pelas estrelas, o salão do baile. Despontam o dia com uns largos tragos de aguardente, a teimosa. E rompem estridulamente os sapateados vivos.
Um cabra destalado ralha na viola. Serenam, em vagarosos meneios, as cablocas bonitas. Revoluteia, “brabo e corado”, o sertanejo moço.

Desafios

Nos intervalos travam-se os desafios.
Enterreiram-se, adversários, dous cantores rudes. As rimas saltam e casam-se em quadras muita vez belíssimas.1

Nas horas de Deus, amém,
Não é zombaria, não!
Desafio o mundo inteiro
Pra cantar nesta função!

O adversário retruca logo, levantando-lhe o último verso da quadra:

Pra cantar nesta função,
Amigo, meu camarada,
Aceita teu desafio
O fama deste sertão!

É o começo da luta que só termina quando um dos bardos se engasga numa rima difícil e titubeia, repinicando nervosamente o machete, sob uma avalanche de risos saudando-lhe a derrota. E a noite vai deslizando rápida no folguedo que se generaliza, até que as barras venham quebrando e cantem as sericóias nas ipueiras, dando o sinal de debandar ao agrupamento folgazão.
Terminada a festa volvem os vaqueiros à tarefa rude ou à rede preguiçosa.
Alguns, de ano em ano, arrancam dos pousos tranqüilos para remotas paragens. Transpõem o S. Francisco; mergulham nos gerais enormes do ocidente, vastos planaltos indefinidos em que se confundem as bacias daquele e do Tocantins em alagados de onde partem os rios indiferentemente para o levante e para o poente, e penetram em Goiás, ou, avantajando-se mais para o norte, as serras do Piauí.
Vão à compra de gados. Aqueles lugares longínquos, pobres e obscuros vilarejos que o Porto Nacional extrema, animam-se, então, passageiramente, com a romaria dos baianos. São os autocratas das feiras. Dentro da armadura de couro, galhardos, brandindo a guiada, sobre os cavalos ariscos, entram naqueles vilarejos com um desgarre atrevido de triunfadores felizes. E ao tornarem — quando não se perdem para todo o sempre sem tino na travessia perigosa dos descampados uniformes — reatam a mesma vida monótona e primitiva...

De repente, uma variante trágica.
Aproxima-se a seca.

O sertanejo adivinha-se e prefixa-a graças ao ritmo singular com que se desencadeia o flagelo.
Entretanto não foge logo, abandonando a terra a pouco e pouco invadida pelo limbo candente que irradia do Ceará.
Buckle, em página notável, assinala a anomalia de se não afeiçoar nunca, o homem, às calamidades naturais que o rodeiam.¬ Nenhum povo tem mais pavor aos terremotos que o peruano; e no Peru as crianças ao nascerem têm o berço embalado pelas vibrações da terra.
Mas o nosso sertanejo faz exceção à regra. A seca não o apavora. É um complemento à sua vida tormentosa, emoldurando-a em cenários tremendos. Enfrenta-a, estóico. Apesar das dolorosas tradições que conhece através de um sem-número de terríveis episódios, alimenta a todo o transe esperanças de uma resistência impossível.
Com os escassos recursos das próprias observações e das dos seus maiores, em que ensinamentos práticos se misturam a extravagantes crendices, tem procurado estudar o mal, para o conhecer, suportar e suplantar. Aparelha-se com singular serenidade para a luta. Dous ou três meses antes do solstício de verão, especa e fortalece os muros dos açudes, ou limpa as cacimbas. Faz os roçados e arregoa as estreitas faixas de solo arável à orla dos ribeirões. Está preparado para as plantações ligeiras à vinda das primeiras chuvas.
Procura em seguida desvendar o futuro. Volve o olhar para as alturas, atenta longamente nos quadrantes; e perquire os traços mais fugitivos das paisagens...
Os sintomas do flagelo despontam-lhe, então, encadeados em série, sucedendo-se inflexíveis, como sinais comemorativos de uma moléstia cíclica, da sezão assombradora da Terra. Passam as “chuvas do caju” em outubro, rápidas, em chu¬visqueiros prestes delidos nos ares ardentes, sem deixarem traços; e pintam as caatingas, aqui, ali, por toda a parte, mosqueadas de tufos pardos de árvores marcescentes, cada vez mais numerosos e maiores, lembrando cinzeiros de uma combustão abafada, sem chamas; e greta-se o chão; e abaixa-se vagarosamente o nível das cacimbas... Do mesmo passo nota que os dias, estuando logo ao alvorecer, transcorrem abrasantes, à medida que as noites se vão tornando cada vez mais frias. A atmosfera absorve-lhe, com avidez de esponja, o suor na fronte, enquanto a armadura de couro, sem mais a flexibilidade primitiva, se lhe endurece aos ombros, esturrada, rígida, feito uma couraça de bronze. E ao descer das tardes, dia a dia menores e sem crepúsculos, considera, entristecido, nos ares, em bandos, as primeiras aves emigrantes, transvoando a outros climas...
É o prelúdio da sua desgraça.
Vê-o, acentuar-se, num crescendo, até dezembro.
Precautela-se: revista, apreensivo, as malhadas. Percorre os logradouros longos. Procura entre as chapadas que se esterilizam várzeas mais benignas para onde tange os rebanhos. E espera, resignado, o dia 13 daquele mês. Porque em tal data, usança avoenga lhe faculta sondar o futuro, interrogando a Providência.
É a experiência tradicional de Santa Luzia. No dia 12 ao anoitecer expõe ao relento, em linha, seis pedrinhas de sal, que representam, em ordem sucessiva da esquerda para a direita, os seis meses vindouros, de janeiro a junho. Ao alvorecer de 13 observa-as: se estão intactas, pressagiam a seca; se a primeira apenas se deliu, transmudada em aljôfar límpido, é certa a chuva em janeiro; se a segunda, em fevereiro; se a maioria ou todas, é inevitável o inverno benfazejo.1
Esta experiência é belíssima. Em que pese ao estigma supersticioso tem base positiva, e é aceitável desde que se considere que dela se colhe a maior ou menor dosagem de vapor d’água nos ares, e, dedutivamente, maiores ou menores probabilidades de depressões barométricas, capazes de atrair o afluxo das chuvas.
Entretanto, embora tradicional, esta prova deixa vacilante o sertanejo. Nem sempre desanima, ante os seus piores vaticí¬nios. Aguarda, paciente, o equinócio da primavera, para definitiva consulta aos elementos. Atravessa três longos meses de expectativa ansiosa e no dia de S. José, 19 de março, procura novo augúrio, o último.
Aquele dia é para ele o índice dos meses subseqüentes. Retrata-lhe, abreviadas em doze horas, todas as alternativas climáticas vindouras. Se durante ele chove, será chuvoso o inverno; se, ao contrário, o Sol atravessa abrasadoramente o firmamento claro, estão por terra todas as suas esperanças.
A seca é inevitável.

Insulamento no deserto

Então se transfigura. Não é mais o indolente incorrigível ou o impulsivo violento, vivendo às disparadas pelos arrastadores. Transcende a sua situação rudimentar. Resignado e tenaz, com a placabilidade superior dos fortes, encara de fito a fatalidade incoercível; e reage. O heroísmo tem nos sertões, para todo o sempre perdidas, tragédias espantosas. Não há revivê-las ou episodiá-las. Surgem de uma luta que ninguém descreve — a insurreição da terra contra o homem. A princípio este reza, olhos postos na altura. O seu primeiro amparo é a fé religiosa. Sobraçando os santos milagreiros, cruzes alçadas, andores erguidos, bandeiras do Divino ruflando, lá se vão, descampados em fora, famílias inteiras — não já os fortes e sadios senão os próprios velhos combalidos e enfermos claudicantes, carregando aos ombros e à cabeça as pedras dos caminhos, mudando os santos de uns para outros lugares. Ecoam largos dias, monótonas, pelos ermos, por onde passam as lentas procissões propiciatórias, as ladainhas tristes. Rebrilham longas noites nas chapadas, pervagantes, as velas dos penitentes... Mas os céus persistem sinistramente claros; o sol fulmina a terra; progride o espasmo assombrador da seca. O matuto considera a prole apavorada; contempla entristecido os bois sucumbidos, que se agrupam sobre as fundagens das ipueiras, ou, ao longe, em grupos erradios e lentos, pescoços dobrados, acaroados com o chão, em mugidos prantivos “farejando a água”; — e sem que se lhe amorteça a crença, sem duvidar da Providência que o esmaga. Murmurando às mesmas horas as preces costumeiras, apresta-se ao sacrifício. Arremete de alvião e enxada com a terra, buscando nos estratos inferiores a água que fugiu da superfície. Atinge-os às vezes; outras, após enormes fadigas, esbarra em uma lajem que lhe anula todo o esforço despendido; e outras vezes, o que é mais corrente, depois de desvendar tênue lençol líquido subterrâneo, o vê desaparecer um, dous dias passados, evaporando-se sugado pelo solo. Acompanha-o tenazmente, reprofundando a mina, em cata do tesouro fugitivo. Volve, por fim, exausto, à beira da própria cova que abriu, feito um desenterrado. Mas como frugalidade rara lhe permite passar os dias com alguns manelos de paçoca, não lhe afrouxa, tão de pronto, o ânimo.
Ali está, em torno, a caatinga, o seu celeiro agreste. Esquadrinha-o. Talha em pedaços os mandacarus que desalteram, ou as ramas verdoengas dos juazeiros que alimentam os magros bois famintos; derruba os estípites dos ouricuris e rala-os, amassa-os, cozinha-os, fazendo um pão sinistro, o bró, que incha os ventres num enfarte ilusório, empanzinando o faminto: atesta os jiraus de coquilhos; arranca as raízes túmidas dos umbuzeiros, que lhe dessedentam os filhos, reservando para si o sumo adstringente dos cladódios do xiquexique, que enrouquece ou extingue a voz de quem o bebe, e demasia-se em trabalhos, apelando infatigável para todos os recursos, — forte e carinhoso — defendendo-se e estendendo à prole abatida e aos rebanhos confiados a energia sobre-humana.
Baldam-se-lhe, porém, os esforços.
A natureza não o combate apenas com o deserto. Povoa-a, contrastando com a fuga das seriemas, que emigram para outros tabuleiros e jandaias, que fogem para o litoral remoto, uma fauna cruel. Miríades de morcegos agravam a magrém, abatendo-se sobre o gado, dizimando-o. Chocalham as cascavéis, inúmeras, tanto mais numerosas quanto mais ardente o estio, entre as macegas recrestadas.
À noite, a suçuarana traiçoeira e ladra, que lhe rouba os bezerros e os novilhos, vem beirar a sua rancharia pobre.
É mais um inimigo a suplantar.
Afugenta-a e espanta-a, precipitando-se com um tição aceso no terreiro deserto. E se ela não recua, assalta-a. Mas não a tiro, porque sabe que desviada a mira, ou pouco eficaz o chumbo, a onça, “vindo em cima da fumaça”, é invencível.
O pugilato é mais comovente. O atleta enfraquecido, tendo à mão esquerda a forquilha e à direita a faca, irrita e desafia a fera, provoca-lhe o bote e apara-a no ar, trespassando-a de um golpe.
Nem sempre, porém, pode aventurar-se à façanha arriscada. Uma moléstia extravagante completa a sua desdita — a hemeralopia. Esta falsa cegueira é paradoxalmente feita pelas reações da luz; nasce dos dias claros e quentes, dos firmamentos fulgurantes, do vivo ondular dos ares em fogo sobre a terra nua. É uma pletora do olhar. Mal o sol se esconde no poente a vítima nada mais vê. Está cega. A noite afoga-a, de súbito, antes de envolver a terra. E na manhã seguinte a vista extinta lhe revive, acendendo-se no primeiro lampejo do levante, para se apagar, de novo, à tarde, com intermitência dolorosa.
Renasce-lhe com ela a energia. Ainda se não considera vencido. Restam-lhe, para desalterar e sustentar os filhos, os talos tenros, os mangarás das bromélias selvagens. Ilude-os com essas iguarias bárbaras.
Segue, a pé agora, porque se lhe parte o coração só de olhar para o cavalo, para os logradouros. Contempla ali a ruína da fazenda: bois espectrais, vivos não se sabe como, caídos sob as árvores mortas, mal soerguendo o arcabouço murcho sobre as pernas secas, marchando vagarosamente, cambaleantes; bois mortos há dias e intactos, que os próprios urubus rejeitam, porque não rompem a bicadas as suas peles esturradas; bois jururus, em roda da clareira de chão entorroado onde foi a aguada predileta; e, o que mais lhe dói, os que ainda não de todo exaustos o procuram, e o circundam, confiantes, urrando em longo apelo triste que parece um choro.
E nem um cereus avulta mais em torno; foram ruminadas as últimas ramas verdes dos juás...
Trançam-se, porém, ao lado, impenetráveis renques de macambiras. É ainda um recurso. Incendeia-os, batendo o isqueiro nas acendalhas das folhas ressequidas para os despir, em combustão rápida, dos espinhos. E quando os rolos de fumo se enovelam e se diluem no ar puríssimo, vêem-se, correndo de todos os lados, em tropel moroso de estropiados, os magros bois famintos, em busca do último repasto...
Por fim tudo se esgota e a situação não muda. Não há probabilidade sequer de chuvas. A casca dos marizeiros não transuda, prenunciando-as. O nordeste persiste intenso, rolante, pelas chapadas, zunindo em prolongações uivadas na galhada estrepitante das caatingas e o Sol alastra, reverberando no firmamento claro, os incêndios inextinguíveis da canícula. O sertanejo assoberbado de reveses, dobra-se afinal.
Passa certo dia, à sua porta, a primeira turma de “retirantes”. Vê-a, assombrado, atravessar o terreiro, miseranda, desaparecendo adiante, numa nuvem de poeira, na curva do caminho... No outro dia, outra. E outras. É o sertão que se esvazia.
Não resiste mais. Amatula-se num daqueles bandos, que lá se vão caminho em fora, debruando de ossadas as veredas, e lá se vai ele no êxodo penosíssimo para a costa, para as serras distantes, para quaisquer lugares onde o não mate o elemento primordial da vida.
Atinge-os. Salva-se.
Passam-se meses. Acaba-se o flagelo. Ei-lo de volta. Vence-o saudade do sertão. Remigra. E torna feliz, revigorando, cantando; esquecido de infortúnios, buscando as mesmas horas passageiras da ventura perdidiça e instável, os mesmos dias longos de transes e provações demorados.

Religião mestiça

Insulado deste modo no país que o não conhece, em luta aberta com o meio, que lhe parece haver estampado na organização e no temperamento a sua rudeza extraordinária, nômade ou mal fixo à terra, o sertanejo não tem, por bem dizer, ainda capacidade orgânica para se afeiçoar a situação mais alta.
O círculo estreito da atividade remorou-lhe o aperfeiçoamento psíquico. Está na fase religiosa de um monoteísmo incompreendido, eivado de misticismo extravagante, em que se rebate o fetichismo do índio e do africano. É o homem primitivo, audacioso e forte, mas ao mesmo tempo crédulo, deixando-se facilmente arrebatar pelas superstições mais absurdas. Uma análise destas revelaria a fusão de estádios emo¬cionais distintos.
A sua religião é, como ele — mestiça.
Resumo dos caracteres físicos e fisiológicos das raças de que surge, sumaria-lhes identicamente as qualidades morais. É um índice da vida de três povos. E as suas crenças singulares traduzem essa aproximação violenta de tendências distintas. É desnecessário descrevê-las. As lendas arrepiadoras do caapora travesso e maldoso, atravessando célere, montado em caititu arisco, as chapadas desertas, nas noites misteriosas de luares claros; os sacis diabólicos, de barrete vermelho à cabeça, assaltando o viandante retardatário, nas noites aziagas das sextas-feiras, de parceria com os lobisomens e mulas-sem-cabeça noctívagos; todos os mal-assombramentos, todas as tentações do maldito ou do diabo — esse trágico emissário dos rancores celestes em comissão na terra; as rezas dirigidas a S. Campeiro, canonizado in partibus, ao qual se acendem velas pelos campos; para que favoreça a descoberta de objetos perdidos; as benzeduras cabalísticas para curar os animais, para amarrar e vender sezões; todas as visualidades, todas as aparições fantásticas, todas as profecias esdrúxulas de messias insanos; e as romarias piedosas; e as missões; e as penitências... todas as manifestações complexas de religiosidade indefinida, são explicáveis.

Fatores históricos da religião mestiça

Não seria difícil caracterizá-las como uma mestiçagem de crenças. Ali estão, francos, o antropismo do selvagem, o animismo do africano e, o que é mais, o próprio aspecto emocional da raça superior, na época do descobrimento e da colonização.
Este último é um caso notável de atavismo, na História.
Considerando as agitações religiosas do sertão e os evangelizadores e messias singulares, que, intermitentemente, o atravessam, ascetas mortificados de flagícios, encalçados sempre pelos sequazes numerosos, que fanatizam, que arrastam, que dominam, que endoudecem — espontaneamente recordamos a fase mais crítica da alma portuguesa, a partir do século XVI, quando, depois de haver por momentos centralizado a História, o mais interessante dos povos caiu, de súbito, em decomposição rápida, mal disfarçada pela corte oriental de D. Manuel.
O povoamento do Brasil fez-se, intenso, com D. João III, precisamente no fastígio de completo desequilíbrio moral, quando “todos os terrores da Idade Média tinham cristalizado no catolicismo peninsular”.
Uma grande herança de abusões extravagantes, extinta da orla marítima pelo influxo modificador de outras crenças e de outras raças, no sertão ficou intacta. Trouxeram-na as gentes impressionáveis, que afluíram para a nossa terra, depois de desfeito no Oriente o sonho miraculoso da Índia. Vinham cheias daquele misticismo feroz, em que o fervor religioso reverberava à candência forte das fogueiras inquisitoriais, lavrando intensas na Península. Eram parcelas do mesmo povo que em Lisboa, sob a obsessão dolorosa dos milagres e assaltado de súbitas alucinações, via, sobre o paço dos reis, ataúdes agoureiros, línguas de flamas misteriosas, catervas de mouros de albornozes brancos, passando processionalmente; combates de paladinos nas alturas... E da mesma gente que após Alcácer-Quibir, em plena “caquexia nacional”, segundo o dizer vigoroso de Oliveira Martins, procurava, ante a ruína iminente, como salvação única, a fórmula superior das esperanças messiânicas.
De feito, considerando as desordens sertanejas, hoje, e os messias insanos que as provocam, irresistivelmente nos assaltam, empolgantes, as figuras dos profetas peninsulares de outrora — o rei de Penamacor, o rei da Ericeira, errantes pelas faldas das serras, devotadas ao martírio, arrebatando na mesma idealização, na mesma insânia, no mesmo sonho doentio, as multidões crendeiras.
Esta justaposição histórica calca-se sobre três séculos. Mas é exata, completa, sem dobras. Imóvel o tempo sobre a rústica sociedade sertaneja, despeada do movimento geral da evolução humana, ela respira ainda na mesma atmosfera moral dos iluminados que encalçavam, doudos, o Miguelinho ou o Bandarra. Nem lhe falta, para completar o símile, o misticismo político do sebastianismo. Extinto em Portugal, ele persiste todo, hoje, de modo singularmente impressionador, nos sertões do Norte.
Mas não antecipemos.

Caráter variável da religiosidade sertaneja

Estes estigmas atávicos tiveram entre nós, favoráveis, as rea¬ções do meio, determinando psicologia especial.
O homem dos sertões — pelo que esboçamos — mais do que qualquer outro está em função imediata da terra. É uma variável dependente no jogar dos elementos. Da consciência da fraqueza para os debelar, resulta, mais forte, este apelar constante para o maravilhoso, esta condição inferior de pupilo estúpido da divindade. Em paragens mais benéficas a necessidade de uma tutela sobrenatural não seria tão imperiosa. Ali, porém, as tendências pessoais como que se acolchetam às vicissitudes externas e deste entrelaçamento resulta, copiando o contraste que observamos entre a exaltação impulsiva e a apatia enervadora da atividade, a indiferença fatalista pelo futuro e a exaltação religiosa. Os ensinamentos dos missionários não poderiam exercitar-se estremes das tendências gerais da sua época. Por isto, como um palimpsesto, a consciência imperfeita dos matutos revela nas quadras agitadas, rompendo dentre os ideais belíssimos do catolicismo incompreendido, todos os estigmas de estádio inferior.
É que, mesmo em períodos normais, a sua religião é indefinida e vária. Da mesma forma que os negros hauçás, adaptando à liturgia todo o ritual iorubano, realizam o fato anômalo, mas vulgar mesmo na capital da Bahia, de seguirem para as solenidades da Igreja por ordem dos fetiches, os sertanejos, herdeiros infelizes de vícios seculares, saem das missas consagradas para os ágapes selvagens dos candomblés africanos ou poracês do tupi. Não espanta que patenteiem, na religiosidade indefinida, antinomias surpreendentes.
Quem vê a família sertaneja, ao cair da noite, ante o oratório tosco ou registo paupérrimo, à meia-luz das candeias de azeite, orando pelas almas dos mortos queridos, ou procurando alentos à vida tormentosa, encanta-se.
O culto dos mortos é impressionador. Nos lugares remotos, longe dos povoados, inumam-nos à beira das estradas, para que não fiquem de todo em abandono, para que os rodeiem sempre as preces dos viandantes, para que nos ângulos da cruz deponham estes, sempre, uma flor, um ramo, uma recordação fugaz mas renovada sempre. E o vaqueiro que segue arrebatadamente estaca, prestes, o cavalo, ante o humilde monumento — uma cruz sobre pedras arrumadas — e, a cabeça descoberta, passa vagaroso, rezando pela salvação de quem ele nunca viu talvez, talvez de um inimigo.
A terra é o exílio insuportável, o morto um bem-aventurado sempre.
O falecimento de uma criança é um dia de festa. Ressoam as violas na cabana dos pobres pais, jubilosos entre as lágrimas; referve o samba turbulento; vibram nos ares, fortes, as coplas dos desafios, enquanto, a uma banda, entre duas velas de carnaúba, coroado de flores, o anjinho exposto espelha, no último sorriso paralisado, a felicidade suprema da volta para os céus, para a felicidade eterna — que é a preocupação dominadora daquelas almas ingênuas e primitivas.
No entanto há traços repulsivos no quadro desta religiosidade de aspectos tão interessantes, aberrações brutais, que a derrancam ou maculam.

A “Pedra Bonita”

As agitações sertanejas, do Maranhão à Bahia, não tiveram ainda um historiador. Não as esboçaremos sequer. Tomemos um fato, entre muitos, ao acaso.
No termo de Pajeú, em Pernambuco, os últimos rebentos das formações graníticas da costa se alteiam, em formas caprichosas, na Serra Talhada, dominando, majestosos, toda a região em torno e convergindo em largo anfiteatro acessível apenas por estreita garganta, entre muralhas a pique. No âmbito daquele, como púlpito gigantesco, ergue-se um bloco solitário — a Pedra Bonita.
Este lugar foi, em 1837, teatro de cenas que recordam as sinistras solenidades religiosas dos Achantis. Um mamaluco ou cafuz, um iluminado, ali congregou toda a população dos sítios convizinhos e, engrimpando-se à pedra, anunciava, convicto, o próximo advento do reino encantado do rei D. Sebastião. Quebrada a pedra, a que subira, não a pancadas de marreta, mas pela ação miraculosa do sangue das crianças, esparzido sobre ela em holocausto, o grande rei irromperia envolto de sua guarda fulgurante, castigando, inexorável, a humanidade ingrata, mas cumulando de riquezas os que houvessem contribuído para o desencanto.
Passou pelo sertão um frêmito de nevrose...
O transviado encontrara meio propício ao contágio da sua insânia. Em torno da ara monstruosa comprimiam-se as mães erguendo os filhos pequeninos e lutavam, procurando-lhes a primazia no sacrifício... O sangue espadanava sobre a rocha jorrando, acumulando-se em torno; e afirmam os jornais do tempo, em cópia tal que, depois de desfeita aquela lúgubre farsa, era impossível a permanência no lugar infeccionado.
Por outro lado, fatos igualmente impressionadores contra¬batem tais aberrações. A alma de um matuto é inerte ante as influências que a agitam. De acordo com estas pode ir da extrema brutalidade ao máximo devotamento.
Vimo-la, neste instante, desvairada pelo fanatismo. Vejamo-la transfigurada pela fé.

Monte Santo

Monte Santo é um lugar lendário.
Quando, no século XVII, as descobertas das minas determinaram a atração do interior sobre o litoral, os aventureiros que ao norte investiam com o sertão, demandando as serras da Jacobina, arrebatados pela miragem das minas de prata e rastreando o itinerário enigmático de Belchior Dias, ali estacionavam longo tempo. A serra solitária — a Piquaraçá dos roteiros caprichosos — dominando os horizontes, norteava-lhes a marcha vacilante.
Além disto, atraía-os por si mesma, irresistivelmente.
É que em um de seus flancos, escritas em caligrafia ciclópica com grandes pedras arrumadas, apareciam letras singulares — um A, um L e um S — ladeados por uma cruz, de modo a fazerem crer que estava ali e não avante, para o ocidente ou para o sul, o eldorado apetecido.
Esquadrinharam-na, porém, debalde os êmulos do Muribeca astuto, seguindo, afinal, para os outros rumos, com as suas tropas de potiguaras mansos e forasteiros armados de biscainhos...
A serra desapareceu outra vez entre as chapadas que domina...
No fim do século passado, porém, descobriu-a um missionário — Apolônio de Todi. Vindo da missão de Maçacará, o maior apóstolo do Norte impressionou-se tanto com o aspecto da montanha, “achando-a semelhante ao calvário de Jerusalém”, que planeou logo a ereção de uma capela. Ia ser a primeira do mais tosco e do mais imponente templo da fé religiosa.
Descreve o sacerdote, longamente, o começo e o curso dos trabalhos e o auxílio franco que lhe deram os povoadores dos lugares próximos. Pinta a última solenidade, procissão majestosa e lenta ascendendo a montanha, entre as rajadas de tufão violento que se alteou das planícies apagando as tochas; e, por fim, o sermão terminal da penitência, exortando o povo a “que nos dias santos viesse visitar os santos lugares, já que vivia em tão grande desamparo das cousas espirituais”.
“E aqui, termina, sem pensar em mais nada disse que daí em diante não chamariam mais Serra de Piquaraçá, mas sim Monte Santo.”
E fez-se o templo prodigioso, monumento erguido pela natureza e pela fé, mais alto que as mais altas catedrais da terra.
A população sertaneja completou a empresa do missionário.
Hoje, quem sobe a extensa via sacra de três quilômetros de comprimento, em que se erigem, a espaços, vinte e cinco capelas de alvenaria, encerrando painéis dos passos, avalia a constância e a tenacidade do esforço despendido.
Amparada por muros capeados; calçada, em certos trechos; tendo, noutros, como leito, a rocha viva talhada em degraus, ou rampeada, aquela estrada branca, de quartzito, onde ressoam, há cem anos, as litanias das procissões da quaresma e têm passado legiões de penitentes, é um prodígio de engenharia rude e audaciosa. Começa investindo com a montanha, segundo a normal de máximo declive, em rampa de cerca de vinte graus. Na quarta ou quinta capelinha inflete à esquerda e progride menos íngreme. Adiante, a partir da capela maior — ermida interessantíssima erecta num ressalto da pedra a cavaleiro do abismo — volta à direita, diminuindo de declive até à linha de cumeadas. Segue por esta segundo uma selada breve. Depois se alteia, de improviso, retilínea, em ladeira forte, arremetendo com o vértice pontiagudo do monte, até ao Calvário, no alto!
À medida que ascende, ofegante, estacionando nos passos, o observador depara perspectivas que seguem num crescendo de grandezas soberanas: primeiro os planos das chapadas e tabuleiros, esbatidos embaixo em planícies vastas; depois as serranias remotas, agrupadas, longe, em todos os quadrantes; e, atingindo o alto, o olhar a cavaleiro das serras — o espaço indefinido, a emoção estranha de altura imensa, realçada pelo aspecto da pequena vila, embaixo, mal percebida na confusão caó¬tica dos telhados.
E quando, pela Semana Santa, convergem ali as famílias da redondeza e passam os crentes pelos mesmos flancos em que vaguearam outrora, inquietos de ambição, os aventureiros ambiciosos, vê-se que Apolônio de Todi, mais hábil que o Muribeca, decifrou o segredo das grandes letras de pedra, descobrindo o eldorado maravilhoso, a mina opulentíssima oculta no deserto...

As missões atuais

Infelizmente o apóstolo não teve continuadores. Salvo raríssimas exceções, o missionário moderno é um agente prejudicialíssimo no agravar todos os desequilíbrios do estado emocional dos tabaréus. Sem a altitude dos que o antecederam, a sua ação é negativa: destrói, apaga e perverte o que incutiram de bom naqueles espíritos ingênuos os ensinamentos dos primeiros evangelizadores, dos quais não tem o talento e não tem a arte surpreendente da transfiguração das almas. Segue vulgarmente processo inverso do daqueles: não aconselha e consola, aterra e amaldiçoa; não ora, esbraveja. É brutal e traiçoeiro. Surge das dobras do hábito escuro como da sombra de uma emboscada armada à credulidade incondicional dos que o escutam. Sobe ao púlpito das igrejas do sertão e não alevanta a imagem arre¬batadora dos céus; descreve o inferno truculento e flamívomo, numa algaravia de frases rebarbativas a que completam gestos de maluco e esgares de truão.
É ridículo, e é medonho. Tem o privilégio estranho das bufonerias melodramáticas. As parvoíces saem-lhe da boca trágicas.
Não traça ante os matutos simples a feição honesta e superior da vida — não a conhece; mas brama em todos os tons contra o pecado; esboça grosseiros quadros de torturas; e espalha sobre o auditório fulminado avalanches de penitências, extravagando largo tempo, em palavrear interminável, fungando as pitadas habituais e engendrando catástrofes, abrindo alternativamente a caixa de rapé e a boceta de Pandora...
E alucina o sertanejo crédulo; alucina-o, deprime-o, perverte-o.

Os “Serenos”

Busquemos um exemplo único, o último.
Em 1850 os sertões de Cariri foram alvorotados pelas depredações dos Serenos, exercitando o roubo em larga escala.
Aquela denominação indicava companhias de penitentes que à noite, nas encruzilhadas ermas, em torno das cruzes misteriosas, se agrupavam, adoudadamente, numa agitação macabra de flagelantes, impondo-se o cilício dos espinhos, das urtigas e outros duros tratos de penitência. Ora, aqueles agitados saíram certo dia, repentinamente, da matriz do Crato, dispersos, em desalinho — mulheres em prantos, homens apreensivos, crianças trementes — em procura dos flagícios duramente impostos. Dentro da igreja, missionários recém-vindos haviam profetizado próximo fim do mundo.
Deus o dissera — em mau português, em mau italiano e em mau latim — estava farto dos desmandos da terra...
E os desvairados foram pelos sertões em fora, esmolando, chorando, rezando, numa mândria deprimente, e como a caridade pública não os podia satisfazer a todos, acabaram — roubando.
Era fatal. Os instrutores do crime foram, afinal, infelicitar outros lugares e a justiça a custo reprimiu o banditismo incipiente.1

IV

Antônio Conselheiro, documento vivo de atavismo

É natural que estas camadas profundas da nossa estratificação étnica se sublevassem numa anticlinal extraordinária — Antônio Conselheiro...
A imagem é corretíssima.
Da mesma forma que o geólogo, interpretando a inclinação e a orientação dos estratos truncados de antigas formações, esboça o perfil de uma montanha extinta, o historiador só pode avaliar a altitude daquele homem, que por si nada valeu, considerando a psicologia da sociedade que o criou. Isolado, ele se perde na turba dos nevróticos vulgares. Pode ser incluído numa modalidade qualquer de psicose progressiva. Mas posto em função do meio, assombra. É uma diátese, e é uma síntese. As fases singulares da sua existência não são, talvez, períodos sucessivos de uma moléstia grave, mas são, com certeza, resumo abreviado dos aspectos predominantes de mal social gravíssimo. Por isto o infeliz, destinado à solicitude dos médicos, veio, impelido por uma potência superior, bater de encontro a uma civilização, indo para a história como poderia ter ido para o hospício. Porque ele para o historiador não foi um desequilibrado. Apareceu como integração de caracteres diferenciais — vagos, indecisos, mal percebidos quando dispersos na multidão, mas enérgicos e definidos, quando resumidos numa individualidade.
Todas as crenças ingênuas, do fetichismo bárbaro às aberrações católicas, todas as tendências impulsivas das raças inferiores, livremente exercitadas na indisciplina da vida sertaneja, se condensavam no seu misticismo feroz e extravagante. Ele foi, simultaneamente, o elemento ativo e passivo da agitação de que surgiu. O temperamento mais impressionável apenas fê-lo absorver as crenças ambientes, a princípio numa quase passividade pela própria receptividade mórbida do espírito torturado de reveses, e elas refluíram, depois, mais fortemente, sobre o próprio meio de onde haviam partido, partindo da sua consciência delirante.
É difícil traçar no fenômeno a linha divisória entre as tendências pessoais e as tendências coletivas: a vida resumida do homem é um capítulo instantâneo da vida de sua sociedade...
Acompanhar a primeira é seguir paralelamente e com mais rapidez a segunda; acompanhá-las juntas é observar a mais completa mutualidade de influxos.
Considerando em torno, o falso apóstolo, que o próprio excesso de subjetivismo predispusera à revolta contra a ordem natural, como que observou a fórmula do próprio delírio. Não era um incompreendido. A multidão aclamava-o representante natural das suas aspirações mais altas. Não foi, por isto, além. Não deslizou para a demência. No gravitar contínuo para o mínimo de uma curva, para o completo obscurecimento da razão, o meio reagindo por sua vez amparou-o, corrigindo-o, fazendo-o estabelecer encadeamento nunca destruído nas mais exageradas concepções, certa ordem no próprio desvario, coerência indestrutível em todos os atos e disciplina rara em todas as paixões, de sorte que ao atravessar, largos anos, nas práticas ascéticas, o sertão alvorotado, tinha na atitude, na palavra e no gesto, a tranqüilidade, a altitude e a resignação soberana de um apóstolo antigo.
Doente grave, só lhe pode ser aplicado o conceito da paranóia, de Tanzi e Riva.
Em seu desvio ideativo vibrou sempre, a bem dizer exclusiva, a nota étnica. Foi um documento raro de atavismo.
A constituição mórbida levando-o a interpretar caprichosamente as condições objetivas, e alterando-lhes as relações com o mundo exterior, traduz-se fundamentalmente como uma regressão ao estádio mental dos tipos ancestrais da espécie.

Um gnóstico bronco

Evitada a intrusão dispensável de um médico, um antro¬pologista encontrá-lo-ia normal, marcando logicamente certo nível da mentalidade humana, recuando no tempo, fixando uma fase remota da evolução. O que o primeiro caracterizaria como caso franco de delírio sistematizado, na fase persecutória ou de grandezas, o segundo indicaria como fenômeno de incompatibilidade com as exigências superiores da civilização — um anacronismo palmar, a revivescência de atributos psíquicos remotíssimos. Os traços mais típicos do seu misticismo estranho, mas naturalíssimo para nós, já foram, dentro de nossa era, aspectos religiosos vulgares. Deixando mesmo de lado o influxo das raças inferiores, vimo-los há pouco, de relance, em perío¬do angustioso da vida portuguesa.
Poderíamos apontá-los em cenário mais amplo. Bastava que volvêssemos aos primeiros dias da Igreja, quando o gnosticismo universal se erigia como transição obrigatória entre o paganismo e o cristianismo, na última fase do mundo romano em que, precedendo o assalto dos Bárbaros, a literatura latina do Ocidente declinou, de súbito, mal substituída pelos sofistas e letrados tacanhos de Bizâncio.
Com efeito, os montanistas da Frígia, os adamitas infames, os ofiólatras, os maniqueus bifrontes entre o ideal cristão emergente e o budismo antigo, os discípulos de Marcos, os encratitas abstinentes e macerados de flagícios, todas as seitas em que se fracionava a religião nascente, com os seus doutores histéricos e exegeses hiperbólicas, forneceriam hoje casos repugnantes de insânia. E foram normais. Acol¬chetaram-se bem a todas as tendências da época em que as extravagâncias de Alexandre Abnótico abalavam a Roma de Marco Aurélio, com as suas procissões fantásticas, os seus mistérios e os seus sacrifícios tremendos de leões lançados vivos ao Danúbio, com solenidades imponentes presididas pelo imperador filósofo...
A história repete-se.
Antônio Conselheiro foi um gnóstico bronco.
Veremos mais longe a exação do símile.

Grande homem pelo avesso

Paranóico indiferente, este dizer, talvez, mesmo não lhe possa ser ajustado, inteiro. A regressão ideativa que patenteou, caracterizando-lhe o temperamento vesânico, é, certo, um caso notável de degenerescência intelectual, mas não o isolou — incom¬preendido, desequilibrado, retrógrado, rebelde — no meio em que agiu.
Ao contrário, este fortaleceu-o. Era o profeta, o emissário das alturas, transfigurado por ilapso estupendo, mas adstrito a todas as contingências humanas, passível do sofrimento e da morte, e tendo uma função exclusiva: apontar aos pecadores o caminho da salvação. Satisfez-se sempre com este papel de delegado dos céus. Não foi além. Era o servo jungido à tarefa dura; e lá se foi, caminho dos sertões bravios, largo tempo, arrastando a carcaça claudicante, arrebatado por aquela idéia fixa, mas de algum modo lúcido em todos os atos, impressionando pela firmeza nunca abalada e seguindo para um objetivo fixo com finalidade irresistível.
A sua frágil consciência oscilava em torno dessa posição média, expressa pela linha ideal que Maudsley lamenta não se poder traçar entre o bom senso e a insânia.
Parou aí indefinidamente, nas fronteiras oscilantes da loucura, nessa zona mental onde se confundem facínoras e heróis, reformadores brilhantes e aleijões tacanhos, e se acotovelam gênios e degenerados. Não a transpôs. Recalcado pela disciplina vigorosa de uma sociedade culta, a sua nevrose explodiria na revolta, o seu misticismo comprimido esmagaria a razão. Ali, vibrando a primeira uníssona com o sentimento ambiente, difundido o segundo pelas almas todas que em torno se congregavam, se normalizaram.

Representante natural do meio em que nasceu

O fator sociológico, que cultivara a psicose mística do indivíduo, limitou-a sem a comprimir, numa harmonia salvadora. De sorte que o espírito predisposto para a rebeldia franca contra a ordem natural cedeu à única reação de que era passível. Cristalizou num ambiente propício de erros e superstições comuns.

Antecedentes de família. Os Maciéis

A sua biografia compendia e resume a existência da sociedade sertaneja. Esclarece o conceito etiológico da doença que o vitimou. Delineemo-la de passagem.
“Os Maciéis que formavam, nos sertões entre Quixeramobim e Tamboril, uma família numerosa de homens válidos, ágeis, inteligentes e bravos, vivendo de vaqueirice e pequena criação, vieram, pela lei fatal dos tempos, a fazer parte dos grandes fastos criminais do Ceará, em uma guerra de família. Seus êmulos foram os Araújos, que formavam uma família rica, filiada a outras das mais antigas do norte da província.
Viviam na mesma região, tendo como sede principal a povoação de Boa Viagem, que demora cerca de dez léguas de Quixeramobim.
Foi uma das lutas mais sangrentas dos sertões do Ceará, a que se travou entre estes dois grupos de homens, desiguais na fortuna e posição oficial, ambos embravecidos na prática das violências, e numerosos.”
Assim começa o narrador consciencioso1 breve notícia sobre a genealogia de Antônio Conselheiro.
Os fatos criminosos a que se refere são um episódio apenas entre as razzias, quase permanentes, da vida turbulenta dos sertões. Copiam mil outros de que ressaltam, evidentes, a prepotência sem freios dos mandões de aldeia e a exploração pecaminosa por eles exercida sobre a bravura instintiva do sertanejo. Luta de famílias — é uma variante apenas de tantas outras, que ali surgem, intermináveis, comprometendo as próprias descendências que esposam as desavenças dos avós, criando uma quase predisposição fisiológica e tornando hereditários os rancores e as vinganças.

Lutas entre Maciéis e Araújos

Surgiu de incidente mínimo: pretensos roubos cometidos pelos Maciéis em propriedade de família numerosa, a dos Araújos.
Tudo indicava serem aqueles vítimas de acusação descabida. Eram “homens vigorosos, simpáticos, bem apessoados, verdadeiros e serviçais” gozando em toda redondeza de reputação invejável.
Araújo da Costa e um seu parente, Silvestre Rodrigues Veras, não viam, porém, com bons olhos, a família pobre que lhes balanceava a influência, sem a justificativa de vastos latifúndios e boiadas grandes. Criadores opulentos, senhores de baraço e cutelo, vezados a fazer justiça por si mesmos, concertaram em dar exemplar castigo aos delinqüentes. E como estes eram bravos até a temeridade, chamaram a postos a guarda pretoriana dos capangas.
Assim apercebidos, abalaram na expedição criminosa para Quixeramobim.
Mas volveram logo depois, contra a expectativa geral, em derrota. Os Maciéis, reunida toda a parentela, rapazes desempenados e temeros, haviam-se afrontado com a malta assalariada, repelindo-a vigorosamente, suplantando-a, espavorindo-a.
O fato passou em 1833.
Batidos, mal sofreando o desapontamento e a cólera, os potentados, cuja imbecilidade triunfante passara por tão duro trato, apelaram para recursos mais enérgicos. Não faltavam então, como não faltam hoje, facínoras de fama que lhes alugassem a coragem. Conseguiram dous, dos melhores: José Joaquim de Meneses, pernambucano sanhudo, célebre pela rivalidade sanguinolenta com os Mourões famosos; e um cangaceiro terrível, Vicente Lopes, de Aracatiaçu. Reunida a matula turbulenta, a que se ligaram os filhos e genros de Silvestre, seguiu, de pronto, para a empreitada criminosa.
Ao acercarem-se, porém, da vivenda dos Maciéis, os sicá¬rios — embora fossem em maior número — temeram-lhes a resistência. Propuseram-lhes que se entregassem, garantindo-lhes, sob palavra, a vida. Aqueles, certos de não poderem resistir¬ por muito tempo, aquiesceram. Renderam-se. A palavra de honra dos bandidos teve, porém, o valor que poderia ter. Quando¬ seguiam debaixo de escolta e algemados, para a cadeia de Sobral, logo no primeiro dia da viagem foram os presos trucidados. Morreram nesta ocasião, entre outros, o chefe da família. Antônio Maciel, e um avô de Antônio Conselheiro.1
Mas um tio deste, Miguel Carlos, logrou escapar. Manietado e além disto com as pernas amarradas por baixo da barriga do cavalo que montava, a sua fuga é inexplicável. Afirma-a, contudo, a sisudez de cronista sincero.2
Ora, os Araújos tinham deixado fugir o seu pior adversário. Perseguiram-no. Bem armados, bem montados, encalçaram-no, prestes, em monteria bárbara, como se fossem sobre rastros de suçuarana bravia. O foragido, porém, emérito batedor de matas, seguido na fuga por uma irmã, iludiu por algum tempo a escolta perseguidora chefiada por Pedro Martins Veras; e no sítio da “Passagem”, perto de Quixeramobim, ocultou-se, exausto, numa choupana abandonada, coberta de ramos de oiticica.
Ali chegaram, em breve, rastreando-o, os perseguidores. Eram nove horas da manhã. Houve então uma refrega desigual e tremenda. O temerário sertanejo, embora estropiado e doente de um pé que luxara, afrontou-se com a horda assaltante, estendendo logo em terra a um certo Teotônio, desordeiro façanhudo, que se avantajara aos demais. Este caiu transversalmente à soleira da porta, impedindo-a que se fechasse. A irmã de Miguel Carlos, quando procurava arrastá-lo dali, caiu atravessada por uma bala. Alvejara-a o próprio Pedro Veras, que pagou logo a façanha, levando a queima-roupa uma carga de chumbo. Morto o cabecilha, os agressores recuaram por momentos, o suficiente para que o assaltado trancasse rapidamente a porta.
Isto feito, o casebre fez-se um reduto. Pelas frinchas das paredes estourava de minuto em minuto um tiro de espingarda. Os bandidos não ousaram investi-lo; mas foram de cobardia feroz. Atearam fogo à cobertura de folhas.
O efeito foi pronto. Mal podendo respirar no abrigo em chamas, Miguel Carlos resolve abandoná-lo. Derrama toda a água de um pote na direção do fundo da choupana, apagando momentaneamente as brasas e, saltando por sobre o cadáver da irmã, arroja-se, de clavina sobraçada e parnaíba em punho, contra o círculo assaltante. Rompe-o e afunda na caatinga...
Tempos depois um dos Araújos contratou casamento com a filha de rico criador de Tapaiara; e no dia das núpcias, já perto da igreja, tombou varado por uma bala, entre o alarma dos convivas e o desespero da noiva desditosa.
Velava, inextinguivelmente, a vingança do sertanejo...
Este tinha, agora, uma sócia no rancor justificado e fundo, outra irmã, Helena Maciel, a “Nêmesis da família”, conforme o dizer do cronista referido. A sua vida transcorria em lances perigosos, muitos dos quais desconhecidos senão fabulados pela imaginação fecunda dos matutos. O certo, porém, é que, desfazendo a urdidura de todas as tocaias, não raro lhe caiu sob a faca o espião incauto que o rastreava, em Quixeramobim.
Diz a narrativa a que acima nos reportamos:
“Parece que Miguel Carlos tinha ali protetores que o garantiam. O que é certo é que, não obstante a sorte que tivera aquele seu apaniguado, costumava estar na vila.
Uma noite, estando à porta da loja de Manuel Procópio de Freitas, viu entrar um indivíduo, que procurava comprar aguardente. Dando-o como espião, falou em matá-lo ali mesmo, mas sendo detido pelo dono da casa, tratou de acompanhar o suspeito, e o matou, a faca, ao sair da vila, no riacho da Palha.
Uma manhã, finalmente, saiu da casa de Antônio Caetano de Oliveira, casado com uma sua parenta, e foi banhar-se no rio, que corre por trás dessa casa, situada quase no extremo da praça principal da vila, junto à garganta que conduz à pequena praça Cotovelo. Nos fundos da casa indicada era então a embocadura do riacho da Palha, que em forma quase circular contornava aquela praça, e de inverno constituía uma cinta lindíssima de águas represadas. Miguel Carlos estava já despido, como muitos companheiros, quando surgiu um grupo de inimigos, que o esperavam acocorados por entre o denso mata-pasto. Estranhos e parentes de Miguel Carlos, tomando as roupas depostas na areia, e vestindo-as ao mesmo tempo que corriam, puseram-se em fuga. Em ceroulas somente, e com a sua faca em punho, ele correu também na direção dos fundos de uma casa, que quase enfrenta com a embocadura do riacho da Palha; casa na qual morava em 1845 Manuel Francisco da Costa. Miguel Carlos chegou a abrir o portão do quintal, de varas, da casa indicada; mas, quando quis fechá-lo, foi prostrado por um tiro, partido do séquito, que o perseguia. Outros dizem que isto se dera, quando ele passava pelo buraco da cerca de uma vazante que havia por ali. Agonizava, caído, com a sua faca na mão, quando Manuel de Araújo, chefe do bando, irmão do noivo outrora assassinado, pegando-o por uma perna, lhe cravou uma faca. Moribundo, Miguel Carlos lhe respondeu no mesmo instante com outra facada na carótida, morrendo ambos instantaneamente, este por baixo daquele! Helena Maciel, correndo em fúria ao lugar do conflito, pisou a pés a cara do matador de seu irmão, dizendo-se satisfeita da perda dele pelo fim que dera ao seu inimigo!
Pretendem que os sicários tinham passado a noite em casa de Inácio Mendes Guerreiro, da família de Araújo, agente do correio da Vila. Vinham a título de prender os Maciéis; mas, só no propósito de matá-los.
Helena não se abateu com esta desgraça. Nêmesis da família, imolou um inimigo aos manes do seu irmão. Foi ela, como ousou confessar muitos anos depois, quem mandou espancar barbaramente a André Jacinto de Sousa Pimentel, moço de família importante da Vila, aparentado com os Araújos, a quem atribuía os avisos que estes recebiam em Boa Viagem, das vindas de Miguel Carlos. Desse espancamento resultou uma lesão cardíaca, que fez morrer em transes horrorosos o infeliz, em verdade culpado dessa derradeira agressão dos Araújos.
O fato de ter sido o crime perpetrado por soldados do destacamento de linha, ao mando do alferes Francisco Gregório Pinto, homem insolente, de baixa educação e origem, com quem Pimentel andava inimizado, fez acreditar muito tempo que fora esse oficial mal reputado o autor do crime.
Helena deixara-se ficar queda e silenciosa.
Inúmeras vítimas anônimas fez esta luta sertaneja, que dizimava os sequazes das duas famílias, sendo o último dos Maciéis — Antônio Maciel, irmão de Miguel Carlos, morto em Boa Via¬gem. Ficou célebre muito tempo a valentia de Miguel Carlos e era por ele seus parentes a estima e respeito dos coevos, testemunhas da energia dessa família, dentre a qual surgiram tantos homens de esforço, para uma luta com poderosos tais, como os da Boa Viagem e Tamboril.”1
Não prossigamos.

Uma vida bem auspiciada

Nada se sabe ao certo o papel que coube a Vicente Mendes Maciel, pai de Antônio Vicente Mendes Maciel (o Conselheiro), nesta luta deplorável. Os seus contemporâneos pintam-no como “homem irascível mas de excelente caráter, meio visionário e desconfiado, mas de tanta capacidade que sendo analfabeto negociava largamente em fazendas, trazendo tudo perfeitamente contado e medido de memória, sem mesmo ter escrita para os devedores”.
O filho, sob a disciplina de um pai de honradez proverbial e ríspido, teve educação que de algum modo o isolou da turbulência da família. Indicam-no testemunhas de vista, ainda existentes, como adolescente tranqüilo e tímido, sem o entusiasmo feliz dos que seguem as primeiras escalas da vida; retraído, avesso à troça, raro deixando a casa de negócio do pai, em Quixe¬ramobim, de todo entregue aos misteres de caixeiro consciencio¬so, deixando passar e desaparecer vazia a quadra triunfal dos vinte anos. Todas as histórias, ou lendas entretecidas de exageros, segundo o hábito dos narradores do sertão, em que eram muita vez protagonistas os seus próprios parentes, eram-lhe entoadas em torno evidenciando-lhes sempre a coragem tradicional e rara. A sugestão das narrativas, porém, tinha o corretivo enérgico da ríspida sisudez do velho Mendes Maciel e não abalava o ânimo do rapaz. Talvez ficasse latente, pronta a se expandir em condições mais favoráveis. O certo é que falecendo aquele em 1855, vinte anos depois dos trágicos sucessos que reme¬moramos, Antônio Maciel prosseguiu na mesma vida cor¬retíssima e calma.
Arrostando com a tarefa de velar por três irmãs solteiras revelou abnegação rara. Somente depois de as ter casado procurou, por sua vez, um enlace que lhe foi nefasto.

Primeiros reveses

Data daí a sua existência dramática. A mulher foi a sobrecarga adicionada à tremenda tara hereditária, que desequilibraria uma vida iniciada sob os melhores auspícios.
A partir de 1858 todos os seus atos denotam uma transformação de caráter. Perde os hábitos sedentários. Incompatibilidades de gênio com a esposa ou, o que é mais verossímil, a péssima índole desta, tornam instável a sua situação.
Em poucos anos vive em diversas vilas e povoados. Adota diversas profissões.
Nesta agitação, porém, percebe-se a luta de um caráter que se não deixa abater. Tendo ficado sem bens de fortuna, Antônio Maciel, nesta fase preparatória de sua vida, a despeito das desordens do lar, ao chegar a qualquer nova sede de residência procura logo um emprego, um meio qualquer honesto, de subsistência. Em 1859, mudando-se para Sobral, emprega-se como caixeiro. Demora-se, porém, pouco ali. Segue para Campo Grande, onde desempenha as funções modestas de escrivão do Juiz de Paz. Daí, sem grande demora, se desloca para Ipu. Faz-se solicitador, ou requerente no fórum.
Nota-se já em tudo isto um crescendo para profissões menos trabalhosas, exigindo cada vez menos a constância do esforço; o contínuo despear-se da disciplina primitiva, a tendência acentuada para a atividade mais irrequieta e mais estéril, o descambar para a vadiagem franca. Ia-se-lhe ao mesmo tempo, na desarmonia do lar, a antiga serenidade.
Este período de vida mostra-o, todavia, aparelhado de sentimentos dignos. Ali estavam, em torno, permanentes lutas partidárias abrindo-lhe carreira aventurosa, em que poderia entrar como tantos outros, ligando-se aos condutícios de qualquer conquistador de urnas, para o que tinha o prestígio tradicional da família. Evitou-as sempre. E na descensão contínua, percebe-se alguém que perde o terreno, mas lentamente, reagindo, numa exaustão dolorosa.

A queda

De repente, surge-lhe revés violento. O plano inclinado daquela vida em declive termina, de golpe, em queda formidável. Foge-lhe a mulher, em Ipu, raptada por um policial. Foi o desfecho. Fulminado de vergonha, o infeliz procura o recesso dos sertões, paragens desconhecidas, onde lhe não saibam o nome; o abrigo da absoluta obscuridade.
Desce para o sul do Ceará.
Ao passar em Paus Brancos, na estrada do Crato, fere com ímpeto de alucinado, à noite, um parente, que o hospedara. Fazem-se breves inquirições policiais, tolhidas logo pela própria vítima reconhecendo a não culpabilidade do agressor. Salva-se da prisão. Prossegue depois para o sul, à toa, na direção do Crato. E desaparece...
Passaram-se dez anos. O moço infeliz de Quixeramobim ficou de todo esquecido. Apenas uma ou outra vez lhe recordavam o nome e o termo escandaloso da existência, em que era magna pars um Lovelace de coturno reiúno, um sargento de polícia.
Graças a este incidente, algo ridículo, ficara nas paragens natais breve resquício de sua lembrança.
Morrera por assim dizer.

Como se faz um monstro

...E surgia na Bahia o anacoreta sombrio, cabelos crescidos até aos ombros, barba inculta e longa; face escaveirada; olhar fulgurante; monstruoso, dentro de um hábito azul de brim americano; abordoado ao clássico bastão, em que se apóia o passo tardo dos peregrinos...
É desconhecida a sua existência durante tão largo período. Um velho caboclo, preso em Canudos nos últimos dias da campanha, disse-me algo a respeito, mas vagamente, sem precisar datas, sem pormenores característicos. Conhecera-o nos sertões de Pernambuco, um ou dous anos depois da partida do Crato. Das palavras desta testemunha, concluí que Antônio Maciel, ainda moço, já impressionava vivamente a imaginação dos sertanejos. Aparecia por aqueles lugares em destino fixo, errante. Nada referia sobre o passado. Praticava em frases breves e raros monossílabos. Andava sem rumo certo, de um pouso para outro, indiferente à vida e aos perigos, alimentando-se mal e ocasionalmente, dormindo ao relento à beira dos caminhos, numa penitência demorada e rude...
Tornou-se logo alguma cousa de fantástico ou mal-assombrado para aquelas gentes simples. Ao abeirar-se das rancharias dos tropeiros aquele velho singular, de pouco mais de trinta anos, fazia que cessassem os improvisos e as violas festivas.
Era natural. Ele surdia — esquálido e macerado — dentro do hábito escorrido, sem relevos, mudo, como uma sombra, das chapadas povoadas de duendes...
Passava, buscando outros lugares, deixando absortos os matutos supersticiosos.
Dominava-os por fim, sem o querer.
No seio de uma sociedade primitiva que pelas qualidades étnicas e influxo das santas missões malévolas compreendia melhor a vida pelo incompreendido dos milagres, o seu viver misterioso rodeou-o logo de não vulgar prestígio, agravando-lhe, talvez, o temperamento delirante. A pouco e pouco todo o domínio que, sem cálculo, derramava em torno, parece haver refluído sobre si mesmo. Todas as conjecturas ou lendas que para logo o circundaram fizeram o ambiente propício ao germinar do próprio desvario. A sua insânia estava, ali, exteriorizada. Espelhavam-lha a admiração intensa e o respeito absoluto que o tornaram em pouco tempo árbitro incondicional de todas as divergências ou brigas, conselheiro predileto em todas as decisões. A multidão poupara-lhe o indagar torturante acerca do próprio estado emotivo, o esforço dessas interrogativas angustiosas e dessa intuspecção delirante, entre os quais evolve a loucura nos cérebros abalados. Remodelava-o à sua imagem. Criava-o. Ampliava-lhe, desmesuradamente, a vida, lançando-lhe dentro os erros de dous mil anos.
Precisava de alguém que lhe traduzisse a idealização indefinida, e a guiasse nas trilhas misteriosas para os céus...
O evangelizador surgiu, monstruoso, mas autômato.
Aquele dominador foi um títere. Agiu passivo, como uma sombra. Mas esta condensava o obscurantismo de três raças.
E cresceu tanto que se projetou na História...

Peregrinações e martírios

Dos sertões de Pernambuco passou aos de Sergipe, aparecendo na cidade de Itabaiana em 1874.
Ali chegou, como em toda a parte, desconhecido e suspeito, impressionando pelos trajes esquisitos — camisolão azul, sem cintura; chapéu de abas largas, derrubadas; e sandálias. Às costas um surrão de couro em que trazia papel, pena e tinta, a Missão Abreviada e as Horas Marianas.
Vivia de esmolas, das quais recusava qualquer excesso, pedindo apenas o sustento de cada dia. Procurava aos poucos solitários. Não aceitava leito algum, além de uma tábua nua e, na falta desta, o chão duro.
Assim pervagou largo tempo, até aparecer nos sertões, ao norte da Bahia. Ia-lhe crescendo o prestígio. Já não seguia só. Encalçavam-no na rota desnorteada os primeiros fiéis. Não os chamara. Chegaram-lhe espontâneos, felizes por atravessarem com ele os mesmos dias de provações e misérias. Eram, no geral, gente ínfima e suspeita, avessa ao trabalho, farândola de vencidos da vida, vezada à mândria e à rapina.
Um dos adeptos carregava o templo único, então, da religião minúscula e nascente: um oratório tosco, de cedro, encerrando a imagem do Cristo.
Nas paradas pelos caminhos prendiam-no a um galho de árvore; e, genuflexos, rezavam. Entravam com ele, triunfalmente erguido, pelos vilarejos, e povoados, num coro de la¬dainhas.
Assim se apresentou o Conselheiro, em 1876, na vila do Itapicuru de Cima. Já tinha grande renome.
Di-lo documento expressivo publicado aquele ano, na capital do Império.
“Apareceu no sertão do Norte um indivíduo, que se diz chamar Antônio Conselheiro, e que exerce grande influência no espírito das classes populares servindo-se de seu exterior misterioso e costumes ascéticos, com que impõe à ignorância e à simplicidade. Deixou crescer a barba e cabelos, veste uma túnica de algodão e alimenta-se tenuemente, sendo quase uma múmia. Acompanhado de duas professas, vive a rezar terços e ladainhas e a pregar e a dar conselhos às multidões, que reúne, onde lhe permitem os párocos; e, movendo sentimentos religiosos, vai arrebanhando o povo e guiando-o a seu gosto. Revela ser homem inteligente, mas sem cultura.”1
Estes dizeres, rigorosamente verídicos, de um anuário impresso centenares de léguas de distância, delatam bem a fama que ele já granjeara.

Lendas

Entretanto a vila de Itapicuru esteve para ser o fecho da sua carreira extraordinária. Foi, ali, naquele mesmo ano, entre o espanto dos fiéis, inopinadamente preso. Determinara a prisão uma falsidade, que o seu modo de vida excepcional e as antigas desordens domésticas de algum modo justificavam: diziam-no assassino da esposa e da própria mãe.
Era uma lenda arrepiadora.
Contavam que a última, desadorando a nora, imaginara perdê-la. Revelara, por isto, ao filho, que era traído; e como este, surpreso, lhe exigisse provas do delito, propôs-se apresentá-las sem tardança. Aconselhou-o a que fantasiasse qualquer viagem, permanecendo, porém, nos arredores, porque veria, à noite, invadir-lhe o lar o sedutor que o desonrara. Aceito o alvitre, o infeliz, cavalgando e afastando-se cerca de meia légua, torceu depois de rédeas, tornando, furtivamente, por desfreqüentados desvios, para uma espera adrede escolhida, de onde pudesse observar bem e agir de pronto.
Ali quedou longas horas, até lobrigar, de fato, noite velha, um vulto aproximando-se de sua vivenda. Viu-o achegar-se cautelosamente e galgar uma das janelas. E não lhe deu tempo para entrar. Abateu-o com um tiro.
Penetrou, em seguida, de um salto, no lar e fulminou com outra descarga a esposa infiel, adormecida.
Voltou, depois, para reconhecer o homem que matara... E viu com horror que era sua própria mãe, que se disfarçara daquele modo para a consecução do plano diabólico.
Fugira, então, na mesma hora, apavorado, doudo, abandonando tudo, ao acaso, pelos sertões em fora...
A imaginação popular, como se vê, começava a romancear-lhe a vida, com um traço vigoroso de originalidade trágica.

O asceta

Como quer que fosse, porém, o certo é que em 1876 a repressão legal o atingiu quando já se ultimara a evolução do seu espírito, imerso de todo no sonho de onde não mais despertaria. O asceta despontava, inteiriço, da rudeza disciplinar de quinze anos de penitência. Requintara nessa aprendizagem de martí¬rios, que tanto preconizam os velhos luminares da Igreja. Vinha do tirocínio brutal da fome, da sede, das fadigas, das angústias recalcadas e das misérias fundas. Não tinha dores desconhecidas. A epiderme seca rugava-se-lhe como uma couraça amolgada e rota sobre a carne morta. Anestesiara-a com a própria dor; macerara-a e sarjara-a de cilícios mais duros que os buréis de esparto; trouxera-a, de rojo, pelas pedras dos caminhos; esturrara-a nos rescaldos das secas; inteiriçara-a nos relentos frios; adormecera-a, em transitórios repousos, nos leitos dilacerantes das caatingas...
Abeirara muitas vezes a morte nos jejuns prolongados, com requinte de ascetismo que surpreenderia Tertuliano, esse sombrio propagandista da eliminação lenta da matéria, “descarregando-se do seu sangue, fardo pesado e importuno da alma impaciente por fugir...”.1
Para quem estava neste tirocínio de amarguras, aquela ordem de prisão era incidente mínimo. Recebeu-a indiferente. Proibiu aos fiéis que o defendessem. Entregou-se. Levaram-no à capital da Bahia. Ali, a sua fisionomia estranha: face morta, rígida como uma máscara, sem olhar e sem risos; pálpebras descidas dentro de órbitas profundas; e o seu entrajar singularíssimo; e o seu aspecto repugnante, de desenterrado, dentro do camisolão comprido, feito uma mortalha preta; e os longos cabelos corredios e poentes caindo pelos ombros, emaranhando-se nos pêlos duros da barba descuidada, que descia até a cintura — aferroaram a curiosidade geral.
Passou pelas ruas entre ovações de esconjuros e “pelos-sinais” dos crentes assustados e das beatas retransidas de sustos.
Interrogaram-no os juízes estupefatos.
Acusavam-no de velhos crimes, cometidos no torrão nativo. Ouviu o interrogatório e as acusações, e não murmurou sequer, revestido de impassibilidade marmórea.
A escolta que o trouxera, soube-se depois, espancara-o covardemente nas estradas. Não formulou a mais leve queixa.
Quedou na tranqüila indiferença superior de um estóico.
Apenas — e este pormenor curioso ouvimo-lo a pessoa insuspeita — no dia do embarque para o Ceará pediu às autoridades que o livrassem da curiosidade pública, a única coisa que o vexava.
Chegando à terra natal, reconhecida a improcedência da denúncia, é posto em liberdade. E no mesmo ano reaparece na Bahia entre os discípulos, que o aguardavam sempre.
Esta volta — coincidindo, segundo afirmam, com o dia que prefixara, no momento de ser preso — tomou aspectos de milagre.
Tresdobrou a sua influência.
Vagueia então algum tempo, pelos sertões de Curaçá, estacio¬nando (1877) de preferência em Xorroxó, lugarejo de poucas centenas de habitantes, cuja feira movimentada congrega a maioria dos povoadores daquele trecho do S. Francisco. Uma capela elegante indica-lhe, ainda, hoje, a estadia. E, mais venerável talvez, pequena árvore, à entrada da vila, que foi muito tempo objeto de uma fitolatria extraordinária. À sua sombra descansara o peregrino. Era um arbusto sagrado. À sua sombra curvavam-se os crédulos doentes; as suas folhas eram panacéia infalível.
O povo começava a grande série de milagres de que não cogitava talvez o infeliz...
De 1877 a 1887 erra por aqueles sertões, em todos os sentidos, chegando mesmo até ao litoral, em Vila do Conde (1887).
Em toda esta área não há, talvez, uma cidade ou povoado onde não tenha aparecido. Alagoinhas, Inhambupe, Bom Conselho, Jeremoabo, Cumbe, Mocambo, Maçacará, Pompal, Monte Santo, Tucano e outros, viram-no chegar, acompanhado da farândola de fiéis. Em quase todas deixava um traço de passagem: aqui um cemitério arruinado, de muros reconstruídos; além uma igreja renovada; adiante uma capela que se erguia, elegante sempre.
A sua entrada nos povoados, seguido pela multidão contrita, em silêncio, alevantando imagens, cruzes e bandeiras do Divino, era solene e impressionadora. Paralisavam-se as ocupações normais. Ermavam-se as oficinas e as culturas. A população convergia para a vila onde, em compensação, avultava o movimento das feiras; e durante alguns dias, eclipsando as autoridades locais, o penitente errante e humilde monopolizava o mando, fazia-se autoridade única.
Erguiam-se na praça, revestidas de folhagens, as latadas, onde à tarde entoavam, os devotos, terços e ladainhas; e quando era grande a concorrência, improvisava-se um palanque ao lado do barracão da feira, no centro do largo, para que a palavra do profeta pudesse irradiar para todos os pontos e edificar todos os crentes.

As prédicas

Ele ali subia e pregava. Era assombroso, afirmam testemunhas existentes. Uma oratória bárbara e arrepiadora, feita de excertos truncados das Horas Marianas, desconexa, abstrusa, agravada, às vezes, pela ousadia extrema das citações latinas; transcorrendo em frases sacudidas; misto inextricável e confuso de conselhos dogmáticos, preceitos vulgares da moral cristã e de profecias esdrúxulas...
Era truanesco e era pavoroso.
Imagine-se um bufão arrebatado numa visão do Apocalipse...
Parco de gestos, falava largo tempo, olhos em terra, sem encarar a multidão abatida sob a algaravia, que derivava demoradamente, ao arrepio do bom senso, em melopédia fatigante.
Tinha, entretanto, ao que parece, a preocupação do efeito produzido por uma ou outra frase mais incisiva. Enunciava-a e emudecia; alevantava a cabeça, descerrava de golpe as pálpebras; viam-se-lhe então os olhos extremamente negros e vivos, e o olhar — uma cintilação ofuscante... Ninguém ousava contemplá-lo. A multidão sucumbida abaixava, por sua vez, as vistas, fascinada, com o estranho hipnotismo daquela insânia formidável.
E o grande desventurado realizava, nesta ocasião, o seu único milagre: conseguia não se tornar ridículo...
Nestas prédicas, em que fazia vitoriosa concorrência aos capuchinhos vagabundos das missões, estadeava o sistema religioso incongruente e vago. Ora, quem as ouviu não se forra a aproximações históricas sugestivas. Relendo as páginas memoráveis1 em que Renan faz ressurgir, pelo galvanismo do seu belo estilo, os adoudados chefes de seita dos primeiros séculos, nota-se a revivescência integral de suas aberrações extintas. Não há desejar mais completa reprodução do mesmo sistema, das mesmas imagens, das mesmas fórmulas hiperbólicas, das mesmas palavras quase. É um exemplo belíssimo da identidade dos estados evolutivos entre os povos. O retrógrado do sertão reproduz o facies dos místicos do passado. Considerando-o, sente-se o efeito maravilhoso de uma perspectiva através dos séculos...
Está fora do nosso tempo. Está de todo entre esses retardatários que Fouillée compara, em imagem feliz, à des coureurs sur le champ de la civilisation, de plus en plus en retard.

Preceitos de montanista

É um dissidente do molde exato de Themison. Insurge-se contra a Igreja romana, e vibra-lhe objurgatórias, estadeando o mesmo argumento que aquele: ela perdeu a sua glória e obedece a Satanás. Esboça uma moral que é a tradução justalinear da de Montano: a castidade exagerada ao máximo horror pela mulher, contrastando com a licença absoluta para o amor livre, atingindo quase à extinção do casamento.
O frígio pregava-a, talvez como o cearense, pelos ressaibos remanescentes das desditas conjugais. Ambos proíbem severamente que as moças se ataviem; bramam contra as vestes realçadoras; insistem do mesmo modo, especialmente, sobre o luxo dos toucados; e — o que é singularíssimo — cominam, ambos, o mesmo castigo a este pecado: o demônio dos cabelos, punindo as vaidosas com dilaceradores pentes de espinho.
A beleza era-lhes a face tentadora de Satã. O Conselheiro extremou-se mesmo no mostrar por ela invencível horror. Nunca mais olhou para uma mulher. Falava de costas, mesmo às beatas velhas, feitas para amansarem sátiros.

Profecias

Ora, esta identidade avulta, mais frisante, quando se comparam com as do passado as concepções absurdas do esmaniado apóstolo sertanejo. Como os montanistas, ele surgia no epílogo na Terra... O mesmo milenarismo extravagante, o mesmo pavor do anticristo despontando na derrocada universal da vida. O fim do mundo próximo...
Que os fiéis abandonassem todos os haveres, tudo quanto os maculasse com um leve traço da vaidade. Todas as fortunas estavam a pique da catástrofe iminente e fora temeridade inútil conservá-las.
Que abdicassem as venturas mais fugazes e fizessem da vida um purgatório duro; e não a manchassem nunca com o sacrilégio de um sorriso. O Juízo Final aproximava-se, inflexível.
Prenunciavam-se anos sucessivos de desgraças:1

“...Em 1896 hade rebanhos mil correr da praia para o certão; então o certão virará praia e a praia virará certão.
Em 1897 haverá muito pasto e pouco rasto e um só pastor e um só rebanho.
Em 1898 haverá muitos chapéos e poucas cabeças.
Em 1899 ficarão as aguas em sangue e o planeta hade apparecer no nascente com o raio do sol que o ramo se confrontará na terra e a terra em algum lugar se confrontará no céu...
Hade chover uma grande chuva de estrellas e ahi será o fim do mundo. Em 1900 se apagarão as luzes. Deus disse no Evangelho: eu tenho um rebanho que anda fóra deste aprisco e é preciso que se reunam porque há um só pastor e um só rebanho!”

Como os antigos, o predestinado atingia a terra pela vontade divina. Fora o próprio Cristo que pressagiara a sua vinda quando

“na hora nona, descançando no monte das Oliveiras um dos seus apostolos perguntou: Senhor! para o fim desta edade que signaes vós deixaes? Elle respondeu: muitos signaes na Lua, no Sol e nas Estrellas. Hade apparecer um Anjo mandado por meu pae terno, pregando sermão pelas portas, fazendo povoações nos desertos, fazendo egrejas e capellinhas e dando seus conselhos...”

E no meio desse extravagar adoudado, rompendo dentre o messianismo religioso, o messianismo da raça levando-o à insurreição contra a forma republicana:

“Em verdade vos digo, quando as nações brigam com as nações, o Brazil com o Brazil, a Inglaterra com a Inglaterra, a Prussia com a Prussia, das ondas do mar D. Sebas¬tião sahirá com todo o seu exercito.
Desde o principio do mundo que encantou com todo seu exercito e o restituio em guerra.
E quando encantou-se afincou a espada na pedra, ella foi até os corpos e elle disse:
Adeus mundo!
Até mil e tantos a dois mil não chegarás!
Neste dia quando sahir com o seu exercito tira a todos no fio da espada deste papel da Republica. O fim desta guerra se acabará na Santa Casa de Roma e o sangue hade ir até a junta grossa...”

Um heresiarca do século II em plena idade moderna

O profetismo tinha, como se vê, na sua boca, o mesmo tom com que despontou na Frígia, avançando para o Ocidente. Anunciava, idêntico, o juízo de Deus, a desgraça dos poderosos, o esmagamento do mundo profano, o reino de mil anos e suas delícias.
Não haverá, com efeito, nisto, um traço superior do judaísmo?
Não há encobri-lo. Ademais este voltar-se à idade de ouro dos apóstolos e sibilistas, revivendo vetustas ilusões, não é uma novidade. É o permanente refluxo do cristianismo para o seu berço judaico. Montano reproduz-se em toda a história, mais ou menos alterado consoante o caráter dos povos, mas delatando, na mesma rebeldia contra a hierarquia eclesiástica, na mesma exploração do sobrenatural, e no mesmo ansiar pelos céus, a feição primitivamente sonhadora da velha religião, antes que a deformassem os sofistas canonizados dos concílios.
A exemplo de seus comparsas do passado, Antônio Conselheiro era um pietista ansiando pelo reino de Deus, prometido, delongado sempre e ao cabo de todo esquecido pela Igreja ortodoxa do século II.
Abeirara-se apenas do catolicismo mal compreendido.

Tentativas de reação legal

Coerente com a missão a que se devotara, ordenava, depois destas homilias, penitências que de ordinário redundavam em benefício das localidades. Reconstruíam-se templos abatidos; renovavam-se cemitérios em abandono; erigiam-se construções novas e elegantes. Os pedreiros e carpinteiros trabalhavam de graça; os abastados forneciam, grátis, os materiais indispensáveis; o povo carregava pedras. Durante dias seguidos, na azáfama piedosa, se agitavam os operários cujos salários se averbavam nos céus.
E terminada a empresa o predestinado abalava... para onde? Ao acaso, tomando a primeira vereda, pelos sertões em fora, pelas chapadas multívias, sem olhar sequer para os que o encalçavam.
Não o contrariava o antagonismo de um adversário perigoso, o padre. A dar-se crédito a testemunho valioso,1 aquele, em geral, estimulava-lhe ou permitia-lhe as práticas pelas quais, sem nada usufruir, promovia todos os atos de onde saem os rendimentos do clero: batizados, desobrigas, festas e novenas.
Os vigários toleravam com boa sombra os despropósitos do Santo endemoninhado que ao menos lhes acrescia a côngrua reduzida. Percebeu-o, em 1882, o arcebispo da Bahia, procurando pôr paradeiro a esta transigência, senão mal disfarçada proteção, por uma circular dirigida a todos os párocos.

“Chegando ao nosso conhecimento, que pelas freguesias do centro deste arcebispado, anda um indivíduo denominado Antônio Conselheiro, pregando ao povo, que se reúne para ouvi-lo, doutrinas supersticiosas e uma moral excessivamente rígida2 com que está perturbando as consciências e enfraquecendo, não pouco, a autoridade dos párocos destes lugares, ordenamos a V. Revma., que não consinta em sua freguesia semelhante abuso, fazendo saber aos Paroquianos que lhes proibimos absolutamente, de se reunirem para ouvir tal pregação, visto como, competindo na igreja católica, somente aos ministros da religião, a missão santa de doutrinar os povos, um secular, quem quer que ele seja, ainda quando muito instruído e virtuoso, não tem autoridade para exercê-la.
Entretanto sirva isto para excitar cada vez mais o zelo de V. Revma, no exercício do ministério da pregação, a fim de que os seus paroquianos, suficientemente instruídos, não se deixem levar por todo o vento de doutrina” etc.1

Foi inútil a intervenção da Igreja.
Antônio Conselheiro continuou sem embaraços a sua marcha de desnorteado apóstolo, pervagando nos sertões. E como se desejasse reviver sempre a lembrança da primeira perseguição sofrida, volve constantemente ao Itapicuru, cuja autoridade policial, por fim, apelou para os poderes constituídos, em ofício onde, depois de historiar ligeiramente os antecedentes do agitador, disse:2

“...Fez neste termo seu acampamento e presentemente está no referido arraial construindo uma capela a expensas do povo.
Conquanto esta obra seja de algum melhoramento, aliás dispensável, para o lugar, todavia os excessos e sacrifí¬cios não compensam este bem, e, pelo modo por que estão os ânimos, é mais que justo e fundado o receio de grandes desgraças.
Para que V. Sa. saiba quem é Antônio Conselheiro, basta dizer que é acompanhado por centenas e centenas de pessoas, que ouvem-no e cumprem suas ordens de preferência às do vigário da paróquia.
O fanatismo não tem limites e assim é quem, sem medo de erro, e firmando em fatos, posso afirmar que adoram-no, como se fosse um Deus vivo.
Nos dias de sermões, terços e ladainhas, o ajuntamento sobe a mil pessoas. Na construção desta capela, cuja féria semanal é de quase cem mil réis, décuplo do que devia ser pago, estão empregados cearenses, aos quais Antônio Conselheiro presta a mais cega proteção, tolerando e dissimulando os atentados que cometem, e esse dinheiro sai dos crédulos e ignorantes, que, além de não trabalharem, vendem o pouco que possuem e até furtam para que não haja a menor falta, sem falar nas quantias arrecadadas que têm sido remetidas para outras obras do Xorroxó, termo do Capim Grosso.”

E depois de apontar a última tropelia dos fanáticos:

“Havendo desinteligência entre o grupo de Antônio Conselheiro e o vigário de Inhambupe, está aquele municiado como se tivesse de ferir uma batalha campal, e consta que estão à espera que o vigário vá ao lugar denominado Junco para assassiná-lo. Faz medo aos transeuntes passar por alto, vendo aqueles malvados munidos de cacetes, facas, facões, clavinotes; e ai daquele que for suspeito de ser infenso a Antônio Conselheiro.”

Ao que se figura, este apelo, feito em termos tão alarmantes, não foi correspondido. Nenhuma providência se tomou até meados de 1887, quando a diocese da Bahia interveio de novo, oficiando o arcebispo ao presidente da província, pedindo providências que contivessem o “indivíduo Antônio Vicente Mendes Maciel que pregando doutrinas subversivas, fazia um grande mal à religião e ao Estado, distraindo o povo de suas obrigações e arrastando-o após si, procurando convencer de que era Espírito Santo” etc.
Ante o reclamo, o presidente daquela província dirigiu-se ao ministro do Império, pedindo um lugar para o tresloucado no hospício de alienados do Rio. O ministro respondeu ao presidente contrapondo o notável argumento de não haver, naquele estabelecimento, lugar algum vago; e o presidente oficiou de novo ao prelado, tornando-o ciente da resolução admirável do governo.
Assim se abriu e se fechou o ciclo das providências legais que se fizeram durante o Império.

Mais lendas

O Conselheiro continuou sem tropeços na missão perver¬tedora, avultando na imaginação popular.
Apareciam as primeiras lendas.
Não as arquivaremos todas.
Fundou o arraial do Bom Jesus; e contam as gentes assombradas que em certa ocasião, quando se construía a belíssima igreja que lá está, esforçando-se debalde dez operários por erguerem pesado baldrame, o predestinado trepou sobre o madeiro e ordenou, em seguida, que dous homens apenas o levantem; e o que não haviam conseguido tantos, realizaram os dous, rapidamente, sem esforço algum...
Outra vez — ouvi o estranho caso a pessoas que se não haviam deixado fanatizar! — chegou a Monte Santo e determinou que se fizesse uma procissão pela montanha acima, até a última capela, no alto. Iniciou-se à tarde a cerimônia. A multidão derivou, lenta, pela encosta clivosa, entoando benditos, estacionando nos passos, contrita. Ele seguia na frente — grave e sinistro — descoberto, agitada pela ventania forte a cabeleira longa, arrimando-se ao bordão inseparável. Desceu a noite. Acenderam-se as tochas dos penitentes, e a procissão, estendida na linha de cumeadas, traçou uma estrada luminosa no dorso da montanha...
Ao chegar à Santa Cruz, no alto, Antônio Conselheiro, ofegante, senta-se no primeiro degrau da tosca escada de pedra, e queda-se estático, contemplando os céus, o olhar imerso nas estrelas...
A primeira onda de fiéis enche logo o âmbito restrito da capela, enquanto outros permanecem fora ajoelhados sobre a rocha aspérrima.
O contemplativo, então, levanta-se. Mal sofreia o cansaço. Entre alas respeitosas, penetra, por sua vez, na capela, pendida para o chão a cabeça, humílimo e abatido, arfando.
Ao abeirar-se do altar-mor, porém, ergue o rosto pálido, emoldurado pelos cabelos em desalinho. E a multidão estremece toda, assombrada... Duas lágrimas sangrentas rolam, vagarosamente, no rosto imaculado da Virgem Santíssima...
Estas e outras lendas são ainda correntes no sertão. É natural. Espécie de grande homem pelo avesso, Antônio Conselheiro reunia no misticismo doentio todos os erros e superstições que formam o coeficiente de redução da nossa nacionalidade. Arrastava o povo sertanejo não porque o dominasse, mas porque o dominavam as aberrações daquele. Favorecia-o o meio e ele realizava, às vezes, como vimos, o absurdo de ser útil. Obedecia à finalidade irresistível de velhos impulsos ancestrais; e jugulado por ela espelhava em todos os atos a placabilidade de um evangelista incomparável.
De feito, amortecia-lhe a nevrose inexplicável placidez.
Certo dia o vigário de uma freguesia sertaneja vê chegar à sua porta um homem extremamente magro e sucumbido: longos cabelos despenteados pelos ombros, longas barbas descendo pelo peito; uma velha figura de peregrino a que não faltavam o crucifixo tradicional, suspenso a um lado entre as camândulas da cintura, e o manto poento e gasto, e a borracha d’água, e o bordão comprido...
Dá-lhe o pároco com que se alimente, aceita um pedaço de pão apenas; oferece-lhe um leito, prefere uma tábua sobre que se deita sem cobertas, vestido, sem mesmo desatacar as sandálias.
No outro dia o singularíssimo hóspede, que poucas palavras até então pronunciara, pede ao padre lhe conceda pregar por ocasião da festa que ia realizar-se na igreja.
— Irmão, não tendes ordens; a Igreja não permite que pregueis.
— Deixai-me, então, fazer a via sacra.
— Também não posso, vou eu fazê-la, contraveio mais uma vez o sacerdote.
O peregrino, então, encarou-o fito por algum tempo, e sem dizer palavra tirou de sob a túnica um lenço. Sacudiu o pó das alpercatas. E partiu.
Era o clássico protesto inofensivo e tranqüilo dos apóstolos...

Hégira para o sertão

A reação, porém, crescendo, malignou-lhe o ânimo. Domi¬nador incondicional, principiou de se irritar ante a menor contrariedade.
Certa vez, em Natuba, estando ausente o vigário, com quem não estava em boas graças, apareceu e mandou carregar pedras para consertos da igreja. Chega o padre; vê a invasão dos domínios sagrados; irrita-se e resolve pôr embargos à desordem. Era homem prático; apelou para o egoísmo humano.
Tendo a Câmara, dias antes, imposto aos proprietários o calçamento dos passeios das casas, cedeu ao povo, para tal fim, as pedras já acumuladas.
O Conselheiro não se limitou, desta vez, a sacudir as sandálias. Saiu-lhe da boca a primeira maldição, às portas da cidade ingrata; e partiu.
Tempos depois, a pedido do mesmo vigário, certa influência política do local o chamou. O templo desabava, em ruínas; o mato invadira todo o cemitério; e a freguesia era pobre. Só podia renová-los quem tão bem dispunha dos matutos crédulos. O apóstolo deferiu ao convite. Mas fê-lo através de imposições discricionárias, relembrando, com altaneria destoante da pacatez antiga, a afronta recebida.
Iam-no tornando mau.
Viu a República com maus olhos e pregou, coerente, a rebeldia contra as novas leis. Assumiu desde 1893 uma feição combatente inteiramente nova.
Originou-a fato de pouca monta.
Decretada a autonomia dos municípios, as Câmaras das localidades do interior da Bahia tinham afixado nas tábuas tradicionais, que substituem a imprensa, editais para a cobrança de impostos, etc.
Ao surgir esta novidade Antônio Conselheiro estava em Bom Conselho. Irritou-o a imposição; e planejou revide imediato. Reuniu o povo num dia de feira e, entre gritos sediciosos e estrepitar de foguetes, mandou queimar as tábuas numa fogueira, no largo. Levantou a voz sobre o “auto de fé”, que a fraqueza das autoridades não impedira, e pregou abertamente a insurreição contra as leis.
Avaliou, depois, a gravidade do atentado.
Deixou a vila, tomando pela estrada de Monte Santo, para o norte.
O acontecimento repercutia na capital, de onde partiu numerosa força de polícia para prender o rebelde e dissolver os grupos turbulentos. Estes naquela época não excediam duzentos homens. A tropa alcançou-os em Massete, lugar desabrigado e estéril entre Tucano e Cumbe, nas cercanias das serras do Ovó. As trinta praças, bem armadas, atacaram impetuosamente a turba de penitentes depauperados, certas de os destroçarem à primeira descarga. Deram, porém, de frente, com os jagunços destemerosos. Foram inteiramente desbaratadas, precipitando-se na fuga, de que fora o primeiro a dar exemplo o próprio comandante.
Esta batalha minúscula teria, infelizmente, mais tarde, muitas cópias ampliadas.
Realizada a façanha, os crentes acompanharam, reatando a marcha, a hégira do profeta. Não procuravam mais os povoados, como dantes. Demandavam o deserto.
O desbarato da tropa prenunciava-lhes perseguições mais vigorosas; e, certos do amparo da natureza selvagem, contavam com a vitória enterreirando entre as caatingas os novos contendores. Estes partiram, de fato, sem perda de tempo, da Bahia, em número de oitenta praças, de linha. Mas não prosseguiram além de Serrinha, de onde tornaram sem se aventurarem com o sertão. Antônio Conselheiro, porém, não se iludiu com o inexplicável recuo, que o salvara. Arrastou a matula de fiéis, a que se aliavam, dia a dia, dezenas de prosélitos, pelas trilhas sertanejas fora, seguindo prefixado rumo.
Conhecia o sertão. Percorrera-o todo numa romaria inin¬terrupta de vinte anos. Sabia de paragens ignotas de onde o não arrancariam. Marcara-as já talvez, prevenindo futuras vicissi¬tudes.
Endireitou, rumo firme, em cheio para o norte.
Os crentes acompanharam-no. Não inquiriram para onde seguiam. E atravessaram serranias íngremes, tabuleiros estéreis e chapadas rasas, longos dias, vagarosamente, na marcha cadenciada pelo toar das ladainhas e pelo passo tardo do profeta...

V

Canudos: antecedentes

Canudos, velha fazenda de gado à beira do Vaza-Barris, era, em 1890, uma tapera de cerca de cinqüenta capuabas de pau-a-pique.
Já em 1876, segundo o testemunho de um sacerdote, que ali fora, como tantos outros, e nomeadamente o vigário de Cumbe, em visita espiritual às gentes de todo despeadas da terra, lá se aglomerava, agregada à fazenda então ainda florescente, população suspeita e ociosa, “armada até aos dentes” e “cuja ocupação, quase exclusiva, consistia em beber aguardente e pitar uns esquisitos cachimbos de barro em canudos de metro de extensão”1 de tubos naturalmente fornecidos pelas solanáceas (canudos-de-pito), vicejantes em grande cópia à beira do rio.
Assim, antes da vinda do Conselheiro, já o lugarejo obscuro — e o seu nome claramente se explica — tinha, como a maioria dos que jazem desconhecidos pelos nossos sertões, muitos germens da desordem e do crime. Estava, porém, em plena decadência quando lá chegou aquele em 1893; tijupares em abandono; vazios os pousos; e, no alto de um esporão da Favela, destelhada, reduzida às paredes exteriores, a antiga vivenda senhoril, em ruínas...
Data daquele ano a sua revivescência e crescimento rápido. O aldeamento efêmero dos matutos vadios, centralizado pela igreja velha, que já existia, ia transmudar-se, ampliando-se em pouco tempo, na Tróia de taipa dos jagunços.
Era o lugar sagrado, cingido de montanhas, onde não penetraria a ação do governo maldito.
A sua topografia interessante modelava-o ante a imaginação daquelas gentes simples como o primeiro degrau, amplíssimo e alto, para os céus...

Crescimento vertiginoso

Não surpreende que para lá convergissem, partindo de todos os pontos, turmas sucessivas de povoadores convergentes das vilas e povoados mais remotos.
Diz uma testemunha:1 “Alguns lugares desta comarca e de outras circunvizinhas, e até do Estado de Sergipe, ficaram desabitados, tal a aluvião de famílias que subiam para os Canudos, lugar escolhido por Antônio Conselheiro para o centro de suas operações. Causava dó verem-se expostos à venda nas feiras, extraordinária quantidade de gado cavalar, va¬cum, caprino, etc., além de outros objetos, por preços de nonada, como terrenos, casas, etc. O anelo extremo era vender, apurar algum dinheiro e ir reparti-lo com o Santo Conselheiro.”
Assim se mudavam os lares.
Inhambupe, Tucano, Cumbe, Itapicuru, Bom Conselho, Natuba, Maçacará, Monte Santo, Jeremoabo, Uauá, e demais lugares próximos; Entre Rios, Mundo Novo, Jacobina, Itabaiana e outros sítios remotos forneciam constantes contingentes. Os raros viajantes que se arriscavam a viagens naquele sertão topavam grupos sucessivos de fiéis que seguiam, ajoujados de fardos, carregando as mobílias toscas, as canastras e os oratórios, para o lugar eleito. Isoladas a princípio, essas turmas adunavam-se pelos caminhos, aliando-se a outras, chegando, afinal, conjuntas, a Canudos.
O arraial crescia vertiginosamente, coalhando as colinas.
A edificação rudimentar permitia à multidão sem lares fazer até doze casas por dia; — e, à medida que se formava, a tapera colossal parecia estereografar a feição moral da sociedade ali acoutada. Era a objetivação daquela insânia imensa. Documento iniludível permitindo o corpo de delito direto sobre os desmandos de um povo.
Aquilo se fazia a esmo, adoudadamente.

Aspecto original

A urbs monstruosa, de barro, definia bem a civitas sinistra do erro. O povoado novo surgia, dentro de algumas semanas, já feito ruínas. Nascia velho. Visto de longe, desdobrado pelos cômoros, atulhando as canhadas, cobrindo área enorme, truncado nas quebradas, revolto nos pendores — tinha o aspecto perfeito de uma cidade cujo solo houvesse sido sacudido e brutalmente dobrado por um terremoto.
Não se distinguiam as ruas. Substituía-as dédalo deses¬perador de becos estreitíssimos, mal separando o baralhamento caótico dos casebres feitos ao acaso, testadas volvidas para todos os pontos, cumeeiras, orientando-se para todos os rumos, como se tudo aquilo fosse construído, febrilmente, numa noite, por uma multidão de loucos...
Feitas de pau-a-pique e divididas em três compartimentos minúsculos, as casas eram paródia grosseira da antiga morada romana: um vestíbulo exíguo, um átrio servindo ao mesmo tempo de cozinha, sala de jantar e de recepção; e uma alcova lateral, furna escuríssima mal revelada por uma porta estreita e baixa. Cobertas de camadas espessas de vinte centímetros, de barro, sobre ramos de icó, lembravam as choupanas dos gauleses de César. Traíam a fase transitória entre a caverna primitiva e a casa. Se as edificações em suas modalidades evolutivas objetivam a personalidade humana, o casebre de teto de argila dos jagunços equiparado ao wigwam dos peles-vermelhas sugeria paralelo deplorável. O mesmo desconforto e, sobretudo, a mesma pobreza repugnante, traduzido de certo modo, mais do que a miséria do homem, a decrepitude da raça.
Quando o olhar se acomodava à penumbra daqueles cômodos exíguos, lobrigava, invariavelmente, trastes raros e grosseiros: um banco tosco; dous ou três banquinhos com a forma de escabelos; igual número de caixas de cedro, ou canastras; um jirau pendido do teto; e as redes. Eram toda a mobília. Nem camas, nem mesas. Pendurados aos cantos, viam-se insignificantes acessórios: o bogó ou borracha, espécie de balde de couro para o transporte de água; pares de caçuás (jacás de cipó) e os aiós, bolsa de caça, feita das fibras de caroá. Ao fundo do único quarto, um oratório tosco. Neste, copiando a mesma feição achamboada do conjunto, santos mal acabados, imagens de linhas duras, a objetivarem a religião mestiça em traços incisivos de manipansos: Santo Antônios proteiformes e africanizados, de aspecto bronco, de fetiches; Marias Santíssimas, feias como megeras...
Por fim as armas — a mesma revivescência de estádios remotos: o facão jacaré, de folha larga e forte; a parnaíba dos cangaceiros, longa como uma espada; o ferrão ou guiada, de três metros de comprido, sem a elegância das lanças, reproduzindo os piques antigos; os cacetes ocos e cheios pela metade de chumbo, pesadelos como montantes; as bestas e as espingardas.
Entre estas últimas, gradações completas, desde a de cano fino, carregada com escumilha, até à “legítima de Braga”, cevada com chumbo grosso, ao trabuco brutal ao modo de uma colubrina portátil, capaz de arremessar calhaus e pontas de chifre, à lazarina ligeira, ou ao bacamarte de boca-de-sino.
Nada mais. De nada mais necessitava aquela gente. Canudos surgia com a feição média entre a de um acampamento de guerreiros e a de um vasto kraal africano. A ausência de ruas, as praças que, à parte a das igrejas, nada mais eram que o fundo comum dos quintais, e os casebres unidos, tornavam-no como vivenda única, amplíssima, estendida pelas colinas, e destinada a abrigar por pouco tempo o clã tumultuário de Antônio Conselheiro.
Sem a alvura reveladora das paredes caiadas e telhados encaliçados, a certa distância era invisível. Confundia-se com o próprio chão. Aparecia, de perto, de chofre, constrito numa volta do Vaza-Barris, que o limitava do levante ao sul abarcando-o.
Emoldurava-o uma natureza morta: paisagens tristes; colinas nuas, uniformes, prolongando-se, ondeantes, até às serranias¬ distantes, sem uma nesga de mato; rasgadas de lascas de talcoxisto, mal revestidas, em raros pontos, de acervos de bromélias, encimadas, noutros, pelos cactos esguios e solitá¬rios. O monte da Favela, ao sul, empolava-se mais alto, tendo no sopé, fronteiro à praça, alguns pés de quixabeiras, agrupados em horto selvagem. À meia encosta via-se solitária, em ruínas, a antiga casa da fazenda...
A uma banda, perto e dominante, um contraforte, o morro dos Pelados, termina de chofre em barranca a prumo sobre o rio e este, dali por diante progredindo numa inflexão forte para montante, abarca o povoado em leito escavado e fundo, como um fosso. Ali vão ter quebradas de bordas a pique, abertas pelas erosões intensas por onde, no inverno, rolam acachoando afluentes efêmeros tendo os nomes falsos de rios: o Mucuim, o Umburanas, e outro, que sucessos ulteriores denominariam da “Providência”.
Canudos, assim circunvalado quase todo pelo Vaza-Barris, embatia ao sul contra as vertentes da Favela e dominado no ocidente pelas lombas mais altas de flancos em escarpa em que se comprimia aquele nas enchentes, desatava-se para o levante segundo o expandir dos plainos ondulados. As montanhas longínquas fechavam-se em roda, formando, quase contínua, uma elipse de eixos dilatados. Feito postigos em baluarte desmedido, abriam-se, estreitas, as gargantas em que passavam os caminhos: o do Uauá, estrangulado entre os pendores fortes do Caipã; o de Jeremoabo, insinuando-se nos desfiladeiros de Cocorobó; o do Cambaio, em aclives, investindo com as vertentes do Calumbi; e o do Rosário.
Ora, por estas veredas, prendendo, no se ligarem a outras trilhas, o povoado nascente ao fundo dos sertões do Piauí, Ceará, Pernambuco e Sergipe — chegavam sucessivas caravanas de fiéis. Vinham de todos os pontos, carregando os haveres todos; e, transpostas as últimas voltas do caminho, quando divisavam o campanário humilde da antiga capela, caíam genuflexos sobre o chão aspérrimo. Estava atingido o termo da romagem. Estavam salvos da pavorosa hecatombe, que vaticinavam as profecias do evangelizador. Pisavam, afinal, a terra da promissão — Canaã sagrada, que o Bom Jesus isolara do resto do mundo por uma cintura de serras...
Chegavam, estropiados da jornada longa, mas felizes. Acampavam à gandaia pelo alto dos cômoros. À noite acendiam-se as fogueiras nos pousos dos peregrinos relentados. Uma faixa fulgurante enlaçava o arraial; e, uníssonas, entrecruzavam-se, ressoando nos pousos e nas casas, as vozes da multidão penitente, na melopéia plangente dos benditos.
Ao clarear da manhã entregavam-se à azáfama da construção dos casebres. Estes, a princípio apinhando-se próximos à depressão em que se erigia a primitiva igreja, e descendo desnivelados ao viés das encostas breves até ao rio, começavam a salpintar, esparsos, o terreno rugado, mais longe.
Construções ligeiras, distantes do núcleo compacto da casaria, pareciam obedecer ao traçado de um plano de defesa. Sucediam-se escalonadas, ladeando os caminhos. Marginavam o de Jeremoabo, erectas numa e outra margem do Vaza-Barris, para jusante, até Trabubu e o ribeirão de Macambira. Pontilhavam o do Rosário, transpondo o rio e contornando a Favela. Espalhavam-se pelos cerros, que se sucediam inúmeros segundo o rumo de Uauá. Inscritas em cercas impenetráveis de gravatás, plantados na borda de um fosso envolvente, cada uma era, do mesmo passo, um lar e um reduto. Dispunham-se formando linhas irregulares de baluartes.
Porque a cidade selvagem, desde o princípio, tinha em torno, acompanhando-a no crescimento rápido, um círculo formidável de trincheiras cavadas em todos os pendores, enfiando todas as veredas, planos de fogo volvidos, rasantes com o chão, para todos os rumos. Veladas por touceiras inextricáveis de macambiras ou lascas de pedra, não se revelavam à distância. Vindo do levante, o viajor que as abeirasse, ao divisar, esparsas sobre os cerros, as choupanas exíguas à maneira de guaritas, acreditaria topar uma rancharia esparsa de vaqueiros inofensivos. Atingia, de repente, a casaria compacta, surpreso, como se caísse numa tocaia.
Para quem viesse do sul, porém, pelo Rosário ou Calumbi, galgado o alto da Favela, ou as ladeiras fortes que se derivam para o Rio Sargento, o casario aparecia a um quilômetro, ao norte, esbatido num plano inferior, francamente exposto, de modo a se poder num lance único de vista aquilatar-lhe as condições de defesa.
Eram na aparência deploráveis. O arraial parecia disposto para o choque das cargas fulminantes, rolando impetuosas, com a força viva de uma queda, pelos aclives abruptos. O inimigo, livre de escaladas penosas, varejá-lo-ia em tiros mergulhantes. Podia assediá-lo todo, batendo todas as entradas, com uma bateria única.
Tinha, entretanto, condições táticas preexcelentes. Compreendera-as algum Vauban inculto...
Fechado ao sul pelo morro, descendo escancelado de gargantas até ao rio, fechavam-no, a oeste, uma muralha e um valo. De fato, infletindo naquele rumo, o Vaza-Barris, comprimido entre as últimas casas e as escarpas a pique dos morros sobranceiros, torcia para o norte feito um canyon fundo. A sua curva forte rodeava, circunvalando-a, a depressão em que se erigia o povoado, que se trancava a leste pelas colinas, a oeste e norte pelas ladeiras das terras mais altas, que dali se entumescem até aos contrafortes extremos do Cambaio e do Caipã; e ao sul pela montanha.
Canudos era uma tapera dentro de um furna. A praça das igrejas, rente ao rio, demarcava-lhe a área mais baixa. Dali, segundo um eixo orientado ao norte, se expandia alteando-se a pouco e pouco, em plano inclinado breve, feito um vale largo, em declive. Lá dentro se apertavam os casebres, atulhando toda a baixada, subindo, mais esparsos, pelas encostas de leste, transbordando, afinal, nas exíguas vivendas que vimos salpintando, raras, o alto dos cerros minados de trincheiras. A grei revoltosa — como se vê — não se ilhava em uma eminência, assoberbando os horizontes, a cavaleiro dos assaltos. Entocara-se. Naquela região belíssima, em que as linhas de cumeadas se rebatem no plano alto dos tabuleiros, escolhera precisamente o trecho que recorda uma vala comum enorme...

Regime da “urbs”

Lá se firmou logo um regime modelado pela religiosidade do apóstolo extravagante.
Jugulada pelo seu prestígio, a população tinha, engra¬vescidas, todas as condições do estádio social inferior. Na falta da irmandade do sangue, a consangüinidade moral dera-lhe a forma exata de um clã, em que as leis eram o arbítrio do chefe e a justiça as suas decisões irrevogáveis. Canudos estereotipava o facies dúbio dos primeiros agrupamentos bárbaros.
O sertanejo simples transmudava-se, penetrando-o, no fanático destemeroso e bruto. Absorvia-o a psicose coletiva. E adotava, ao cabo, o nome até então consagrado aos turbulentos de feira, aos valentões das refregas eleitorais e saqueadores de cidades — jagunço.

População multiforme

De sorte que ao fim de algum tempo a população constituída dos mais díspares elementos, do crente fervoroso abdicando de si todas as comodidades da vida noutras paragens, ao bandido solto, que lá chegava de clavinote ao ombro em busca de novo campo de façanhas, se fez a comunidade homogênea e uniforme, massa inconsciente e bruta, crescendo sem evolver, sem órgãos e sem funções especializadas, pela só justaposição mecânica de levas sucessivas, à maneira de um polipeiro humano. É natural que absorvesse, intactas, todas as tendências do homem extraordinário do qual a aparência protéica — de santo exilado na terra, de fetiche de carne e osso e de bonzo claudicante — estava adrede talhada para reviver os estigmas degenerativos de três raças.
Aceitando, às cegas, tudo quanto lhe ensinara aquele; imersa de todo no sonho religioso; vivendo sob a preocupação doentia de outra vida, resumia o mundo na linha de serranias que a cingiam. Não cogitava de instituições garantidoras de um destino na terra.
Eram-lhes inúteis. Canudos era o cosmos.
E este mesmo transitório e breve: um ponto de passagem, uma escala terminal, de onde decampariam sem demora; o último pouso na travessia de um deserto — a Terra. Os jagunços errantes ali armavam pela derradeira vez as tendas, na romaria miraculosa para os céus...
Nada queriam desta vida. Por isto a propriedade tornou-se-lhes uma forma exagerada do coletivismo tribal dos beduínos: apropriação pessoal apenas de objetos móveis e das casas, comunidade absoluta da terra, das pastagens, dos rebanhos e dos escassos produtos das culturas, cujos donos recebiam exígua quota parte, revertendo o resto para a companhia. Os recém-vindos entregavam ao Conselheiro noventa e nove por cento do que traziam, incluindo os santos destinados ao santuário comum. Reputavam-se felizes com a migalha restante. Bastava-lhes de sobra. O profeta ensinara-lhes a temer o pecado mortal do bem-estar mais breve. Voluntários da miséria e da dor, eram venturosos na medida das provações sofridas. Viam-se bem, vendo-se em andrajos. Este desprendimento levado às últimas conseqüên¬cias, chegava a despi-los das belas qualidades morais, lon¬gamente apuradas na existência patriarcal dos sertões. Para Antônio Conselheiro — e neste ponto ele ainda copia velhos modelos históricos — a virtude era como que o reflexo superior da vaidade. Uma quase impiedade. A tentativa de enobrecer a existência na terra implicava de certo modo a indiferença pela felicidade sobrenatural iminente, o olvido do além maravilhoso anelado.
O seu senso moral deprimido só compreendia a posse deste pelo contraste das agruras suportadas.
De todas as páginas de catecismos que soletrara ficara-lhe preceito único:
Bem-aventurados os que sofrem...
A extrema dor era a extrema-unção. O sofrimento duro a absolvição plenária; a teriaga infalível para a peçonha dos maio¬res vícios.
Que os homens se desmandassem ou agissem virtuosamente — era questão somenos.1 Consentia de boa feição que errassem, mas que todas as impurezas, todas as escorralhas de uma vida infame, saíssem, afinal, gota a gota, nas lágrimas vertidas.
Ao saber de caso escandaloso em que a lubricidade de um devasso maculara incauta donzela teve, certa vez, uma frase ferozmente cínica, que os sertanejos repetiam depois sem lhe aquilatarem a torpeza:

“Seguiu o destino de todas: passou por baixo da árvore do bem e do mal!”

Não é para admirar que se esboçasse logo, em Canudos, a promiscuidade de um hetairismo infrene. Os filhos espúrios não tinham à fronte o labéu indelével da origem, a situação infamante dos bänklings entre os germanos. Eram legião.
Porque o dominador, se não estimulava, tolerava o amor livre. Nos conselhos diários não cogitava da vida conjugal, traçando normas aos casais ingênuos. E era lógico. Contados os últimos dias do mundo, fora malbaratá-los agitando preceitos vãos, quando o cataclismo iminente viria, em breve, apagar para sempre as uniões mais íntimas, dispersar os lares e confundir no mesmo vórtice todas as virtudes e todas as abominações. O que urgia era antecipá-lo pelas provações e pelo martírio. Pregava, então, os jejuns prolongados, as agonias da fome, a lenta exaustão da vida. Dava o exemplo fazendo constar, pelos fiéis mais íntimos, que atravessava os dias alimentando-se com um pires de farinha. Conta-se que em certo dia foi visitado por um crente abastado das cercanias. Repartiu com ele a refeição escassa; e este — milagre que abalou o arraial inteiro! — saiu do banquete minúsculo repleto, empanzinado, como se volvesse de festim soberbo.
Esse regime severo tinha efeito duplo: tornava, pela própria debilidade, mais vibrátil a inervação enferma dos crentes e preparava-os para as aperturas dos assédios, talvez previstos. Era, talvez, intenção recôndita de Antônio Conselheiro. Nem de outro modo se compreende que permitisse assistissem no arraial indivíduos cuja índole se contrapunha à sua placabilidade humilde.
Canudos era o homizio de famigerados facínoras. Ali chegavam, de permeio com os matutos crédulos e vaqueiros iludidos, sinistros heróis da faca e da garrucha. E estes foram logo os mais quistos daquele homem singular, os seus ajudantes-de-ordens prediletos, garantindo-lhe a autoridade inviolável. Eram, por um contraste natural, os seus melhores discípulos. A seita esdrúxula — caso de simbiose moral em que o belo ideal cristão surgia monstruoso dentre aberrações fetichistas — tinha os seus naturais representantes nos batistas truculentos, capazes de carregar os bacamartes homicidas com as contas dos rosários...

Polícia de bandidos

Graças a seus braços fortes, Antônio Conselheiro dominava o arraial, corrigindo os que saíam das trilhas demarcadas. Na cadeia ali paradoxalmente instituída — a poeira, no dizer dos jagunços — viam-se, diariamente, presos pelos que haviam cometido a leve falta de alguns homicídios os que haviam perpetrado o crime abominável de faltar às rezas.
Inexorável para as pequenas culpas, nulíssima para os grandes atentados, a justiça era, como tudo o mais, antinômica, no clã policiado por facínoras. Visava uma delinqüência especial, traduzindo-se na inversão completa do conceito do crime. Exercitava-se, não raro duramente, cominando penas severíssimas sobre leves faltas.
O uso da aguardente, por exemplo, era delito sério. Ai! do dipsomaníaco incorrigível que rompesse o interdito imposto!
Conta-se que de uma feita alguns tropeiros inexpertos, vindos do Juazeiro, foram ter a Canudos, levando alguns barris do líquido inconcesso. Atraía-os o engodo de lucro inevitável. Levavam a eterna cúmplice das horas ociosas dos matutos. Ao chegarem, porém, tiveram, depois de descarregarem na praça a carga valiosa, desagradável surpresa. Viram, ali mesmo, abertos os barris, a machado, e inutilizado o contrabando sacrílego. E volveram rápidos, desapontados, tendo às mãos, ao invés do ganho apetecido, o ardor de muitas dúzias de palmatoadas, amargos bolos com que os presenteara aquela gente ingrata.
Este caso é expressivo. Sólida experiência ensinara ao Conselheiro todos os perigos que adviriam deste haxixe nacional. Interdizia-o menos por debelar um vício que para prevenir desordens. Mas fora do povoado, estas podiam espalhar-se à larga. Dali partiam bandos turbulentos arremetendo com os arredores. Toda a sorte de tropelias era permitida, desde que aumentasse o patrimônio da grei. Em 1894, as algaras, chefiadas por valentões de nota, tornaram-se alarmantes. Foram em um crescendo tal, de depredações e desacatos, que despertaram a atenção dos poderes constituídos, originando mesmo calorosa e inútil discussão na Assembléia Estadual da Bahia.

Depredações

Em dilatado raio em torno de Canudos, talavam-se fazendas, saqueavam-se lugarejos, conquistavam-se cidades! No Bom Conselho, uma horda atrevida, depois de se apossar da vila, pô-la em estado de sítio, dispersou as autoridades, a começar pelo juiz da comarca e, como entreato hilariante na razzia escandalosa, torturou o escrivão dos casamentos que se viu em palpos de aranha para impedir que os crentes sarcásticos lhe abrissem, tosquiando-o, uma coroa larga, que lhe justificasse o invadir as atribuições sagradas do vigário.
Os desordeiros volviam cheios de despojos para o arraial, onde ninguém lhes tomava conta dos desmandos.
Muitas vezes, diz o testemunho unânime da população sertaneja, tais expedições eram sugeridas por intuito diverso. Alguns fiéis abastados tinham veleidades políticas. Sobrevinha a quadra eleitoral. Os grandes conquistadores de urnas que, a exemplo de milhares de comparsas disseminados neste país transformam a fantasia do sufrágio universal na calva de Hércules da nossa dignidade, apelavam para o Conselheiro.
Canudos fazia-se, então, provisoriamente, o quartel das guardas pretorianas dos capangas, que de lá partiam, trilhando rumos prefixos, para reforçarem, a pau e a tiro, a soberania popular, expressa na imbecilidade triunfante de um régulo qualquer; e para o estraçoamento das atas; e para as mazorcas periódicas que a lei marca, denominando-as “eleições”, eufemismo que é entre nós o mais vivo traço das ousadias da linguagem. A nossa civilização de empréstimo arregimentava, como sempre o fez, o banditismo sertanejo.
Ora, estas arrancadas eram um ensinamento. Eram úteis. Eram exercícios práticos indispensáveis ao preparo para recontros mais valentes. Compreendera-as, talvez, assim, o Conselheiro. Tolerava-as. No arraial, porém, exigia, digamos em falta de outro termo — porque os léxicos não o têm para exprimir um tumulto disciplinado, — ordem inalterável. Ali permaneciam, inofensivos porque eram inválidos, os seus melhores crentes: mulheres, crianças, velhos alquebrados, doentes inúteis. Viviam parasitariamente da solicitude do chefe, que lhes era o Santo protetor, ao qual saudavam entoando versos há vinte e tantos anos correntes nos sertões.

Do céu veio uma luz
Que Jesus Cristo mandou.
Santo Antônio Aparecido
Dos castigos nos livrou!

Quem ouvir e não aprender
Quem souber e não ensinar
No dia do Juízo
A sua alma penará!1

Estas velhas quadras, que a tradição guardara, lembravam ao infeliz os primeiros dias da vida atormentada e avivavam-lhe, porventura, os últimos traços da vaidade, no confronto vantajoso com o santo milagreiro por excelência.
O certo é que abria aos desventurados os celeiros fartos pelas esmolas e produtos do trabalho comum. Compreendia que aquela massa, na aparência inútil, era o cerne vigoroso do arraial. Formavam-na os eleitos, felizes por terem aos ombros os frangalhos imundos, esfiapados sambenitos de uma penitência que lhes fora a própria vida; bem-aventurados porque o passo trôpego, remorado pelas muletas e pelas anquiloses, lhes era a celeridade máxima, no avançar para a felicidade eterna.

O templo

Além disto ali os aguardava, no termo da jornada, a última penitência: a construção do templo.
A antiga capela não bastava. Era frágil e pequena. Mal sobranceava os colmos achatados. Retratava por demais, no aspecto modestíssimo, a pureza principal da religião antiga.
Era necessário que se lhe contrapusesse a arx monstruosa, erigida como se fosse o molde monumental da seita combatente.
Começou a erigir-se a igreja nova. Desde antemanhã enquanto uns se entregavam às culturas ou tangiam os rebanhos de cabras, ou abalavam para fazer o saco nas vilas próximas, e outros, dispersando-se em piquetes vigilantes, estacionavam nas cercanias, bombeando quem chegava, o resto do povo moirejava na missão sagrada.
Defrontando o antigo, o novo templo erguia-se no outro extremo da praça. Era retangular, e vasto, e pesado. As paredes mestras, espessas, recordavam muralhas de reduto. Durante muito tempo teria esta feição anômala, antes que as duas torres muito altas, com ousadias de um gótico rude e imperfeito, o transfigurassem.
É que a catedral admirável dos jagunços tinha essa eloqüência silenciosa dos edifícios, de que nos fala Bossuet...
Devia ser como foi. Devia surgir, mole formidável e bruta, da extrema fraqueza humana, alteada pelos músculos gastos dos velhos, pelos braços débeis das mulheres e das crianças. Cabia-lhe a forma dúbia de santuário e de antro, de fortaleza e de templo, irmanando no mesmo âmbito, onde ressoariam mais tarde as ladainhas e as balas, a suprema piedade e os supremos rancores...
Delineara-a o próprio Conselheiro. Velho arquiteto de igrejas, requintara no monumento que lhe cerraria a carreira. Levantava, volvida para o levante, aquela fachada estupenda, sem módulos, sem proporções, sem regras; de estilo indecifrável; mascarada de frisos grosseiros e volutas impossíveis cabriolando num delírio de curvas incorretas; rasgada de ogivas horrorosas, esburacada de troneiras; informe e brutal, feito a testada de um hipogeu desenterrado; como se tentasse objetivar, a pedra e cal, a própria desordem do espírito delirante.
Era a sua obra-prima. Ali passava os dias, sobre os andai¬mes altos e bailéus bamboantes. O povo enxameando embaixo, na azáfama do transporte dos materiais, estremecia muita vez ao vê-lo passar, lentamente, sobre as tábuas flexuosas e oscilantes, impassível, sem um tremor no rosto bronzeado e rígido, feito uma cariátide errante sobre o edifício monstruoso.
Não faltavam braços para a tarefa. Não cessavam reforços e recursos à sociedade acampada no deserto. Metade, por assim dizer, das gentes de Tucano e de Itapicuru para lá abalou. De Alagoinhas, Feira de Santana e Santa Luzia, iam toda a sorte de auxílios. De Jeremoabo, Bom Conselho e Simão Dias, grandes fornecimentos de gados.
Não assombravam aos recém-vindos os quadros que se lhes antolhavam. Tinham-nos como obrigatória a prova desafiando-lhes a fé inabalável.

Estrada para o céu

Os ingênuos contos sertanejos desde muito lhes haviam revelado as estradas fascinadoramente traiçoeiras que levam ao Inferno. Canudos, imunda ante-sala do Paraíso, pobre peris¬tilo dos céus, devia ser assim mesmo repugnante, aterrador, hor¬rendo...
Entretanto, lá tinham ido, muitos, alimentado esperanças singulares. “Os aliciadores da seita se ocupam em persuadir o povo de que todo aquele que se quiser salvar precisa vir para Canudos, porque nos outros lugares tudo está contaminado e perdido pela República. Ali, porém, nem é preciso trabalhar, é a terra da promissão, onde corre um rio de leite e são de cuscuz de milho as barrancas.”1
Chegavam.
Deparavam o Vaza-Barris seco, ou empanzinado, volvendo apenas águas barrentas das enchentes, entre os flancos entor¬roados das colinas...
Tinham esvaecida a miragem feliz; mas não se despeavam do misticismo lamentável...

As rezas

Ao cair da tarde, a voz do sino apelidava os fiéis para a oração. Cessavam os trabalhos. O povo adensava-se sob a latada coberta de folhagens. Derramava-se pela praça. Ajoelhava.
Difundia-se nos ares o coro do primeira reza.
A noite sobrevinha, prestes, mal prenunciada pelo crepúsculo sertanejo, fugitivo e breve como o dos desertos.
Fulguravam as fogueiras, que era costume acenderem-se acompanhando o perímetro do largo. E os seus clarões vacilantes emolduravam a cena meio afogada nas sombras.
Consoante antiga praxe, ou, melhor, capricho de Antônio Conselheiro, a multidão repartia-se, separados os sexos, em dous agrupamentos destacados. E em cada um deles um baralhamento enorme de contrastes...

Agrupamentos bizarros

Ali estavam, gafadas de pecados velhos, serodiamente penitenciados, as beatas — êmulas das bruxas das igrejas — revestidas da capona preta lembrando a holandilha fúnebre da Inquisição; as solteiras, termo que nos sertões tem o pior dos significados, desenvoltas e despejadas, soltas na gandaíce sem freios; as moças donzelas ou moças damas, recatadas e tímidas; e honestas mães de famílias; nivelando-se pelas mesmas rezas.
Faces murchas de velhas — esgrouviados viragos em cuja boca deve ser um pecado mortal a prece; — rostos austeros de matronas simples; fisionomias ingênuas de raparigas crédulas, misturavam-se em conjunto estranho.
Todas as idades, todos os tipos, todas as cores...
Grenhas maltratadas de crioulas retintas; cabelos corredios e duros, de caboclas; trunfas escandalosas, de africanas; madeixas castanhas e louras de brancas legítimas, embaralhavam-se, sem uma fita, sem um grampo, sem uma flor, o toucado ou a coifa mais pobre. Nos vestuários singelos, de algodão ou de chita, deselegantes e escorridos, não havia lobrigar-se a garridice menos pretensiosa: um xale de lã, uma mantilha ou um lenço de cor, atenuando a monotonia das vestes encardidas quase reduzidas a saias e camisas estraçoadas, deixando expostos os peitos cobertos de rosários, de verônicas, de cruzes, de figas, de amuletos, de dentes de animais, de bentinhos, ou de nôminas encerrando cartas santas, únicos atavios que perdoava a ascese exigente do evangelizador. Aqui, ali, extremando-se a relanços naqueles acervos de trapos, um ou outro rosto formosíssimo, em que ressurgiam, suplantando impressionadoramente a miséria e o sombreado das outras faces rebarbativas, as linhas dessa beleza imortal que o tipo judaico conserva imutável através dos tempos. Madonas emparceiradas a fúrias, belos olhos profundos, em cujos negrumes afuzila o desvario místico; frontes adoráveis, mal escampadas sob os cabelos em desalinho, eram profanação cruel afogando-se naquela matulagem repugnante que exsudava do mesmo passo o fartum engulhento das carcaças imundas e o lento salmear dos benditos lúgubres como responsórios...
A reveses, as fogueiras quase abafadas, vasquejando sob nuvens de fumo, crepitam, revivendo ao sopro da viração noturna e chofrando precípites clarões sobre a turba. Destaca-se, então, mais compacto, o grupo varonil dos homens, mostrando idênticos contrastes: vaqueiros rudes e fortes, trocando, como heróis decaídos, a bela armadura de couro pelo uniforme reles de brim americano; criadores, ricos outrora, felizes pelo abandono das boiadas e dos pousos animados; e menos numerosos, porém mais em destaque, gandaieiros de todos os matizes, recidivos de todos os delitos.
Na claridade amortecida dos braseiros esbatem-se os seus perfis interessantes e vários. Já são famosos alguns. Prestigia-os o renome de arriscadas aventuras, que a imaginação popular romanceia e amplia. Lugar-tenentes do ditador humilde, tomam armados a frente do ajuntamento. Mas não há distinguir-se-lhes neste instante, na atitude e no gesto, o desgarre provocante dos valentões incorrigíveis.
De joelhos, mãos enclavinhadas sobre o peito, o olhar tençoeiro e mau esvai-se-lhes contemplativo e vago...
José Venâncio, o terror da Volta Grande, deslembra-se das dezoito mortes cometidas e do espantalho dos processos à revelia, dobrando, contrito, a fronte para a terra.
Ladeia-o o afoito Pajeú, rosto de bronze vincado de apófises duras, mal aprumado o arcabouço atlético. Estático, mãos postas, volve, como as suçuaranas em noite de luar, olhar absorto para os céus. Logo após o seu ajudante-de-ordens inseparável, Lalau, queda-se igualmente humílimo, joelhos dobrados sobre o trabuco carregado. Chiquinho e João da Mota, dous irmãos aos quais estava entregue o comando dos piquetes vigilantes nas estradas de Cocorobó e Uauá, aparecem unidos, desfiando, crédulos, as contas do mesmo rosário. Pedrão, cafuz entroncado e bruto, que com trinta homens escolhidos guardava as vertentes da Canabrava, mal se distingue, afastado, próximo de um digno êmulo de tropelias. Estêvão, negro reforçado, disforme, corpo tatuado a bala e a faca, que lograra vingar centenas de conflitos graças à disvulnerabilidade rara. Era o guarda do Cambaio.
Joaquim Tranca-Pés, outro espécime de guerrilheiro sanhudo, que velava no Angico, ombreia com o Major Sariema, de estatura mais elegante, lidador sem posição fixa, destemeroso mas irrequieto, talhado para as arrancadas subitâneas e atrevidas. Antepõe-se-lhe, no aspecto, o tragicômico Raimundo Boca-Torta, do Itapicuru, espécie de funâmbulo patibular, face contorcida em esgar ferino, como um traumatismo hediondo. O ágil Chico Ema, a quem se confiara coluna volante de espias, surge junto a um cabecilha de primeira linha, Norberto, predestinado à chefia suprema nos últimos dias de Canudos.
Quinquim de Coiqui, um crente abnegado que alcançaria a primeira vitória sobre a tropa legal; Antônio Fogueteiro, do Pau Ferro, incansável aliciador de prosélitos; José Gamo; Fabrício de Cocobocó...
A massa restante dos fiéis volve-lhes, intermitentes, nos intervalos dos kyries inçados de silabadas incríveis, olhares carinhosos, refertos de esperanças.
O velho Macambira, pouco afeiçoado à luta, de coração mole, segundo o dizer expressivo dos matutos, mas espírito infernal no gizar tocaias incríveis; espécie de Imanus decrépito, mas perigoso ainda, tomba de bruços no chão, tendo ao lado o filho, Joaquim, criança arrojada e impávida, que figuraria em belo lance de heroísmo, mais tarde.
Alheio à credulidade geral, um explorador solerte, Vila-Nova, finge que ora, remascando cifras. E na frente de todos, o comandante da praça, o chefe do povo, o astuto João Abade, abrange no olhar dominador a turba genuflexa.
No meio destes perfis trágicos uma figura ridícula, Antônio Beato, mulato espigado, magríssimo, adelgaçado pelos jejuns, muito da privança do Conselheiro; meio sacristão, meio soldado, misseiro de bacamarte, espiando, observando, indagando, insinuando-se jeitosamente pelas casas, esquadrinhando todos os recantos do arraial, e transmitindo a todo instante ao chefe supremo, que raro abandonava o santuário, as novidades existentes. Completa-o, como um prolongamento, José Félix, o Taramela, quinhoneiro da mesma predileção, guarda das igrejas, chaveiro e mordomo do Conselheiro, tendo sob as ordens as beatas de vestidos azuis cingidas de cordas de linho, encarregadas da roupa, da refeição exígua daquele e de acenderem diariamente as fogueiras para as rezas.
E um tipo adorável, Manuel Quadrado, olhando para tudo aquilo com indiferença nobilitadora. Era o curandeiro; o médico. Na multidão suspeita a natureza tinha, afinal, um devoto, alheio à desordem, vivendo num investigar perene pelas drogarias primitivas das matas.

O “beija” das imagens

As rezas, em geral, prolongavam-se. Percorridas todas as escalas das ladainhas, todas as contas dos rosários, rimados todos os benditos, restava ainda a cerimônia final do culto, remate obrigado daquelas.
Era o “beija” das imagens.
Instituíra-o o Conselheiro completando no ritual fetichista a transmutação do cristianismo incompreendido.
Antônio Beatinho, o altareiro, tomava de um crucifixo; contemplava-o com o olhar diluído de um faquir em êxtase; aconchegava-o do peito, prostrando-se profundamente; imprimia-lhe ósculo prolongado; e entregava-o, com gesto amolentado, ao fiel mais próximo, que lhe copiava, sem variantes, a mímica reverente. Depois erguia uma virgem santa, reeditando os mesmos atos; depois o Bom Jesus. E lá vinham, sucessivamente, todos os santos, e registros, e verônicas, e cruzes, vagarosamente, entregues à multidão sequiosa, passando, um a um, por todas as mãos, por todas as bocas e por todos os peitos. Ouviam-se os beijos chirriantes, inúmeros e, num crescendo, extinguindo-lhes a assonância surda, o vozear indistinto das prédicas balbuciadas a meia voz, dos mea-culpas ansiosamente socados nos peitos arfantes e das primeiras exclamações abafadas, reprimidas ainda, para que se não perturbasse a solenidade.
O misticismo de cada um, porém, ia-se a pouco e pouco confundindo na nevrose coletiva. De espaço a espaço a agitação crescia, como se o tumulto invadisse a assembléia adstrito às fórmulas de programa preestabelecido, à medida que passavam as sagradas relíquias. Por fim as últimas saíam, entregues pelo Beato, quando as primeiras alcançavam as derradeiras filas de crentes. E cumulava-se a ebriez e o estonteamento daquelas almas simples. Desbordavam as emoções isoladas, confundindo-se repentinamente, avolumando-se, presas no contágio irreprimível da mesma febre; e, como se as forças sobrenaturais, que o animismo ingênuo emprestava às imagens, penetrassem afinal as consciências, desequilibrando-as em violentos abalos, salteava a multidão um desvairamento irreprimível. Estrugiam exclamações entre piedosas e coléricas; desatavam-se movimentos impulsivos, de iluminados; estalavam gritos lancinantes de desmaios. Apertando ao peito as imagens babujadas de saliva, mulheres alucinadas tombavam escabujando nas contorções violentas da histeria, crianças assustadiças desandavam em choros; e, invadido pela mesma aura de loucura, o grupo varonil dos lutadores, dentre o estrépito, e os tinidos, e o estardalhaço das armas entrebatidas, vibrava no mesmo ictus assombroso, em que explodia, desapoderadamente, o misticismo bárbaro...
Mas de repente o tumulto cessava.
Todos se quedavam ofegantes, olhares presos no extremo da latada junto à porta do Santuário, aberta e enquadrando a figura singular de Antônio Conselheiro.
Este abeirava-se de uma mesa pequena. E pregava...

Por que não pregar contra a República?

Pregava contra a República; é certo.
O antagonismo era inevitável. Era um derivativo à exacerbação mística; uma variante forçada ao delírio religioso.
Mas não traduzia o mais pálido intuito político: o jagunço é tão inapto para apreender a forma republicana como a monár¬quico-constitucional.
Ambas lhe são abstrações inacessíveis. É espontaneamente adversário de ambas. Está na fase evolutiva em que só é concep¬tível o império de um chefe sacerdotal ou guerreiro.
Insistamos sobre esta verdade: a guerra de Canudos foi um refluxo em nossa história. Tivemos, inopinadamente, ressurrecta e em armas em nossa frente, uma sociedade velha, uma sociedade morta, galvanizada por um doudo. Não a conhecemos. Não podíamos conhecê-la. Os aventureiros do século XVII, porém, nela topariam relações antigas, da mesma sorte que os iluminados da Idade Média se sentiriam à vontade, neste século, entre os demonopatas de Verzegnis ou entre os Stundistas da Rússia. Porque essas psicoses epidêmicas despontam em todos os tempos e em todos os lugares como anacronismos palmares, contrastes inevitáveis na evolução desigual dos povos, patentes sobretudo quando um largo movimento civilizador lhes impele vigorosamente as camadas superiores.
Os perfectionistas exagerados rompem, então, ilógicos, dentre o industrialismo triunfante da América do Norte, e a sombria Stürmisch, inexplicavelmente inspirada pelo gênio de Klopstock, comparte o berço da renascença alemã...
Entre nós o fenômeno foi porventura ainda mais explicável.
Vivendo quatrocentos anos no litoral vastíssimo, em que palejam reflexos da vida civilizada, tivemos de improviso, como herança inesperada, a República. Ascendemos, de chofre, arrebatados na caudal dos ideais modernos, deixando na penumbra secular em que jazem, no âmago do país, um terço da nossa gente. Iludidos por uma civilização de empréstimos; respigando, em faina cega de copistas, tudo o que de melhor existe nos códigos orgânicos de outras nações, tornamos, revolucionariamente, fugindo ao transigir mais ligeiro com as exigências da nossa própria nacionalidade, mais fundo o contraste entre o nosso modo de viver e o daqueles rudes patrícios mais estrangeiros nesta terra do que os imigrantes da Europa. Porque não no-los separa um mar, separam-no-los três séculos...
E quando pela nossa imprevidência inegável deixamos que entre eles se formasse um núcleo de maníacos, não vimos o traço superior do acontecimento. Abreviamos o espírito ao conceito estreito de uma preocupação partidária. Tivemos um espanto comprometedor ante aquelas aberrações monstruosas; e, com arrojo digno de melhores causas, batemo-los a cargas de baionetas, reeditando por nossa vez o passado, numa entrada inglória, reabrindo nas paragens infelizes as trilhas apagadas das bandeiras...
Vimos no agitador sertanejo, do qual a revolta era um aspecto da própria rebeldia contra a ordem natural, adversário sério, estrênuo paladino do extinto regime, capaz de derruir as instituições nascentes.
E Canudos era a Vendéia...
Entretanto quando nos últimos dias do arraial foi permitido ingresso nos casebres estraçoados, salteou o ânimo dos triunfadores decepção dolorosa. A vitória duramente alcançada dera-lhes direito à devassa dos lares em ruínas. Nada se eximiu à curiosidade insaciável.
Ora, no mais pobre dos saques que registra a História, onde foram despojos opimos imagens mutiladas e rosários de coco, o que mais acirrava a cobiça dos vitoriosos eram as cartas, quaisquer escritos e, principalmente, os desgraciosos versos encontrados. Pobres papéis, em que a ortografia bárbara corria parelha com os mais ingênuos absurdos e a escrita irregular e feia parecia fotografar o pensamento torturado, eles resumiam a psicologia da luta. Valiam tudo porque nada valiam. Registravam as prédicas de Antônio Conselheiro; e, lendo-as, põe-se de manifesto quanto eram elas afinal inócuas, refletindo o turvamento intelectual de um infeliz. Porque o que nelas vibra em todas as linhas, é a mesma religiosidade difusa e incongruente, bem pouca significação política permitindo emprestar-se às tendências messiânicas expostas. O rebelado arremetia com a ordem constituída porque se lhe afigurava iminente o reino de delícias prometido. Prenunciava-o a República — pecado mortal de um povo — heresia suprema indicadora do triunfo efêmero do anticristo. Os rudes poetas, rimando-lhe os desvarios em quadras incolores, sem a espontaneidade forte dos improvisos sertanejos, deixam bem vivos documentos nos versos disparatados, que deletreamos pensando, como Renan, que há, rude e eloqüente, a segunda Bíblia do gênero humano, nesse gaguejar do povo.
Copiemos ao acaso alguns:

“Sahiu D. Pedro segundo
Para o reyno de Lisboa
Acabosse a monarquia
O Brazil ficou atôa!

A República era a impiedade:

“Garantidos pela lei
Aquelles malvados estão
Nós temos a lei de Deus
Elles tem a lei do cão!”

“Bem desgraçados são elles
Pra fazerem a eleição
Abatendo a lei de Deus
Suspendendo a lei do cão!”

“Casamento vão fazendo
Só para o povo iludir
Vão casar o povo todo
No casamento civil!”

O governo demoníaco, porém, desaparecerá em breve:

“D. Sebastião já chegou
E traz muito regimento
Acabando com o civil
E fazendo o casamento!”

“O anticristo nasceu
Para o Brazil governar
Mas ahi está o Conselheiro
Para delles nos livrar!”

“Visita nos vem fazer
Nosso rei D. Sebastião.
Coitado daquele pobre
Que estiver na lei do cão!”1

A lei do cão...
Este era o apotegma mais elevado da seita. Resumia-lhe o programa. Dispensa todos os comentários.
Eram, realmente, fragílimos aqueles pobres rebelados...
Requeriam outra reação. Obrigavam-nos a outra luta.
Entretanto enviamo-lhes o legislador Comblain; e esse argumento único, incisivo, supremo e moralizador — a bala.

Mas antes tentou-se empresa mais nobre e mais prática.

Uma missão abortada

Em 1895, em certa manhã de maio, no alto de um contraforte da Favela, apareceu, ladeada de duas outras, figura estranha àqueles lugares. Era um missionário capuchinho.
Considerou por instantes o arraial imenso, embaixo. Desceu devagar a encosta.
Daniel vai penetrar na furna dos leões...
Acompanhemo-lo.
Seguido de Frei Caetano de S. Léo e do vigário do Cumbe, Frei João Evangelista de Monte-Marciano passa o rio e abeira-se dos primeiros casebres. Alcança a praça desbordante de povo “perto de mil homens armados de bacamartes, garrucha, facão, etc.”; e tem a impressão de haver caído, de súbito, no meio de um acampamento de beduínos. Não se lhe entibia, porém, o ânimo blindado pela fortaleza tranqüila dos apóstolos. Passa, impassível, por diante da Capela, em cuja porta se adensam mais compactos agrupamentos. Envereda logo por um beco tortuoso. Atravessa-o, seguido dos companheiros de apostolado. Enquanto às portas os moradores surpreendidos saem a vê-los, “ar irrequieto e o olhar ao mesmo tempo indagador e sinistro, denunciando consciências perturbadas e intenções hostis”.
Chega por fim à casa do velho vigário do Cumbe (que não se abria há mais de ano, porque a tanto remontava a sua ausência, ressentido por desacato que sofrera) e mal se refaz da jornada extenuadora. Comoviam-no o espetáculo dos infelizes que acabava de encontrar armados até aos dentes, e o quadro emocio¬nante daquela Tebaida turbulenta.
Antolham-se-lhe novas impressões desagradáveis.
A breve trecho passam-lhe à porta oito defuntos levados sem sinal algum religioso para o cemitério, ao fundo da igreja velha: oito redes de caroá sob que arcavam carregadores ofegantes passando, rápidos, ansiosos por alijá-las, como se na cidade sinistra o morto fosse um desertor do martírio, indigno da atenção mais breve.
Entrementes, correra a nova da chegada, sem que o Conselheiro se abalasse ao encontro dos emissários da Igreja. Permanecera indiferente, assistindo aos trabalhos de reconstrução da Capela. Procuraram-no, então, os padres.
Deixam a casa. Tomam de novo pela viela sinuosa. Entram na praça. Atravessam-na, sem que o menor brado hostil os perturbe, e ao chegarem à sede dos trabalhos “os magotes de homens cerram fileiras junto à porta da Capela” abrindo-lhes extensa ala.
Do ajuntamento temeroso parte animadora saudação de paz: “Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo!”, à qual era de praxe a resposta:
“Para sempre seja louvado tão bom Senhor!”
Entram no pequeno templo e acham-se diante de Antônio Conselheiro, que os acolhe com boa sombra; e, com a placabilidade habitual, dirige-lhes a mesma saudação pacífica.

Retrato de conselheiro

“Vestia túnica de azulão, tinha a cabeça descoberta e empunhava um bordão. Os cabelos crescidos sem nenhum trato, a caírem sobre os ombros; as longas barbas grisalhas mais para brancas; os olhos fundos raramente levantados para fitar alguém; o rosto comprido de uma palidez quase cadavérica; o porte grave e ar penitente” impressionaram grandemente os recém-vindos.1

1Acompanhe-se o Relatório de Frei Monte-Marciano.
Reanima-os, contudo, recepção quase cordial. De encontro ao que previam, o Conselheiro parece aprazer-se da visita. Quebra a habitual reserva e o obstinado mutismo. Informa-os do andamento dos trabalhos; convida-os a visitá-los; e presta-se de boa feição a servir-lhes de guia pelos repartimentos do edifício. E lá seguem todos, vagarosos, guiados pelo velho solitário que orçava nesse tempo dos sessenta anos, e cujo corpo franzino, arcado sobre o bordão, avançava em andar remorado, sacudido de instante a instante, por súbitos acessos de tosse..
Não se podiam exigir melhores preliminares à missão.
Aquele agasalho era meia vitória. Mas coube ao missionário anulá-la, desajeitadamente. Ao atingirem o coro, como se achassem um tanto afastados do grosso dos fiéis, que os se¬guiam à distância, pareceu-lhe que a oportunidade era de molde para interpelação decisiva.
Era uma precipitação sobre inútil, contraproducente. O insucesso sobreveio, inevitável.
...“aproveitei a ocasião de estarmos quase a sós e disse-lhe que o fim a que eu ia era todo de paz e que assim muito estranhava só enxergar ali homens armados e não podia deixar de condenar que se reunissem em lugar tão pobre tantas famílias entregues à ociosidade, num abandono e misérias tais que diaria¬mente se davam de 8 a 9 óbitos. Por isto, de ordem, e em nome do Sr. Arcebispo ia abrir uma santa missão e aconselhar o povo a dispersar-se e a voltar aos lares e ao trabalho no interesse de cada um e para o bem geral.”
Esta intransigência, este mal sopitado assomo partindo a finura diplomática nas arestas rígidas do dogma, não teria, certo, o beneplácito de S. Gregório — o Grande — a quem não escandalizam os ritos bárbaros dos saxônios; e foi um desafio imprudente.
“Enquanto isto dizia, a capela e o coro enchiam-se de gente e ainda não acabara eu de falar e já eles a uma voz clamavam:
“Nós queremos acompanhar o nosso Conselheiro!”
Era a desordem iminente. Sobresteve-a, porém, a placidez admirável, a mansuetude — por que não dizer cristã? — de Antônio Conselheiro. Que o próprio missionário fale:
“Este os fez calar e voltando-se para mim disse:
É para minha guarda que tenho comigo estes homens armados porque V. Revma. há de saber que a polícia atacou-me e quis matar-me no lugar chamado Massete, onde houve mortes de um e outro lado. No tempo da monarquia deixei-me prender porque reconhecia o governo, hoje não porque não reconheço a República.”
Esta explicação, de forma respeitosa e clara, não satisfez o capuchinho, que tinha a coragem de um crente mas não o tato finíssimo de um apóstolo. Contraveio, parafraseando a Prima Petri:
“— Senhor, se é católico, deve considerar que a Igreja condena as revoltas e, aceitando todas as formas de governo, ensina que os poderes constituídos regem os povos em nome de Deus.”
Era quase, sem variantes, a própria frase de S. Paulo, em pleno reinado de Nero...
E continuou:
“É assim em toda parte: a França, que é uma das principais nações da Europa, foi monarquia por muitos séculos mas há mais de 20 anos é República; e todo o povo, sem exceção dos monarquistas de lá, obedece às autoridades e às leis do governo.”
Frei Monte-Marciano, nesse remoer nulíssimas considerações políticas, insciente da significação real da desordem sertaneja, diz por si mesmo as causas do insucesso. Desdobrou, afinal, inteira, a estatura anômala de propagandista, faltando apenas ter sob as dobras do hábito a escopeta do cura de Santa Cruz:
“Nós mesmos aqui no Brasil, a principiar do Bispo até o último católico, reconhecemos o governo atual; somente vós não vos quereis sujeitar?
É mau pensar esse, é uma doutrina errada a vossa!
A frase final vibrou como uma apóstrofe. De dentro da multidão partiu, pronta, a réplica arrogante:
“— V. Revma. é que tem uma falsa doutrina e não o nosso Conselheiro!”
Desta vez ainda o tumulto, prestes a explodir, retraiu-se a um gesto lento do Conselheiro que, voltando-se para o missionário, disse:
“— Eu não desarmo a minha gente, mas também não estorvo a santa missão.”
Esta iniciava-se agora sob maus auspícios. Apesar disto correu em paz até ao quarto dia, e concorridíssima: cerca de cinco mil assistentes, entre os quais todos os homens válidos se destacavam:
“...carregando bacamartes, garruchas, espingardas, pistolas e facões; de cartucheira à cinta e gorro à cabeça, na atitude de quem vai à guerra.”
Assistia-as também o Conselheiro, ao lado do altar, atento e impassível como um fiscal severo, “deixando escapar alguma vez gestos de desaprovação que os maiorais da grei confirmavam com incisivos protestos.”
Estes, contudo, ao que parece, não tinham gravidade alguma. Apenas um ou outro exaltado, violando velho privilégio, se permitia sulcar de apartes a oratória sagrada.
Assim que praticando o pregador sobre o jejum, como meio de mortificar a matéria e refrear as paixões, pela sobriedade, sem entretanto exigir demoradas angústias, porque “podia-se jejuar muitas vezes comendo carne ao jantar e tomando pela manhã uma chávena de café”, tolheu-lhe o sermão irreverente e irônica contradita:
“— Ora! Isto não é jejum, é comer a fartar!”
No quarto dia da missão, porém, reincidindo o capuchinho no descabido tema político, pioraram as cousas. Começou intensa propaganda contra a “pregação do padre maçom protestante e republicano”, “emissário do governo e que de inteligência com este ia abrir caminho à tropa que viria de surpresa prender o Conselheiro e exterminar todos eles”.
Não se temeu aquele da rebelião emergente. Afrontou-se com ela, acirrando-a temerariamente. Escolheu como assunto da prédica subseqüente o homicídio e, sem se furtar aos perigos da arrojada tese, falando em corda na casa do enforcado, espraiou-se em alusões imprudentes que temos por escusado registrar.
A reação foi imediata. Chefiava-a João Abade, cujo apito, vibrando estridulamente na praça, congregou todos os fiéis. O caso passou em 20 de maio, sétimo da missão. Reunidos, arrancaram dali em algazarra estrepitante de vivas ao Bom Jesus e ao Divino Espírito Santo, na direção da casa em que se acolhiam os visitantes, fazendo-lhes sentir que deles não careciam para a salvação eterna.
Estava extinta a missão. Excetuando “55 casamentos de amancebados, 102 batizados e mais de 400 confissões”, o resultado fora nulo, ou antes negativo.

Maldição sobre a Jerusalém de Taipa

O missionário, “como outrora os apóstolos às portas das cidades que os repeliam, sacudiu o pó das sandálias” apelando para o veredicto tremendo da Justiça Divina:
E abalou, furtando-se a seguro pelos becos, acompanhado dos dous sócios de reveses...
Galga a estrada coleante, entre os declives da Favela.
Atinge o alto da montanha. Pára um momento...
Considera pela última vez o povoado, embaixo...
É invadido de súbita onda de tristeza. Equipara-se “ao Divino Mestre diante de Jerusalém”.
Mas amaldiçoou...

A LUTA

Preliminares
I. Antecedentes.
II . Causas próximas da luta. Uauá.
III . Preparativos da reação. A guerra das caatingas.
IV . Autonomia duvidosa.

Preliminares

Quando se tornou urgente pacificar o sertão de Canudos, o governo da Bahia estava a braços com outras insurreições. A cidade de Lençóis fora investida por atrevida malta de facínoras, e as suas incursões alastravam-se pelas Lavras Diamantinas; o povoado de Barra do Mendes caíra às mãos de outros turbulentos; e em Jequié se cometiam toda a sorte de atentados.

Antecedentes
O mal era antigo.
O trato do território que recortam as cadeias de Sincorá até as margens do S. Francisco era, havia muito, dilatado teatro de tropelias às gentes indisciplinadas do sertão.
Opulentada de esplêndidas minas, aquela paragem, malsina-a a própria opulência. Procuram-na há duzentos anos irrequietos aventureiros ferrotoados pelo anelo de espantosas riquezas, e eles, esquadrinhando afanosamente os flancos das suas serranias¬ e as nascentes dos rios, fizeram mais do que amaninhar a terra com a ruinaria das catas e o indumento áspero das grupiaras: legaram à prole erradia e, de contágio, aos rudes vaqueiros que os seguiram, a mesma vida desenvolta e inútil livremente expandida na região fecunda, onde por muitos anos foram moeda corrente o ouro em pó e o diamante bruto.
De sorte que sem precisarem despertar pela cultura as energias de um solo em que não se fixam e atravessam na faina desnorteada de faiscadores, conservaram na ociosidade turbulenta a índole aventureira dos avós, antigos fazedores de desertos. E como, a pouco e pouco, se foram exaurindo os cascalhos e afundando os veeiros, o banditismo franco impôs-se-lhes como derivativo à vida desmandada.
O jagunço, saqueador de cidades, sucedeu ao garimpeiro, saqueador da terra. O mandão político substituiu o capangueiro decaído.
A transição é antes de tudo um belo caso de reação mesológica.
Caracterizemo-la, de relance.
Vimos como se formaram ali os mamalucos bravos e diligentes, interpostos tão a propósito, na quadra colonial, entre o torvelinho das bandeiras e o curso das missões, como elemento conservador formando o cerne da nossa nacionalidade nascente e criando uma situação de equilíbrio entre o desvario das pesquisas mineiras e as utopias românticas do apostolado. Ora, aqueles homens, depois de esboçarem talvez a única feição útil da nossa atividade naqueles tempos, tiveram desde o começo do século XVIII, quando se desvendaram as lavras do Rio de Contas à Jacobina, perigosos agentes que se lhes não derrancaram o caráter varonil os nortearam a lamentáveis destinos. De feito, transmudaram-se em contacto com os sertanistas gananciosos. Estes vinham, então, do oriente, espavorindo a ferro e fogo o selvagem e fundando povoados que, ao revés dos já existentes, não tinham o gérmen de uma fazenda de gado, mas as ruínas das malocas. Bateram rudemente a região, estacionando largo tempo ante a barreira de serras que vão de Caetité para o norte; e quando as minas esgotadas lhes demandaram aparelhos para a exploração intensiva, tiveram, logo adiante, entre as matas que vão de Macaúbas a Açuruá, novas paragens opulentas, atraindo-os para o âmago das terras.
Devassaram-nas até nova barreira, o Rio S. Francisco. Transpuseram-na. Na frente, indefinido, se lhe antolhou, cavado nos chapadões, aquele maravilhoso vale do Rio das Éguas, tão aurífero que o ouvidor de Jacobina em carta dirigida à rainha Maria I (1794) afirmava “que as suas minas eram a cousa mais rica de que nunca se descobriu nos domínios de Sua Majestade”.
Naquele ponto se abeiravam das lindes de Goiás.
Não deram mais um passo além. Ultimara-se uma empresa deplorável. Pelos campos de criação avermelhavam, nodoando-os, os montões de argila revolvida das catas entorroadas; e da envergadura atlética do vaqueiro surgira, destemeroso, o jagunço. A nossa história tão malsinada de indisciplinados heróis adquiria um de seus mais sombrios atores. Fez-se a metamorfose da situação anterior: de par com a sociedade robusta e tranqüila dos campeiros, uma outra caracterizando-se pelo nomadismo desenvolto, pela combatividade irrequieta, e por uma ociosidade singular sulcada de tropelias.
Imaginemos que dentro do arcabouço titânico do vaqueiro estale, de súbito, a vibratibilidade incomparável do bandeirante. Teremos o jagunço.
É um produto histórico expressivo. Nascendo de cruzamento tardio entre colaterais, que o meio físico já diversificara, resume os atributos essenciais de uns e outros — na atividade bifronte que oscila, hoje, das vaquejadas trabalhosas às incursões dos quadrilheiros. E a terra, aquela incomparável terra que mesmo quando abrangida pelas secas, desnuda e empobrecida, ainda lhe sustenta os rebanhos nas baixadas salinas dos barreiros, ampara-o de idêntico modo ante as exigências da vida combatente: dá-lhe grátis em toda a parte o salitre para a composição da pólvora, enquanto as balas, luxuosos projetis feitos de chumbo e prata, lá estão, incontáveis, na galena argentífera do Açuruá...1
É natural que desde o começo do século passado a história dramática dos povoados do S. Francisco começasse a refletir uma situação anômala.2 E embora em todas as narrativas emocionantes, que a formam, se destaquem rivalidades partidárias e desmandos impunes de uma política intolerável de potentados locais, todas as desordens, surgindo sempre precisamente nos lugares em que se ostentou, outrora, mais ativa a ânsia mine¬radora, denunciam a gênese remota que esboçamos.
Exemplifiquemos. Todo o vale do Rio das Éguas e, para o norte, o do Rio Preto, formam a pátria original dos homens mais bravos e mais inúteis da nossa terra.3 Dali abalam para as algaras aventurosas alugando a bravura aos poteneados, e têm sempre, culminando-lhas, o incêndio e o saque de vilas e cidades, em todo o vale do grande rio. Avançando contra a corrente já chegaram, em 1879, à cidade mineira de Januária que conquistaram, tornando a Carinhanha, de onde haviam partido, carregados de despojos. Desta vila para o norte a história das depredações avulta cada vez maior, até Xiquexique, lendária nas campanhas eleitorais do Império.

1Vide Descrições Práticas da Província da Bahia pelo tenente-coronel Durval Vieira de Aguiar.
2Caetano Pinto de Miranda Montenegro, vindo em 1804 de Cuiabá ao Recife, andando 670 léguas, passou pela Barra do Rio Grande, e no relatório que enviou ao visconde de Anadia, diz, referindo-se àqueles lugares, que “em nenhuma parte dos domínios portugueses a vida dos homens tem menos segurança”. (Liv. 16. Corr. da Corte, 1804 — 1808)
3“Quem precisa de jagunços no Rio S. Francisco manda-os contratar nesse grande viveiro. O clavinote com a munição é o preço; o mais arranjam facilmente conforme o valor da impunidade que a influência do patrão oferece.” Tenente-coronel Durval. Idem.
Não há traçá-la em meia dúzia de páginas. O mais obscuro daqueles arraiais tem a sua tradição especial e sinistra.
Um único, talvez, se destaca sob outro aspecto, o de Bom Jesus da Lapa. É a Meca dos sertanejos. A sua conformação original, ostentando-se na serra de grimpas altaneiras, que ressoam como sinos; abrindo-se na gruta de âmbito caprichoso semelhando a nave de uma igreja, escassamente aclarada; tendo pendidos dos tetos grandes candelabros de estalactites; prolongando-se em corredores cheios de velhos ossuários diluvianos; e a lenda emocionante do monge que ali viveu em companhia de uma onça — tornaram-no objetivo predileto de romarias piedosas, convergentes dos mais longínquos lugares, de Sergipe, Piauí e Goiás.
Ora, entre as dádivas que jazem em considerável cópia no chão e às paredes do estranho templo, o visitante observa de par com as imagens e as relíquias, um traço sombrio de religiosidade singular: facas e espingardas.
O clavinoteiro ali entra, contrito, descoberto. Traz à mão o chapéu de couro, e a arma à bandoleira. Tomba genuflexo, a fronte abatida sobre o chão úmido do calcário transudante... E reza. Sonda longo tempo, batendo no peito, as velhas culpas. Ao cabo cumpre devotamente a promessa que fizera para que lhe fosse favorável o último conflito que travara: entrega ao Bom Jesus o trabuco famoso, tendo da coronha alguns talhos de canivete lembrando o número de mortes cometidas. Sai desapertado de remorsos, feliz pelo tributo que rendeu. Amatula-se de novo à quadrilha. Reata a vida temerosa.
Pilão Arcado, outrora florescente e hoje deserta, na derradeira fase de uma decadência que começou em 1856; Xique¬xique, onde durante decêncios se digladiaram liberais e conservadores; Macaúbas, Monte Alegre e outras, e todas as fazendas de seus termos, delatam, nas vivendas derruídas ou esburacadas a bala, esse velho regime de desmandos.
São lugares em que se normalizou a desordem esteada no banditismo disciplinado.
O conceito é paradoxal, mas exato.
Porque há, de fato, uma ordem notável entre os jagunços. Vaidosos de seu papel de bravos condutícios e batendo-se lentamente pelo mandão que os chefia, restringem as desordens às minúsculas batalhas em que entram, militarmente, arre¬gimentados.
O saque das povoações que conquistam, têm-no como direito de guerra, e neste ponto os absolve a História inteira.
Fora disto, são raros os casos de roubos, que consideram desaire e indigno labéu. O mais frágil positivo pode atravessar, inerme e indene, procurando o litoral, aquelas matas e campos, com os picuás atestados de diamantes e pepitas. Não lhe faltará um só no termo da viagem. O forasteiro, alheio às lutas partidárias, atravessa-os igualmente imune.
Não raro um mascate, seguindo por ali, com seus cargueiros rengueando ao peso das caixas preciosas, estaca — tremendo — ao ver aparecer inesperadamente um grupo de jagunços, acampados na volta do caminho...
Mas perde em momentos o medo. O clavinoteiro-chefe aproxima-se. Saúda-o com boa sombra; dirige-lhe a palavra, risonho; e mete-lhe à bulha o terror, galhofeiro. Depois lhe exige um tributo — um cigarro. Acende-o numa pancada única do isqueiro; e deixa-o passar, levando, intactas, a vida e a fortuna.
São numerosos os casos deste teor revelando notável nobreza entre aqueles valentes desgarrados.
Cerca de dez ou oito léguas de Xiquexique demora a sua capital, o arraial de Santo Inácio, erecto entre montanhas e inacessível até hoje a todas as diligências policiais.
Estas, de ordinário, conseguem pacificar os lugares conflagrados, tornando-se interventoras neutras ante as facções combatentes. É uma ação diplomática entre potências. A justiça armada parlamentada com os criminosos; balanceia as condições de um e outro partido; discute; evita os ultimatos; e acaba ratificando verdadeiros tratados de paz, sancionando a soberania da capangagem impune.
Assim os estigmas hereditários da população mestiça se têm fortalecido na própria transigência das leis.
Não surpreende que hajam crescido, avassalando todo o vale do S. Francisco, e desbordando para o norte.
Porque o cangaceiro1 da Paraíba e Pernambuco é um produto idêntico, com diverso nome. Distingue-o do jagunço talvez a nulíssima variante da arma predileta: a parnaíba de lâmina rígida e longa suplanta a fama tradicional do clavinote de boca-de-sino. As duas sociedades irmãs tiveram, entretanto, longo afastamento que as isolou uma da outra. Os cangaceiros nas incursões para o sul, e os jagunços nas incursões para o norte, defrontavam-se, sem se unirem, separados pelo valado em declive de Paulo Afonso.
A insurreição da comarca de Monte Santo ia ligá-las.
A campanha de Canudos despontou da convergência espontânea de todas estas forças desvairadas, perdidas nos sertões.

II

Causas próximas da luta

Determinou-a incidente desvalioso.
Antônio Conselheiro adquirira em Juazeiro certa quantidade de madeiras, que não podiam fornecer-lhe as caatingas paupérrimas de Canudos. Contratara o negócio com um dos representantes da autoridade daquela cidade. Mas ao terminar o prazo ajustado para o recebimento do material, que se aplicaria no remate da igreja nova, não lho entregaram. Tudo denuncia que o distrato foi adrede feito, visando o rompimento anelado.
O principal representante da justiça do Juazeiro tinha velha dívida a saldar com o agitador sertanejo, desde a época em que sendo juiz do Bom Conselho fora coagido a abandonar precipitadamente a comarca, assaltada pelos adeptos daquele.
Aproveitou, por isto, a situação, que surgia a talho para a desafronta. Sabia que o adversário revidaria à provocação mais ligeira. De fato, ante a violação do trato aquele retrucou com a ameaça de uma investida sobre a bela povoação do S. Francisco: as madeiras seriam de lá arrebatadas, à força.
O caso passou em dias de outubro de 1896.
Historiemos, adstritos a documentos oficiais:
“Era esta a situação1 quando recebi do Dr. Arlindo Leoni, Juiz de Direito de Juazeiro, um telegrama urgente comunicando-me correrem boatos mais ou menos fundados de que aquela florescente cidade seria por aqueles dias assaltada por gente de Antônio Conselheiro, pelo que solicitava providências para garantir a população e evitar o êxodo que da parte desta já se ia iniciando. Respondi-lhe que o governo não podia mover força por simples boatos e recomendei, entretanto, que mandasse vigiar as estradas em distância e verificado o movimento dos bandidos, avisasse por telegrama, pois o governo ficava prevenido para evitar incontinenti, em trem expresso, a força necessária para rechaçá-los e garantir a cidade.
Desfalcada a força policial aquartelada nesta Capital, em virtude das diligências a que anteriormente me referi, requisitei do Sr. General comandante do distrito 100 praças de linha, a fim de seguirem para Juazeiro, apenas me chegasse aviso do Juiz de Direito daquela comarca. Poucos dias depois recebi daquele magistrado um telegrama em que me afirmava estarem os sequazes de Antônio Conselheiro distantes do Juazeiro pouco mais ou menos dous dias de viagem. Dei conhecimento do fato ao Sr. General que, satisfazendo a minha requisição, fez seguir em trem expresso e sob o comando do Tenente Pires Ferreira, a força preparada, a qual devia ali proceder de acordo com o Juiz de Direito.
“Esse distinto oficial, chegando ao Juazeiro, combinou com aquela autoridade seguir ao encontro dos bandidos, a fim de evitar que eles invadissem a cidade.”
Não se podem imaginar móveis mais insignificantes para sucessos tão graves. O trecho acima extratado, entretanto, diz de modo claro que, desdenhando os antecedentes da questão, o governo da Bahia não lhe deu a importância merecida.
Antônio Conselheiro há vinte e dous anos, desde 1874, era famoso em todo o interior do Norte e mesmo nas cidades do litoral até onde chegavam, entretecidos de exageros e quase lendários, os episódios mais interessantes de sua vida romanesca; dia a dia ampliara o domínio sobre as gentes sertanejas; vinha de uma peregrinação incomparável, de um quarto de século, por todos os recantos do sertão, onde deixara como enormes marcos, demarcando-lhe a passagem, as torres de dezenas de igrejas que construíra; fundara o arraial de Bom Jesus, quase uma cidade; de Xorroxó à vila do Conde, de Itapicuru a Jeremioabo, não havia uma só vila, ou lugarejo obscuro, em que não contasse adeptos fervorosos, e não lhe devesse a reconstrução de um cemitério, a posse de um templo ou a dádiva providencial de um açude; insurgira-se desde muito, atrevidamente, contra a nova ordem política e pisara, impune, sobre as cinzas dos editais das câmaras de cidades que invadira; destroçara completamente, em 1893, forte diligência policial, em Massete, e fizera voltar outra, de 80 praças de linha, que seguira até Serrinha; em 1894, fora, no Congresso Estadual da Bahia, assunto de calorosa discussão na qual impugnando a proposta de um deputado, chamando a atenção dos poderes públicos para a “parte dos sertões perturbada pelo indivíduo Antônio Conselheiro”, outros eleitos do povo, e entre eles um sacerdote, apresentaram-no como benemérito do qual os conselheiros se modelavam pela ortodoxia cristã mais rígida; fizera voltar, abortícia, em 1895, a missão apostólica planeada pelo arcebispado baiano, e no Relatório alarmante a propósito escrito por Frei João Evangelista, afirmara o missionário a existência, em Canudos — excluídas as mulheres, as crianças, os velhos e os enfermos — de mil homens, mil homens robustos e destemerosos “armados até aos dentes”; por fim, sabia-se que ele imperava sobre extensa zona dificultando o acesso à cidadela em que se entocara, porque a dedicação dos seus sequazes era incondicional, e fora do círculo dos fiéis que o rodeavam havia, em toda a parte, a cumplicidade obrigatória dos que o temiam... E achou-se suficiente para debelar uma situação de tal porte uma força de cem soldados.
Relata o general Frederico Solon, comandante do 3º distrito militar:
“A 4 de novembro do ano findo (1896) em obediência à ordem já referida, prontamente satisfiz a requisição, pessoalmente feita pelo Dr. Governador do Estado, de uma força de cem praças da guarnição para ir bater os fanáticos do arraial de Canudos, asseverando-me que, para tal fim, era aquele número mais que suficiente.
Confiado no inteiro conhecimento, que ele devia ter, de tudo quanto se passava no interior de seu Estado, não hesitei; fazendo-lhe apresentar, sem demora, o bravo tenente Manuel da Silva Pires Ferreira, do 9º Batalhão de Infantaria, a fim de receber as suas ordens e instruções o qual, para cumpri-las, seguiu, a 7 do dito mês para Juazeiro, ponto terminal da estrada de ferro, na margem direita do Rio S. Francisco, comandando 3 oficiais e 104 praças de pré daquele Corpo, conduzindo apenas uma pequena ambulância, fazendo eu seguir logo depois um médico com mais alguns recursos para o exercício de sua profissão. O mais correu pelo Estado.”

Aquele punhado de soldados foi recebido com surpresa em Juazeiro, onde chegou a 7 de novembro, pela manhã.
Não obstou a fuga de grande parte da população, subtraindo-se ao assalto iminente. Aumentou-a. Conhecendo a situação, os habitantes viram, de pronto, que um contingente tão diminuto tinha o valor negativo de exercer maior atração sobre a horda invasora.
Previram a derrota inevitável. E enquanto os partidários encobertos do Conselheiro, que os havia em toda a roda, se rejubilavam, prefigurando-a, alguns homens sinceros pediram ao comandante expedicionário para não seguir avante.
As dificuldades encontradas na aquisição de elementos essenciais à marcha ali retiveram a força até ao dia 12 em que partiu, ao anoitecer, quando, certo, já chegara a Canudos a nova da investida.1 Partiu sem os recursos indispensáveis a uma travessia de 200 quilômetros, em terreno agro e despovoado, orientada por dous guias contratados em Juazeiro.
De sorte que logo em princípio o comandante reconheceu inexeqüível dar à marcha uma norma capaz de poupar as forças das praças. No sertão, mesmo antes do pleno estio, é impossível o caminhar de homens equipados, ajoujados de mochilas e cantis, depois das dez horas da manhã. Pelos tabuleiros o dia desdobra-se abrasador, sem sombras; a terra nua reverbera os ardores da canícula, multiplicando-os; e sob o influxo exaustivo de uma temperatura altíssima aceleram-se de modo pasmoso as funções vitais, determinando assaltos súbitos de cansaço. Por outro lado raro é possível o itinerário disposto de maneira a aproveitarem-se as horas da madrugada ou da noite. É forçoso avançar a despeito das soalheiras fortes até às cacimbas dos pousos dos vaqueiros.
Além disto, aqueles lugares estão, como vimos, entre os mais desconhecidos da nossa terra. Pousos se têm afrontado com o aspérrimo vale do Vaza-Barris que, das vertentes orientais da Itiúba até Jeremoabo, se prolonga inóspito, desfreqüentado, tendo, de léguas, esparsas, insignificantes vivendas. É o trecho da Bahia mais assolado pelas secas.
Por um contraste explicável ante as disposições orográficas, rodeiam-no, contudo, paragens exuberantes: ao norte o belo sertão de Curaçá e as várzeas feracíssimas estendidas para leste até Santo Antônio da Glória, perlongando a margem direita do S. Francisco; a oeste as terras fecundas centralizadas em Vila Nova da Rainha. Emolduram, porém, o deserto. O Vaza-Barris, quase sempre seco, atravessa-o feito um urde tortuoso e longo.
Piores que os gerais, onde ficam vários,1 às vezes, os mais atilados pombeiros,2 sem rumos, desnorteados pela uniformidade dos planos indefinidos, as paisagens sucedem-se, uniformes e mais melancólicos mostrando os mais selvagens modelos, engravescidos por uma flora aterradora.
A própria caatinga assume um aspecto novo. E uma melhor caracterização da flora sertaneja, segundo os vários cambiantes que apresenta acarretando denominações diversas, talvez a definisse mais acertadamente como a paragem clássica das caatanduvas, progredindo, extensa para o levante e para o sul até às cercanias de Monte Santo.3
A pequena expedição penetrou-a logo ao segundo dia de viagem, quando, depois de repousar bivacando duas léguas além de Juazeiro, teve que calcar, seguidamente, quarenta quilômetros de estrada deserta, até uma ipueira minúscula, a lagoa do Boi, onde havia uns restos de água. Dali por diante caminhou no deserto com escalas por Caraibinhas, Mari, Mocambo, Rancharia e outros pousos solitários, ou fazendas. Alguns estavam abandonados. O estio prenunciava a seca.
Os raros moradores, ou por evitá-la, ou aterrados pelas novas alarmantes, haviam abalado para o norte tangendo por diante os rebanhos de cabras, únicos animais afeitos àquele clima e àquele solo.
A tropa chegou exausta a Uauá no dia 19, depois de uma travessia penosíssima.
Este arraial — duas ruas desembocando numa praça irregular — é o ponto mais animado daquele trecho do sertão. Como a maior parte dos vilarejos pomposamente gravados nos nossos mapas, é uma espécie de transição entre maloca e aldeia — agrupamento desgracioso de cerca de cem casas malfeitas e tijupares pobres, de aspecto deprimido e tristonho.
Alcançam-no quatro estradas que, a partir de Jeremoabo passando em Canudos, de Monte Santo, de Juazeiro e Patamoté conduzem para a sua feira, aos sábados, grande número de tabaréus, sem recursos para viagens longas a lugares mais prósperos. Ali chegam por ocasião das festas como se procurassem opulenta capital das terras grandes:1 entrajados das melhores vestes, ou encourados de novo; pasmos ante os mostradores de duas ou três casas de negócio, e contemplando no barracão da feira, no largo, os produtos de uma indústria pobre em que aparecem, como valiosos espécimes, courinhos curtidos e redes de caroá. Nos demais dias, aberta uma ou outra venda, deserta a praça, Uauá figura-se um local abandonado. E foi num destes que a população recolhida, aguardando a passagem das horas mais ardentes, despertou surpreendida por uma vibração de cometas.

1Terras grandes — frase vaga com que os matutos designam o litoral que não conhecem. Com ela abrangem o Rio de Janeiro, a Bahia. Roma e Jerusalém — que idealizam próximas umas de outras e muito afastadas do sertão. É o resto do mundo, a civilização inteira, que temem e evitam.
Era a tropa.
Entrou pela rua em continuação à estrada e fez alto no largo. Foi um sucesso. Entre curiosos e tímidos os habitantes atentavam para os soldados — poentos, malfirmes na formatura, tendo aos ombros as espingardas cujas baionetas fulguravam — como se vissem exército brilhante.
Ensarilhadas as armas, a força acantonou.
Fez-se em torno um círculo de vigilância: postaram-se sentinelas à saída dos quatro caminhos e nomeou-se pessoal das rondas.
Feito praça de guerra, o vilarejo obscuro era, entretanto, uma escala transitória. A expedição, depois de breve descanso, devia abalar imediatamente para Canudos, ao alvorecer do dia subseqüente, 20. Não o fez. Ali, como em toda a parte, variavam, díspares, as informações, impedindo ajuizar-se sobre as cousas.
De sorte que todo aquele dia foi despendido inutilmente, em indagações, sendo resolvido o acontecimento para o imediato, depois de demora prejudicialíssima. E ao cair da noite operou-se um incidente só explicado na manhã seguinte: a população, quase na totalidade, fugira. Deixara as vivendas, sem ser percebida, em pequenos grupos deslizando, furtivos, entre os claros das guardas avançadas. No repentino êxodo lá se foram os próprios doentes, famílias inteiras, ao acaso, pela noite dentro, dispartindo espavoridos, descampados em fora.
Ora, este fato era um aviso. Uauá, como os demais lugares convizinhos, estava sob o domínio de Canudos. Habitavam-no dedicados adeptos de Antônio Conselheiro; de sorte que mal a força fizera alto no largo, haviam-se aqueles precipitado para o arraial ameaçado, onde chegaram no amanhecer de 20, levando o alarma...
Aquela fuga de uma população em massa delatava que os emissários haviam tido tempo de voltar prevenindo os moradores do contra-ataque, resolvido pelos homens de Canudos. Ficaria, assim, o campo livre aos lutadores.
Os expedicionários não ligaram, porém, grande importância ao caso. Aprestaram-se para continuar a marcha na manhã seguinte; e inscientes da gravidade das cousas repousaram tranqüilamente, acantonados.

Primeiro combate

Despertou-os o adversário, que imaginavam ir surpreender.
Na madrugada de 21 desenhou-se no extremo da várzea o agrupamento dos jagunços...
Um coro longínquo esbatia-se na mudez da terra ainda adormida, reboando longamente nos ermos desolados. A multidão guerreira avançara para Uauá, derivando à toada vagarosa dos kyries, rezando. Parecia uma procissão de penitência dessas a que há muito se afeiçoaram os matutos crendeiros para abrandarem os céus quando os estios longos geram os flagícios das secas.
O caso é original e verídico. Evitando as vantagens de uma arrancadura noturna, os sertanejos chegavam com o dia e anunciavam-se de longe. Despertavam os adversários para a luta.
Mas não tinham, ao primeiro lance de vistas, aparências guerreiras. Guiavam-nos símbolos de paz: a bandeira do Divino e, ladeando-a, nos braços fortes de um crente possante, grande cruz de madeira, alta como um cruzeiro. Os combatentes armados de velhas espingardas, de chuços de vaqueiros, de foices e varapaus, perdiam-se no grosso dos fiéis que alteavam, inermes, vultos e imagens dos santos prediletos, e palmas ressequidas retiradas dos altares. Alguns, como nas romarias piedosas, tinham à cabeça as pedras dos caminhos, e desfiavam rosários de coco. Equiparavam aos flagelos naturais, que ali descem periódicos, a vinda dos soldados. Seguiam para a batalha rezando, cantando — como se procurassem decisiva prova às suas almas religiosas.
Eram muitos. Três mil disseram depois informantes exagerados, triplicando talvez o número. Mas avançavam sem ordem. Um pelotão escasso de infantaria que os aguardasse, distribuído pelas caatingas envolventes, dispersá-los-ia em alguns minutos.
O arraial na frente, porém, não revelava lutadores a postos. Dormia.
A multidão aproximou-se, tudo o indica, até beirar a linha de sentinelas avançadas. E despertou-as. Os vedetas estre¬munhando, surpresos, dispararam, à toa, as carabinas e refluíram precipitadamente para a praça que ficava à retaguarda, deixando em poder dos agressores um companheiro, espostejado a faca. Foi, então, o alarma: soldados correndo estonteadamente pelo largo e pelas ruas; saindo, seminus, pelas portas; saltando pelas janelas; vestindo-se e armando-se às carreiras e às encontroadas... Não formaram. Mas se distendeu às pressas, dirigida por um sargento, incorreta linha de atiradores. Porque os jagunços lá chegaram logo, de envolta com os fugitivos. E o recontro empenhou-se brutalmente, braço a braço, adversários enleados entre disparos de garruchas e revólveres, pancadas de cacetes e coronhas, embates de facões e sabres — adiante, sobre a frágil linha de defesa. Esta cedeu logo. E a turba fanatizada, entre vivas ao “Bom Jesus” e ao “Conselheiro”, e silvos estridentes de apitos de taquara, desdobrada, ondulante, a bandeira do Divino, erguidos para os ares os santos e as armas, seguindo empós o curiboca audaz que levava meio inclinada em aríete a grande cruz de madeira — atravessou o largo arrebatadamente...
Este movimento foi instantâneo e foi, afinal, a única manobra percebida pelos que testemunhavam a ação. Dali por diante não a descrevem os próprios protagonistas. Foi uma desordem de feita turbulenta.
Na maioria, as praças, protegidas pelas casas, e abrindo-lhes as paredes em seteiras, volveram à defensiva franca.
Foi a salvação. Os matutos conjuntos à roda dos símbolos sacrossantos, no largo, começaram a ser fuzilados em massa. Baquearam em grande número; e tornou-se-lhes a luta desigual a despeito da vantagem numérica. Batidos pelas armas de repetição, opunham um disparo de clavinote a cem tiros de Comblain. Enquanto o soldado os alvejava em descargas nutridas, os jagunços revolviam os aiós, tirando sucessivamente a pólvora, a bucha e as balas no demorado processo de carga de seu armamento grosseiro; enfiando depois pelo cano largo do trabuco a vareta; cevando-o devagar, socando lá dentro aqueles ingredientes como se enchessem uma mina; escorvando-o depois; aperrando-o afinal, e ao cabo disparando-o; realizando o heroísmo de uma imobilidade de dous minutos na estonteante ebriez do tiroteio....
Renunciaram, por isto, transcorrido algum tempo, à operação inexeqüível. Caíram sobre os contrários, de facão desembainhando e ferrão em riste, vibrando as foices reluzentes.
Mas foi-lhes ainda nefasta esta arremetida douda. Rareavam-se-lhes as fileiras sem vantagem contra adversários abrigados, ou aparecendo de golpe nas janelas, que se abriam em explosões de descargas. Numa delas, um alferes, serodiamente espertado, bateu-se longo tempo, quase desnudo, abocando, sobre o peitoril, a carabina ao peito dos assaltantes, sem errar um tiro; até cair, morto, sobre o leito em que dormira e não tivera tempo de deixar.
O conflito continuou, deste modo, ferozmente, cerca de quatro horas, sem episódios dignos de nota e sem vislumbrar um único movimento tático; batendo-se cada um por conta própria, consoante as circunstâncias. No quintal da casa em que se aboletara, o comandante se ateve à missão única compatível com a desordem: distribuía, jogando-os por sobre a cerca, cartuchos, sofregamente retirados, às mancheias, dos cunhetes abertos a machado.
Reunidos sempre em volta da bandeira do Divino, estraçoada de balas e vermelha como um pendão de guerra, os jagunços enfiavam pelas ruas. Contorneavam o arraial. Volviam ao largo, vozeando imprecações vivas, em ronda desnorteada e célere. E foram, lentamente, nesses giros revoltados, abandonando a ação e dispersando-se pelas cercanias. Reconheciam a inutilidade dos esforços feitos, ou imaginavam atrair os antagonistas para o plaino desafogado da várzea.
Como quer que fosse, abandonaram, a pouco e pouco, o campo. Em breve ao longe, desapareceu, listrando uma ponta das caatingas, a bandeira sagrada que reconduziam a Canudos.
Os soldados não os encalçaram. Estavam exaustos.
Uauá patenteava quadro lastimoso. Lavravam incêndios em vários pontos. Sobre os soalhos e balcões ensangüentados, à soleira das portas, pelas ruas e na praça, onde dardejava o sol, contorciam-se os feridos e estendiam-se os mortos.
Entre estes, dezenas de sertanejos — cento e cinqüenta — diz a parte oficial do combate, número desconforme ante as dez mortes — um alferes, um sargento, seis praças e os dous guias — e 16 feridos da expedição. Apesar disto, o comandante, com setenta homens válidos, renunciou prosseguir na empresa. Assombrara-o o assalto. Vira de perto o arrojo dos matutos. Apavorara-o a própria vitória, se tal nome cabe ao sucedido, pois as suas conseqüências o desanimavam. O médico da força enlouquecera... Desvairara-o o aspecto da peleja. Quedava-se, inútil, ante os feridos, alguns graves.
A retirada impunha-se, por tudo isto, urgente, antes da noite, ou de um outro recontro, idéia que fazia tremer aqueles triunfadores. Resolveram-na logo. Mal inumados na capela de Uauá os companheiros mortos, largaram dali sob um sol ardentíssimo.
Foi como uma fuga.
A travessia para Juazeiro fez-se a marchas forçadas, em quatro dias. E quando lá chegou o bando dos expedicionários, fardas em trapos, feridos, estropiados, combalidos, davam a imagem da derrota. Parecia que lhes vinham em cima, nos rastros, os jagunços. A população alarmou-se, reatando o êxodo. Ficaram de fogos acesos na estação da via férrea todas as locomotivas. Arregimentaram-se todos os habitantes válidos, dispostos ao combate. E as linhas do telégrafo transmitiram ao país inteiro o prelúdio da guerra sertaneja...

III

Preparativos da reação

O revés de Uauá requeria reação segura.
Esta, porém, preparou-se sob extemporânea disparidade de vistas entre o chefe da força federal na Bahia e o governador do Estado. Ao otimismo deste, resumindo a agitação sertaneja a desordem vulgar acessível às diligências policiais, contrapunha-se aquele, considerando-a mais séria, capaz de determinar verdadeiras operações de guerra.
De tal modo, a segunda expedição organizou-se sem um plano firme, sem responsabilidades definidas, através de explicações recíprocas entre as duas autoridades independentes e iguais. Compôs-se a princípio de 100 praças e 8 oficiais de linha, e 100 praças e 3 oficiais da força estadual.
Assim constituída, seguiu, a 25 de novembro, para Queimadas, sob o comando de um major do 9º Batalhão de Infantaria, Febrônio de Brito.
Simultaneamente o comandante do Distrito apelava para o governo federal requisitando, para a aparelhar melhor, 4 metralhadoras Nordenfelt, 2 canhões Krupp, de campanha, e mais 250 soldados: 100 do 26º Batalhão, de Aracaju, e 150 do 33º, de Alagoas.
Todo este aparato era justificável. Sucediam-se informações alarmantes, dando, dia a dia, realce à gravidade das cousas. À parte os exageros que houvessem, delas se colhiam a grandeza do número de rebeldes e os sérios empecilhos inerentes à região selvagem em que se acoutavam.
Estas novas, porém, baralhavam-nas sem-número de versões contraditórias agravadas pelos interesses inconfessáveis de uma falsa política sobre a qual nos dispensamos de discorrer.
Nem os apontaremos, embora largo tempo se perdesse, inútil, nesse agitar estéril de minudências desvaliosas — enquanto as linhas telegráficas vibravam da orla dos sertões para o Brasil inteiro, e permanecia, expectante, em Queimadas, o chefe da nova expedição, à frente de 243 praças de pré.
Baldo de recursos e a braços com toda espécie de dificuldades; oscilando no desencontro das informações; ora em desalentos, afigurando-se-lhe insuperável a empresa; ora cheio de inesperadas esperanças no alcançar o fim que se propunha, dali abalou somente em dezembro, para Monte Santo, ao tempo que lhe era mandado da Bahia novo reforço, de 100 praças.
Esta avançada já ia adscrita a um plano de campanha.
O comandante do Distrito compreendera a situação. Planeara atacar a revolta por dous pontos, fazendo avançar para um objetivo único não uma, mas duas colunas, sob a direção geral do coronel do 9º de Infantaria Pedro Nunes Tamarindo. Era um plano compatível com as circunstâncias da luta: estabelecer antes de tudo um cerco a distância; bater os insurrectos parce¬ladamente e apertá-los, ao cabo, em movimentos envol¬ventes de forças pouco numerosas e adestradas.
Realmente, libertas, estas, da morosidade própria às grandes massas, ajustar-se-iam melhor às escabrosidades do terreno, e do mesmo passo enfraqueceriam todas as causas de insucesso. Por outro lado, por mais original que seja o método combatente dos matutos — guerrilheiros impalpáveis dentro da tática estonteadora da fuga! — rola todo neste círculo único. Não se desenvolve num plano qualquer permitindo dar aos grupos dispersos o centro unificador de um objetivo prefixado. Atacá-los, atraindo-os para diferentes pontos, é vencê-los.
Foi o que perceberam, desde muito, os nossos patrícios de há cem anos. Práticos nas vicissitudes das lutas sertanejas tinham organização militar correlativa1 — visando a formação sistemática de “tropas irregulares”, que, sem o embaraço das unidades táticas inalteráveis, e sem formaturas, agissem folgadamente no trançado das matas e sobre as asperezas do solo, auxiliando, reforçando e esclarecendo a ação das tropas regulares.
Daí as façanhas que crivam a nossa história nos XVII e XVIII séculos; o sem conto de revoltas debeladas ou quilombos dissolvidos por aqueles minúsculos exércitos de capitães-do-mato, através de batalhas ferocíssimas e sem nome. Imitando o próprio sistema do africano e do índio, os sertanistas dominavam-nos graças à mesma norma que se traduz por uma fórmula paradoxal: — dividir para fortalecer.
Devíamos, num transe igual, adotá-la. Era sem dúvida um recuo inevitável à guerra primitiva. Mas quando não o impusesse o jagunço solerte e bravo, impunha-o a natureza excepcional, que o defendia.
Vejamos.

Os doutores na arte de matar que hoje, na Europa, invadem escandalosamente a ciência, perturbando-lhe o remanso com um retinir de esporas insolentes — e formulam leis para a guerra pondo em equação as batalhas, têm definido bem o papel das florestas como agente tático precioso, de ofensiva ou defensiva. E ririam os sábios feldmarechais — guerreiros de cujas mãos caiu o franquisque heróico trocado pelo lápis calculista — se ouvissem a alguém que às caatingas pobres cabe função mais definida e grave que às grandes matas virgens.
Porque estas, malgrado a sua importância para a defesa do território — orlando as fronteiras e quebrando o embate às invasões, impedindo mobilizações rápidas e impossibilitando a translação das artilharias — se tornam de algum modo neutras no curso das campanhas. Podem favorecer, indiferentemente, aos dous beligerantes oferecendo a ambos a mesma penumbra às emboscadas, dificultando-lhes por igual as manobras ou todos os desdobramentos em que a estratégia desencadeia os exércitos. São uma variável nas fórmulas do problema tenebroso da guerra, capaz dos mais opostos valores.
Ao passo que as caatingas são um aliado incorruptível do sertanejo em revolta. Entram também de certo modo na luta. Armam-se para o combate; agridem. Trançam-se, impenetráveis, ante o forasteiro, mas abrem-se em trilhas multívias, para o matuto que ali nasceu e cresceu.
E o jagunço faz-se o guerrilheiro-tugue, intangível...
As caatingas não o escondem apenas, amparam-no.
Ao avistá-las, no verão, uma coluna em marcha não se surpreende. Segue pelos caminhos em torcicolos, aforra¬damente. E os soldados, devassando com as vistas o matagal sem folhas, nem pensam no inimigo. Reagindo à canícula e com o desalinho natural às marchas, prosseguem envoltos no vozear confuso das conversas travadas em toda a linha, virguladas de tinidos de armas, cindidas de risos joviais mal sofreados.
É que nada pode assustá-los. Certo, se os adversários imprudentes com eles se afrontarem, serão varridos em momentos. Aqueles esgalhos far-se-ão em estilhas a um breve choque de espadas e não é crível que os gravetos finos quebrem o arranco das manobras prontas. E lá se vão, marchando, tranqüilamente heróicos...
De repente, pelos seus flancos, estoura, perto, um tiro...
A bala passa, rechinante, ou estende, morto, em terra, um homem. Sucedem-se, pausadas, outras, passando sobre as tropas, em sibilos longos. Cem, duzentos olhos, mil olhos pers¬crutadores, volvem-se, impacientes, em roda. Nada vêem.
Há a primeira surpresa. Um fluxo de espanto corre de uma a outra ponta das fileiras.
E os tiros continuam raros, mas insistentes e compassados, pela esquerda, pela direita, pela frente agora, irrompendo de toda a banda...
Então estranha ansiedade invade os mais provados valentes, ante o antagonista que vê e não é visto. Forma-se celeremente em atiradores uma companhia, mal destacada da massa de batalhões constritos na vereda estreita. Distende-se pela orla da caatinga. Ouve-se uma voz de comando; e um turbilhão de balas rola estrugidoramente dentro das galhadas...
Mas constantes, longamente intervalados sempre, zunem os projetis dos atiradores invisíveis batendo em cheio nas fileiras.
A situação rapidamente engravesce, exigindo resoluções enérgicas. Destacam-se outras unidades combatentes, es¬calonando-se por toda a extensão do caminho, prontas à primeira voz; — e o comandante resolve carregar contra o desconhecido. Carrega-se contra os duendes. A força, de baionetas caladas, rompe, impetuosa, o matagal numa expansão irradiante de cargas. Avança com rapidez. Os adversários parecem recuar apenas. Nesse momento surge o antagonismo formidável da caatinga.
As seções precipitam-se para os pontos onde estalam os estampidos e estacam ante uma barreira flexível, mas impenetrável, de juremas. Enredam-se no cipoal que as agrilhoa, que lhes arrebata das mãos as armas, e não vingam transpô-lo. Contornam-no. Volvem aos lados. Vê-se um como rastilho de queimada: uma linha de baionetas enfiando pelos gravetos secos. Lampeja por momentos entre os raios do Sol joeirados pelas árvores sem folhas; e parte-se, faiscando, adiante, dispersa, batendo contra espessos renques de xiquexiques, unidos como quadrados cheios, de falanges, intransponíveis, fervilhando espinhos...
Circuitam-nos, estonteadamente, os soldados. Espalham-se, correm, à toa, num labirinto de galhos. Caem presos pelos laços corredios dos quipás reptantes; ou estacam, pernas imobilizadas por fortíssimos tentáculos. Debatem-se desesperadamente até deixarem em pedaços as fardas, entre as garras felinas de acúleos recurvos das macambiras...
Impotentes estadeiam, imprecando, o desapontamento e a raiva, agitando-se furiosos e inúteis. Por fim a ordem dispersa do combate faz-se a dispersão do tumulto. Atiram a esmo, sem pontarias, numa indisciplina de fogo que vitima os próprios companheiros. Seguem reforços. Os mesmos transes reproduzem-se maiores, acrescidas a confusão e a desordem; — enquanto em torno, circulando-os, rítmicos, fulminantes, seguros, terríveis bem apontados, caem inflexivelmente os projetis do adversário.
De repente cessam. Desaparece o inimigo que ninguém viu.
As seções voltam desfalcadas para a coluna, depois de inúteis pesquisas nas macegas. E voltam como se saíssem de recontro braço a braço, com selvagens: vestes em tiras; armas estrondeadas ou perdidas; golpeadas de gilvazes; claudicando, estropiados; mal reprimindo o doer infernal das folhas urticantes; frechados de espinhos...
Reorganiza-se a tropa. Renova-se a marcha. A coluna, estirada a dous de fundo, deriva pelas veredas em fora, estampado no cinzento da paisagem o traço vigoroso das fardas azuis listradas de vermelho e o coruscar intenso das baionetas ondulantes. Alonga-se; afasta-se; desaparece.
Passam-se minutos. No lugar da refrega, então, surgem, dentre moitas esparsas, cinco, dez, vinte homens no máximo. Deslizam, rápidos, em silêncio, entre os arbúsculos secos...
Agrupam-se na estrada. Consideram por momentos a tropa, indistinta, ao longe; e sopesando as espingardas ainda aquecidas, tomam precípites pelas veredas dos pousos ignorados.
A força vai prosseguindo mais cautelosa agora.
Subjugam o ânimo dos combatentes, caminhando em silêncio, o império angustioso do inimigo impalpável e a expectativa torturante dos assaltos imprevistos. O comandante rodeia-os de melhores resguardos: ladeiam-nos companhias dispersas, pelos flancos: duzentos metros na frente, além da vanguarda, norteia-os um esquadrão de praças escolhidas.
No descair da encosta agreste, porém, escancela-se um sulco de quebrada que é preciso transpor. Felizmente as barrancas, esterilizadas dos enxurros, estão limpas: escassos restolhos de gramíneas; cactos esguios avultando raros, entre blocos em montes; ramalhos mortos de umbuzeiros alvejando na estonadura da seca...
Desce por ali a guarda da frente. Seguem-se-lhe os primeiros batalhões. Escoam-se, vagarosas, as brigadas pela ladeira agreste. Embaixo, coleando nas voltas do vale estreito já está toda a vanguarda, armas fulgurantes, feridas pelo sol, feito uma torrente escura transudando raios...
E um estremecimento, choque convulsivo e irreprimível, fá-la estacar de súbito.
Passa, ressoando, uma bala.
Desta vez os tiros partem, lentos, de um só ponto, do alto, parecendo feitos por um atirador único.
A disciplina contém as fileiras; debela o pânico emergente; e como anteriormente, uma seção se destaca e vai, encosta acima, rastreando a direção dos estampidos. O torvelino dos ecos numerosos, porém, torna aquela variável; e os tiros não revelados, porque o fumo não se condensa naqueles ares ardentes, continuam lentos, assustadores, seguros.
Afinal cessam. Soldados esparsos pelos pendores, pesquisaram-nos inutilmente.
Volvem exaustos. Vibram os clarins. A tropa renova a marcha com algumas praças de menos. E quando as últimas armas desaparecem, ao longe, na última ondulação do solo, desenterra-se de montões de blocos — feito uma cariátide sinistra em ruínas ciclópicas — um rosto bronzeado e duro; depois um torso de atleta, encourado e rude; e transpondo velozmente as ladeiras vivas desaparece, em momentos, o trágico caçador de brigadas...
Estas seguem desinfluídas de todo. Daí por diante velhos lutadores têm pavores de criança. Há estremecimentos em cada volta do caminho, a cada estalido seco nas macegas. O exército sente na própria força a própria fraqueza.
Sem plasticidade segue numa exaustão contínua pelos ermos, atormentado no golpear das ciladas, lentamente sangrado pelo inimigo, que o assombra e que foge.
A luta é desigual. A força militar decai a um plano inferior. Batem-na o homem e a terra. E quando o sertão estua nos bochornos dos estios longos não é difícil prever a quem cabe a vitória. Enquanto o minotauro, impotente e possante, inerme com a sua envergadura de aço e grifos de baionetas, sente a garganta exsicar-se-lhe de sede e, aos primeiros sintomas da fome, reflui à retaguarda, fugindo ante o deserto ameaçador e estéril, aquela flora agressiva abre ao sertanejo um seio carinhoso e amigo.
Então — nas quadras indecisas entre a seca e o verde, quando se topam os últimos fios de água no lodo das ipueiras e as últimas folhas amareladas nas ramas das baraúnas, e o forasteiro se assusta e foge ante o flagelo iminente, aquele segue feliz nas travessias longas, pelos desvios das veredas, firme na rota como quem conhece a palmo todos os recantos do imenso lar sem teto. Nem lhe importa que a jornada se alongue, e as habitações rareiem, e se extingam as cacimbas, e escasseiem, nas baixadas, os abrigos transitórios, onde sesteiam os vaqueiros fatigados.
Cercam-lhe relações antigas. Todas aquelas árvores são para ele velhas companheiras. Conhece-as todas. Nasceram juntos; cresceram irmãmente; cresceram através das mesmas dificuldades, lutando com as mesmas agruras, sócios dos mesmos dias remansados.
O umbu desaltera-o e dá-lhe a sombra escassa das derradeiras folhas; o araticum, o ouricuri virente, a mari elegante, a quixaba de frutos pequeninos, alimentam-no a fartar; as palmatórias, despidas em combustão rápida dos espinhos numerosos, os mandacarus talhados a facão, ou as folhas dos juás — sustentam-lhe o cavalo; os últimos lhe dão ainda a cobertura para o rancho provisório; os caroás fibrosos fazem-se cordas flexíveis e resistentes... E se é preciso avançar a despeito da noite, e o olhar afogado no escuro apenas lobriga a fosforescência azulada das cunanãs dependurando-se pelos galhos como grinaldas fantásticas, basta-lhe partir e acender um ramo verde de candombá e agitar pelas veredas, espantando as suçuaranas deslumbradas, um archote fulgurante...
A natureza toda protege o sertanejo. Talha-o como Anteu, indomável. É um titã bronzeado fazendo vacilar a marcha dos exércitos.

IV

Autonomia duvidosa
Align=justify>Ia-o demonstrar a campanha emergente... cópia mais ampla de outras que em todo o Norte têm aparecido, permitindo aquilatar-se de antemão tais dificuldades.
As medidas planeadas pelo general Solon denotavam, portanto, exata previsão de sucessos semelhantes, na luta excepcionalíssima para a qual nenhum Jomini delineara regras, porque invertia até os preceitos vulgares da arte militar.
Malgrado os defeitos do confronto, Canudos era a nossa Vendéia. O chouan e as charnecas emparelham-se bem com o jagunço e as caatingas. O mesmo misticismo, gênese da mesma aspiração política; as mesmas ousadias servidas pelas mesmas astúcias, e a mesma natureza adversa, permitiam que se lembrasse aquele lendário recanto da Bretanha, onde uma revolta depois de fazer recuar exércitos destinados a um passeio militar por toda a Europa, só cedeu ante as divisões volantes de um general sem fama, “as colunas infernais” do general Turreau — pouco numerosas mas céleres, imitando a própria fugacidade dos vendeanos, até encurralá-los num círculo de dezesseis campos entrincheirados.
Não se olhou, porém, para o ensinamento histórico.
É que se preestabelecera a vitória inevitável sobre a rebeldia sertaneja insignificante.
O governo baiano afirmou “serem mais que suficientes as medidas tomadas para debelar e extinguir o grupo de fanáticos e não haver necessidade de reforçar a força federal para tal diligência, pois as medidas tomadas pelo comandante do distrito significavam mais prevenção que receio”; e aditava “não ser tão numeroso o grupo de Antônio Conselheiro, indo pouco além de quinhentos homens, etc.”
Contravinha o chefe militar entendendo ter a repressão legal vingado o círculo das diligências policiais, cumprindo-lhe não mais prender criminosos “mas extirpar o móvel de decomposição moral que se observava no arraial de Canudos em manifesto desprestígio à autoridade e às instituições”, acrescentando que a força federal deveria seguir bastante forte para se subtrair à contingência de “retiradas prejudiciais e indecorosas”. O governo estadual, porém, agindo dentro do elástico art. 6º da Constituição de 24 de fevereiro, cerrou a controvérsia levantando o espantalho de uma ameaça à soberania do Estado, e repelindo a intervenção que lhe implicava incompetência para manter a ordem nos seus próprios domínios. Deslembrara-se que em documento público se confessara desarmado para suplantar a revolta e que apelando para os recursos da União justificava naturalmente a intervenção que procurava encobrir.
Vinha serôdio o falar em soberania apisoada pelos turbulentos impunes. Ademais ninguém se iludia ante a situação sertaneja. Acima do desequilibrado que a dirigia estava toda uma sociedade de retardatários. O ambiente moral dos sertões favorecia o contágio e o alastramento da neurose. A desordem, local ainda, podia ser núcleo de uma conflagração em todo o interior do Norte. De sorte que a intervenção federal exprimia o significado superior dos próprios princípios federativos: era a colaboração dos Estados numa questão que interessava não já à Bahia, mas ao país inteiro.
Foi o que sucedeu. A nação inteira interveio. Mas sobre as bandeiras vindas de todos os pontos, do extremo norte e do extremo sul, do Rio Grande ao Amazonas, pairou sempre, intangível, miraculosamente erguida pelas exegetas constitucionais, a soberania do Estado...
Para a resguardar melhor foi removido da Bahia o chefe da força militar, que traçara a sua atitude retilineamente pela lei. E somente depois disto a coluna do major Febrônio — até então oscilante entre Monte Santo e Queimadas e objetivando nas contramarchas as vacilações do governo — seguiu reforçada pela tropa policial e adstrita às deliberações do governo baiano.
Perdera-se esterilmente o tempo — que o adversário aproveitara, aparelhando-se a um revide enérgico. Num raio de três léguas em roda de Canudos, fizera-se o deserto. Para todos os rumos e por todas as estradas e em todos os lugares, os escombros carbonizados das fazendas e dos pousos avultavam, insulando o arraial num grande círculo isolador, de ruínas. Estava pronto o cenário para um emocionante drama da nossa história.

TRAVESSIA DO CAMBAIO

I . Monte Santo. Triunfos antecipados.
II . Incompreensão da campanha. Em marcha para Canudos.
III . O Cambaio. Baluartes sine calcii linimenti. Primeiro recontro. Episódio dramático.
IV . Nos Tabuleirinhos. Segundo combate. A Legio Fulminata de João Abade. Novo milagre de Antônio Conselheiro.
V . Retirada.
VI . Procissão dos jiraus.
I

Monte Santo

No dia 29 de dezembro entraram os expedicionários em Monte Santo. O povoado de Frei Apolônio de Todi ia, a partir daquela data, celebrizar-se como base das operações de todas as arremetidas contra Canudos. Era o que mais se avantajava por aqueles sertões em fora na direção do objetivo da campanha, permitindo, além disto, mais rápidas comunicações com o litoral, por intermédio da estação de Queimadas.
A tais requisitos aliavam-se outros.
Vimos-lhe em páginas anteriores a gênese tocante.
Não dissemos, porém, que, criando-o, o estóico Anchieta do Norte aquilatara bem as condições privilegiadas do local.
De fato, a vila — erecta no sopé da serrania de onde promana a única fonte perene da redondeza — contrasta, insulada, com a esterilidade ambiente. Decorre isto de sua situação topográfica. A sublevação de rochas primitivas que se alteiam aos lados, para o norte e para leste, levanta-se como anteparo aos ventos regulares, que até lá progridem, e torna-se condensador admirável dos escassos vapores que ainda os impregnam, graças ao resfriamento decorrente de uma ascensão repentina pelos flancos das serranias. Depõem-se, então, aqueles, em chuvas quase regulares, originando regime climatológico mais suportável, a dous passos dos sertões estéreis para onde rolam, mais secos, os ventos, depois da travessia.
De sorte que enquanto em roda se desenrolam plainos desolados, num raio de alguns quilômetros partindo de Monte Santo se estende região incomparavelmente mais vivaz. Recortam-na pequenos cursos d’água resistentes às secas. Pelas baixadas, para onde descaem os morros, notam-se rudimentos de florestas, transmudando-se as caatingas em cerradões virentes; e o rio de Cariacá com seus tributários minúsculos, embora efêmero como os demais das cercanias, não se esgota de todo nas maiores secas: fraciona-se, retalhado em cacimbas reduzidas a imperceptíveis filetes deslizando entre pedras, mas permitindo ainda que resistam ao flagelo os habitantes convizinhos.
É natural que seja Monte Santo, desde muito, uma paragem remansada, predileta aos que se aventuram naquele sertão bravio. Não surgia pela primeira vez na história. Muito antes dos que agora o procuravam, outros expedicionários, porventura mais destemerosos e, com certeza, mais interessantes, por ali haviam passado, norteados por outros desígnios. Mas quer para os bandeirantes do século XVII, quer para os soldados destes tempos, o lugar predestinado constituiu-se escala transitória e breve mal relembrando em acontecimentos de maior monta. Não deixa, contudo, de ser expressiva a sua função histórica, entre devassadores de sertões, distintos por opostos intuitos e desunidos por três séculos, porém tendo — como veremos — a afinidade dos mesmos rancores e das mesmas arrancadas violentas.
Ali estacionara o pai de Robério Dias, Belchior Moréia, na sua rota atrevida “do rio Real para as serras de Jacobina pelo rio Itapicuru acima, buscando os sertões de Maçacará”. E em torno desta entrada, continuaram outras, orientadas pelos roteiros confusos nos quais, todavia, o antigo nome da serra — Piquaraçá — se lê sempre, demarcando uma paragem benfazeja naqueles terrenos agros.
Por isto centralizou, de algum modo, a primeira agitação feita em torno das lendárias “Minas de Prata”, desde as pesquisas inúteis do Muribeca, que até lá chegara e não passara avante, “com pouco efeito e pouca diligência”, até ao tenaz Pedro Barbosa Leal, acompanhando as trilhas de Moréia e estacionando por muitos dias na montanha, onde marcas indecifráveis denotavam a passagem de antecessores igualmente audazes.
Passaram-se, porém, os tempos. Ficou perdida no sertão a serraria misteriosa onde muitos imaginavam, talvez a sede do eldorado apetecido, até que Apolônio de Todi a transformasse em templo majestoso e rude, como vimos.
E hoje quem segue pelo caminho de Queimadas, trilhando um solo abrolhando cactos e pedras, ao divisá-la, das cercanias de Quirinquinquá, duas léguas aquém, — estaca: volve em cheio para o levante a vista deslumbrada, e acredita que o ondular dos ares referventes e a fascinação da luz lhe alteiam defronte, entre o firmamento claro e as chapadas amplas, uma miragem estonteadora e grande.
A serra feita dessa massa de quartzito, tão própria às arquiteturas monumentais da Terra, alteia-se, ao longe, acrescida a altitude pelas várzeas deprimidas em torno. Lança retilínea a linha de cumeadas. A vertente oriental cai, a pique, lembrando uma muralha, sobre o vilarejo. Este ali se encosta, sobre socalco breve, humílimo, assoberbado pela majestade da montanha.
Entretanto é por esta acima até ao vértice que se prolonga, saindo da praça, a mais bela de suas ruas — a via-sacra dos sertões, macadamizada de quartzito alvíssimo, por onde têm passado multidões sem conto em um século de romarias. A religiosidade ingênua dos matutos ali talhou, em milhares de degraus, coleante, em caracol pelas ladeiras sucessivas, aquela vereda branca de sílica, longa de mais de dous quilômetros, como se construísse uma escada para os céus...
Esta ilusão é empolgante ao longe.
Vêem-se as capelinhas alvas, que a pontilham a espaços, subindo a princípio em rampa fortíssima, derivando depois, tornejantes, à feição dos pendores; alteando-se sempre, erectas sobre despenhadeiros, perdendo-se nas alturas, cada vez menores, diluídas a pouco e pouco no azul puríssimo dos ares, até a última, no alto...
E quem segue pelo caminho de Queimadas, atravessando um esboço de deserto, onde agoniza uma flora de gravetos — arbustos que nos esgalhos revoltos retratam contorções de espasmos, cardos agarrados a pedras ao modo de tentáculos constritores, bromélias desabotoando em floração sanguinolenta — avança rápido, ansiando pela paragem que o arrebata.
Chega; e não sofreia doloroso desapontamento.
A estrada vai até à praça, retangular, em declive, de chão estriado de enxurros. No centro o indefectível barracão da feira tem, ao lado, pequena igreja, e de outro o único ornamento da vila — um tamarineiro, secular talvez. Em torno casas baixas e velhas; e, sobressaído, um sobrado único que seria mais tarde o quartel-general das tropas.
Monte Santo, afinal, resume-se naquele largo. Ali desembocam pequenas ruas, descendo umas em ladeiras para larga sanga apaulada; abrindo outras para a várzea; outras embatendo, sem saídas, contra a serra.
Esta por sua vez, de perto, perde parte do encanto. Parece diminuir de altitude. Sem mais o perfil regular que assume à distância, tem, revestindo-lhe as encostas, uma flora de vivacidade inexplicável, arraigada na pedra, brotando pelas frinchas dos estratos e vivendo apenas das reações maravilhosas da luz. As capelinhas, tão brancas de longe, por sua vez aparecem exíguas e descuradas. E a estrada ciclópica de muros laterais, de alvenaria, a desabarem em certos trechos, cheia de degraus fendidos, tortuosa, lembra uma enorme escadaria em ruínas. O povoado triste e de todo decadente reflete o mesmo abandono, traindo os desalentos de uma raça que morre, desconhecida à História, entre paredes de taipa. Nada recorda o encanto clássico das aldeias. As casas baixas, unidas umas contra as outras, feitas à feição dos acidentes do solo, têm todas a mesma forma — tetos deprimidos sobre quatro muros de barro — gizadas todas por este estilo brutalmente chato a que tanto se afeiçoavam os primitivos colonizadores. Algumas devem ter cem anos. As mais novas, copiando-lhes, linha a linha, os contornos desgraciosos, por sua vez nascem velhas.
Deste modo, Monte Santo surge desgracioso dentro de uma natureza que lhe cria em roda — como um parênteses naquele sertão aspérrimo — situação aprazível e ridente.
A campanha incipiente ia agravar o seu aspecto. Menos que arraial obscuro, transformá-lo-ia em grandíssimo quartel acaçapado, envolto de casernas.

Triunfos antecipados

Ali acantonaram as 543 praças, 14 oficiais combatentes e 3 médicos — toda a primeira expedição regular contra Canudos. Era uma massa heterogênea de três cascos de batalhões, o 9º, o 26º e o 33º, tendo, adidas, duzentas e tantas praças de polícia e pequena divisão de artilharia, dous canhões Krupp 7 ½ e duas metralhadoras Nordenfeldt.
Menos de uma brigada, pouco mais de um batalhão completo.
Entretanto, afinados pelo otimismo oficial, as autoridades receberam os lutadores em triunfo, antes da batalha. Engalanou-se o vilarejo pobre, transfigurando-se, ataviado de bandeiras e ramagens, com o ornamento supletivo dos vivos fortes das fardas e irradiação das armas.
E fez-se um dia de festa. A missão mais concorrida, a mais animada feira, jamais tiveram tanto brilho. Tudo aquilo era uma novidade estupenda. Ao chegarem da rota fatigante, rompendo, surpreendidos, pelas ruas cheias de combatentes, os vaqueiros amarravam o campeão à sombra do tamarineiro, na praça, e iam quedar-se, longo tempo, contemplando as peças em que tanto ouviam falar e nunca haviam visto, capazes de esboroar montanhas e abalar com um só tiro, mais forte que o de mil roqueiras, o sertão inteiro. E aqueles titãs, enrijados pelos climas duros, estremeciam dentro das armaduras de couro considerando as armas portentosas da civilização.
Galgavam, muitos, logo, os lombilhos retovados e largavam, transidos de susto, da vila, demandando a caatinga. Alguns volviam a toda a brida para o norte, tocando para Canudos. Ninguém os percebia. Na alacridade dos festejos, não se distinguiam¬ os emissários solertes de Antônio Conselheiro — espiando, observando, indagando, contando o número de praças, examinando todo o trem de guerra e desaparecendo depois, rápidos, precipitando-se para a aldeia sagrada.
Outros ali ficavam, encapotados, contemplando tudo aquilo com ironia cruel, certos do prelúdio hilariante de um drama doloroso. O profeta não podia errar: a sua vitória era fatal. Dissera-o — os invasores não veriam sequer as torres das igrejas sacrossantas.
Acendiam-se recônditos altares. E o riso dos soldados, e o estrépito das botas, percutindo as calçadas, e o vibrar dos clarins, e os vivas entusiásticos das ruas, coavam-se pelas paredes, penetravam as frestas das casas e iam perturbar, lá dentro, as preces abafadas dos fiéis genuflexos...
No banquete, preparado na melhor vivenda, ao mesmo tempo se ostentava o mais simples e emocionante gênero de oratória — a eloqüência militar, esta eloqüência singular do soldado, que é tanto mais expressiva quanto é mais rude — feita de frases sacudidas e breves, como as vozes de comando, e em que as palavras mágicas — Pátria, Glória e Liberdade — ditas em todos os tons, são toda a matéria-prima dos períodos retumbantes. Os rebeldes seriam destruídos a ferro e fogo... Como as rodas dos carros de Shiva, as rodas dos canhões Krupp, rodando pelas chapadas amplas, rodando pelas serranias altas, rodando pelos tabuleiros vastos, deixariam sulcos sanguinolentos. Era preciso um grande exemplo e uma lição. Os rudes impenitentes, os criminosos retardatários, que tinham a gravíssima culpa de um apego estúpido às mais antigas tradições, requeriam corretivo enérgico. Era preciso que saíssem afinal da barbaria em que escandalizavam o nosso tempo, e entrassem repentinamente pela civilização adentro, a pranchadas.
O exemplo seria dado. Era a convicção geral. Dizia-o a despreocupação e todo o arrebatamento feliz de uma população inteira; e a alegria ruidosa e vibrante dos oficiais e das praças; e toda aquela festa — ali — na véspera dos combates, a dous passos do sertão referto de emboscadas...
À tarde grupos ruidosos salpintavam a praça. Derivavam pelos becos. Espalhavam-se pelas cercanias. Atraídos pela novidade de uma perspectiva rara, outros ascendiam a montanha, pela ladeira sinuosa orlada de capelinhas brancas.
Paravam nos passos, refazendo-se para a ascensão exaustiva. Examinavam, curiosos, os registros e estampas, que pendiam às paredes, e os altares toscos; e subiam.
No “alto da Santa Cruz”, batidos pelas lufadas fortes do nordeste, consideravam em torno.
Ali estava — defronte — o sertão...
Uma breve opressão salteava os mais tímidos; mas desaparecia prestes. Volviam tranqüilos para a vila, onde se acendiam as primeiras luzes, ao cair da noite...
Decididamente a campanha começara bem auspiciada.
Monte Santo antecipara-lhe as honras da vitória.

II

Incompreensão da campanha

Foi um mal.
Sob a sugestão de um aparato bélico, de parada, os habitantes preestabeleceram o triunfo; invadida pelo contágio desta crença espontânea, a tropa, por sua vez, compartiu-lhes as esperanças.
Firmara-se, de antemão, a derrota dos fanáticos.
Ora, nos sucessos guerreiros entra, como elemento paradoxal embora, a preocupação da derrota. Está nela o melhor estímulo dos que vencem. A história militar é toda feita de contrastes singulares. Além disto a guerra é uma cousa monstruosa e ilógica em tudo. Na sua maneira atual é uma organização técnica superior. Mas inquinam-na todos os estigmas do banditismo original. Sobranceiras ao rigorismo da estratégia, aos preceitos da tática, à segurança dos aparelhos sinistros, a toda a altitude de uma arte sombria, que põe dentro da frieza de uma fórmula matemática o arrebentamento de um shrapnel e subordina a parábolas invioláveis o curso violento das balas, permanecem — intactas — todas as brutalidades do homem primitivo. E estas são, ainda, a vis a tergo dos combates.
A certeza do perigo estimula-as. A certeza da vitória deprime-as.
Ora, a expedição ia na opinião de toda a gente, positivamente — vencer. A consciência do perigo determinaria mobilização rápida e um investir surpreendedor com o adversário. A certeza do sucesso imobilizou-a quinze dias em Monte Santo.
Analisemos o caso. O comandante expedicionário deixara em Queimadas grande parte de munições, para não protelar por mais tempo a marcha e impedir que os inimigos ainda mais se robustecessem. Assim, teve o intento de uma arremetida fulminante. Revoltado com as dificuldades que encontrara, entre as quais se notava quase completa carência de elementos de transporte, dispusera-se a ir celeremente ao couto dos rebeldes, embora levando apenas a munição que as praças pudessem carregar nas patronas. Isto, porém, não se realizou. De sorte que a partida rápida a uma localidade condena a demora inconseqüente na outra. Esta somente se justificaria se, ponderando melhor a seriedade das cousas, ele a aproveitasse para agremiar melhores elementos, fazendo, principalmente, vir de Queimadas o resto dos trens de guerra. Os inconvenientes de uma longa pausa, justificá-los-iam as vantagens adquiridas. Ganharia em força o que perdesse em celeridade. Às aventuras de um plano temerário, resumindo-se numa investida e num assalto, substituiria operação mais lenta e mais segura. Não fez isto. Fez o inverso: depois de longa inatividade em Monte Santo, a expedição partiu ainda menos aparelhada do que quando ali chegara quinze dias antes, abandonando, ainda uma vez, parte dos restos de um trem de guerra já muitíssimo reduzido. Entretanto, contravindo ao modo de ver dos propagandistas de uma vitória fácil, chegavam constantes informações sobre o número e recursos dos fanáticos. E no disparatado das opi¬niões — entre as que elevavam aquele, no máximo, a quinhentos, e as que o firmavam, decuplicando-o, no mínimo, em cinco mil, cumpria inferir-se uma média razoável. Além disto, de envolta num sussurrar de cautelosas denúncias e mal boquejados avisos, esboçava-se a hipótese de uma traição. Apontavam-se influentes mandões locais, cujas velhas relações com o Conselheiro sugeriam, veemente, a presunção de que o estivessem auxiliando à socapa, fornecendo-lhe recursos e instruindo-o dos menores movimentos da investida. Ainda mais, sabia-se que a tropa, quando mesmo o maior sigilo ro¬deasse as deliberações, seria, no avançar, precedida e ladeada pelos espias espertos do inimigo, muitos dos quais, verificou-se depois, dentro da própria vila acotovelavam os expedicionários. Uma surpresa, depois de tantos dias perdidos e em tais circunstâncias, era inadmissível. Em Canudos saberiam da estrada escolhida para linha de operações com antecedência bastante para se fortificarem os seus trechos mais difíceis, de sorte que, reeditando o caso de Uauá, o alcance do arraial preestabelecia a preliminar de um combate em caminho. Assim a partida da base de operações, do modo por que se fez, foi um erro de ofício. A expedição endireitava para o objetivo da luta como se voltasse de uma campanha. Abandonando novamente parte das munições, seguia como se, pobre de recursos em Queimadas, paupérrima de recursos em Monte Santo, ela fosse abastecer-se — em Canudos... Desarmava-se à medida que se aproximava do inimigo. Afrontava-se com o desconhecido, ao acaso, tendo o amparo único da fragilidade da nossa bravura impulsiva.
A derrota era inevitável.
Porque a tais deslizes se aditaram outros, denunciando a mais completa ignorância da guerra.
Revela-se a ordem do dia organizadora das forças atacantes.
Escassa como uma ordem qualquer distribuindo contingentes, não há rastrear-se nela a mais fugaz indicação sobre o desdobramento, formaturas ou manobras das unidades combatentes, consoante os vários casos fáceis de prever. Não há uma palavra sobre inevitáveis assaltos repentinos. Nada, afinal, visando uma distribuição de unidades, de acordo com os caracteres especiais do adversário e do terreno. Adstrito a uns rudimentos de tática prussiana, transplantados às nossas ordenanças, o chefe expedicionário, como se levasse o pequeno corpo de exército para algum campo esmoitado da Bélgica, dividiu-o em três colunas, parecendo dispô-lo, de antemão, para recontros em que lhe fosse dado entrar repartido em atiradores, reforço e apoio. Nada mais, além desse subordinar-se a uns tantos moldes rígidos de velhos ditames clássicos de guerra.
Ora estes eram inadaptáveis no momento.
Segundo o exato conceito de Von der Goltz, qualquer organização militar deve refletir alguma cousa do temperamento nacional. Entre a incoercível tática prussiana, em que é tudo a precisão mecânica da bala, e a nervosa tática latina, em que é tudo o arrojo cavalheiresco da espada, tínhamos a esgrima perigosa com os guerrilheiros esquivos cuja força estava na própria fraqueza, na fuga sistemática, num vaivém doudejante de arrancadas e recuos, dispersos, escapantes no seio da natureza protetora. Eram por igual inúteis as cargas e as descargas. Contra tais antagonistas e num tal terreno não havia supor-se a probabilidade de se estender a mais apagada linha de combate. Não havia até a possibilidade de um combate, no rigorismo técnico do termo. A luta, digamos com mais acerto, uma monteria a homens, uma batida brutal em torno à ceva monstruosa de Canudos, ia reduzir-se a ataques ferozes, a esperas ardilosas, a súbitas refregas, instantâneos recontros em que fora absurdo admitir-se que se pudessem desenvolver as fases principais daquele, entre os dous extremos dos fogos violentos, que o iniciam, ao epílogo delirante das cargas de baioneta. Função do homem e do solo, aquela guerra devia impulsionar-se a golpes de mão de estrategista revolucionário e inovador. Nela iam surgir, tumultuariamente, fundidas, penetrando-se, simultâneas, todas as situações, naturalmente distintas, em que se pode encontrar qualquer força em operações — a de repouso, a de marcha e a de combate. O exército marchando pronto a encontrar o inimigo em todas as voltas dos caminhos, ou a vê-lo romper dentre as próprias fileiras, surpreendidas, devia repousar nos alinhamentos da batalha.
Nada se deliberou quanto a condições tão imperiosas. O comandante limitou-se a formar três colunas e a ir para a frente, pondo diante da astúcia sutil dos jagunços a potência ronceira de três falanges compactas — homens inermes carregando armas magníficas. Ora, um chefe militar deve ter algo de psicólogo. Por mais mecanizado que fique o soldado pela disciplina, tendendo para esse sinistro ideal de homúnculo, feito um feixe de ossos amarrados por um feixe de músculos, energias inconscientes sobre alavancas rígidas, sem nervos, sem temperamento, sem arbítrio, agindo como um autômato pela vibração dos clarins, transfiguram-no as emoções da guerra. E a marcha nos sertões desperta-as a todo o instante. Trilhando veredas desconhecidas, envolto por uma natureza selvagem e pobre, o nosso soldado, que é corajoso na frente do inimigo, acobarda-se, invadido de temores, todas as vezes que este, sem aparecer, se revela, impalpável, dentro das tocaias. Assim, se um tiroteio das guardas da frente se constitui, na campanha, aviso salutar ao resto dos lutadores, naquelas circunstâncias anormais era um perigo. Quase sempre as seções se baralhavam, sacudidas pelo mesmo espanto, numa desordem súbita, tendendo a um refluxo instintivo para a retaguarda.
Era natural que fossem previstas estas conjunturas inevitáveis. Para atenuá-las, as diversas unidades deviam seguir com o máximo afastamento, embora agissem, no primeiro momento, completamente isoladas. Este dispositivo, além de lhes altear o ânimo, pela certeza de um pronto auxílio por parte das que fora da ação imediata do inimigo podiam acometê-lo levando a força moral do ataque, evitava o alastramento do pânico e facultava um desdobramento desafogado. Embora a direção dos vários movimentos escapasse da autoridade de um comando único, substituída pela iniciativa mais eficaz dos comandantes de pequenas unidades, agindo autônomas de acordo com as circunstâncias do momento, impunha-se largo fracionamento das colunas. Era parodiar a norma guerreira do adversário, seguindo-a paralelamente, em traçados mais firmes e opondo-lhe a mesma dispersão, única capaz de amortecer as causas de insucesso, de anular o efeito de repentinas emboscadas, de criar melhores recursos de reação, e de acarretar, ao cabo, a vitória, do único modo por que esta poderia ser alcançada, feito uma soma de sucessivos ataques parciais.
Em síntese, as forças, dispersas em marcha, a partir da base das operações, deviam ir, a pouco e pouco, apertando os fanáticos, concentrar-se em Canudos.
Fez-se sempre o contrário. Partiam unidas, em colunas, dentro da estrutura maciça das brigadas. Avançavam emboladas pelos caminhos em fora. Ia dispersar-se, repentinamente — em Canudos...

Em marcha para Canudos

Foi nestas condições desfavoráveis que partiram a 12 de janeiro de 1897.
Tomaram pela estrada do Cambaio.
É a mais curta e a mais acidentada. Ilude a princípio, perlongando o vale do Cariacá, numa cinta de terrenos férteis sombreados de cerradões que prefiguram verdadeiras matas.
Transcorridos alguns quilômetros, porém, acidenta-se; perturba-se em trilhas pedregosas e torna-se menos praticável à medida que se avizinha do sopé da Serra do Acaru. Dali por diante se encurva para leste transmontando a serrania por três ladeiras sucessivas, até galgar o sítio da Lajem de Dentro, alçado trezentos metros sobre o vale.
Gastaram-se dous dias para atingir-se este ponto. A artilharia reduzia a marcha. Ascendiam penosamente os Krupps, enquanto os separadores na frente reparavam a estrada, desentulhando-a e destocando-a, ou abrindo desvios contor¬nantes, evitando fortíssimos declives. E a tropa, que tinha as condições de sucesso na mobilidade, paralisava-se presa no travão daquelas massas metálicas.
Transposta a Lajem de Dentro e a divisória das vertentes do Itapicuru e do Vaza-Barris, a estrada desce. Torna-se, porém, mais séria a travessia, metendo-se no acidentado de contrafortes, de onde fluem os tributários efêmeros do Bendegó. A bacia de captação deste desenha-se, então, ligando as abas de três serras, a do Acaru, a Grande e do Atanásio, que se articulam em desmedida curva. A expedição entrou por aquele vale fundo como uma furna até a um outro sítio, Ipueiras, onde acampou. Foi uma temeridade. O acampamento, envolto de fraguedos, centralizaria os fogos do inimigo, se este aparecesse pelo topo dos morros. Felizmente não chegavam até lá os jagunços. De sorte que na antemanhã seguinte, rumo firme ao norte, a tropa prosseguiu para Penedo, salva de uma posição dificílima.
Tinha meio caminho andado. As estradas pioravam, crivadas de veredas, serpeando em morros, alçando-se em rampas, caindo em grotões, desabrigadas, sem sombras...
Até Mulungu, duas léguas além do Penedo, os sapadores estradaram o solo para os canhões, e a jornada remorava-se no passo tardo da divisão que os guarnecia.
Entretanto, era imprescindível a máxima celeridade. Tornava-se suspeita a paragem: restos de fogueiras à margem do caminho e vivendas incendiadas davam sinais do inimigo. Em Mulungu, à noite, eles se tornaram evidentes. Alarmou-se o acampamento. Tinham-se distinguido, próximos, encobertos na sombra, rondando em torno, vultos fugazes, de espias. Os soldados dormiram em armas. E no amanhecer de 17 a expedição que se encravara nas montanhas, muito aquém ainda de um objetivo que podia ser atingido em três dias de marcha, começou de ser terrivelmente torturada.
Acabaram-se as munições de boca. Foram abatidos os dous últimos bois para quinhentos e tantos combatentes. Isto valia por um combate perdido. A feição da luta agravava-se em plena marcha, antes de se dar um tiro. Prosseguir para Canudos, poucas léguas distante, era quase a salvação. Era lutar pela vida.
Completando o transe, desapareceram à noite, em grande parte, os cargueiros contratados em Monte Santo. E sob o pretexto de providenciar para urgente remessa de munições, o comissário daquela vila largou para ignoradas paragens — e não voltou.
Alguém, entretanto, salvou a lealdade sertaneja, o guia Domingos Jesuíno. Conduziu as tropas para a frente até ao Rancho das Pedras, onde acamparam.
Estavam cerca de duas léguas de Canudos.
E à noite um observador que do acampamento atentasse para o norte, distinguiria talvez, escassas, em bruxeleiros longínquos, fulgindo e extinguindo-se, intermitentes, muito altas, como estrelas rubras entre nevoeiros, algumas luzes vacilantes. Demarcavam as posições inimigas.
Ao alvorecer, desdobraram-se imponentes.

III

O Cambaio

As massas do Cambaio amontoavam-se na frente, dispostas de modo caprichoso, fundamente recortadas e gargantas longas e circulantes como fossos, ou alteando-se em patamares sucessivos, lembrando desmedidas bermas de algum baluarte derruído, de titãs.
A imagem é perfeita. São vulgares naquele trato dos sertões esses aspectos originais da terra. As lendas das “cidades encantadas”, na Bahia, que têm conseguido dar à fantasia dos matutos o complemento de sérias indagações de homens estudiosos, originando pesquisas que fora descabido relembrar, não têm outra origem.1
E não se acredite que as exagere a imaginação daquelas gentes simples, iludindo tanto a expectativa dos graves respingadores que por ali têm perlustrado, levando ansioso anelo de sábias sociedades ou institutos, onde se debateu o caso interessante. Frios observadores atravessando escoteiros aquele estranho vale do Vaza-Barris têm estacado, pasmos, ao defrontar.

“serras de pedra naturalmente sobrepostas formando fortalezas e redutos inexpugnáveis com tal perfeição que parecem obras de ‘arte”’1

Às vezes esta ilusão se amplia.
Surgem necrópoles vastas. Os morros, cuja estrutura se desvenda em pontiagudas apófises, em rimas de blocos, em alinhamentos de penedias, caprichosamente repartidos, semelham, de fato, grandes cidades mortas ante as quais o matuto passa, medroso, sem desfitar a esposa dos ilhais de cavalo em disparada, imaginando lá dentro uma população silenciosa e trágica de almas do outro mundo...
São deste tipo as “casinhas” que se vêem para lá do Aracati, perto da estrada de Jeremoabo a Bom Conselho; e outras, despontando por todos aqueles lugares e imprimindo um traço singularmente misterioso naquelas paisagens melancólicas.
Baluartes sine calcü linimenti
A Serra do Cambaio é um desses monumentos rudes.
Certo ninguém lhe pode enxergar geométricas linhas de cortinas ou parapeitos bojando em rebentes circuitados de fossos. Eram piores aqueles redutos bárbaros. Erigiam-se à têmpera dos que os guarneciam. E à distância, indistintos os ressaltos das pedras e desfeitos os vincos das quebradas, o conjunto da serra incute, de fato, no observador, a impressão de topar, de súbito, fraldejando-a, subindo por elas em patamares sucessivos e estendidas pelas vertentes, as barbacãs de velhíssimos castelos, onde houvessem embatido, outrora, assaltos sobre assaltos que os desmantelaram e aluíram, reduzindo-os a montões de silhares em desordem, mal aglomerados em enormes hemiciclos, sucedendo-se em renques de plintos, e torres, e pilastras truncadas, avultando mais ao longe no aspecto pinturesco de grandes colunatas derruídas...
Porque o Cambaio é uma montanha em ruínas. Surge, disforme, rachando sob o periódico embate de tormentas súbitas e insolações intensas, disjungida e estalada — num desmoronamento secular e lento.
A estrada para Canudos não a torneja. Ajusta-se-lhe, retilínea, às ilhargas, subindo em declive, constrangida entre escarpas, mergulhando por fim, feito um túnel, na angustura de um desfiladeiro. A tropa por ali enfiou...
Naquela hora matinal a montanha deslumbrava. Batendo nas arestas das lajens em pedaços, os raios do Sol refrangiam em vibrações intensas alastrando-se pelas assomadas, e dando a ilusão de movimentos febris, fulgores vivos de armas cintilantes, como se em rápidas manobras forças numerosas ao longe se apercebessem para o combate. Os binóculos, entretanto, percorriam inutilmente as encostas desertas. O inimigo traía-se apenas na feição ameaçadora da terra. Encantoara-se. Rentes com o chão, rebatidos nas dobras do terreno, entaliscados nas crastas — esparsos, imóveis, expectantes — dedos presos aos gatilhos dos clavinotes, os sertanejos quedavam, em silêncio, tenteando as pontarias, olhos fitos nas colunas ainda distantes, embaixo, marchando após os exploradores que esquadrinhavam cautelosamente as cercanias.
Caminhavam vagarosamente. Atulhavam as primeiras ladeiras cortadas a meia encosta. Seguiam devagar, sem aprumo, emperradas pelos canhões onde se revezavam soldados ofegantes em auxílio aos muares impotentes à tração vingando aqueles declives.
E foi nesta situação que as surpresou o inimigo.
Dentre as frinchas, dentre os esconderijos, dentre as moitas esparsas, aprumados no alto dos muramentos rudes, ou em despenhos ao viés das vertentes — apareceram os jagunços, num repentino deflagrar de tiros.
Toda a expedição caiu, de ponta a ponta, debaixo das trincheiras do Cambaio.

Primeiro encontro

O recontro fez-se em vozeira em quem, através dos costumeiros vivas ao “Bom Jesus” e ao “nosso Conselheiro”, rom¬piam brados escandalosos de linguagem solta, apóstrofes insolentes, e entre outras uma frase desafiadora que no decorrer da campanha soaria invariável como um estribilho irônico:
“Avança! fraqueza do governo!”
Houve uma vacilação em toda a linha. A vanguarda estacou e pareceu recuar. Conteve-a, porém, uma voz imperiosa. O major Febrônio rompeu pelas fileiras alarmadas e centralizou a resistência — em réplica fulminante e admirável, atentas às desvantajosas condições em que se realizou. Con¬teirados rapi- damente os canhões, bombardearam os matutos a queima-roupa, e estes, vendo pela primeira vez aquelas armas poderosas, que decuplavam o efeito despedaçando pedras, debandaram, tontos, numa dispersão instantânea. Aproveitando este refluxo foi feita a investida, iniciada de pronto, pelas cento e tantas praças do 33º de Infantaria. Tropeçando, escorregando nas lajens, contornando-as, ou transpondo-as aos saltos, insinuando-se pelos talhados, atirando a esmo para a frente, as praças arremeteram com as rampas; e logo depois a linha do assalto se estirou, tortuosa e ondulante, extremada à direita pelo 9º e à esquerda pelo 16º e a polícia baiana.
O combate generalizou-se em minutos, e, como era de prever, as linhas romperam-se de encontro aos obstáculos do terreno. Foi um avançar em desordem. Fracionados, galgando penhascos a pulso, carabinas presas aos dentes pelas bandoleiras, ou abordoando-se às armas, os combatentes arremeteram em tumulto — sem o mínimo simulacro de formatura, confundidos batalhões e companhias — vagas humanas raivando contra os morros, num marulho de corpos, arrebentando em descargas, espadanando brilhos de aço, e estrugindo em estampidos sobre que passavam, estrídulas, as notas dos clarins soando a carga.
Embaixo, na ladeira em que ficara a artilharia, os animais de tração e os cargueiros, espavoridos pelas balas, partindo os tirantes, sacudindo fora canastras bruacas, desapareciam a galope ou tombavam pelos taludes íngremes. Acompanhou-os o resto dos tropeiros, fugindo, surdos às intimativas feitas com revólveres engatilhados, e agravando o tumulto.
No alto, mais longe, pelo teso da serra, reapareciam os sertanejos. Pareciam dispostos em duas sortes de lutadores: os que se agitavam, velozes, surgindo e desaparecendo, às carreiras, e os que permaneciam firmes nas posições alterosas. A cavaleiro do assalto, estes iludiam de modo engenhoso a carência de espingardas e o lento processo de carregamento das que possuíam. Para isto se dispunham em grupos de três ou quatro rodeando a um atirador único, pelas mãos do qual passavam, sucessivamente, as armas carregadas pelos companheiros invisíveis, sentados no fundo da trincheira. De sorte que se alguma bala fazia baquear o clavinoteiro, substituía-o logo qualquer dos outros. Os soldados viam tombar, mas ressurgir imediatamente, indistinto pelo fumo, o mesmo busto, apontando-lhes a espingarda. Alvejavam-no de novo. Viam-no outra vez cair, de bruços, baleado. Mas viam outra vez erguer-se, invulnerável, assombroso, terrível, abatendo-se e aprumando-se, o atirador fantástico.

João Grande

Este ardil foi logo descoberto pelas diminutas frações atacantes que se avantajaram até às canhoneiras mais altas. Chegaram ali esparsas. A fugacidade do inimigo e o terreno davam por si mesmos à tropa a distribuição tática mais própria, circunstância que, aliada ao pequeno alcance das armas daquele, tornara a expedição quase indene. Os únicos topreços à escalada eram as asperezas do solo. As cargas amorteciam-se nas escarpas. Não as esperavam os jagunços. Certos da inferioridade de seu armamento bruto, pareciam desejar apenas que ali ficassem, como ficaram, a maior parte das balas destinadas a Canudos. E falseavam a peleja franca. Via-se entre eles, sopesando o clavinote curto, um negro corpulento e ágil. Era o chefe, João Grande. Desencadeava as manobras, estadeando ardilezas de facínora provecto nas correrias do sertão. Imitavam-lhe os movimentos, as carreiras, os saltos, as figurações selvagens, os sertanejos amotinados — num vaivém de avançadas e recuos, ora dispersos, ora agrupados, ou desfilando em fileiras sucessivas, ou repartindo-se extremamente rarefeitos; e a rojões, rolantes pelos pendores, subindo, descendo, atacando, fugindo, baqueando trespassados de balas, muitos; malferidos, outros, em plena descida, e rolando até ao meio das praças, que os acabavam a couce de armas.
Desapareciam inteiramente, às vezes.
Os projetis das Mannlichers estralavam à toa na ossamenta rígida da serra. As seções avançadas ascendiam, porém, mais rápidas, pelas barrancas, conquistando o terreno, até que outra irrupção repentina do adversário lhes tomasse a frente, ou as aferrasse de soslaio. Algumas, então, paravam. Algumas recuavam mesmo, tolhidas de espanto, sem que as animassem oficiais acobardados, cujos nomes pouparam as partes oficiais, mas não os comentários acerbos dos companheiros. A maior parte reagia. Rompia o espingardeamento a queima-roupa sobre os fanáticos dizimando-os, espalhando-os, em grandes correrias pelos cerros.
Por fim o rude cabecilha predispô-los, ao que se figura, a recontro decisivo, braço a braço. O seu perfil de gorila destacou-se, temerariamente, à frente de um bando de súbito congregado. Num belo movimento heróico avançou sobre a artilharia. Cortou-lhe, porém, o passo a explosão de uma lanterneta estraçoando-o e aos caudatários mais próximos, enquanto os demais fugiam para as posições primitivas de envolta, agora, com as avançadas da tropa. Contingentes misturados de todos os corpos saltavam afinal dentro das últimas trincheiras à direita, perdendo o oficial que até lá os levara, Venceslau Leal.
Estava conquistada a montanha após três horas de conflito. A vitória, porém, resultava da coragem cega junta à mais completa indisciplina de fogo — e compreende-se que mais tarde a ordem do dia relativa ao feito desse preeminente lugar às praças graduadas. Os seus cabos-de-guerra foram os cabos-de-esquadra. Sobre os jagunços em fuga confluíram cargas em desordem: soldados em grupos, turbas sem comando disparando à toa as carabinas, num fanfarrear irritante e numa alacridade feroz de monteiros no último lance de uma batida a javardos.
Os jagunços escapavam-se-lhes adiante. Perseguiram-nos.
A artilharia, embaixo, começou a rodar, puxada a pulso, pelas ladeiras acima.
Realizara-se a travessia; e, tirante o dispêndio de munições, eram poucas as perdas — quatro mortos e vinte e tantos feridos. Em troca os sertanejos deixavam cento e quinze cadáveres, contados rigorosamente.

Episódio trágico

Fora uma hecatombe. Cumulou-a um episódio trágico.
A algara tumultuária teve um desfecho teatral.
Foi no volver das últimas bicadas da serra...
Ali sobre barranca agreste, avergoada de algares, se alteava, oblíqua e mal tocando por um dos extremos o solo, imensa lajem presa entre duas outras que a sustinham pelo atrito, semelhando um dólmen abatido. Este abrigo coberto tinha, na frente, a barbacã de um muro de rocha viva. Nele se acoutaram muitos sertanejos — cerca de quarenta, segundo um espectador do quadro1 — provavelmente os que possuíam as derradeiras cargas dos trabucos.
A terra protetora dava aos vencidos o último reduto.
Aproveitaram-no. Abriram sobre os perseguidores um tiroteio escasso, e fizeram-nos estacar um momento, fazendo parar, mais longe, a artilharia que se aprestou a bombardear o pequeno grupo de temerários.
O bombardeio reduziu-se a um tiro. A granada partiu levemente desviada do alvo, e foi arrebentar numa das junturas em que se engastava a pedra. Dilatou-a. Abriu-a, de alto a baixo.
E o bloco despregado desceu pesadamente, em baque surdo, sobre os infelizes, sepultando-os...
Reatou-se a marcha. Adiante, numa exaustão crescente, percebida no rarear dos tiros, os últimos defensores do Cambaio tocavam para Canudos. Desapareceram, por fim.

IV

Nos tabuleirinhos

À noite circularam-no. A tropa adormeceu sob a guarda terrível do inimigo...

Segundo combate

Ao amanhecer, porém, nada lho revelou; e, formadas cedo, as colunas dispuseram-se ao último arranco sobre o arraial, depois de um quarto de hora a marche-marche sobre o terreno, que ali é desafogado e chão.
Mas antes de abalarem sobreveio ligeiro contratempo. Um shrapnel emperrara na alma de um dos canhões resistindo a todos os esforços para a extração. Adotou-se, então, o melhor dos alvitres: disparar o Krupp na direção provável de Canudos.
Seria uma aldrabada batendo às portas do arraial, anunciando estrepitosamente o visitante importuno e perigoso.
De fato, o tiro partiu... E a tropa foi salteada por toda a banda! Reeditou-se o episódio de Uauá. Abandonando as espingardas imperfeitas pelos varapaus, pelos fueiros dos carros, pelas foices, pelas forquilhas, pelas aguilhadas longas e pelos facões de folha larga, os sertanejos enterreiraram-na, surgindo em grita, todos a um tempo, como se aquele disparo lhes fosse um sinal prefixo para o assalto.
Felizmente os expedicionários, em ordem de marcha, tinham prontas as armas para a réplica, que se realizou logo em descargas rolantes e nutridas.
Mas os jagunços não recuaram. O arremesso da investida jogara-os dentro dos intervalos dos pelotões. E pela primeira vez os soldados viam, de perto, as faces trigueiras daqueles antagonistas, até então esquivos, afeitos às correrias velozes nas montanhas...
A primeira vítima foi um cabo do 9º. Morreu matando.
Ficou trespassado na sua baioneta o jagunço que o abatera atravessando-o com o ferrão de vaqueiro.
A onda assaltante passou sobre os dous cadáveres.
Tomara-lhe a frente um mamaluco possante, — rosto de bronze afeiado pela pátina das sardas — de envergadura de gladiador sobressaindo no tumulto. Este campeador terrível ficou desconhecido à história. Perdeu-se-lhe o nome. Mas não a imprecação altiva que arrojou sobre a vozeria e sobre os estampidos, ao saltar sobre o canhão da direita, que abarcou nos braços musculosos, como se estrangulasse um monstro:
“Viram, canalhas, o que é ter coragem?!”
A guarnição da peça recuara espavorida, enquanto ela rodava, arrastada a braço, apresada.
Era o desastre iminente.
Avaliou-o o comandante expedicionário, que tudo indica ter sido o melhor soldado da própria expedição que dirigiu. Animou valentemente os companheiros atônitos e, dando-lhes o exemplo, precipitou-se contra o grupo. E a luta travou-se braço a braço, brutalmente, sem armas, a punhadas, quase surda: um torvelinho de corpos enleados, de onde se difundiam estertores de estrangulados, ronquidos de peitos ofegantes, baques de quedas violentas...
O canhão retomado volveu à posição primitiva. As cousas, porém, não melhoraram. Apenas repelidos os jagunços, num retroceder repentino que não era uma fuga, mas uma negaça perigosa, fervilharam no matagal rarefeito, em roda: vultos céleres, fugazes, indistintos, aparecendo e desaparecendo nos claros das galhadas. Novamente esparsos e intangíveis, punham, ressoantes, sobre os contrários, os projetis grosseiros — pontas de chifre, seixos rolados, e pontas de pregos — de sua velha ferramenta da morte, desde muito desusada.1 Renovavam o duelo a distância, antepondo as espingardas de pederneira e os trabucos de cano largo às Mannlichers fulminantes. Volviam ao sistema habitual de guerra, o que era delongar indefinidamente a ação, dando-lhe um caráter mais sério que o do ataque violento anterior; fazendo-a derivar cruelmente monótona, sem peripécias, na iteração fatigante dos mesmos incidentes, até ao esgotamento completo do adversário que, relativamente incólume, cairia afinal exausto de os bater, vencido pelo cansaço de minúsculas vitórias, num esfalfamento trágico de algozes enfastiados de matar; punhos amolecidos e frouxos pelo multiplicado dos golpes; forças perdidas em arremessos doudos contra o vácuo.
A situação desenhou-se insanável.
Restava aos invasores um recurso em desespero de causa: — o avançar aforradamente, deslocando o campo do combate, e cair sobre o arraial, assaltantes e assaltados, tendo às ilhargas os guerrilheiros atrevidos, e talvez na frente, antes da entrada daquele, outros reforços tolhendo-lhes o passo. Mas nesse pelejar em marcha de três quilômetros, as munições, prodigamente gastas na façanha prejudicial do Cambaio, talvez se extinguissem em caminho e não podia alvitrar-se o meio extremo de se ultimar a empresa a choques de armas brancas, ante a sobrecarga muscular dos soldados famintos e combalidos a que se aditavam cerca de setenta feridos agitando-se, inúteis, na desordem.
Estava, além disto, excluída a hipótese eficaz de um bombardeio preliminar: restavam apenas vinte tiros de artilharia.
A retirada impôs-se urgente e inevitável. Reunida em plena refrega a oficialidade, o comandante definiu-lhe a situação e determinou que optasse por uma das pontas do dilema: o prosseguimento da luta até o sacrifício completo ou o seu abandono imediato. Foi aceita a última sob a condição expressa de não se deixar uma única arma, um único ferido e não ficar um único cadáver insepulto.
Este recuo, entretanto, era de todo contraposto aos resultados diretos do combate. Como na véspera, as perdas sofridas de um e outro lado estavam fora de qualquer paralelo. A tropa perdera apenas quatro homens excluídos trinta e tantos feridos, ao passo que os contrários, desconhecido o número dos últimos, foram dizimados.
Um dos médicos1 contou rapidamente mais de trezentos cadáveres. Tingira-se a água impura da lagoa do Cipó e o sol batendo de chapa na sua superfície, destacava-a, sinistramente no pardo escuro da terra requeimada, como uma nódoa amplíssima, de sangue...

A Legio Fulminata de João Abade

,P ALIGN=JUSTIFY>A retirada foi a salvação. Mas o investir de arranco com o arraial, arrostando tudo, talvez fosse a vitória.
Desvendemos — arquivando depoimentos de testemunhas contestes — um dos casos originais dessa campanha. Algum tempo depois de travado o conflito em Tabuleirinhos, os habitantes de Canudos, impressionados com a intensidade dos tiroteios, alarmaram-se; e prevendo as conseqüências que adviriam se os soldados ali chegassem, de chofre, caindo sobre a beataria medrosa, João Abade reuniu o resto dos homens válidos, cerca de seiscentos, seguindo em reforço aos companheiros. A meio caminho, porém, a sua coluna foi inopinadamente colhida pelas balas. Atirando contra os primeiros agressores no lugar do encontro, os soldados mal apontavam; de sorte que, na maior parte, os tiros, partindo em trajetórias altas, se lançavam segundo o alcance máximo das armas. Ora, todos estes projetis perdidos, passando sobre os combatentes, iam cair, adiante, no meio da gente de João Abade. Os jagunços, perplexos, viam os companheiros baqueando, como fulminados; percebiam o assovio tenuíssimo das balas e não lobrigavam o inimigo. Em torno os arbúsculos estonados e raros não permitiam tocaias; os cerros mais próximos viam-se desnudos, desertos. E as balas desciam incessantes, aqui, ali, de soslaio, de frente, pelo centro da legião surpreendida, pontilhando-a de mortos — como uma chuva silenciosa de raios... Um assombro supersticioso sombreou logo nos rostos mais enérgicos. Volveram, atônitos, as vistas para o firmamento ofuscante, varado pelos ramos descendentes das parábolas invisíveis; e não houve, depois, contê-los. Precipitaram-se, desapoderadamente, para Canudos, onde chegaram originando alarma espantoso.
Não havia ilusão possível: o inimigo, dispondo de engenhos de tal ordem, ali estaria em breve, sobrestante, no rastro dos derradeiros defensores do arraial. Quebrou-se o encanto do Conselheiro. Tonto de pavor, o povo ingênuo perdeu, em momentos, as crenças que o haviam empolgado. Bandos de fugitivos, sobraçando trouxas estavanadamente feitas, porfiavam na fuga, atravessando, rápidos, a praça e os becos, demandando as caatingas, sem que os contivessem os cabecilhas mais prestigiosos; enquanto as mulheres, em desalinho, em gritos, soluçando, clamando, numa algazarra indefinível, mas ainda fascinadas, agitando os relicários, rezando se agrupavam à porta do Santuá¬rio, implorando a presença do evangelizador.

Novo milagre do conselheiro

Mas Antônio Conselheiro, que nos dias normais mesmo evitava encará-las, naquelas aperturas estabeleceu separação completa. Subiu com meia dúzia de fiéis para os andaimes altos da igreja nova, e fez retirar, depois, a escada.
O agrupamento agitado ficou embaixo, imprecando, chorando, rezando. Não o olhou sequer o apóstolo esquivo, atravessando impassível sobre as tábuas que inflectiam, rangendo. Atentou para o povoado revolto, em que se atropelavam, prófugos, os desertores da fé, e preparou-se para o martírio inevitável...
Neste comenos sobreveio a nova de que a força recuava.
Foi um milagre. A desordem desfechava em prodígio.


V

Retirada

Começara, de fato, a retirada.
Extintas as esperanças de sucesso, resta aos exércitos infelizes o recurso desse oscilar entre a derrota e o triunfo, numa luta sem vitórias em que, entretanto, o vencido vence em cada passo que consegue dar para a frente, pisando, indomável, o território do inimigo — e conquistando a golpes de armas todas as voltas dos caminhos.
Ora, a retirada do major Febrônio se, pelo restrito do campo em que se operou, não se equipara a outros feitos memoráveis, pelas circunstâncias que a enquadraram é um dos episódios mais emocionantes de nossa história militar. Os soldados batiam-se ia para dous dias, sem alimento algum, entre os quais mediava o armistício enganador de uma noite de alarmas; cerca de setenta feridos enfraqueciam as fileiras; grande número de estropiados mal carregavam as armas; os mais robustos deixavam a linha de fogo para arrastarem os canhões ou arcavam sobre feixes de espingardas, ou, ainda, em padiolas, transportavam malferidos e agonizantes; — e, na frente desta multidão revolta, se estendia uma estrada de cem quilômetros, em sertão maninho, inçado de tocaias...
Ao perceberem o movimento, os jagunços encalçaram-na.
Capitaneava-os, agora, um mestiço de bravura inexcedível e ferocidade rara, Pajeú. Legítimo cafuz, no seu temperamento impulsivo acolcheteavam-se todas as tendências das raças inferiores que o formavam. Era o tipo completo do lutador primitivo — ingênuo, feroz e destemeroso — simples e mau, brutal e infantil, valente por instinto, herói sem o saber — um belo caso de retroatividade atávica, forma retardatária de troglodita sanhudo aprumando-se ali com o mesmo arrojo com que, nas velhas idades, vibrava o machado de sílex à porta das cavernas...
Este bárbaro ardiloso distribuiu os companheiros pelas caatingas, ladeando as colunas.
Estas marchavam lutando. Dado um último choque partindo o círculo assaltante, começou a desfilar pelas veredas ladeirentas, sem que se lobrigasse neste movimento gravíssimo, o mais sério das guerras, o mais breve resquício de preceitos táticos onde avulta a clássica formatura em escalões permitindo às unidades combatentes alternarem-se na repulsa.
É que a expedição perdera de todo em todo a estrutura militar, nivelados oficiais e praças de pré pelo mesmo sacrifício. Enquanto o comandante, cujo ânimo não afrouxara, procurava os pontos mais arriscados; enquanto capitães e subalternos, sobraçando carabinas, se precipitavam, de mistura com as praças de pré, em cargas feitas sem vozes de comando, um sargento, contra todas as praxes, dirigia a vanguarda.
Desta maneira penetraram de novo nas gargantas do Cambaio. Ali estava a mesma passagem temerosa, estreitando-se em gargantas, ou içada a meia encosta, num releixo sobre os abismos; entalando-se entre escarpas; aberta a esmo ao viés das vertentes; sobranceada em torno o percurso pelas trincheiras alterosas. Uma variante apenas: de bruços ou de supino sobre as pedras, desenlapando-se à boca das furnas, esparsos pelas encostas, viam-se os jagunços vitimados na véspera.
Os companheiros sobreviventes passavam-lhes, agora, de permeio, parecendo uma turba vingadora de demônios entre caída multidão de espectros...
Não arremetiam mais em chusma sobre a linha, desafiando as últimas granadas; flanqueavam-na, em correrias pelos altos, deixando que agisse, quase exclusiva, a sua arma formidável — a terra. Esta bastava-lhes. O curiboca que partira a lazarina ou perdera o ferrão no torvelino, volvia o olhar em torno — e a montanha era um arsenal. Ali estavam blocos esparsos ou arrumados em pilhas vacilantes prestes a desencadear o potencial de quedas violentas, pelos declives. Abarcava-os; transmudava a espingarda imprestável em alavanca; e os monólitos abalados oscilavam, e caíam, e rolavam, a princípio em rumo incerto entre as dobras do terreno, depois, mais rápidos, pelas normais de máximo declive, despenhando-se, por fim, vertiginosamente, em saltos espantosos; e batendo contra as outras pedras, e esfarelando-as em estilhas, passavam como balas rasas monstruosas sobre as tropas apavoradas.
Estas embaixo salvavam-se cobertas pelo ângulo morto do próprio caminho a meia encosta, sob uma avalanche de blocos e graeiros. As fadigas da marcha abatiam-nas mais que o inimigo. O Sol culminara ardente e a luz crua do dia tropical, caindo na região pedregosa e despida, refluía aos espaços num flamejar de queimadas grandes alastrando-se pelas serras.
A natureza toda quedava-se imóvel naquele deslumbramento, sob o espasmo da canícula. Os próprios tiros mal quebravam o silêncio: não havia ecos nos ares rarefeitos, irrespiráveis. Os estampidos estalavam, secos, sem ressoarem; e a brutalidade humana rolava surdamente dentro da quietude universal das cousas...
A travessia das trincheiras foi lenta.
Entretanto, os sertanejos por bem dizer não agrediam.
Num tripúdio de símios amotinados pareciam haver transmudado tudo aquilo num passatempo doloroso e num apedrejamento. Desfilavam pelos altos em corrimaças turbulentas e ruidosas. Os lutadores embaixo seguiam como atores infelizes, no epílogo de um drama mal representado. Toda a agitação de dous dias sucessivos de combates e provações tinha o repentino desfecho de uma arruaça sinistra. Piores que as descargas, ouviam brados irônicos e irritantes, cindidos de longos assovios e cachinadas estrídulas, como se os encalçasse uma matula barulhenta de garotos incorrigíveis.
Assim chegaram, ao fim de três horas de marcha, a Bendegó de Baixo. Salvou-os a admirável posição desse lugar, breve planalto em que se complana a estrada, permitindo mais eficazes recursos de defesa.
O último recontro aí se fez, ao cair da noite, à meia-luz dos rápidos crepúsculos do sertão.
Foi breve, mas temeroso. Os jagunços deram a última investida com a artilharia, que timbravam em arrebatar à tropa. As metralhadoras, porém, disparadas a cavaleiro, rechaçaram-nos; e, varridos a metralha, deixando vinte mortos, rolaram para as baixadas, perdendo-se na noite...
Estavam findas as horas de provações.
Um incidente providencial completou o sucesso. Fustigado talvez pelas balas, um rebanho de cabras ariscas invadiu o acampamento, quase ao tempo em que refluíam os sertanejos repelidos. Foi uma diversão feliz. Homens absolutamente exaustos apostaram carreiras doudas com os velozes animais em torno dos quais a força circulou delirante de alegria; prefigurando os regalos de um banquete, após dous dias de jejum forçado; e, uma hora depois, acocorados em torno das fogueiras, dilacerando carnes apenas sapecadas — andrajosos, imundos, repugnantes — agrupavam-se, tintos pelos clarões dos braseiros, os heróis infelizes, como um bando de canibais famulentos em repasto bárbaro...

A expedição, no outro dia, cedo, prosseguiu para Monte Santo.
Não havia um homem válido. Aqueles mesmos que carregavam os companheiros sucumbidos claudicavam, a cada passo, com os pés sangrando, varados de espinhos e cortados pelas pedras. Cobertos de chapéus de palha grosseiros, fardas em trapos, alguns tragicamente ridículos mal velando a nudez com os capotes em pedaços, mal alinhando-se em simulacro de formatura, entraram pelo arraial lembrando uma turma de retirantes, batidos dos sóis bravios, fugindo à desolação e à miséria.
A população recebeu-os em silêncio.

VI

Procissão dos jiraus

Naquele mesmo dia, à tarde, animaram-se de novo as encostas do Cambaio. O fragor dos combates, porém, trocara-se pela assonância das litanias melancólicas. Lentamente, caminhando para Canudos, extensa procissão derivava pelas serras. Os crentes substituíam os batalhadores e volviam para o arraial, carregando aos ombros, em toscos pálios de jiraus de paus roliços amarrados com cipós, os cadáveres dos mártires da fé.
O dia fora despendido na lúgubre pesquisa, a que se dedicara a população inteira. Haviam-se esquadrinhado todas as anfractuosidades, e todos os dédalos rasgados entre as pedras, e todos os algares fundos, e todas as taliscas apertadas...
Muitos lutadores ao baquearem pelas ladeiras, em resvalos, tinham caído em barrocais e grotas; outros, mal seguros pelas arestas pontiagudas das rochas atravessando-lhes as vestes, balouçavam-se sobre abismos; e, descendo às grotas profundas, e alando-se aos vértices dos fraguedos abruptos, colhiam-nos os companheiros compassivos.
À tarde ultimava-se a missão piedosa.
Faltavam poucos, os que a tropa queimara.
O fúnebre cortejo seguia agora para Canudos...
Muito baixo no horizonte, o Sol descia vagarosamente, tangenciando com o limbo rutilante o extremo das chapadas remotas, e o seu último clarão, a cavaleiro das sombras, que já se adunavam nas baixadas, caía sobre o dorso da montanha... Aclarou-o por momentos. Iluminou, fugaz, o préstito que seguia à cadência das rezas. Delizou, insensivelmente, subindo, à medida que lentamente ascendiam as sombras, até ao alto, onde os seus últimos raios cintilaram nos píncaros altaneiros. Estes fulguravam por instantes, como enormes círios, prestes acesos, prestes apagados, bruxuleando na meia-luz do crepúsculo.
Brilharam as primeiras estrelas. Rutilando na altura, a cruz resplandecente de Órion alevantava-se sobre os sertões...


MINISTÉRIO DA CULTURA
Fundação Biblioteca Nacional
Departamento Nacional do Livro
CARLOS CUNHA /produções visuais



Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui