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Contos-->Um Começo? -- 14/04/2001 - 20:13 (Fábio Sartori) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Naquela tarde fria e nebulosa, típica do inverno de Curitiba, Marcos Roberto de Assunção, um dos fotógrafos da página de esportes de um dos jornais diários da cidade, caminhava tranqüilamente pela Rua Voluntários da Pátria no sentido da Rua XV de Novembro, ali mesmo, nos arredores da Praça Osório, foi andando até perceber que ela estava vindo da praça para a Rua Voluntários da Pátria, justamente do seu lado da calçada. Parou quase petrificado pelo pavor provocado pela excitação do momento. Viu que era ela mesma, Sabrina Petkovich. Vinha cada vez mais perto, se aproximando, na sua direção. Finalmente ele, que era muito tímido, teria uma chance, por menor que fosse, de falar com ela fora do ambiente de trabalho. Continuou a caminhar depois daquela parada brusca.
- É a Sabrina... – Balbuciou, fazendo a óbvia constatação, pensando se ela já havia visto ele, depois questionou em seu pensamento se ela se lembrava dele ainda.
De tão nervoso que ficou por tê-la visto, deixou que seus óculos caíssem ao solo após ele ter tropeçado num paralelepípedo que estava visível, logo a sua frente, mas que ele não viu. Quis dizer um palavrão, quis xingar o prefeito porque ali no meio da calçada não era lugar de por pedaços de concreto, aquilo só poderia ser obra de algum funcionário da prefeitura, mesmo que fosse um funcionário terceirizado, e se fosse era funcionário da prefeitura também. Mas a sua proximidade em relação à Sabrina o impediu de praticar qualquer grosseria com quem quer que fosse. Esbravejar contra políticos e a prefeitura, quando ela estava ali tão próxima dele soaria como falta de educação para com ela, não queria que Sabrina pensasse que ele era um sujeito grosseiro, porque pelo menos isso, ele sabia que não o era.
Ele, que era tido como um homem de poucos amigos no trabalho e que nunca havia conseguido superar essa sua timidez e o seu conseqüente isolamento durante quase toda sua vida, jamais conseguiu falar com Sabrina algo que não estivesse relacionado com a sua profissão ou com alguma tarefa de trabalho de um ou de outro. Naquele momento o destino, através daquela ridícula queda, parecia querer zombar dele e de todo o seu desespero e nervosismo que sentia, principalmente quando estava perto dela é que tudo dava errado. O maldito destino queria com certeza, no seu modo de ver as coisas, acabar com a sua única chance que tivera, depois de quase dois anos trabalhando no mesmo jornal que ela, de ter uma conversa mais informal com Sabrina, fora do clima sufocante e inibidor que há em qualquer ambiente de trabalho.
No seu apavorante tombo havia caído de quatro e a suas duas palmas das mãos ficaram quase que todas esfoladas em carne viva por causa daquele atrito que houve entre elas e o frio concreto da calçada. Era ardente demais aquela dor misturada com o vento gelado e seco daquele dia. Era o destino, sim o destino, Deus devia odiar Marcos Roberto sem nenhuma dúvida, porque devia ser ele quem controlava o destino das pessoas. Deus era um facínora, um pulha!
Ao contrário de Marcos Roberto de Assunção, Sabrina Petkovich era uma pessoa alegre e conhecida por todos no trabalho, não parecia ser exatamente uma mulher bonita, mas era extrovertida, altiva com certeza. Ex-advogada, ela fez curso de jornalismo de manhã paralelo à faculdade de direito à noite, desistiu da primeira profissão depois de a exercer durante dois anos por achar que não possuía vocação e se tornou colunista de matérias relacionadas à mulher do mesmo jornal em que Marcos trabalhava. Feminista convicta, ela era divorciada do primeiro marido, um jogador de futebol famoso, que foi uma das principais razões de seu recente feminismo. Isso diminuía mais ainda as chances de Marcos Roberto conseguir alguma coisa com Sabrina, já que ele era fotógrafo de esportes, o que queria dizer que era fotógrafo de futebol. Tal fato, para ela, podia significar semelhança de caráter com o ex-marido, o qual ela odiava raivosamente, especialmente pelo seu envolvimento no mundo esportivo, que para ela era um mundo de trogloditas machistas que não tem outra idéia na cabeça a não ser vilipendiar as mulheres de qualquer forma, seja lá qual for a forma que eles consigam encontrar.
E apesar de algumas dessas características da personalidade de Sabrina, talvez, quererem dizer o contrário, ela era uma pessoa firme de caráter, era o que fazia com que se sobressaísse dentre outras mulheres do jornal. Mesmo sem Marcos Roberto saber, esse caráter forte e decidido de Sabrina era o quê mais chamava a atenção dele sobre ela. Talvez ela nem fosse o que parecia à primeira vista, especialmente aos olhos dele, mas Marcos Roberto, cegado pelo que sentia em relação à moça, nunca chegou a levantar uma hipótese contrária a essa primeira impressão.
Ele, que era completamente míope, no momento logo após aquela queda demorou em achar os seus óculos. O seu nervosismo fê-lo ter maior dificuldade ainda para encontrar essa sua única garantia que possuía para que não parecesse mais atrapalhado ainda aos olhos de Sabrina. Deve ter procurado debilmente sob o efeito daquele vil e patético desespero, que tomara conta de sua alma, por cerca de meio minuto. Longos foram àqueles malditos segundos, até que conseguiu encontrar os óculos por muito pouco, Sabrina já estava somente a uns dois metros de onde ele estava quando os localizou. Por absoluta sorte escapou também do constrangimento que existiria se ela apanhasse os óculos e os entregasse a ele. Isso, no entender dele, seria por demais humilhante. Já iria começar a conversa com ela dando a impressão de ser um completo desastrado. Pior, do jeito que ele estava, pareceria um infeliz doente recebendo uma esmola de uma moça bondosa que estava passando perto dele ali, no meio da rua.
- Tudo bem com você? – Falou ela se aproximando de Marcos Roberto, dando até a impressão de estar preocupada. Ora, para Marcos ela era uma pessoa bondosa e uma pessoa bondosa se preocuparia com qualquer pobre diabo que sofresse um acidente desses, não importando o quão desconhecido ele fosse. O pobre diabo, no caso, procurava limpar imaginárias sujeiras que julgava estar impregnadas em sua roupa, mas o pior de tudo era aquela insuportável ardência em suas mãos. Antes que ele respondesse a primeira pergunta ela viu o estado em que elas se encontravam e o convenceu que teria de tratar o ferimento imediatamente. Ele, totalmente constrangido, simplesmente obedeceu.
Então foram para uma farmácia comprar um mercúrio-cromo e uma caixa de algodão para que ele pudesse fazer o curativo, que era necessário. Lá o farmacêutico o obrigou a aplicar o remédio numa mini-enfermaria, que ficava aos fundos do estabelecimento. Sabrina insistiu em ajudá-lo, mas ele disse para ela não se incomodar e contra tudo o que os seus olhos queriam, disse-lhe que se ela quisesse ir embora poderia ir, pois não queria atrapalhar o seu horário de almoço. No entanto Sabrina disse que o esperaria ali fora. Isso fê-lo sorrir por dentro. Faria rapidamente o curativo em suas mãos para que ela não se impacientasse.
Voltou logo, e lá estava ela na entrada da farmácia, soberba como sempre, enfim pôde contemplá-la com muito mais calma, parecia estar com pressa porque olhava com um jeito de quem estava muito impaciente para o seu relógio no seu pulso esquerdo, no entanto ela tinha quase uma hora e meia de almoço ainda e não tinha nenhum compromisso marcado, somente pretendia pagar algumas contas no banco, mas não precisava ir lá obrigatoriamente, ao contrário, nem queria ir, odiava filas de banco.
Sabrina era alta e magérrima, com compridos cabelos castanhos claros e a pele um pouco bronzeada de sol. Aquele dia estava vestindo um casaco de lã marrom claro por cima de uma pequenina blusa aderida ao seu corpo, de veludo, na cor escura. Trajava também um vestido igualmente negro e que era comprido, sendo que em sua parte inferior via-se que era estampado com flores de todas as cores que se podia imaginar, mas que, apesar de longo, deixava parecer embaixo por causa de suas ondulações uma longa bota escura, que era de couro fino, com um salto muito alto para uma bota de cano longo, mas que ninguém fazia questão de perceber esse detalhe. Trazia com ela também além da bolsa bege, uma pasta amarela, grande, de plástico, onde deveria carregar o seu material de trabalho. Estava parecida com uma riponga do auge dessas comunidades ou talvez parecesse uma arquiteta alienada em começo de carreira, com aquelas longas madeixas divinamente lisas que eram como se fossem feitas de seda. Esse seu visual despojado, despreocupado com a opinião alheia era a sua contribuição de rebeldia ao mundo, nesse aspecto, não devia nada ao mundo. Tinha grandes olhos castanhos de amêndoa, que era o que mais chamava a atenção no seu belo rosto e que infelizmente eram ofuscados pelos óculos que era obrigada a usar no seu horário de expediente. Pois, devido ao seu defeito de visão não enxergava letras muito miúdas, também era míope, embora o fosse de um grau muito menor que Marcos. Talvez por causa dos óculos no trabalho, a princípio, não parecia mesmo uma mulher bonita. Mas lá fora, onde não usava óculos, era linda, especialmente era linda aos olhos de Marcos Roberto. E isso porque nunca usava maquiagem, qualquer que fosse o tipo, não usava nem mesmo um mísero batom, talvez, por isso, sem os óculos era tão bonita lá fora.
Marcos, por sua vez, parecia ser o oposto da sua amada: baixinho, com o cabelo excessivamente desgrenhado, estava sempre com os seus óculos estilo fundo-de-garrafa. Aquele dia não estava muito diferente do que os outros dias no que compete as sua vestimentas também. Calça e camisa sociais, bege e azul respectivamente. Sapato preto, de cadarço, muito bem conservado, sempre muito bem engraxado. Levava no pulso uma blusa de lã azul que havia tirado devido ao calor passageiro do horário de almoço, que é comum desta cidade. Possuía uma barba rala e era um pouco calvo. Essas duas últimas características de Marcos eram um dos muitos motivos de piada dentro e fora das rodas de fofoca do jornal, embora o pobre nunca desconfiasse da forma como essa chacota era feita por seus colegas. Puseram-lhe o apelido de “ninho de rato” devido aquele conjunto formado por aquela barba inconsistente e os redemoinhos provocados pela sua insistente queda de cabelos. Enfim, ele carregava um pequeno suporte de fotógrafo, onde se encontrava sua máquina fotográfica, que só não se espatifou na sua queda porque a alça estava à frente enquanto que o suporte estava atrás, às costas.
- Demorei muito? – Perguntou muito sem graça, meio que gaguejando, logo que se aproximou dela na entrada da farmácia, com suas mãos todas avermelhadas, devido à aplicação do necessário medicamento.
- Não, nem tanto – Falou ela com um olhar um tanto frio e dissimulado ao mesmo tempo.
Mesmo que Marcos Roberto usasse aqueles óculos, que lhe tapavam parte de sua feição e que com isso não dava nenhuma chance para que seus olhos se manifestassem, ela desconfiava, talvez por intuição, que algo, relacionado a ela, se passava dentro do coração dele. Só não tinha certeza. Essa dúvida talvez fosse a única chance de Marcos Roberto com ela. Decerto se ela tivesse essa certeza nem teria o acudido naquela tarde. O ignoraria, seria mais fácil, nessa suposta situação, ela acudir a um cão sarnento do que ele.
Ele, então agradeceu àqueles míseros minutos de atenção que ela havia lhe dado. E, mais uma vez, na sua atrapalhada vida houve um acidente, Marcos Roberto cessou aquele sorriso e não soube mais o que dizer. E assim por instantes os dois permaneceram calados, um olhando para o outro. Ele, angustiado e apavorado pelas palavras que lhe escapuliram, justamente ali, em frente dela, naquela situação a qual aguardara com tanta ânsia e sofrimento. Odiava Deus por isso. Ela, no início ficou igualmente angustiada, mas como era próprio de seu caráter cortou aquele mal pela raiz. Era avessa a qualquer tipo de letargia, principalmente a letargia dos tímidos.
- Deixa-me ver o seu ferimento Marcos - Falou com a voz de autoridade que esse caso merecia. Sentiu pena do infeliz naquele momento, porque podia imaginar o quanto era horrível não poder, por algum motivo expressar seus sentimentos. E ela imaginava que devia ser por uma razão muito besta aquele silêncio dele. Seja lá qual por qual razão fosse para ela pouco importava, só queria uma companhia para ir ao banco e ele mesmo servia, nem que estivesse mesmo apaixonado por ela.
Então, quando estava ainda olhando com suas mãos o ferimento de Marcos disse que estava feio mesmo e esse só pôde fazer confirmar a afirmação de Sabrina. Ela sorriu com seus olhos, que eram olhos moleques naquele instante, para Marcos. Eram olhos irresistíveis para quem quer que fosse. O coração dele disparou e foi inevitável que sentisse o que sentiu. Aquela mão dela na dele, se sua mão não estivesse toda machucada, acariciaria aquela mão, tão macia. Se fosse impossível naquele momento, o seu desejo mais íntimo era pegá-la nos seus braços e a beijar loucamente. No entanto, não pôde fazer isso, somente retribuiu a atenção que ela estava lhe dando naquele momento com um fraco sorriso amarelo.
Nesse instante, Sabrina, ao ver como ele estava tenso, percebeu que talvez a sua teoria tivesse mesmo algum fundamento. Quis ir mais além e descobrir se o que parecia estar deixando de ser um sentimento sombrio dele para quase vir à tona naquele instante mesmo paixão. Ou seja, ele poderia estar escondendo dela há tempos. Especialmente por culpa da timidez dele isso poderia ser verdade. Agora não era mais só pela companhia até o banco. O bichinho da curiosidade parecia picar ela insistentemente. Aquele bichinho, daquela dúvida, cada vez maior ia crescendo, precisava ter aquela certeza, aquela certeza que deveria ser definitiva, deveria decretar o fim daquela já quase sufocante dúvida. Ela odiava ter dúvidas. Só o toque da mão dele não bastava, ela tinha que ver os olhos dele, mesmo que não conseguisse enxerga-los por causa de sua miopia, ela era capaz de colocar os seus ali no meio da rua só para ver como eram os olhos dele.
- Eu tenho que ir até o banco pagar umas contas... – Viu que o desânimo se instalou sobre o semblante de Marcos Roberto, talvez ele, em sua insegurança, pensou que ela estava se preparando para se despedir dele, então prosseguiu: - Não quer vir me fazer companhia Marcos?
- Não sei... – Respondeu-lhe Marcos com aquele ar ainda de desânimo.
- Vai e está acabado – Ordenou quase mangando da cara de choro que Marcos fez. Puxou-o pelo braço, entrelaçando o seu no dele, juntando o lado de dentro dos seus cotovelos.
Sem dúvida que era uma imagem engraçada aos olhos dos transeuntes, aquela mulher de mais de um metro e oitenta de altura, que estava usando uma bota com o salto alto ainda por cima, a qual a deixava perto dos um e noventa, de braços dados com aquele “nerd” baixote de um metro e sessenta e cinco no máximo. Alguns conhecidos do trabalho e de vista dos dois os viam e mal podiam crer no que seus olhos lhes mostravam. Nem assim Marcos se sentiu bem, porque não andavam juntos, mas era Sabrina que o puxava pelo braço na direção do banco. Ela comandava, o guiando para o destino deles e ele, passivamente, era como uma mera criança guiada pela mulher.Chegou a lembrar de como sua mãe fazia com ele na sua triste infância. Sabrina ia falando coisas do seu trabalho e da sua vida particular durante o trajeto até o banco. Eram as velhas coisas banais de sempre que mulheres falam quando querem ser dissimuladas. Tinha que encher a cabeça de Marcos Roberto com qualquer bobagem para vencer aquele silêncio gélido e patético dele, que parecia querer prevalecer sobre ela. Marcos ouvia tudo aquilo e de tão fúteis que eram aquelas coisas ditas por ela, ele continuava indiferente e, inacreditavelmente, ela falava com muito mais indiferença ainda em relação ao que Marcos pensava à cerca do que estava ouvindo. Falava rápido e nem queria ouvir qual era a opinião de seu pretendente. Sua única luta era vencer a timidez dele e quebrar de uma vez aquele gelo seco que ela supunha ter se formado ao longo de todos aqueles anos de solidão de Marcos Roberto. Anos esses igualmente supostos por ela. E os dois assim iam, não apenas Marcos parecia uma criança, mas ela também o era naquele instante. Era uma criança que pensava ter acabado de ganhar um brinquedo novo. Era um quebra-cabeça, e ela adorava esse tipo de brincadeira, ainda mais se fosse bem difícil.
Depois de uns dez minutos de caminhada, enfim chegaram ao banco. Era um banco público, do governo do estado, o mais próximo dali, estava completamente cheio de gente naquele dia. Logo que foram para o final da longa fila de pagamentos Sabrina parou de falar. A última coisa sobre a qual discorria era algo relacionado ao seu novo cachorro. Marcos Roberto mal pôde prestar atenção, tamanha a quantidade de coisas que já tinha ouvido sair da boca dela sem ao menos dizer uma palavra. Perdeu completamente a noção do quê ela tanto dizia. Ela parou ali, no final daquela fila, soltou o braço de Marcos e se postou calmamente à frente dele, impávida e mais fria do que um “iceberg”. Ela procurava suas contas dentro de sua bolsa bege para poder fazer os pagamentos. Logo as encontrou e em seguida tirou o seu casaco, e como ela havia previsto, Marcos Roberto se ofereceu para carregá-lo para ela. Tão logo ele se ofereceu para segurar o casaco, ela imediatamente o entregou em suas mãos e não lhe disse mais uma palavra, somente olhou enigmaticamente com aqueles olhos de amêndoa para ele. Virou-se para a sua própria frente, aguardando sua vez. Era definitivamente outra Sabrina, diferente de todas que Marcos Roberto conhecera até então.
Essa outra faceta da personalidade dela realçava clima estranho que havia naquele estabelecimento. Aquele segurança carrancudo na porta giratória, detectora de metais, era alto negro e de bigode, aquelas pessoas na fila, eram quase todas iguais. Os homens de terno, as mulheres de terninhos femininos com cores mais brandas que as dos ternos dos homens. Garotos “Office boys” em serviço. Os mesmos penteados das mulheres, quase todos eram os da moda, praticamente todos análogos. Os boys, sim os Office boys era o que havia de diferente naquele ambiente inóspito. Um era diferente do outro. Todos pareciam cansados, mas eram alegres, eram alegres e os mais trabalhadores com certeza daquela fila. Um engomadinho, outro skatista, outro desarrumado, outro cabeludo, uma Office girl, moleca e loira, eram muitos e diferentes todos eles.
Porém, o que havia de mais terrível e sinistro era um dos caixas do banco, aquele polaco do rosto amargurado, era muito triste. Era um pobre homem muito mais infeliz que Marcos Roberto com toda a certeza. Eram uns dez caixas, mas aquele era o pior, o mais sofrido, o mais trabalhador, o que tinha a pior face de coitado. Marcos de maneira nenhuma queria ser atendido por aquele funcionário, tamanha a tontura que sentiu quando o avistou.
Na fila reservada aos aposentados um velhinho corcunda despencava ao solo e os outros ficavam indiferentes, não olhavam para ele, o ignoravam. Até que por fim o segurança carrancudo, que antes estava perto da porta giratória, o pegou em seu ombro como se fosse um saco de batatas e o pôs sentado em uma cadeira num cantinho do banco que parecia estar reservada justamente para o caso de alguém passar mal no estabelecimento e desmontar ao solo. E o deixou ali, respirando com dificuldades, quase padecendo. Não tinha tempo para ampará-lo. Tinha que trabalhar, não tinha tempo e nem era a sua função acudir velhotes com ataque no coração. Voltou para a sua posição perto da porta giratória. Marcos olhou espantado para aquela cena surreal, mas nada pôde fazer. E o barulho de autenticação mecânica, insistente, incessante. Perturbadores eram todos os barulhos das máquinas de autenticação mecânica, todos eles reunidos. Era um mesmo som contínuo e interminável.
Para Marcos Roberto tudo aquilo era sufocante, avassalador, era uma prisão improvisada, um pedaço do inferno de imagens e de sons insuportáveis, tudo aquilo cheirava a uma morte sofrida, podia sentir o sabor amargo. Doía na sua pele a dor daquele velhinho agonizando na pequena cadeira. Sentiu náusea, achou que ia desmaiar, mas pensou que se caísse ali teria com certeza o mesmo destino do velhinho, então segurou firme a mão de Sabrina com a sua mão que ainda estava livre do casaco dela, por sorte era a menos machucada, e, talvez, por isso, ela nem tenha reclamado. Suava frio. Ela percebeu e perguntou se ele estava se sentindo bem. Ele, então mentiu que sim.
Todos aqueles olhares, só podiam ser para ele. As mulheres iguais, os homens eram clones. Eles estavam desconfiados dele, sim estavam, no fundo riam dele e de Sabrina. Deviam ser o casal mais ridículo do banco, não, de Curitiba. Sim. Era o casal mais ridículo de toda Curitiba, nada ver com ela, era por causa dele. Todos o achavam um bufão! Estava ficando sem ar e quanto mais passava o tempo mais parecia que ia demorar a chegar ao caixa. E o caixa triste, ali se oferecendo para atende-los. Os Office boys de repente desapareceram e de diferentes ali só havia ele e Sabrina, de mãos dadas e ambos se sentiam reprimidos, cada uma ao seu modo. O caixa triste sabia alguma coisa. Sabia tudo dele. Aquele maldito caixa não poderia atende-lo jamais. Mas ficava olhando com aquele jeito melancólico para todos enquanto fazia roboticamente seu trabalho mecânico. Ele era, sim, era o diabo mestre daqueles infernos. E todos ali, os clones, o segurança agora tinham semblantes nefastos e eles olhavam para ele o esmagando impiedosamente. Depois, com o passar do tempo os clones pareciam dirigir seus olhares somente para ele, esqueceram Sabrina, era só ele que era “persona nom grata” ali. Marcos tinha que sair dali de algum jeito antes de ser atendido pelo caixa demônio de sua consciência, antes que vomitasse.
- Sabrina, será que eu posso te esperar lá fora. É que estou com um pouco de falta de ar. – E ela aceitou, mas estranhou que ele saísse justamente quando era a vez deles serem atendidos. E ela foi atendida pelo caixa com jeito de coitado. Marcos Roberto saiu meio que cambaleando, esbarrando em quem viesse na sua direção. E lá fora encostou a cabeça e as costas na parede de vidro do banco, enquanto tentava respirar novamente. Enfim pôde refletir sozinho, chegou à conclusão que não podia deixar que aquela chance passasse, de qualquer jeito convidaria Sabrina para almoçar com ele e ela teria de ir.
- Ela vai... Ela vai sim. – Repetia infantil e repetidamente como se aquilo dependesse exclusivamente da sua vontade.
Eram muitas pessoas caminhando na rua. De onde vinha toda aquela gente? Porque todas deveriam estar ali para pagar suas malditas contas no banco? Era o quê Marcos Roberto queria saber. Queria saber se a cidade inteira usava o horário de almoço para ir ao banco ao invés de simplesmente almoçar. Enfim, depois de uns dez minutos Sabrina voltou. Olhou para um lado e para o outro procurando por ele e o encontrou, ali, ainda encostado na vidraça do banco, como se fosse um pobre garoto, o qual nunca tivesse saído de casa e tivesse se assustado com o que viu da primeira vez que saiu na rua.
- Está se sentindo melhor Marcos? – Ele fez com a cabeça que sim e teve um momento de otimismo, pois enfim, poderiam ir almoçar juntos e sossegados, livres daqueles malucos do banco.
- Quer ir almoçar comigo? – falou de supetão, tamanha era a ânsia que estava sentindo.
- Mas é que não sei se vai dar tempo... – Ela falou pausadamente tentando evitar o inevitável espanto dele. - Marcos, é que só faltam quinze minutos para o trabalho... – Se justificou enfim, depois de ver na feição dele a imagem do desespero. Marcos sentiu vontade de chorar de raiva, primeiro foram àquelas imbecis banalidades que ela falou e que o impediram de falar sobre seus sentimentos, depois tinha sido aquela maldita fila de banco, onde eles devem ter ficado por mais de uma hora e que com isso consumiu com quase todo o tempo da folga do horário de almoço deles. “Maldito banco, malditas contas” – pensou. Para ele aquela ida ao banco somente serviu para atrapalhar seus planos. Pelo menos teria quinze minutos de conversa com ela até o trabalho.
No entanto eles pouco se falaram, somente disseram algumas bobagens em relação ao trânsito do horário do almoço, que era sofrível. E ainda chegaram uns dez minutos atrasados no jornal, e dessa vez, não fizeram o trajeto de braços dados, como foi o anterior, da farmácia ao banco. Na redação, se despediram e cada um foi para a sua respectiva sala e nenhum dos dois, ao menos teve a coragem de olhar para trás. É certo que essa estória deveria terminar assim dessa forma. Seria o normal. Aquela ida ao banco tinha estragado completamente a chance almejada por Marcos Roberto. E se não acontecesse algo de extraordinário nada mais restaria a eles além da irritante rotina de todos os dias que obviamente também estaria presente naquele. Pois foi que o algo de extraordinário se deu. Algo de imprevisível e extraordinário.
Pois bem, antes desse acontecimento vejamos como nossos dois seres humanos conflitantes passaram aquela fria e cinzenta tarde neste breve resumo a seguir: Marcos Roberto teve que atender a uma ordem do seu chefe e foi até o centro de treinamento do Coritiba Futebol Clube a fim de tirar algumas fotos do treinamento do time, como estava acostumado sempre a fazer à tarde, depois ficou o resto do dia na sua sala esperando uma ligação do editor de esportes que seria à cerca do que ele deveria fazer na manhã do dia seguinte. Sabrina, por sua vez fez os contatos de sempre e esteve escrevendo uma reportagem sobre as roupas usadas pelas celebridades numa cerimônia de inauguração numa casa de shows que era nova na cidade. Ambos ficaram até tarde nas suas ocupações. Ele, um funcionário modelo e queridinho do patrão, aguardando sua ligação, ela obcecada por não deixar nada para o amanhã, queria acabar aquilo de qualquer maneira antes que o porteiro viesse avisar que não dava mais para segurar aberta a porta que dava para a sua sala. O limite era somente até as oito da noite, como dizia o regulamento do condomínio. Somente Marcos possuía alguma imunidade quanto a isso, pois a ligação que estava esperando era do seu chefe, que era um dos donos do jornal. Não há exagero em dizer que cada qual pensou no outro durante aquela tarde inteira, obviamente, cada um ao seu modo. Nenhum dos dois, sob presença alheia, jamais admitiria, mas, também, nenhum deles, de qualquer forma, conseguia mentir para si mesmo.
Marcos Roberto, depois que chegou da seção de fotos do treinamento do Coritiba, se isolou no seu computador pesquisando coisas fúteis pela internet enquanto esperava a ligação do patrão, como era o seu costume fazia isso quando não lhe restava mais nada para fazer. Mas navegava pela internet quase sem pensar no que estava fazendo. Era ela e aqueles olhos de amêndoa vistos pela primeira vez por ele que ficavam o tempo inteiro na sua cabeça. Olhos castanhos e grandes. “Eram duas pérolas negras”, teve esse pensamento bobo, pois os olhos dela eram castanhos, não negros. Mas era um pensamento sincero. E aquela atração que sentiu por ela de modo mais que lascivo na farmácia continuava ali na sua sala, pedindo a presença dela. Tinha que estar perto do corpo dela outra vez. Aquela quentura dos braços dela nele... E não era só isso, eram os olhos imensos e enigmáticos que insistiam, que não saíam do seu pensamento, tão carnais, eram os olhos mais eróticos do mundo.
Quanto a ela, sentia, mas não sabia o que sentia, não aceitou logo de início, afinal de contas não poderia estar interessada no funcionário mais esquisito do jornal. O ninho de rato, como já tinha ouvido suas próprias amigas chamarem ele. Mas aquele jeito de garoto perdido, de pessoa carente, para ela seria quase impossível não se tornar ao menos amiga dele. Sim! Era isso, seria amiga dele e isso bastaria. Afinal de contas por que sentiria atração por um quatro-olhos baixote e tímido. Sentia pena dele porque pensava que ele era assim, tímido por obra dos outros e não dele. Devia ser uma pessoa fraca que não agüentava ouvir piadas ao seu respeito e sucumbia facilmente a qualquer aborrecimento. Agora, ao contrário do que pensava antes, a razão da timidez dele importava para ela, importava sim. Mas mesmo assim, nunca iria se interessar por uma pessoa assim, tão fraca, ao contrário disso, era preferível ela voltar para o ex-marido que era um canalha, mas pelo menos era seguro, pelo menos esse era macho. Mas os olhos dele, ela precisava vê-los de qualquer maneira, ao menos uma vez. Essa idéia fixa não queria sair da cabeça dela. Aqueles óculos eram desumanos, não sabia como uma pessoa podia viver por detrás daquilo. Era como uma barreira que escondia sua alma.
De fato, nesse mundo há muito mais barreiras, muito mais muros do que pontes. Em qualquer lugar da crosta terrestre sempre se verificará um número maior de muros do que de pontes, porque as pontes só existem para superar dificuldades, ou seja, para atravessar abismos e rios, os muros existem quase que naturalmente, pois quando, por exemplo, o cidadão ganha uma casa “popular” do governo, mesmo sendo ele, e também sua casa simples por natureza, a primeira coisa que faz é erguer um muro, de preferência que seja bem alto para que ninguém invada a sua propriedade. Marcos Roberto teria, de qualquer forma então que construir sua ponte para chegar até Sabrina. Precisava de subsídios para tal e mesmo sem ele saber, o destino queria conspirar para a sua união com Sabrina, possuía sim esse subsídios, não seria tão difícil dessa ponte existir, o problema era ele sair daquela inércia e construir de vez aquela ligação que deveria existir entre ele e Sabrina. Provavelmente essa ligação nunca viria a existir se não tivesse acontecido o que aconteceu naquela noite.
O tal fato extraordinário, já mencionado, daquele dia começou a acontecer quando o carro de Sabrina foi roubado, em pleno estacionamento do jornal. Quando o porteiro, que também era o segurança do prédio, foi chamá-la porque iria ter de fechar a porta da redação. Esqueceu o controle da garagem lá embaixo e, provavelmente, sem querer também deixou a porta principal aberta. Alguém havia entrado lá, pegado o controle da garagem que estava em cima da mesa-balcão, onde o porteiro trabalhava e descido rapidamente as escadas que levavam para o subsolo e por fim, levado o carro dela, que era importado, presente dado pelo seu pai no dia de seu décimo oitavo aniversário. Ela reclamou, esbravejou muito com o porteiro, mas não tinha intenção de denunciar ele para os seus patrões, donos do jornal, isso não traria o seu carro de volta e também não era uma pessoa vingativa, mesmo que aquele carro tivesse valor sentimental. Ainda mais que o porteiro quase se prostrou aos seus pés pedindo que não contasse nada, disse que era pai de família e que precisava daquele emprego e não acharia nunca outro emprego com um salário que ele considerava bom para os seus padrões. Ela não queria acreditar naquilo, o carro era a última lembrança de seu pai que havia falecido a apenas um mês antes daquele acontecimento, daí o valor sentimental do veículo. Desesperada, depois daquela discussão com o porteiro desceu as escadas que levavam à garagem e por lá ficou. Tirou seus óculos, chorando desbragadamente dentro do estacionamento, sentada no chão gelado, transtornada e sozinha. Pensava porque tinha ficado até àquela hora no trabalho, a culpa era dela mesma.
O porteiro nem se atreveu a incomodá-la novamente. Ela deve ter ficado ali até umas nove da noite, não tinha vontade de voltar para casa. A simples idéia de pegar um ônibus para ela parecia inviável. Viu que só sobrava ali um Volkswagen verde-musgo que deveria ser do porteiro e um velho Passat branco, da década de 1980, o qual ela não sabia nem quem era o dono. Quis ficar ali até que o dono do Passat aparecesse. Talvez a dona do Passat era a Maristela, a simpática velhinha da contadoria, ou fosse o Celso, o irmão da sua amiga Cristina que morava perto de sua casa, no bairro Água Verde. Poderia tentar conseguir uma carona com o dono facilmente se esse fosse um desses dois. Pensou em perguntar ao porteiro de quem era aquele carro, mas com a raiva que estava sentindo dele não agüentava nem ver mais aquela figura cínica de tão simples. Não passou por nenhum instante em sua cabeça que o Passat era de Marcos Roberto. Ao menos não sabia que ele se encontrava no jornal ainda. Naquele momento de irracionalidade, o qual ela atravessava nem conseguia imaginar aquele “quatro olhos” dirigindo um carro. Ela o subestimou, o carro era dele.Ouviu aqueles passos vindos das escadas, era ele, que veio descendo, surpreendentemente assoviando feliz uma canção romântica que estava sendo tocada a todos os momentos por todas as estações de rádio.
Claramente Marcos Roberto se surpreendeu, assim como ela ficou surpresa também ao vê-lo. Que estranho era ver aquela figura forte de outra hora ali, fragilizada, chorando à beira do carro dele. Certas coisas realmente parecem ser obra do destino, aliás, como Marcos começou a aprender aí, pobre de quem zomba deste. Ele tinha a nítida impressão que tudo aquilo não podia ser tão somente uma simples coincidência. Não era possível, aquele deveria ser realmente o dia em que ele deveria investir contra ela, seria inevitável. Era impossível algo mais dar errado depois daquela sucessão de fiascos acontecidos à tarde. Tudo que podia dar errado já havia acontecido antes, agora teria de ser diferente. Ao menos uma vez Deus devia estar ao seu lado, não foi à toa que insistiu com o porteiro para ficar no jornal até receber o telefonema do chefe, o qual havia ligado há uns dez minutos atrás. Ele a acudiu prontamente, a colocou dentro de seu carro para que ela saísse daquele frio e, lá em cima, no térreo, exigiu que o porteiro abrisse a sala da dispensa dele e trouxesse um copo de água com açúcar para Sabrina. Dessa vez fora firme com o homem, muito diferente da cordialidade que costumava ter para com os mais simples e fracos até então, esqueceu o significado da palavra cordialidade naquele instante.
- Olha, a moça tá passando mal lá embaixo, se você não fizer o que estou mandando, vou contar para o patrão de quem foi a culpa pelo furto. – E falou firme, sem demonstrar um mínimo de consideração pelo pobre porteiro que a princípio disse que havia esquecido onde estava a chave da dispensa. O que interessava para ele era tão somente Sabrina, não a preguiça de um porteiro insignificante àquela altura. Era outro agora, ele era, tinha de ser forte dessa vez.
Trouxe para ela o copo d’água com açúcar e esperou até que o estado emocional dela se recompunha, depois perguntou se ela queria sentar no banco da frente, pois ia levá-la para a casa dela. Então ela olhou para aquela figura tão diferente da de outras horas daquele dia e percebeu a simplicidade do automóvel dele, que era demasiadamente comum, mas era limpo e não deixava de ter certo charme de automóveis mais antigos, bem longe dos automóveis redondos do século XXI. Fez com a cabeça que sim e ela já recuperada lhe entregou o copo vazio e dispensou a ajuda dele para ir sentar no banco da frente. Queria ver os olhos dele, mas não soaria bem pedir para ele tirar os óculos, ele já a tinha visto fragilizada daquela forma, agora imagine o que seria para ela revelar aquele seu desejo, tão íntimo, tão dela.
Ele olhou aqueles olhos um pouco avermelhados de tanto chorar, mas que mesmo assim eram tão avassaladores, que eram tão capazes de causar uma guerra. Que guerra era aquela que estava sendo vencida por ele naquele momento? Que guerra era aquela? Saíram do jornal que ficava na Rua 13 de Maio, saíram daquele ambiente burocrático e de poucos amigos reais. Só tinham amigos de histórias em quadrinhos lá.
Aos poucos ela foi cada vez se sentindo melhor, aquela vertigem ia passando. Pararam o carro num lugar que ela não conhecia, mas como? Conhecia sim, era a Rua Carlos de Carvalho, ainda perto do centro. Ele perguntou se era no bairro Água Verde que ela morava ainda. Mas como ele sabia... Sim ele foi lá na casa dela uma vez, foi levar fotos para ela, agora ela se lembrava. Tinha feito um favor, ela nem o viu naquele dia, foi a sua empregada que pegou as fotos, ela não estava em casa, até tinha esquecido de agradecer a ele, depois do dia anterior àquele não falou mais com ele até à tarde do presente dia.
- Sim, é lá mesmo... – Respondeu ela com uma certa insegurança de quem até a pouco estava em prantos.
- Eu fui lá uma vez te levar umas fotos... – Dizia ele um pouco empolgado pela situação, um pouco triste por ela ter se lembrado daquela sua outra tentativa frustrada.
- Eu me lembro, mas eu não estava em casa... – Fez-se silêncio por alguns breves instantes, até que a inquietude dela o quebrou.
- Marcos, eu posso te fazer uma pergunta? – Falou tentando ir com um pouco mais de calma do que estava acostumada com as outras pessoas.
- Fa-faça. – Respondeu ele um pouco ressabiado.
- Marcos porquê você é tão...? – E ele olhou rapidamente para ela com uma expressão de dúvida.
- Tão...?
- Tão fechado, tão diferente, tão...
- Tão tímido você quer dizer.
- É... Eu acho que é isso.
- Eu não sei... – Disse ele expirando todo o ar que era possível sair de seus pulmões como se estivesse sendo torturado. Viu uma vaga ainda na Carlos de Carvalho e estacionou o carro lá enquanto ela olhava para ele meio que assustada.
Depois que ele parou o carro ela esperou que ele falasse antes, levasse o tempo que levasse, ela não falaria nada. E ele ficou quieto, prostrado no volante como se algo de muito grave acabara de ser dito. Sabrina chegou a sentir um pouco de medo dele, até que se passaram alguns minutos e, enfim ele falou, quebrando aquele silêncio sinistro:
- Você está me perguntando isso, por quê?
- Porque eu quero te ajudar – Ao contrário dele, ela respondeu imediatamente.
- Ou é porque sente pena de mim... – Ele falou ainda cabisbaixo e, nesse momento, ela hesitou.
- E você, não sentiu pena de mim quando me viu chorando no estacionamento? – Falou isso quase em tom de intimidação, tentando mexer com os brios dele.
- Mas aquilo foi diferente...
- Me leva para a casa, por favor – Disse isso irritada com aquela desculpa falsa, aliás, para ela, todas as desculpas do mundo eram falsas. E ele, mais uma vez bufou expirando, novamente, todo o ar que lhe era possível expirar e saiu com o carro na direção da casa dela e algo se apossou dele: Era uma fúria até então adormecida, uma coragem que até então nunca teve em toda sua medíocre vida. Tinha pegado uma marreta e começado a arrebentar o enorme muro da sua casa.
- Eu sou assim porque não consigo dizer o que sinto, é mais forte que eu, é impossível de explicar. Não sei se em algum dia vou conseguir melhorar ou para sempre vou ser assim, esse covarde que eu sou. Não é culpa minha... – Ela se surpreendeu um pouco com o que ele disse porque achou que iria permanecer calado até chegarem na casa dela. Mas decidiu que não ia passar a mão na cabeça dele. Pelo contrário tinha de dar a ele um ultimato.
- Não, a culpa é sua sim Marcos porque você não aprendeu ainda que nessa vida a gente tem que lutar pelo que queremos. Não aprendeu que isso é igual a uma selva e se a gente dorme somos devorados por leões. Se não conseguimos superar as nossas dificuldades vamos para sempre sermos fracassados que não conseguem realizar nunca, nenhum sonho que seja. – Ele ouviu baixando a cabeça, diminuindo a velocidade, parou o carro no meio daquela rua que não era mais a Carlos de Carvalho, já era a rua da casa dela. Depois, quando ouviu as buzinas, terminou o trajeto até a casa dela e parou o carro lá em frente. Ia dizer alguma coisa, mas ela falou antes.
- Me desculpe se eu fui um pouco dissimulada hoje, se eu fiz você ir até ao banco, eu vi como você ficou lá e eu chamei você porque eu, justamente, odeio ir sozinha pagar contas em bancos. Eu fiquei andando por mais de meia hora até encontrar algum conhecido para ir comigo lá, porque eu não suporto entrar sozinha naquela droga e eu encontrei você, foi a primeira pessoa conhecida que encontrei e que aceitou ir comigo. Entende? Eu não consigo entrar sozinha em bancos. Eu sei que pode parecer que usei você e que sou maluca, mas no final estamos aqui, de noite, em frente à minha casa. – Marcos, perplexo coçou o queixo e mais uma vez quando a situação parecia crítica para outra pessoa ele se eximia do seu sentimento de culpa, que era o pai de todos os seus males. Teve a calma que não tinha quando a situação era a inversa daquela.
- Por quê está me contando isso? Acha que deve alguma satisfação para mim?
- Para você talvez não, mas acho que talvez deva uma satisfação à cerca disso para minha consciência. – disse, agora, ela com de cabeça baixa. Marcos não quis saber porque ela também tinha medo de bancos, pois nem do medo dele ele sabia a causa. Estava contente, porque a achou sincera naquele instante. Isso sim era o que importava. Ela voltou a sua atenção para ele, depois de mais alguns instantes de silêncio e então e conseguiu superar seu orgulho mais uma vez.
- Marcos não vai achar estranho se eu pedir algo para você?
- De novo? – Perguntou meio que desconfiado.
- Não da outra vez te fiz uma pergunta, agora quero que, por favor, faça algo para mim.
- Depois do que você me disse agora pouco eu acho que nada mais hoje vai me surpreender. Pode me pedir que eu faço.
- Como assim? O que eu disse? – Falou, meio que voltando ao seu orgulho normal.
- Você que é tão segura... Sabe... Se confessar assim para mim...
- Eu quero ver os seus olhos. – Interrompeu-o abruptamente, fazendo que essa sua vontade louca prevalecesse sobre seu orgulho. Sendo que da maneira como ela falou, aquilo mais parecia uma ordem militar do quê um pedido.
- O quê? – Perguntou, ele, mais que surpreso, enquanto pela primeira vez no dia palavras explicativas faltaram para ela.
- Ver os meus olhos? – Prosseguiu ele indagando ainda em tom de incredulidade.
- Sim, eu preciso, é a coisa que eu mais quero nesse momento. – Ela falou já tirando os óculos dele, sem se preocupar com a reação que ele teria. E então, viu que eram verdes os olhos dele. “Por que verdes?” – Ela pensou se perguntando, como que não acreditando na cor daqueles olhos. Olhou-os bem. Ele a amava. Tinha certeza absoluta quanto a isso agora. Ele a amava com toda certeza.
Os olhos de amêndoa dela firmados nos olhos que eram igualmente míopes aos dela, mas que eram esmeraldas, para ela duas esmeraldas, dois olhos cor de esmeralda. Não resistiu e deu um beijo estalado nos lábios dele. Ele se assustou no começo, mas depois retribui. Ficaram se agarrando no carro por longos e prazerosos minutos. Aquela boca dela agora não parecia seca como parecia ser na redação do jornal, não eram mais os lábios finos, eram carnudos. Ele não era mais um baixote feio, era, para ela um bonito homem de olhos verdes e que, acima de tudo, parecia gostar dela de verdade. Aqueles minutos de prazer duraram até que ela, ainda, mais forte que ele, falou que infelizmente tinha que ir embora, já era muito tarde.
- Eu sempre te amei, desde da primeira vez que eu te vi – Ele falou segurando na ponta dos dedos dela quando ela saía do carro. E ela achou um pouco engraçado ter ouvido ele falar aquilo logo no primeiro encontro. Mas aquela afirmação fê-la gostar ainda mais dele, mesmo que ela própria nunca admitisse isso. Era um menino e era um menino que ela queria mesmo.
- Você não acha que é muito cedo para dizer que me ama? – E ele então teve um momento de hesitação. Ela prosseguiu:
- Calma cara, a gente nem se conhece direito ainda. – Respondeu ela, que era quem agora acariciava a ainda esfolada e cheia de mercúrio-cromo mão dele com as suas duas mãos agora.
- E quando a gente se vê? – Perguntou Marcos num gesto meio que de ânsia.
- Você tem que aprender a dar tempo ao tempo Marcos, o que vai acontecer amanhã ou depois vai acontecer naturalmente. Se a gente tiver que se ver a gente se vê, tudo depende do tempo. Calma...
E ela partiu, soltando a mão dele amassando a ponta do dedo indicador dele com o seu dedo médio e o seu polegar. E bateu com tanto cuidado a porta dele, que não fechou da primeira vez. Foi sumindo aos poucos da vista de Marcos Roberto, que colocava seus óculos para poder vê-la melhor à distância. Teve tempo de olhar para trás e dar um tchau para ele, acenado com a sua mão esquerda, que estava livre da sua pasta amarela e da sua bolsa bege. Pouco antes de fechar a porta de sua casa com igual cuidado com que fechou a porta do carro dele, mandou com essa mesma mão um beijo para ele. Beijo que ele retribuiu da janela de seu carro seguido de um derradeiro aceno com a sua mão menos machucada. E depois ficou um pouco pensativo no seu carro, tentando entender o que foi o que ela havia acabado de lhe dizer e o que foi aquilo que aconteceu entre eles.
- Preciso sim de muita calma, de muita calma... – Repetiu, sozinho, essas duas últimas palavras umas três vezes logo em seguida. Ligou a chave do carro e foi embora sumindo no breu daquela rua escura e cheia de árvores que balançavam com o vento gelado que uivava.
13/04/2001.
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