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Contos-->O ÚLTIMO DIA DE UM POETA ( Machado de Assis ) -- 26/09/2009 - 15:18 (CARLOS CUNHA / o poeta sem limites) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos



















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O ÚLTIMO DIA DE UM POETA

( Machado de Assis )


São nove horas da manhã.
Entra-me o sol vivo e ardente pelas frestas das venezianas. Parece que me convida a deixar o leito, e como que a reviver. Reviver! é esta a palavra: reviver quando estou certo de que poucos dias ou apenas horas me separam da sepultura. Não parece um escárnio da morte? Não parece que para melhor sentir o que vou perder, deixando a vida, quer a morte que eu toque pela última vez os tesouros da felicidade que me ficam na terra?
Melhor fora, decerto, para minha perfeita contrição, que a natureza me surgisse nos últimos dias com o seu aspecto mais sombrio e aflitivo. Então cuidaria, ao sair do mundo, que deixava um pesadelo e uma angústia, e que ia respirar os ares puros de uma vida sem igual.
Depois…

Abramos a janela.
Oh! como está bonito o dia! O céu azul, o sol afogueado, a folhagem palpitando de alegria agita-se ao sopro de um vento plácido e suave. Estas trepadeiras enchem-me o quarto de perfume; lá vejo o tanque calmo e límpido em que eu me banhava em pequeno. É o mesmo ainda. As paredes de pedra têm um aspecto mais venerável, mas tudo isso, aquela murta que o rodeia, aquelas roseiras que ali brotam e enfloram sem cuidado de ninguém, tudo isso me lembra o tempo de minha meninice.
Mais longe vejo a mangueira grande, onde eu passava as tardes, abraçado ao balanço rústico que meus irmãos impeliam no meio da gritaria geral.
A verdura, a água, a árvore, a flor, tudo me lembra a dita do tempo em que sem cuidados nem remorsos eu só cuidava em ser feliz e amar os meus.
Onde foi agora esse tempo? Passou como passaram as folhas de todos estes arbustos; mas os arbustos, se perderam umas ganharam outras, e nem houve, neste abençoado clima, espaço algum entre a queda das primeiras e o abrir das últimas. Só em mim, ilusões e esperanças que me caíram uma vez, não me renasceram mais, e eu fiquei, como tronco árido e seco, chorando o que fui, chorando o que sou, chorando o que hei de ser.
Mas o que dói é esta alegria universal, esta placidez com que a natureza vem assistir à minha morte, garrida e alegre como se fora um espetáculo. Ó mãe cruel, que não honras a morte de teus filhos com uma lágrima de dor e um suspiro de mágoa… Parece que te apraz criá-los para matá-los, produzi-los com uma ilusão, absorvê-los com um desengano, verdadeira condenação dos que não aguardavam esse desengano e acreditaram nessa ilusão…
Também eu te mereci esta ironia? também. Que outro absorveu mais essa ilusão do que eu? Que outro sorriu mais à idéia do desengano do que eu? Tens direito, ó natureza, a vestires hoje as tuas melhores galas para assistir, não a morte da alma, essa já morreu, mas a do corpo, que se vai finar miseravelmente como um inseto pisado pela dama distraída!

Sinto-me fraco.
Vou sentar-me.
Esta cadeira alta, forrada de couro, molde antigo, foi de meu finado avô. Feliz homem que pôde chegar à mais avançada idade e só morrer quando o mundo lhe começava a ser pesado. Todas as glórias da vida, gozou-as na plena liberdade de um espírito que se não acovardava e de um coração que não sentia o espinho da desilusão. Essa impavidez serviu-lhe de amparo; com essa segurança inteira é que atravessou os anos, sem nada deixar do que levava, porque também levava muito pouca coisa.
Tenho defronte de mim um espelho. Vejo ali refletida metade do corpo; tenho vontade de ir ver o resto. Que feições apresentarei hoje? Serão as mesmas quebradas e mortais de ontem? Serão as mesmas animadas e vivas de há três dias? Uma ou outra coisa, que importa isso? O espinho da morte sinto eu dentro de mim agudo, dilacerante, mortal… Que valem as feições? Esperanças ou terrores para o moribundo, sintomas ou provas para a ciência. Nada mais.
Sinto passos. Abre-se a porta. É minha mãe!

— Ah! minha mãe!

— Que tens? Estás melhor?

— Não sei. Talvez que sim.

— Deixa dar-te um beijo; estás muito melhor… Olha-te ao espelho.

O espelho responde-me como minha mãe. Estou muito melhor; minhas feições são outras. Como que renasço. Principalmente esta visita de minha mãe é que me dá vida… Oh! se eu morresse longe dela! tudo se altera, tudo se corrompe, tudo se desnatura, mas o amor daqueles que nos deram o ser, esse nunca; é o amor por excelência: o amor que preside ao berço, vela na infância, ama na mocidade e consola nas desilusões como estas em que me vou do mundo.
Tudo se alegrou à entrada de minha mãe. Coitada! tem os olhos vermelhos de chorar: foi por mim. Lágrimas sinceras as que ela derramou! Nestas creio. Saltam espontâneas dos olhos quando o coração já se acha demasiado cheio; e só corações tais se podem encher desse modo.
Como ela me olha! Parece que procura adivinhar nas minhas feições a hora da nossa eterna separação! Não, não nos abandonemos à dor; a mesma separação pede agora toda a efusão dos sentimentos, toda a expansão das almas…

— Meu filho, não sentes vontade de passear?

— Não, minha mãe. Quero passar hoje o dia inteiro no meu quarto. É dia de descanso. Não é hoje Natal? Quero hoje viver no pleno repouso do espírito. Demais, esta janela põe-me em comunicação com a natureza. Como está bonito o dia! É em honra do nascimento do Salvador, não? E virá o desejado de todas as gentes. É do profeta.

Minha mãe sentou-se e fez-me sentar ao pé de si.

— Meu filho, disse-me ela, serás capaz de viver? Deixarás de ajudar com o teu desânimo a ação da moléstia que te consome? Ah! por mim te peço, por teu pai…

— Em que ajudo eu a minha moléstia, minha mãe? Não estou alegre? Olhe, já fiz a minha saudação ao sol. É bom sinal o sol. Eu sempre o adorei como o olhar profundo de Deus. Ele basta para me dar vida. Não morrerei hoje, decerto. Hei de morrer no dia em que alguma nuvem cobrir o astro do dia. Então as sombras me levarão às sombras. Acredite…

— Oh! não fales em morrer.

— É mau?

— É triste, meu filho.

— Não é. Quero ser filósofo o meu tanto. Olhemos a morte como ela deve ser olhada: livramento e não aniquilamento. Ah! é que realmente sofro…

Minha mãe abraçou-me. Senti que duas lágrimas me corriam pelas faces. Essas lágrimas eram já resultados de uma recordação que me acabava de atravessar o espírito. Minha mãe leu em minha alma.

— Não te esquecerás disso?

Minha resposta foi muda. Levantei-me, fui a uma mesa e beijei um ramo de flores secas, o ramo dela, o ramo fatídico, o ramo destruidor. É ali que está a minha morte, ali e não na moléstia. Sinto que é assim.
Depois de alguns instantes de silêncio, minha mãe levantou-se e veio a mim.

— Meu filho, disse ela, deixa que eu arrede por algum tempo estas flores. Quando estiveres bom dar-te-ei de novo. Mas agora de que te servem?

— Não, disse eu, as flores ficam. Não fazem mal a ninguém.

— Fazem-te mal.

— A mim? Pobres flores!…

Minha mãe insiste, mas eu recuso. As flores ficam no meu quarto…

Meio dia…
Acabo de ler duas páginas dos Salmos de Davi. O rei-poeta consolou minha alma. É destas consolações que eu preciso, destas que preparam o espírito para a eternidade…
Hoje de manhã acusava a natureza por vir garrida e alegre assistir talvez ao meu último dia. Como estava o meu coração! A dor desvaira e eu não sei o que penso nem o que digo. Mas a verdade é uma; a verdade é esta grande verdade. Ó infinito, é enfim para ti que eu vou, como gota de água desviada que se recolhe ao oceano! Disse há pouco para consolar minha mãe, mas disse o que realmente é: a morte é livramento, não é aniquilamento. Sinto que há dentro de mim uma coisa que anseia por livrar-se desta prisão para lançar-se na eternidade e no infinito. Grande, suave, consoladora esperança! Sem ti, que fora o passamento senão a maior dor e o maior suplício? Mas, deixar o mundo com a esperança de que aos olhos mortais se abre mundo novo, tão outro que não este, mundo em que a virtude resplandecerá e a paz eterna compensará as atribulações da vida!
Alegra-me, comove-me, alvoroça-me a idéia de que não vou todo à sepultura; e que ali, à porta do cemitério só ficará de mim o que há de pior em mim mas que o espírito, a luz desta lâmpada a que tão cedo vai escasseando o óleo, há de remontar ao foco da grande luz.
Deixarei saudades? Deixo; mas o tempo as consolará, e a esperança de que dia surgirá em que o consórcio moral das criaturas se realizará ante o trono de Deus, deve ser a grande esperança dos que ficam e dos que vão.
Assim que, ó minha mãe, se em nossa passagem no mundo nos separamos um pouco, não será mais do que para costear uma montanha, até que, rasgando-se aos nossos olhos nova fonte de luz, possamos entrar para sempre unidos no seio do absoluto.

Uma hora da tarde.
Creio que adormeci um pouco.
Tive um sonho.
Sonhei que assistia à minha coroação na posteridade. Foi sonho! Que fiz eu para merecer os aplausos dos homens? Gastei a minha mocidade… em quê? Aqui entra a parte sombria do meu sonho. Gastei a minha mocidade em amar, com as forças vivas do meu coração, a quem provou que me não merecia.
Embalde procuro desviar de meu espírito esta lembrança que me acabrunha e me leva à sepultura.
Pobres flores aquelas! Lembra-me o lado feliz da história da minha mocidade. São as relíquias do tempo da fé pura e da paz do espírito. Naquele tempo eu a julgava um anjo. E era-o. Não sei que demônio a perseguiu depois e fez-se-lhe introduzir no espírito. Desde aí perdi o ideal para ganhar a morte. Nem podia ser de outro modo.
Ah! Carlota!…
Tenho uma idéia. Vou fazer uma coisa que chamarei o meu testamento. É a revista dos meus papéis. Queimarei o que for inútil; deixarei o que puder dar de mim alguma idéia, não à posteridade, mas aos meus amigos. Eles não sabem talvez nada do amigo que lhes morre.
Cerremos um pouco estas cortinas. O sol queima demais. Assim é melhor. Meu Deus, como estão estas gavetas! Dissera-se que há aqui a matéria de vinte poemas… Talvez. Que sou eu próprio senão um poema trágico?
Deitemos isto fora, que não presta: cartas de alguns indivíduos que se diziam amigos meus, no princípio, no meio e no fim. Não é amigo aquele que alardeia a amizade: é traficante; a amizade sente-se, não se diz… Mas a que vem esta filosofia? Deitemos fora, simplesmente, estas cartas.
Aqui estão uns versos: As margaridas. Ah! foram versos que eu escrevi quando ela me deu aquelas flores… São versos do bom tempo. Devo guardá-los? Para quê? Não, não servem; eram talvez bonitos; mas cantavam a mentira, endeusavam a falsidade… Não prestam.
Mais versos… São fragmentos de um poema humorístico: Os solidéus. É do tempo da Academia. Diziam todos que era esta a minha veia. Talvez fosse. Mas as circunstâncias mudam tudo, o gênio, o caráter e as tendências; e o homem de ontem nem sempre é o de hoje, como o de hoje nem sempre é o de amanhã. Foi o que me sucedeu. Se eu tivesse direito a uma biografia ou a um elogio histórico dava este ponto ao escritor para estudar e desenvolver.
Este poema, se eu tivesse acabado, havia de agradar, talvez. Tem por assunto o aparecimento do solidéu e o açodamento com que toda a gente deitou-se a imitá-lo para cobrir, mesmo aos seculares, as coroas que tivessem. O padre Simão era o meu herói em cuja boca punha eu muitas coisas boas de serem lidas… Devia tê-lo acabado. Infelizmente ficou no primeiro canto. De que serve mais? Não presta…
Uma carta de Carlota. Foi das primeiras. É apaixonada. Ainda me lembra do júbilo em que fiquei quando a recebi. Parecia doido. Minha mãe não compreendia a alegria de que eu estava possuído e receava pela minha razão. Tranqüilizei-a contando-lhe tudo, as minhas esperanças, os meus projetos…
Cuidas, escrevia-me Carlota, que há frieza em mim? Oh! não creias! Amo-te como nunca amei a ninguém; sinto que encontrei em ti o corpo vivo dos meus sonhos de moça infeliz. Como te não hei de amar? Fria eu? Sou reservada, porque é preciso sê-lo. Meu tio destinou-me a um homem que eu aborreço; mas teima nisso e eu não tenho querido romper de uma vez. Tenho esperança de convertê-lo à razão. Mas se julgas que por prova do meu amor devo deixar e acompanhar-te, fala, eu sou tua escrava. Acredita, meu poeta, que eu te amo como ainda não amou mulher alguma. — Tua escrava!
Esta expressão matou-me. Escrava! isto é, dependia de mim, vivia de mim, por mim, para mim. Era o amor como eu o compreendia, como a minha alma ardente o desejava: o amor escravidão, o amor que não faz valer direitos, nem vontades, nem caprichos. Viver assim um do outro, pelo outro, para o outro, tal era o modo do amor que pode resgatar a pequenez moral dos homens, em que o interesse e o cálculo frio substituíram todos os sentimentos generosos e magnânimos. Este ideal encontrara eu em Carlota; como não ficaria contente? Mas depressa…
Guardemos esta carta. Há de ficar ao lado desta outra, tão diversa, contraste tamanho que assusta e repugna, irrita e admira; reverso da medalha; face sombria depois da face brilhante; ponto corrompido depois do ponto são. Ou não: a primeira era a rede do engano: o fundo moral daquela mulher está na última, negro, repulsivo, mas verdadeiro. Era toda má.
Que me respondia ela às minhas exprobrações?
… O que deve fazer é fugir de mim. Se é real esse amor que me diz ter, dou-lhe de conselho que mude de terra, de modo que longe dos olhos fique-lhe eu longe do coração, o que será uma fortuna para nós ambos. Isto é fácil e proveitoso. Quanto aos juramentos que me recordou, respondo que eu mereceria censura se fizesse de mim tão infalível que nunca errasse. Ora, eu erro, errei. Salvo-me do erro, reconhecendo que foi erro e dizendo francamente que a leviandade é que teve parte nessas promessas tão puerilmente solenes. Pense nisto, e verá se não é assim. Console-se e anime-se, é o que lhe tenho a dizer…
A carta continua; é toda no mesmo sentido; a impudência e a crueldade. Ah! se tu soubesses, Carlota, o que me fizeste e fazes ainda sofrer! …
Sinto passos. É o médico. Fechemos a gaveta.

— Bom dia, doutor.

— Viva, meu doente.

— Como me acha?

— A julgar pelas feições, melhor. Como passou a noite?

— Assim, assim.

— Mas por que não está deitado?

— Não posso. E nem quero. Seria incivilidade esperar a minha grande visita deitado numa cama.

— Que visita?

— A morte.

— Ora!

— Com certeza. Há de dizer-me que não. É o que se diz a todos os doentes. Parece que isto os anima. Mas se os anima, descuida-os; e é exatamente o que não me acontece. Estava eu agora cuidando de arranjar uns papéis, a fim de que nada me fique por arranjar quando eu mudar de domicílio…

— Deixe essas idéias.

— Entristece-se? Que faria quando eu lhe contasse a idéia que eu tive ontem?

— Que idéia foi?

— Foi a de mandar aprontar e medir eu mesmo o meu caixão…

— Faz um favor?

— Qual? doutor.

— Não fale assim.

— É fácil.

— Não fale, porque não só isso atrasa-lhe a cura, como ainda há de entristecer sua mãe.

— Mas eu não lhe digo nada…

— Não basta não dizer. É preciso mesmo nem falar. As mães são zelosas dos filhos, porque são mães. Muitas vezes andam a ouvir às portas, para ter certeza do estado dos filhos. Querem surpreendê-los na plena confiança que lhes dá a ausência delas…

Tive uma suspeita: cuidei que minha mãe estivesse à porta.
Levantei-me e fui à porta. Não estava.
O doutor esperou-me sorrindo:

— Não está, mas podia estar, disse.

Voltei a sentar-me ao lado do doutor.

— Ouça bem, continuou ele, esta cisma constante de que há de morrer, estes trabalhos que tem e as suas forças atuais não comportam, tudo isso torna-o pior. Não vê como está ansiado…

— É a comoção.

— Já estava quando eu entrei. Ora pois, não pense mais em coisas tão lúgubres, e sobretudo não se ocupe de coisa alguma. Vamos lá: tomou os remédios?

— Tomei.

— E então?

— Ontem não senti melhoras algumas; agora estou melhor um pouco, apesar da ânsia.

— Ânsia é por culpa sua… Aposto que esteve a escrever versos.

— Não.

— Nem deve ocupar-se com isso. Há de ser bonito se escreve alguma poesia em que fale da morte e do que vai deixar, e depois de três meses fica-me aí são como um pero…

Minha resposta foi sorrir-me.

— Ande deitar-se um pouco.

— Para quê?

— Porque a minha visita é mais longa hoje que de costume, e eu não quero que se canse. Vá deitar-se, deite-se e conte-me uma história.

— Obedeço. Que história quer?

— Uma história de meninos. As três cidras, O príncipe formoso…

Refleti um pouco e respondi:

— Contar-lhe-ei uma história interessante! um pouco velha, mas instrutiva.

Conheci um rapaz, poeta como eu, e como eu crente, a mais não poder ser, nas melhores ilusões desta vida.
Não era rico, devia viver por si; todavia, pôde alcançar meio de preparar-se para uma profissão literária. Foi estudar. Tinha ao lado das ilusões grande bom senso, e a ele deveu correr os primeiros anos de seus estudos sem cair nos laços do amor. Teve algumas fantasias, mas fantasias simplesmente, que começavam e acabavam na mesma noite. A sorte preparara-lhe… Abre a boca, doutor? A história o adormece?

— Não; pode continuar.

— A sorte preparara-lhe um golpe profundo, para castigá-lo do critério com que soube fugir às tentações que encontrou. Depois de muitas circunstâncias que não vêm ao caso, achou-se diante de uma mulher. Imagine o doutor que essa mulher era bela. Imagine mais que estava em circunstâncias especialmente romanescas. Acabava de perder o marido que na idade de dezesseis anos seus pais lhe tinham obrigado a tomar. Contava então vinte e dois, e a morte daquele homem, se não lhe matou a alma, porque a alma não se achava ligada a ele, deu-lhe certa tristeza e arrancou-lhe algumas lágrimas, o que era nela um fundo de honestidade e pureza.

O que é porém certo é que, à semelhança de uma criatura que deixa a prisão em que estivera detida por longos anos, ela reapareceu ao mundo, assombrada e abatida.

Era uma viúva que se achava ainda solteira. Buscava uma alma para casar. Apareceu-lhe o poeta. Força da fatalidade os impeliu um para o outro. Parece que mesmo um para o outro se tinham conservado, ela na prisão que lhe armaram os pais, ele na torre de marfim de sua sossegada isenção. Mas viram-se e amaram-se. Naturalmente, pergunta-me, com que amor se amaram? Foi com o verdadeiro amor, o amor que consorcia desde a primeira hora as almas, as vontades e os pensamentos para nunca mais se separarem. Nunca mais! Logo mais verá que não foi assim! Vai-se embora, doutor?

— Tenho que fazer.

— Fique, eu lhe peço.

— Com uma condição.

— Qual?

— Não continue essa história.

— Incomoda-se em ouvi-la?

— Um pouco.

— Deixe disso. Não me vê calmo? É verdade que como os fatos já se passaram há longo tempo, e o meu anjo… já morreu, estou hoje mais a frio e posso contá-la sem enternecer… E demais, assim ao menos não pensarei na minha visita, a morte.

— Oh! não, não pense nisso! Vamos lá, conte. Mas antes disso tome o remédio, sim?

— Sim.

Tomei o remédio e continuei:

— Amaram-se pois. É preciso observar que o poeta tinha sede de amor. Atravessara um deserto, onde as miragens sucediam-se de hora em hora, e chegava enfim ao oásis da vida, uma fonte, uma relva, uma palmeira. Determinou não ir adiante e descansou, com a longa caravana das suas ilusões, sobre a relva, à sombra da palmeira, à beira da fonte… Desculpe esta linguagem romanesca e oriental: é própria da imaginação exaltada.

Não existiam já os pais da viúva. Existia um tio que não era nem peixe nem carne; indiferente ao futuro da sua sobrinha como ao seu próprio. Tinha alguns bens da fortuna, poucos, e que ainda mais exíguos se tornavam em virtude do jogo largo e desesperado que fazia com eles nas bancas mais concorridas. A sobrinha tinha ainda menos.
O amor do poeta e da viúva prosseguiu cada vez com mais força e mais intensidade. Mil projetos, mil planos formavam ambos na doce intimidade dos seus corações. Eram duas almas sinceramente poéticas. Viam o resto do mundo pelo prisma do seu amor e da sua fantasia. O lado feio, real, positivo, da existência aparecia-lhes assim, como se fora tudo dourado pela luz do céu. Durou esta vida seis meses.
Perguntar-me-á por que se não casaram. É simples. No meio das suas imaginações não os abandonava certo critério frio e necessário. O casamento era uma obrigação para que ambos se deviam preparar. O poeta foi o primeiro a adiantar esta consideração a que a viúva se curvou convencida. Mas de novo juraram entre si fidelidade sem quebra, e o céu que os ouviu pareceu neste momento registrar aquele juramento.
Sucedeu, porém, que se apresentou diante do poeta um rival ao coração da moça. Era um homem de 37 anos, seco de corpo e de espírito, inteligência acanhada, coração mesquinho, vivendo dos sentidos, e não dos sentimentos, perfeita reprodução, dizia a moça, do primeiro marido que ela teve. Chamava-se Venâncio.
Dizia ter fortuna e tinha, razão poderosa do arrojo com que entrou em liça competindo com o poeta. A moça recebeu-o, não com frieza, mas com desdém. Valeu-lhe isto uma repreensão do tio, que era amigo do pretendente e que o achava merecedor de todos os respeitos.

— Mas, meu tio, perguntou ela, sabe que o sr. Barroso quer?

— O que é?

— Quer… amar-me.

— Quem te disse isso?

— Desconfio.

— Ora, desconfianças…

— Oh! não me engano; pode ficar certo de que é assim.

— Sabes que mais? disse o tio. Não te previnas contra esse homem, respeitável a todos os respeitos. É um caráter sério, fora dos homens do mundo, capaz de compreender as conveniências, e além disso possuidor de uma fortuna. Não te rias assim, que é indecente. Eu sei que as tuas preferências poéticas acham nesta consideração da fortuna uma consideração sem valor. Isso é criancice. A fortuna é uma das coisas mais respeitáveis.

— Meu tio, observou ela, não parece estar muito convencido disso. O tio riu-se e, batendo-lhe na face, acrescentou:

— Já sei por que dizes isso… Mas que queres? são coisas… Enfim, o que desejo é que não maltrates o sr. Barroso.

Tudo isso foi referido pela moça ao poeta. Riram ambos da pretensão e da proteção, e descansaram por esse lado.
Não quero, doutor, entrar nas mil particularidades do amor entre o poeta e a viúva. Cartas, versos, flores, ósculos sinceros e castos, tudo isso que se troca entre namorados, todos esses episódios romanescos e tão velhos como o mundo, tudo isso se deu entre os meus dois heróis.
Estavam próximos de pedirem o necessário consentimento para que a união legal confirmasse a união moral em que eles existiam. Marcaram dia, e o poeta dispôs-se a usar das palavras mais brandas e persuasivas que conhecesse da língua portuguesa para convencer ao tio da sua amada de que podia fazer a felicidade dela.
Era desnecessário dizer nada à própria mãe, que desde os primeiros dias do amor do poeta ficou ciente por confissão dele.
Na véspera do dia aprazado, o poeta foi ver a viúva. Achou-a muito triste. Indagou o motivo dessa tristeza a que não estava afeito, mas não conseguiu arrancar uma palavra à moça. Respondeu que tinha dores de cabeça, mas depois de muitas instâncias e com ar de quem não dizia a verdade.
Passando a falar do pedido em casamento, a viúva disse ao amante que o adiasse, e quando este lhe perguntou que razões haviam para isso, ela respondeu que lhas comunicaria depois. Aconteceu logo o que era natural, um pequeno arrufo. E só arrufo, porque ela deu aquela resposta entre tantos suspiros, com um olhar tão convencido, tão sincero, que o poeta não pôde, o que lhe seria natural, experimentar maior desgosto.
O doutor sabe o que são arrufos dos namorados, é chuva miúda da primavera que tão depressa vem como vai. No fim de alguns minutos tinham voltado às boas, e o poeta despedia-se da viúva com a convicção de que só uma grande razão faria com que ela adiasse o pedido do casamento.
Era com efeito uma grande razão, como vai ver.
Desde aquele dia em diante a viúva mudou. Mais e mais fria, mais e mais reservada, trazia o espírito do poeta entre a dúvida e o desespero, entre a mágoa e a esperança. Que se teria passado? Em vão o rapaz indagava todos os motivos prováveis e possíveis; não podia atinar com a causa de semelhante transformação.
Enfim, uma noite em que se achavam na casa de uma terceira pessoa, o poeta pôde falar a sós à viúva. Expôs-lhe francamente o que sentia e fez um franco interrogatório sobre a tristeza que a moça apresentava.
As respostas da moça foram ambíguas. O poeta desesperou.

— Por que me não falarás com franqueza, Carlota?

— Quer mais franqueza?

— Oh! não zombes! Tu não calculas o que sofro, nesta incerteza em que me pões. Sê franca, prefiro isso.

— Não sei que te hei de dizer.

— Dize o que quiseres, inventa, se te parece, mas dize alguma coisa. Estas respostas ambíguas, estas evasivas transparentes não me consolam, antes me deitam em pior estado. Não me amas?

— Amo-te.

— Então?…

Esta conversa foi interrompida. Nessa noite não puderam falar mais a sós.
O poeta saiu desesperado. Sentia que algum segredo existia no fundo daquela tristeza da moça… A suspeita curvou-se-lhe à cabeceira e introduziu-lhe no espírito mil idéias negras que foram outros tantos demônios que fizeram daquela noite uma noite infernal…
O poeta não dormiu. Depois de vãos esforços levantou-se e foi… escrever versos! triste consolação dos que a natureza dotou com o gênio da poesia. No fim de uma hora de trabalho em que as estrofes lhe caíam do bico da pena como lágrimas de dor e de saudade, o poeta tinha transferido parte de sua alma para o papel. Estava mais calmo, sem estar menos triste.
Dois dias conservou-se em casa sem falar a pessoa alguma. De hora a hora esperava uma carta de Carlota. Nada. Ao terceiro dia, desesperado com o silêncio da viúva, resolveu ir, houvesse o que houvesse, pedi-la ao tio. Já estava em caminho quando lhe ocorreu a idéia de que sem completa averiguação dos motivos da tristeza da moça podia expor-se não só ao desgosto, mas ainda ao desar. Voltou para casa e escreveu uma carta à viúva pedindo-lhe explicações.
Veio a resposta. Era um desengano. Carlota respondia que não podia amá-lo, e que se esquecesse dela.
Dizer-lhe o que o poeta sofreu é contar-lhe muita coisa que deve saber de longa data. Sofreu… o que estou sofrendo. Caiu enfermo com uma febre violenta. Só dai a um mês se levantou, mas então já tinha em si o germe de uma enfermidade mais grave que depois o tomou de todo… e há de levá-lo à sepultura.
Durante a moléstia fez loucuras incríveis. Tudo o que podia agravar-lhe o estado e encaminhar-lhe a morte, fê-lo com uma alegria selvagem, mas sincera.
Enfim, restabelecido da febre, mas, como disse, doente de outra doença, o poeta levantou-se e não teve mão em si. Resolveu ir procurar a viúva. Queria a todo o transe conhecer as causas da recusa de Carlota, e sobretudo queria lançar-lhe em rosto a sua perfídia, de modo a não parecer covarde.
Carlota recebeu-o com um gesto de surpresa. Foi a ele e perguntou-lhe se já estava bom. Ele descobriu logo o fingimento daquela solicitude e quis mostrar que não se enganava. Suas exprobrações foram enérgicas e veementes. Carlota ouviu-o com uma espécie de torpor.
Depois, quando a alma do poeta derramou em palavras amargas a dor de que estava possuído, veio uma prostração moral, e o poeta, já mais brando, pediu a Carlota uma explicação da carta que esta lhe mandara.
Então, a viúva, fingindo um grande esforço, deu em pleno rosto ao namorado poeta uma resposta que equivalia a um tiro. Disse-lhe que se ia casar, e com Venâncio.
Afigurava-se ao poeta esta união como tão monstruosa, que ao princípio não quis acreditar nas palavras de Carlota. Olhou surpreso para ela, mas surpreso como o homem que não dá crédito, e intimou-lhe que falasse seriamente.

— Mais seriamente do que falo? perguntou Carlota.

— Sim, seriamente.

— É isto.

— Pois deveras…

— É verdade.

O rapaz sentiu que lhe faltava o chão debaixo dos pés. Pareceu-lhe que ia cair em um abismo. É assim que deve ser a vertigem do náufrago. Como o náufrago, o poeta agarrou-se ao primeiro objeto que encontrou. Era um sofá. Encostou-se ao sofá e olhou fixo para Carlota.

— Sei que isto lhe há de doer, mas é necessário…

— Mas ama-o?

— Amo.

— Ah! não diga isso!

— Por que não?

E fazendo esta pergunta a moça mostrou um ar de desdém que o poeta humilhado, abatido, indignado, não pôde dizer mais palavra. Foi, com passo incerto e vacilante, buscar o chapéu que se achava sobre o piano, e cumprimentando a viúva friamente, encaminhou-se para a porta.
A moça deu alguns passos para ele e murmurou:

— Só uma coisa lhe peço.

O poeta deteve-se. Era ainda uma esperança que lhe surgia no meio daquela amargura e desespero de que enchera sua alma. Interrogou-a com o olhar. A moça, pregando os olhos no chão, disse:

— Não me queira mal.

— Que não lhe queira mal? Mas isto é zombaria… Não lhe queira mal!… Acha que me faz um beneficio… Não vê que me matou?

— Ah! perdão… mas…

— Ama a outro, não? perguntou o moço com ironia.

— Amo, respondeu ela, mas de modo que o poeta antes adivinhou do que ouviu.

O moço saiu desesperado da casa de Carlota.
Passaram-se os dias. O mal que o minava foi tomando proporções maiores, e dentro de pouco tempo declararam-se os tubérculos pulmonares. É a minha moléstia, como sabe, doutor.
Aos primeiros cuidados que tiveram amigos e parentes para que se curasse, o poeta recusou peremptoriamente. Ofereceu-se ocasião de ir a Buenos Aires; não quis; e para não dar a verdadeira razão desta recusa, disse que tinha esperança de curar-se na terra natal, e que além disso tinha aversão às viagens marítimas.
Queria morrer? Perguntara o doutor. Queria e quer. Odiava a mulher? Não, amava-a, ainda a ama tudo que possa dizer e sentir contra ela, não é senão amor disfarçado. Se não fosse assim, decerto que teria aceitado a vida que lhe ofereciam às mãos cheias. Mas recusou tudo; aceitou a moléstia como um bem da Providência.
Pedir-me-á a explicação deste amor por um monstro, e eu não saberei o que lhe hei de dizer.
Todavia, há um fato que me parece explicar tudo, e vem a ser: se o amor do poeta fora um desses amores fáceis ou simplesmente uma dessas afeições que tomam base na vaidade pueril, creio que a perfídia de Carlota teria ofendido a suscetibilidade, deixando intacto o coração, porque realmente o coração não se interessa em afeições tais.
Mas o amor do poeta não era esse: era o amor verdadeiro, o amor único; a traição não podia deixar de aniquilá-lo. Foi o que sucedeu. Não sou filósofo, doutor; mas afigura-se-me que as coisas se passaram assim.
Durante os primeiros tempos de sua moléstia, o poeta procurou sempre todas as ocasiões em que podia ver Carlota. A custo puderam contê-lo no dia do casamento da viúva. Ele queria, à força, ir assistir a esta cena e confundir com a sua presença os desposados.
Onde quer, porém, que pudesse encontrá-la, e em poucos lugares era, o rapaz ia e não deixava de fixar nessa mulher os olhos de dor e desespero. Depois, voltava mais doente e mais amante para casa. Houve uma ocasião em que podia falar-lhe; não quis; entendia poder vê-la; falar-lhe afigurava-se ao moço que seria condenável.
A moléstia progredia até que se declarou perigosa. A ciência foi impotente diante do princípio do mal que lavrava, até que um dia, no dia em que a Igreja celebra o nascimento do Salvador, poucas horas antes de morrer, o moço contou esta história ao sábio doutor que tratava dele.

Que me diz a esta história?

— Digo que o ouvi a custo. Eu já sabia alguma coisa, mas não sabia tão completamente. Mas que necessidade tinha de me referir essas coisas. Olhe, está pior, a tosse está mais forte, vejo-o mais pálido e abatido. Foi imprudência…

— Não foi. Eu desejava que o doutor ficasse sabendo de mais uma história destas que de tão vulgares são algumas vezes tão funestas.

— Mas diga-me…

— O quê, doutor?

— Se as coisas todas que me contou tivessem uma explicação, explicação razoável, honesta; se em vez de monstro, Carlota fosse um anjo, viveria?

— Um anjo? do mal!

— Mas enfim…

— Não sei.

— Há de viver. Se alguma coisa houver que o possa fazer, visto que nem a ciência, nem os conselhos dos amigos podem fazê-lo sair desse abatimento em que está, acredite que empregarei os meus esforços para lhe dar esse remédio supremo.

— Veja sempre…

— Eu lhe prometo. Entretanto, ainda uma vez lhe peço, não se deixe perder nessas recordações angustiosas do passado; seja homem, e principalmente seja filho!…

— Minha mãe! …

— Seja filho. Lembre-se que ela não poderá resistir…

— Sinto passos, doutor…

— É ela!

— Oh! minha mãe!

Minha mãe está mais pálida que eu. Interroga o doutor com o olhar, e este abaixa os olhos. Que haverá entre ambos?

— Onde vai, doutor?

— Vou sair. Até já.

— Volta?

— Volto. Mas espere, tome já este remédio.

— Então, doutor, como acha meu filho?

— Vou consultar alguns colegas e cá virei com eles. Talvez se possa fazer alguma coisa. Até já. Coragem, meu doente!

São cinco horas da tarde.
Minha mãe foi descansar um pouco. Coitada! passou a noite em claro, e durante todo o dia de hoje não parou um instante.
O doutor ficou de voltar e voltou com mais dois médicos. Examinaram-me e resolveram que eu não estava tão perigoso como parecia. Depois assentaram no medicamento que se devia empregar. Uma das cláusulas que me impõem é ir tomar ares. Não sei se o faça. Eu creio que eles todos se enganaram acerca do meu estado.
Daqui a pouco estará findo o dia e com ele a minha vida, talvez. Estou pior. Sinto uma opressão que me incomoda; minha mãe aconselhou-me que me deitasse, mas eu não posso; quero morrer como homem.
Tenho necessidade de escrever. Quero derramar a minha última gota de poesia no papel, e deixar ao mundo ao menos uma lembrança de que fui mártir e poeta. Será este o canto do cisne.
Que direi?
Sinto a cabeça pesada; e o meu espírito mal pode aplicar-se ao que a minha vontade o solicita. Ah! já nem sou poeta! Musa ardente dos tempos da felicidade e do sossego, onde paras agora que não vens reclinar-te, como outrora, à cadeira do teu poeta infeliz?
Alguém chega… Guardemos estes papéis… Quem é? Minha mãe!…

— Eu e mais alguém, meu filho.

— Quem?

— Tens coragem?

— Por quê, minha mãe?

— Para o que vais ver?

— É a morte?

— É a vida.

— Mande entrar a vida, minha mãe.

Olhei, era… era Carlota.

— Carlota!

Recuei até à cama. Vi entrar uma mulher magra, abatida, doente; com os olhos fundos e ardentes de febre. Vê-se que o remorso dilacera aquela alma. Vê-se que ela pena os pecados em que caiu.
Parou à porta, e com as mãos magras, mas ainda belas, comprime o seio ofegante. Tem os olhos baixos como de vergonha. Parece pregada ao lugar em que ficou.
Nem eu nem ela podemos falar. Minha mãe toma-lhe a mão e trá-la para junto da janela.

— Não é uma criminosa que vem implorar perdão, disse-me Carlota.

— Pois quem é?

— Ah! eu não quero perder tempo em longas explicações… Venho dizer-lhe que se a sua vida depende da declaração de que eu o amo, pode morrer; porque eu não posso fazer essa declaração. Mas se é razão para viver a certeza de que, no dia em que o repeli, ainda o amava, e que casando com aquele que é hoje meu marido eu ainda o tinha na memória, viva; porque isto é verdade.

— Carlota!

— É verdade. Depois, a consciência do dever prevaleceu, e eu pude apesar da lembrança, ver que me podia fazer feliz, mas que, casada com outro, só podia fazer a desgraça de mim mesma.

Dizendo estas palavras Carlota parece animada por um fogo interior. Será sincera? A franqueza com que falou parece nascer de uma consciência sincera. Agora, o que me parecia remorso é vergonha, é já outra coisa; reparo mais, é como que vejo na fronte desta mulher o sinal do martírio e da dor.
Minha mãe fê-la retirar-se. Eu não sei o que faço nem onde estou; parece-me que sonho; abro os olhos mais e mais, e corro um olhar por todos os ângulos do quarto para ver se com efeito estou na realidade.
Vê-la! vê-la ainda, aqui, junto de mim, sincera, regenerada na minha consciência de um crime que lhe atribui, oh! meu Deus! isto é quase a felicidade!
Mas, se o que ela diz é verdade, qual a explicação de todos estes fatos que tiveram tão funestas conseqüências?
Carlota adivinha esta interrogação íntima. Minha mãe fê-la sentar. Depois, tomando um ar de recato e modéstia, Carlota procura referir todas as circunstâncias do seu casamento.

O que ela contou resume-se assim:
Quando, nos seus sonhos de felicidade e de amor, ela contava unir-se a mim e viver uma vida nova e única, veio transtornar os seus projetos o tio de quem já falei, e cuja neutralidade nos parecia a ambos sem contestação.
Neutral seria, decerto, o bom tio, se uma circunstância não o impelisse ao passo que deu. Tenho certeza de que ele gostava de mim e de Carlota, mas a paixão e o vicio decidiram as coisas de modo diferente.
Venâncio era um dos seus parceiros habituais do jogo. Era rico, e por essa circunstância, talvez, tinha uma felicidade rara. A água corre para o mar, diz o provérbio. O dinheiro dos parceiros corria para a algibeira farta de Venâncio.
Até então, isto é, até a hora em que o tio de Carlota conheceu Venâncio, a boa sorte tinha protegido aquele. Mas Venâncio apareceu com a sua felicidade inaudita e bem depressa os últimos recursos do velho se esgotaram. É sabido como o jogo dá certa embriaguez que mais se exalta com a má fortuna. O tio de Carlota atirou-se às últimas operações. Jogou a crédito e perdeu. Insistiu e perdeu ainda. Insistiu, insistiu e perdeu sempre. Recuou a conselho de alguns amigos.
As quantias perdidas ao jogo com Venâncio perfaziam uma soma avultada. O tio de Carlota achou-se repentinamente em uma posição difícil. Como pagar-lhe? Escasseados os recursos, nem tinha onde buscar, ainda por empréstimo, a grossa quantia de que era devedor. Em tal situação só havia um meio. Pôr termo ao vício que o arruinara e procurar no trabalho, se fosse possível, o saldo de tão enorme dívida.
Este era o meio razoável, se porventura a lei do jogo, que é uma lei arbitrária como o próprio vício em que se funda, não o obrigasse a um prazo breve e fatal.
O tio de Carlota pensou nisto e desanimou. Era um abismo que tinha diante de si. Os recursos de Carlota, que eram escassos, não podiam, no caso de generosidade da moça, servir para uma quinta parte da dívida. Era despojá-la do patrimônio sem proveito.
O desgraçado, sem saber que fazia, sem meios reais, nem recursos da imaginação, saiu um dia de manhã em direção à casa de Venâncio.
Devo dizer que, já antes do desastre que fez de Venâncio um pesadelo para o tio de Carlota, o credor freqüentava a casa deste.
O tio de Carlota entrando em casa de Venâncio não tinha uma idéia a apresentar; ia conversar e apanhar a primeira idéia que lhe sugerisse a conversa, ou aceitar o projeto razoável que o credor lhe indicasse.
Venâncio recebeu o devedor com o mais amável dos sorrisos nos lábios. Isto animou o desgraçado devedor.

— A que devo a sua visita?

— Não adivinha?

— À dívida?

— É verdade.

— Vem pagá-la? Não havia pressa.

— Não, não venho pagá-la.

— Ah!

Vê-se que este intróito não era dos mais animadores. O tio de Carlota calou-se e mudou de conversa, sendo acompanhado no novo assunto por Venâncio, que se porfiava em ser o mais amável deste mundo.
Depois de meia hora de conversa sobre coisas diferentes, Venâncio voltou bruscamente ao assunto da dívida.
O devedor empalideceu.
Que responder?
Os olhos de Venâncio estavam pregados nele, e quanto mais corriam os minutos, mais vazio se achava o espírito do tio de Carlota.
Enfim, como era preciso responder alguma coisa, o pobre homem disse francamente que não podia pagar, e que nem lhe ocorria o meio para isso.
Venâncio sorriu e respondeu:

— Pois é simples. Há três dias que a fortuna me desampara, e como velho jogador que é, deve saber que ela tem seus caprichos e muitas vezes abandona os antigos aliados para acompanhar outros novos. Talvez que ela hoje esteja do seu lado.

O tio de Carlota estremeceu a esta proposta. A alma do jogador despertou e sentiu-se arrastada para a banca. Ganhar em dois minutos tudo o que perdera, ver-se de um só lance aliviado de uma obrigação e de um peso no espírito, era para o devedor a suprema felicidade.
Não hesitou, senão o tempo necessário ao espanto que lhe causava a proposta, e levantando-se, com as mãos estendidas para Venâncio, declarou-lhe alvoroçado que aceitava.
Tudo se preparou para o duelo fatal.
Diante da mesa em que se ia decidir a sua sorte, o tio de Carlota cobrou novo ânimo.
Venâncio estava frio e tranqüilo. Parecia que não jogava dinheiro, e dinheiro avultado.
O tio de Carlota acompanhou a partida ansioso e atordoado. Não respirava, com a mão oprimia o coração e com os olhos parecia querer arrancar do baralho a carta feliz…
Infeliz! a carta que saiu dava ganho a Venâncio.
O tio de Carlota soltou um grito.

— Quer mais? perguntou friamente Venâncio.

— Não! não!

— Deve-me o dobro.

— Como lhe poderei pagar? Oh! meu Deus!

— Não se aflija, disse o credor. Isto não é sangria desatada; não lhe exijo agora o pagamento; pode pagar amanhã, depois, daqui a um mês… e até…

— E até?

— Até nunca.

— Nunca!

— Nunca.

A estranheza das palavras de Venâncio e o ar frio que ele apresentava fizeram impressão no tio de Carlota.

— Explique-se, disse ele.

— É simples. Há de crer que por muito exigente que eu fosse nunca poria em sérias dificuldades um tio. A um estranho é possível, é até certo, mas a um tio… Ora, nada impede que eu seja seu sobrinho.

O tio de Carlota não compreendeu e não respondeu.

— Não compreendeu? perguntou Venâncio.

— Meu sobrinho, como?

— Não tem uma sobrinha? perguntou Venâncio.

— Ah!

Venâncio expôs demoradamente a sua pretensão. Pediu formalmente a mão de Carlota. O tio hesitou ainda, disse-o ao menos depois à sobrinha, mas este casamento era a sua salvação. Depois, Venâncio tivera o cuidado de convencê-lo de que ele não era indiferente à viúva. Enfim, quando saiu da casa de Venâncio, o tio de Carlota deixou-lhe prometida a mão de sua sobrinha.
Quando esta ouviu de seu tio a proposta de Venâncio, repeliu-a peremptoriamente. Mas o tio, entre as lágrimas da sua conveniência, chegou a convencer a pobre moça de que casar com Venâncio era salvá-lo da desonra. Carlota pediu dilação para refletir. A reflexão foi contrária ao coração. Carlota aceitou a proposta, não sem exprobrar a seu tio a funesta paixão que o seduzira a cometer um ato de aviltamento.
Quanto a Venâncio, ela teve o cuidado de declarar-lhe que impunha uma condição.

— Aceito todas, respondeu Venâncio.

— Faço o sacrifício da minha pessoa, mas exijo ao menos eu não seja mulher de um jogador.

— Juro-lhe que não será.

E não foi. Uma paixão neutralizou outra. Venâncio era dessas naturezas escravas da sensualidade, que estimam as estátuas, não pelo cunho de beleza ideal que elas possam ter, mas pela vista e exuberância das formas exteriores.

Tal foi a história que Carlota me contou.
Quando ela acabou tinha eu o rosto escondido nas mãos; palpitava-me o coração com uma força desusada. Minha consciência restituía à infeliz moça os créditos de elevação moral em que a tinha anteriormente aos tristes acontecimentos de que ela foi vítima. Em vez de um monstro tinha eu diante de mim uma mártir.

— Se esta simples exposição dos fatos, disse-me ela, pode torná-lo à vida, viva; eu lhe peço. Viva por sua mãe e para sua mãe. Se eu ainda o amasse, ou pudesse amá-lo, dir-lhe-ia que vivesse por mim.

— Tem razão, respondi eu.

E tomando a mão de Carlota, beijei-lhe respeitosamente. Não era um beijo de amor, era um beijo de gratidão. Depois do que ela me disse eu sentia que voltava à vida.

— Agora, disse ela, adeus.

E saiu.
Minha mãe não a deixou sair sem cobri-la de beijos verdadeiramente maternais.

26 de Dezembro
São dez horas da manhã.
Passei uma noite tranqüila. Tive sonhos felizes. Sonhei que estava bom e vivia com minha mãe em uma casa retirada do bulício e da agitação. Voltavam os meus dias de poeta, e eu cantava em estrofes inspiradas a ventura que me dava a paz do coração e da consciência.
Não sei por quê, esta perspectiva de felicidade já me não desgosta, e nem já me causa ressentimento a alegria expansiva e radiante da natureza.
Ao mesmo tempo, a idéia tão poética dessa vida sossegada e feliz é contrariada pela idéia de que perdi Carlota em virtude de um contrato fundado sobre o vício. Esta idéia traz-me à vida real, e eu olho já os sonhos do passado e o desta noite como ilusões sem realidade prática.
A prática é outra coisa. Não transigir com os desvios dos homens, mas viver preparado para eles, tal é a norma regular que se me afigura devem ter todas as consciências honestas e previdentes.
Deixar-me seduzir por novas ilusões e expor-me a novos desenganos e torturas?
É o que farei… se ficar bom.
Ficarei?
O doutor me dirá.
O doutor! É seguramente a ele que eu devo esta transformação na minha vida. Foi, sem dúvida, ele quem encaminhou aquela explicação que tão benéfica foi para mim.
Farei tudo o que puder para ficar bom.
Oh! minha mãe! minha mãe!


Um ano depois, encontravam-se ao pé da estação do Campo, para tomar o caminho de ferro, dois homens, um moço, o outro velho. Olham-se e reconhecem-se. Depois entram, compram bilhetes e tomam lugar em um carro de 1ª classe.

— Para onde vai? pergunta o velho.

— Vou para o Rodeio.

— Também eu.

Acomodaram-se, e, enquanto esperavam a hora, e não vinha mais ninguém para o mesmo compartimento, trataram de conversar sobre coisas de sua vida.

— Que faz agora? perguntou o moço ao velho.

— Sou um ex-médico. Vivo do que ajuntei.

— Eu sou um ex-poeta. Vivo do que aprendi.

— Fortuna por fortuna. Mas há uns bons seis meses que o não vejo. Ora, quem diria que aquele rapaz magro e quase morto se converteria neste rapagão corado, nédio, robusto… Bem lhe dizia eu.

— Devo-lhe tudo.

— A mim, não.

— Devo-lhe, sim.

— É então ex-poeta?

— Sou. Sou hoje o homem-prosa, vivo terra-a-terra, livre das quimeras que me atordoaram e nas quais não encontrei senão dissabores. Quis forçar a ordem das coisas e opor aos sentimentos comuns a idealidade do meus sentimentos. Sofri as conseqüências desta temeridade. Hoje, se não reneguei o culto da poesia, não faço praça dele, de modo que aquele dia em que me viu tão desanimado foi, por assim dizer, o último dia de um poeta.

O doutor olhou para o moço com ar incrédulo.

— Isso é verdade? perguntou.

— Mais que verdade.

— Não pensei que a mudança fosse radical. E D. Carlota?

— Essa vive, coitada, não sei se como eu. Nunca mais a vi. Bem sabe que uma barreira nos separava. Mas eu conservo-a comigo. Perdão, doutor… é a minha ilusão de namorado, de poeta e de rapaz… mas como vê, é inofensiva.

E o moço tirou um medalhão em que estavam as margaridas que durante a febre beijava e adorava.

— E sua mãe?

— Oh! essa é feliz! Vive comigo no Rodeio, onde nada nos perturba a felicidade santa de que gozamos. Pela felicidade que ela sente vendo-me vivo e são é que avalio a dor suprema que sentiria se eu morresse. Fiz bem em não morrer.

— Pois, meu amigo, continue a contar com a minha amizade, que agora é ainda maior. Ame e respeite sua mãe; procure esquecer os sucessos que motivaram a catástrofe de sua vida, e, sem repudiar a missão normal que Deus lhe deu, não confie de um mundo frio e egoísta as santas aspirações da sua jovem inteligência.

— Obrigado, doutor.

Neste momento entrou no carro um casal; o marido, homem de trinta e oito anos, a mulher… não se podia ver através de um véu preto que lhe cobria o rosto.
Pouco depois o carro partiu.
A moça, que até então não voltara o rosto, teve necessidade de fazê-lo para responder a uma pergunta do marido. O marido achava-se entre ela e o ex-poeta. A moça deu um pequeno grito. Interrogada por seu marido, respondeu que fora uma dor aguda no coração.

— Há de ser de cansaço, acrescentou ela.

Era Carlota, como já se adivinha.
Durante o resto da viagem nenhum incidente mais ocorreu. A mulher e o marido conversavam sossegadamente; o ex-poeta e o ex-médico conversavam do mesmo modo.
Chegando à última estação separaram-se todos. O doutor prometeu ir jantar à casa do rapaz.
Viram-se ainda muitas vezes, mas o encontro do vagão foi o último que houve entre o rapaz e Carlota.






Autor: Machado de Assis
Produção Visual: Carlos Cunha

















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