Juliana voltara para casa de Luísa por conselhos da tia Vitória.
- Olha, minha rica - tinha-lhe ela dito -, não há que ver, o pássaro fugiu-nos! Suspira, bem podes suspirar que o dinheiro grosso foi-se! Quem podia adivinhar que o homem desarvorava! Não, lá isso podes tirar daí o sentido! Que escusas de esperar nem cheta...
- Também me regalo de mandar as cartas ao marido, tia Vitória!
A velha encolheu os ombros:
- Não lucras nada com isso. Ou que eles se desquitem, ou que ele lhe parta os ossos, ou que a mande para um convento - tu não ganhas nada. E se se acomodarem, mais ficas a chuchar no dedo, porque nem tens a consolação de fazeres a cizânia. E isto é, se as coisas correrem pelo melhor, porque podes muito bem ficar mas é em lençóis de vinagre com alguma carga de pau que eles te mandem dar. - E vendo um gesto espantado de Juliana: - Já não era o primeiro caso, minha rica, já não era o primeiro. Olha que em Lisboa, passa-se muita coisa, e nem tudo vem nos jornais!
Positivamente o que ela tinha a fazer era voltar para a casa. Por que enfim o que restava de tudo aquilo? O medo de D. Luísa; esse é que lá estava sempre a dar-lhe por dentro a cólica; desse é que era necessário tirar partido...
- Tu voltas para lá - dizia - à espera que ela cumpra o que prometeu. Se te dá o dinheiro, bem... Se não, tem-na em todo o caso na mão, estás de dentro da praça, sabes o que se passa, podes-lhe apanhar muita coisa...
Mas Juliana hesitava. - Era difícil viverem debaixo das mesmas telhas sem haver uma questão por dá cá aquela palha.
- Não te diz uma palavra, tu verás...
- Mas tenho medo...
- De quê? - exclamava a tia Vitória. Ela não era mulher para a envenenar, não é verdade? Então? Quem a nada se arriscava nada ganhava. - Isto é se queres - acrescentou - senão trata de te arranjar noutra parte, e deita as cartas para o fundo da arca. Que diabo! Tu vais ver, se não te convém, safas-te...
Juliana decidiu ir, a "ver".
E reconheceu logo, que aquela finória da tia Vitória tinha carradas de razão.
Luísa, com efeito, parecia resignada. Sebastião tinha ido para Almada, outra vez. Mas como estava decidida, apenas ele voltasse, a ir a casa dele uma manhã, atirar-se-lhe aos pés, contar-lhe tudo, tudo, suportava Juliana, refletindo: -"E apenas por dias!" - Por isso não lhe disse uma palavra. Para quê? O que tinha a fazer era pagar-lhe e pô-la fora, não é verdade? Enquanto o não pudesse fazer, era agüentar e calar. Até que Sebastião voltasse...
Entretanto evitava vê-la. Nunca a chamava. Não saía da alcova de manhã, sem a ter sentido fora no quarto encher o banho, sacudir os vestidos. Ia para a sala de jantar com um livro, e nos intervalos não levantava os olhos das páginas. E durante todo o dia conservava0se no quarto com a porta fechada, lendo, costurando, pensando em Jorge - às vezes também em Basílio com ódio, desejando a volta de Sebastião, e preparando a sua história.
Juliana, uma manhã, encontrou Luísa no corredor trazendo para o quarto o regador cheio de água.
- Oh, minha senhora! Por que não chamou? - exclamou, quase escandalizada.
- Não tem dúvida - disse Luísa.
Mas Juliana seguiu-a ao quarto, e cerrando a porta:
- Ó minha senhora! - disse muito ofendida. - Isto assim não pode continuar. A senhora parece que tem medo de me ver, credo! Eu voltei para fazer o meu serviço como dantes... Verdade, verdade, naturalmente, sempre espero que a senhora faça o que prometeu... E lá largar as cartas não largo, sem ter seguro o pão da velhice. Mas o que se passou foi um repente de gênio, e já pedi perdão à senhora. Quero fazer o meu serviço... Agora se a senhora não quer, então saio, e -, acrescentou com uma voz seca - talvez seja pior para todos!...
Luísa, muito perturbada, balbuciou:
- Mas...
- Não, minha senhora - cortou Juliana severamente - aqui a criada sou eu.
E saiu, empertigada.
Tanta audácia aterrou Luísa. Aquela ladra era capaz de tudo!
Então, para a não irritar começou, daí por diante, a chamá-la, a dizer: -"traga isto, traga aquilo" - sem a olhar.
Mas Juliana fazia-se tão serviçal, era tão calada, que Luísa pouco a pouco, dia a dia, com o seu caráter móbil, inconsciente, cheio de deixar-se ir, principiou a perder o sentimento pungente daquela dificuldade. E no fim de três semanas as coisas tinham entrado nos seus eixos - dizia Juliana.
Luísa já gritava por ela do quarto, já a mandava a recados fora; Juliana chegava a ter às vezes migalhas de conversação: - Está um calor de morrer... A lavadeira tarda... - Um dia arriscou esta frase mais intima: - Encontrei a criada da senhora D. Leopoldina.
Luísa perguntou:
- Ainda está para o Porto?
- Ainda se demora um mês, minha senhora...
De resto havia na casa um aspecto muito tranqüilo, e Luísa, depois de tantas agitações, abandonava-se com gozo à satisfação daquele descanso. Ia às vezes ver D. Felicidade à Encarnação, que já se levantava. E esperava sempre Sebastião, mas sem impaciência, quase contente por ver adiado o momento terrível de lhe dizer: "Escrevi a um homem, Sebastião!"
Assim iam passando os dias; estava-se no fim de setembro.
Uma tarde Luísa ficara mais tempo à janela da sala de jantar; deixara cair o livro no regaço, e olhava, sorrindo, um bando de pombas que de algum quintal vizinho viera pousar sobre o tabique de terreno vago. Pensava vagamente em Basílio, no Paraíso... Sentiu passos; era Juliana.
- Que é?
A mulher cerrara a porta, e vindo junto dela, baixo:
- Então a senhora ainda não decidiu nada?
Luísa sentiu como uma pancada no estômago.
- Ainda não pude arranjar nada...
Juliana esteve um momento a olhar para o chão:
- Bem - murmurou, por fim.
E Luísa ouviu-a, no corredor, dizer alto:
- Isto quando o senhor voltar é que são os ajustes de contas!
Quando Jorge voltasse! Imediatamente no seu espírito, que se tinha pouco a pouco serenado, todos os sustos, as angústias estremeceram de novo àquela ameaça - assim uma rajada súbita põe em convulsão um arvoredo. Devia, pois, fazer alguma coisa antes que ele chegasse! Justamente Jorge escrevera-lhe, que não se demoraria, que a avisaria pelo telégrafo... Desejava, agora, que do ministério o mandassem fazer uma viagem mais longe, pela Espanha ou pela África; que alguma catástrofe, sem lhe fazer mal, o retardasse meses!...
Que faria ele, se soubesse? Matá-la-ia? Lembravam-lhe as suas palavras muito sérias, naquela noite, quando Ernestinho contara o final do seu drama... Metê-la-ia numa carruagem, levá-la-ia a um convento? E via a grossa portaria fechar-se com um ruído funerário de ferrolhos, olhos lúgubres estudá-la curiosamente...
O seu terror irraciocinado fizera-lhe mesmo perder a idéia nítida de seu marido; imaginava um outro Jorge sanguinário e vingativo, esquecendo o seu caráter bom, tão pouco melodramático. Um dia foi ao escritório, tomou a caixa das pistolas, fechou-a num baú de roupa velha, e escondeu a chave!...
Uma idéia amparava-a: era que apenas Sebastião viesse de Almada, estava salva; e apesar daquela agonia miúda de todos os momentos, quase receava saber que ele tivesse chegado - tanto a confissão da verdade lhe parecia uma agonia maior! Foi por esse tempo, então, que lhe veio uma lembrança - escrever a Basílio. O terror permanente amolecera-lhe o orgulho, como a lenta infiltração da água faz a uma parede; e todos os dias começou a achar uma razão, mais uma, para se dirigir "àquele infame": fora seu amante, já sabia todo o caso das cartas, era o seu único parente... E não teria de "dizer" a Sebastião! Já às vezes pensara que não aceitar dinheiro de Basílio fora uma "fanfarronada bem tola!" Um dia enfim escreveu-lhe. Era uma carta longa, um pouco confusa, pedia-lhe seiscentos mil réis. Foi ela mesmo levá-la ao correio, sobrecarregando-a de estampilhas.
Nessa tarde, por acaso, Sebastião, que chegara de Almada, veio vê-la. Recebeu-o com alegria, feliz por não ter de lhe contar..
Falou da volta de Jorge; aludiu mesmo ao primo Basílio, à pouca vergonha da vizinhança...
- Não - disse - é a primeira coisa que hei de contar ao Jorge.
Porque se considerava salva, agora! E todos os dias seguia a carta, no seu caminho para França, como se a sua mesma vida fosse dentro daquele sobrescrito entregue ao acaso dos trens e à confusão das viagens! Chegara a Madri, depois a Barcelona, depois a Paris! Um carteiro corria a entregá-la na Rue Saint Florentin. Basílio abria-a tremendo, enchia um sobrescrito de notas, muitas, que cobria de beijos, e o envelope, trazendo a sua salvação e o seu descanso, começava a rolar para baixo, pela França e pela Navarra, soprando como um monstro e apressando-se como um próprio.
No dia em que a resposta devia chegar, levantou-se mais cedo, agitada, com o ouvido pregado na porta, esperando o toque do carteiro. Via-se já a expulsar Juliana, a soluçar de alegria!... Mas às dez e meia começou a estar nervosa; às onze chamou Joana, que fosse saber se o carteiro passara.
- Diz que sim, minha senhora, que lá passou.
- Canalha! - murmurou, pensando em Basílio.
Talvez, todavia, não tivesse respondido no mesmo dia! Esperou ainda, mas desconsolada, já sem fé. Nada! Nem na outra manhã, nem nas seguintes! O infame!
Veio-lhe então a idéia de loteria - porque insensivelmente a esperança tornara-se-lhe necessária. A primeira vez que saiu comprou umas poucas de cautelas. Apesar de não ser religiosa nem supersticiosa, meteu-as debaixo da peanha de um São Vicente de Paula que tinha sobre a cômoda, na alcova. Não se perdia nada. Examinava-as todos os dias, somava os algarismos a ver se davam "nove, noves fora, nada", ou um número par - que é de bom agouro! E aquele contato diário com a imagem do santo levando-a a pensar decerto na proteção inesperada do céu, fez uma promessa de cinqüenta missas se as cautelas fossem premiadas!...
Saíram brancas - e então desesperou de tudo; abandonou-se a uma inação em que sentia quase uma voluptuosidade, passando dias sem se importar, quase sem se vestir, desejando morrer, devorando nos jornais todos os casos de suicídios, de falências, de desgraças - consolando-se com a idéia de que nem só ela sofria, e que a vida em redor, na cidade, fervilhava de aflições.
Às vezes, de repente, vinha-lhe uma pontada de medo. Decidia-se então de novo a abrir-se com Sebastião; depois pensava que seria melhor escrever-lhe; mas não achava as palavras, não conseguia arranjar uma história racional; vinha-lhe uma cobardia; e recaia na sua inércia, pensando: "amanhã, amanhã..."
Quando, só, no seu quarto, se chegava por acaso à janela, punha-se a imaginar o que diria a vizinhança, quando se soubesse! Condená-la-iam? Lamentá-la-iam? Diriam: - "Que desavergonhada"? Diriam: - "Coitadinha"? E por dentro dê vidraça seguia, com um olhar quase aterrado, as passeatas do Paula pela rua, o embasbacamento obeso da carvoeira, as Azevedos por trás das bambinelas de cassa! Como eles todos gritariam: - "Bem dizíamos nós! Bem dizíamos nós!" Que desgraça! - Ou então via de repente Jorge, terrível, fora de si, com as cartas na mão; e encolhia-se como se lá estivesse sob a cólera dos seus punhos fechados.
Mas o que a torturava mais era a tranqüilidade de Juliana - espanejando, cantarolando, servindo-a ao jantar de avental branco. Que tencionava ela? Que preparava ela? As vezes vinha-lhe uma onda de raiva; se fosse forte ou corajosa, decerto atirar-se-lhe-ia ao pescoço, para a esganar, arrancar-lhe a carta! Mas pobre dela; era "uma mosquinha"!
Justamente, numa dessas manhãs, Juliana entrou no quarto - com o vestido preto de seda no braço. Estendeu-o na causeuse, e mostrou a Luísa, na saia, ao pé do último folho, um rasgão largo que parecia feito com um prego; vinha saber se a senhora queria que o mandasse à costureira.
Luísa lembrava-se bem; rasgara-o uma manhã no Paraíso a brincar com Basílio!
- Isto é fácil de arranjar - dizia Juliana, passando de leve a mão espalmada sobre a seda, com lentidão de uma carícia.
Luísa examinava-o, hesitante:
- Ele também já não está novo... Olhe, guarde-o pra você!
Juliana estremeceu, fez-se vermelha:
- Oh, minha senhora! - exclamou. - Muito agradecida! É um rico presente. Muito agradecida, minha senhora! Realmente... - E a voz perturbava-se-lhe.
Tomou-o nos braços, com cuidado, correu logo à cozinha. E Luísa, que a seguira pé ante pé, ouviu-a dizer toda excitada:
- É um rico presente, é o que há de melhor. E novo! Uma rica seda! - Fazia arrastar a cauda pelo chão, com um frufru. Sempre o invejara; e tinha-o agora, era o seu vestido de seda! - É de muito boa senhora, Sra. Joana, é de um anjo!
Luísa voltou ao quarto, toda alvoroçada; era como uma pessoa perdida de noite, num descampado - que de repente, ao longe, vê reluzir um clarão de vidraça! Estava salva! Era presenteá-la, era fartá-la! Começou logo a pensar no que lhe podia dar mais, pouco a pouco: o vestido roxo, roupas brancas, o roupão velho, uma pulseira!
Daí a dois dias - era um domingo - recebeu um telegrama de Jorge:
"Parto amanhã do Carregado. Chego pelo comboio do Porto às seis." Que sobressalto! Voltava, enfim!
Era nova, era amorosa - e no primeiro momento todos os sustos, as inquietações desapareceram sob uma sensação de amor e de desejo, que a inundou. Viria de madrugada, encontrá-la-ia deitada - e já pensava na delícia do seu primeiro beijo!...
Foi-se ver ao espelho: estava um pouco magra, talvez com a fisionomia um pouco fatigada... E a imagem de Jorge aparecia-lhe então muito nitidamente, mais queimada do sol, com os seus olhos ternos, o cabelo tão anelado! Que estranha coisa! Nunca lhe apetecera tanto vê-lo. Foi logo ocupar-se dele; o escritório estaria bem arranjado? Quereria um banho morno; seria necessário aquecer a água na tina grande!... E ia e vinha, cantarolando, com um brilho exaltado nos olhos.
Mas a voz de Juliana, de repente no corredor, fê-la estremecer. Que faria ela, a mulher? Ao menos que a deixasse naqueles primeiros dias gozar a volta de Jorge, tranqüilamente!... Veio-lhe uma audácia, chamou-a.
Juliana entrou, com o vestido de seda novo, movendo-se cuidadosamente:
- Quer alguma coisa, minha senhora?
- O Sr. Jorge volta amanhã... - disse Luísa.
E suspendeu-se; o coração batia-lhe fortemente.
- Ah! - fez Juliana. - Bem, minha senhora.
E ia sair
- Juliana! - fez Luísa, com a voz alterada.
A outra voltou-se, surpreendida.
E Luísa batendo com as mãos, num movimento suplicante:
- Mas você ao menos nestes primeiros dias... Eu hei de arranjar, esteja cena!...
Juliana acudiu logo:
- Oh, minha senhora! Eu não quero dar desgostos a ninguém. O que eu quero é um bocadinho de pão para a velhice. De minha boca não há de vir mal a ninguém. O que peço à senhora é que se for da sua vontade e me quiser ir ajudando...
- Lá isso, sim... O que você quiser..
- Pois pode, estar certa que esta boca... - E fechou os lábios com os dedos.
Que alegria para Luísa! Tinha uns dias, umas semanas, enfim, sem tormentos, com o seu Jorge! Abandonou-se então toda à deliciosa impaciência de o ver. Era singular - mas parecia-lhe que o amava mais!... - E depois pensaria, veria, daria outros presentes a Juliana, poderia pouco a pouco preparar Sebastião... Quase se sentia feliz.
De tarde Juliana veio dizer-lhe, muito risonha:
- A Sra. Joana saiu, que era hoje o seu dia, mas eu tinha tanta precisão de sair, também! Se a senhora lhe não custasse ficar só...
- Não! Fico, que tem? Vá, vá!
E, dai a pouco, sentiu-a bater os tacões no corredor, fechar com ruído a cancela.
Então de repente uma idéia deslumbrou-a, como a fulguração de um relâmpago: - ir ao quarto dela, rebuscar-lhe a arca, roubar-lhe as cartas!
Viu-a da janela dobrar a esquina. Subiu logo ao sótão, devagar, escutando, com o coração aos saltos. A porta do quarto de Juliana estava aberta; vinha de lá um cheiro de mofo, de rato e de roupa enxovalhada que a enjoou; pelo postigo entrava uma luz triste, de tarde escura; e por baixo, encostada à parede, ficava a arca! Mas estava fechada! Decerto! Desceu correndo, veio buscar o seu molho de chaves... Sentiu uma vergonha - mas se achasse as cartas! Aquela esperança deu-lhe todos os atrevimentos, como um vinho alcoólico. Começou a experimentar as chaves; a mão tremia-lhe; de repente a lingüeta, com um estalinho seco,
cedeu! Ergueu a tampa, estavam ali talvez! E então, com cautela, muito femininamente, pôs-se a tirar as coisas uma por uma, pondo-as em cima do colchão: o vestido de merino; um leque com figuras douradas, embrulhado em papel de seda; velhas fitas roxas e azuis, passadas a ferro; uma pregadeira de cetim cor-de-rosa, com um coração bordado a matiz; dois frasquinhos de cheiro, intactos, tendo colados ao vidro raminhos de rosas de papel recortado; três pares de botinas embrulhadas em jornais; a roupa branca, de onde se exalava um cheiro à madeira e de folhas de maçã camoesa. Entre duas camisas estava um maço
de cartas atadas com um nastro... Nenhuma era dela! Nem de Basílio! Eram de letra de aldeia, ininteligível e amarelada! Que raiva! E ficou a olhar para a arca vazia, de pé; com os braços tristemente caídos.
Uma sombra de repente passou diante do postigo. Estremeceu, aterrada. um gato que, com passos leves, vadiava pelo telhado. - Tornou a repor tudo as mesmas dobras, fechou a arca, ia a sair - mas lembrou-se de procurar na gaveta da mesa e debaixo do travesseiro. Nada! Impacientou-se então; não se queria ir sem ter gasto toda a esperança; desmanchou a roupa da cama, remexeu a palha amolentada do enxergão, sacudiu as velhas botinas, esgaravatou os cantos... Nada! Nada!
Subitamente, a campainha tocou. Desceu a correr. Que surpresa! Era D. Felicidade.
- És tu! Como estás tu? Entra.
Estava melhor, veio logo contando pelo corredor. Saíra na véspera da Encarnação; o pé às vezes ainda lhe fazia mal; mas graças a Deus estava escapa! E que lhe agradecesse, era a sua primeira visita!
Entraram no quarto. Escurecia. Luísa acendeu as velas.
- E como me achas tu, hem? - perguntou D. Felicidade, pondo-se diante dela.
- Um bocadito mais pálida.
Ai! Tinha sofrido muito! Ergueu a saia, mostrou o pé calçado num sapato largo; obrigou Luísa a apalpá-lo... Que uma consolação lhe restava: é que toda a Lisboa a fora ver! Graças a Deus! Toda a Lisboa; o que há de melhor em Lisboa!
- E tu esta semana - acrescentou - nem apareceste! Pois olha que te cortaram na pele...
- Não pude, filha. O Jorge chega amanhã, sabias?
- Ah, sua brejeira! Viva! Está esse coraçãozinho aos pulos! - E disse-lhe um segredinho.
Riram muito.
- Pois eu - continuou D. Felicidade sentando-se - arranjei-te hoje a partida. Encontrei esta manhã o Conselheiro, que me disse que vinha. Encontrei-o aos Mártires! Olha que foi sorte, logo no primeiro dia que saí! E um bocado adiante dou com Julião; diz que também vinha!... - E com a voz desfalecida:
- Sabes? Tomava uma colherinha de doce...
Foi Luísa que abriu a porta ao Conselheiro e a Julião, que se tinham encontrado na escada, dizendo-lhes a rir:
- Hoje sou eu o guarda-portão!
D. Felicidade, na sala, para disfarçar a perturbação que lhe deu o espetáculo amado da pessoa de Acácio, começou, falando muito, a censurá-la por deixar assim sair no mesmo dia as duas criadas...
- E se te achares incomodada, filha; se te der alguma coisa?
Luísa riu. Não era afeta a fanicos...
Todavia achavam-na abatida. E o Conselheiro, com interesse:
- Tem continuado a sofrer dos dentes, D. Luísa?
Dos dentes? Era a primeira vez que tal ouvia! - exclamou D. Felicidade. Julião declarou que raras vezes vira uma dentição tão perfeita.
O Conselheiro apressou-se a citar: - Em lábios de coral, pérolas finas..."
E acrescentou:
- É verdade, mas a última vez que tive a honra de estar com D. Luísa, viu-se tão repentinamente aflita com um dente, que teve de ir a correr chumbá-lo ao Vitry.
Luísa fez-se muito vermelha. Felizmente a campainha tocou. Devia ser a Joana; ia abrir...
- É verdade - continuou o Conselheiro - tínhamos feito um delicioso passeio, quando de repente D. Luísa empalidece, e parece que a dor era tão urgente que se precipitou para a escada do dentista, como louca...
A propósito de dores, D. Felicidade, que estava ansiosa por interessar, comover o Conselheiro, começou a história do seu pé: disse a queda, o milagre de não ter morrido, as visitas assíduas de condessas e viscondessas, o susto em toda a Encarnação, os cuidados do bom Dr. Caminha...
- Ai! Sofri muito! - suspirou, com os olhos no Conselheiro, para provocar uma palavra simpática.
Acácio, então, disse com autoridade:
- É sempre um erro, ao descer uma escada íngreme, não procurar o apoio do corrimão.
- Mas podia ter morrido! - exclamou ela. E voltando-se para Julião: - Pois não é verdade?
- Neste mundo morre-se por qualquer coisa - disse ele enterrado numa poltrona, fumando voluptuosamente. Ele mesmo estivera naquela tarde para ser atropelado por um trem; destinara o domingo para se dar um feriado, e fizera um grande passeio pela circunvalação... - Há mais de um mês vivo no meu cubículo, como um frade beneditino na livraria do seu convento! - acrescentou, rindo, quebrando complacentemente a cinza do cigarro sobre o tapete.
O Conselheiro quis saber então o assunto da tese: decerto muito momentoso!... E apenas Julião lhe disse: Sobre Fisiologia, Sr. Conselheiro", Acácio observou logo, com uma voz profunda:
- Ah! Fisiologia! Deve ser então de grande magnitude! E presta-se mais ao estilo ameno.
Queixou-se, também, de vergar ao peso dos seus trabalhos literários...
- Esperemos todavia, Sr. Zuzarte, que não sejam infrutíferas as nossas vigílias!
- As suas, Sr. Conselheiro, as suas! - E com interesse: - Quando nos dá o seu novo trabalho? Há sofreguidão em o ver!
- Há alguma sofreguidão - concordou o Conselheiro com seriedade. Há dias me dizia o senhor ministro da Justiça (esse robustíssimo talento), há dias me dizia, me fazia a honra de me dizer: Dê-nos depressa o seu livro, Acácio, estamos precisados de luz, de muita luz!" Foi assim que ele disse. Eu inclinei-me, naturalmente, e respondi: "senhor ministro, não serei eu que a negue ao meu pais, quando o meu país a necessitar!"
- Muito bem, muito bem, Conselheiro!
- E - acrescentou - dir-lhes-ei aqui em família, que o nosso ministro do reino me deixou entrever num futuro não remoto, a comenda de São Tiago!
- Já lha deviam ter dado, Conselheiro! - exclamou Julião, divertindo-se.
- Mas neste desgraçado país... Já a devia ter ao peito, Conselheiro!
- Há que tempos! - exclamou com força D. Felicidade.
- Obrigado, obrigado! - balbuciou o Conselheiro, rubro. E na expansão do seu júbilo ofereceu com uma familiaridade agradecida, a sua caixa de rapé a Julião.
- Tomarei para espirrar - disse ele.
Sentia-se naquela tarde numa disposição benévola; o trabalho e as altas esperanças que ele lhe dava tinham decerto dissipado o seu azedume; parecia até ter esquecido a sua humilhação, quando encontrara ali, naquela sala, o primo Basílio, porque apenas Luísa entrou, perguntou-lhe por ele.
- Partiu para Paris, não sabiam? Há que tempos!
D. Felicidade e o Conselheiro fizeram logo o elogio de Basílio. Tinha ido deixar bilhetes de visita a ambos - o que encantara D. Felicidade e ensoberbecera o Conselheiro. Era um verdadeiro fidalgo! - exclamava ela. E Acácio afirmou com autoridade:
- É uma voz de barítono, digna de São Carlos.
- E muito elegante! - disse D. Felicidade.
- Um gentleman! - resumiu o Conselheiro.
Julião, calado, bamboleava a perna. Agora, àqueles elogios, o seu despeito renascia; lembrava a secura cortante de Luísa, naquela manhã, as poses do outro. Não resistiu a dizer:
- Um pouco sobrecarregado nas jóias e nos bordados das meias. De resto é moda no Brasil, creio...
Luísa corou; teve-lhe ódio. E, vagamente, veio-lhe uma saudade de Basílio.
D. Felicidade então, perguntou por Sebastião: não o via havia um século; e lamentava, porque era uma pessoa que lhe dava saúde, só vê-la.
- É uma grande alma - disse com ênfase o Conselheiro. - Todavia censurava-o um pouco por não se ocupar, não se tornar útil ao seu país. - Porque enfim - declarou - o piano é uma bonita habilidade, mas não dá uma posição na sociedade. - Citou então Ernestinho, que, posto que dando-se à arte dramática, era todavia (e a sua voz tornou-se grave), segundo todas as informações, um excelente empregado aduaneiro...
Que fazia ele, Ernestinho? - perguntaram.
Julião tinha-o encontrado. Dissera-lhe que a Honra e paixão ia daí a duas semanas; já se estavam a imprimir os cartazes, e na Rua dos Condes já lhe não chamavam senão o Dumas filho português! E o pobre rapaz crê-se realmente um Dumas filho!
- Não conheço esse autor - disse com gravidade o Conselheiro - posto que me pareça, pelo nome, ser filho do escritor que se tornou famoso pelos Três mosqueteiros e outras obras de imaginação!... Mas, de resto, o nosso Ledesma é um esmerado cultor da arte dos Corneilles! Não lhe parece, D. Luísa?
- Sim - disse ela com um sorriso vago.
Parecia preocupada. Fora já duas vezes ao relógio do quarto ver as horas; quase dez, e Juliana sem voltar! Quem havia de servir o chá? Ela mesma foi pôr as chávenas no tabuleiro, armar o paliteiro. Quando voltou à sala notou um silêncio enfastiado... - Queriam que fosse tocar? - perguntou.
Mas D. Felicidade que olhava, ao pé de Julião, as gravuras do Dante, ilustrado por G. Doré, que ele folheava com o volume sobre os joelhos, exclamou, de repente:
- Ai que bonito! Que é? Muito bonito! Viste, Luísa? Luísa aproximou-se.
- É um caso de amor infeliz, senhora D. Felicidade - disse Julião. - É a história triste de Paulo e Francesca de Rimini. - E explicando o desenho: - Aquela senhora sentada é Francesca; este moço de guedelha, ajoelhado aos pés dela, e que a abraça, é seu cunhado, e, lamento ter de o dizer, seu amante. E aquele barbaças que lá ao fundo levanta o reposteiro e saca da espada, é o marido. que vem, e zás! - E fez o gesto de enterrar o ferro.
- Safa! - fez D. Felicidade, arrepiada. - E aquele livro caído o que é? Estavam a ler?...
Julião disse discretamente:
- Sim... Tinham começado por ler, mas depois... Quel giorno più non vi leggemmo avante, o que quer dizer: - "E nós não lemos mais em todo o dia!"
- Puseram-se a derriçar - disse D. Felicidade com um sorriso.
- Pior, minha rica senhora, pior! Porque segundo a mesma confissão de Francesca, este moço, o da guedelha, o cunhado, La boca me bacciò tutto tremante, o que significa: - "A boca me beijou tremendo todo..."
- Ah! - fez D. Felicidade, com um olhar rápido para o Conselheiro.
- É uma novela?
- É o Dante, D. Felicidade - acudiu com severidade o Conselheiro -, um poema épico classificado entre os melhores. Inferior, porém, ao nosso Camões! Mas rival do famoso Mílton!
- Que nessas histórias estrangeiras os maridos matam sempre as mulheres! - exclamou ela. E voltando-se para o Conselheiro: - Pois não é verdade?
- Sim, D. Felicidade, repetem-se lá fora com freqüência essas tragédias domésticas. O desenfreamento das paixões é maior. Mas entre nós, digamo-lo com orgulho, o lar é muito respeitado. Assim eu, por exemplo, em todas as minhas relações em Lisboa, que são numerosas, graças a Deus, não conheço senão esposas modelos. - E com um sorriso cortesão: - De que é decerto a flor a dona da casa.
D. Felicidade revirou os olhos para Luísa que estava encostada à cadeira dela, e batendo-lhe no braço:
- Isto é uma jóia! - disse com amor.
- E de resto - acudiu o Conselheiro - o nosso Jorge merece-o. Porque, como diz o poeta:
Seu coração é nobre, e a fronte altiva
Revela-lhe da alma a pura essência.
Aquela conversação impacientava Luísa. Ia sentar-se ao piano, quando D. Felicidade exclamou: - Dize cá, então não se toma hoje chá nesta casa?
Luísa foi outra vez à cozinha. Disse a Joana que viesse ela mesma com o chá. - E daí a pouco Joana, de avental branco, vermelha, muito atarantada, entrou com o tabuleiro.
- E a Juliana? - perguntou logo D. Felicidade.
- Saiu, coitada - explicou, Luísa -, tem andado doente...
- E anda-te então por fora até estas horas?... Boa! Até desacredita uma casa...
O Conselheiro também achava imprudente:
- Porque enfim as tentações são grandes numa capital, minha senhora!
Julião exclamou, rindo:
- Não, se aquela é tentada, descreio para sempre e totalmente, dos meus contemporâneos.
- Oh, Sr. Zuzarte! - acudiu o Conselheiro, quase severamente - referia-me a outras tentações: entrar, por exemplo, numa loja de bebidas, apetecer-lhe ir ao circo e desleixar os seus deveres...
Mas D. Felicidade não podia sofrer a Juliana: achava-lhe cara de Judas, tinha ar de ser capaz de tudo...
Luísa defendeu-a; era muito serviçal, muito boa engomadeira, muito honesta...
- E anda-te pela rua até às onze da noite!... Credo! Fosse comigo!
- E creio - observou o Conselheiro - que tem uma doença mortal. Não é verdade, Sr. Zuzarte?
- Mortal. Um aneurisma - respondeu Julião, sem levantar os olhos.
- Ainda para mais! - exclamou D. Felicidade. E abaixando a voz: - Tu o que deves fazer é descartar-te dela! Uma criada com uma doença dessas! Que até lhe pode arrebentar a vir dar um copo de água à gente. Cruzes!
O Conselheiro apoiava:
- E às vezes, que embaraços com a autoridade!
Julião fechou o Dante, e disse:
- Eu, tem-me esquecido de avisar o Jorge; mas um dia a criatura cai-lhes redonda no chão. - E sorveu um gole de chá.
Luísa estava aflita. Parecia-lhe que uma nova complicação se formava para a torturar... Pôs-se a dizer que era tão difícil arranjar criadas...
Lá isso era, concordaram.
Falaram de criados, das suas exigências. Estavam cada vez mais atrevidos! E em se lhes dando confiança! E que imoralidade!...
- Muitas vezes é culpa das amas - disse D. Felicidade. - Fazem das criadas confidentes, e isto, em elas apanhando um segredo, tornam-se as donas da casa...
As mãos trêmulas de Luísa faziam-lhe tilintar a chávena. Disse, com uma vota afetadamente risonha:
- E o Conselheiro, que tal de criados?
Acácio tossiu:
- Bem. Tenho uma pessoa respeitável, com bom paladar, muito escrupulosa em contas...
- E que não é feia - acudiu Julião. - Assim me pareceu uma vez que fui à Rua do Ferregial...
Uma vermelhidão espalhara-se pela calva do Conselheiro. D. Felicidade fitava-o ansiosamente, com a pupila chamejante. Acácio, então, disse com severidade:
- Nunca reparo para a fisionomia dos subalternos, Sr. Zuzarte.
Julião ergueu-se e enterrando as mãos nos bolsos, jovialmente:
- Foi um grande erro abolir a escravatura!...
- E o princípio da liberdade? - acudiu logo o Conselheiro. - E o Princípio da liberdade? Que os pretos eram grandes cozinheiros, concordo... Mas a liberdade é um bem maior.
Alargou-se então em considerações: fulminou os horrores do tráfico, lançou suspeitas sobre a filantropia dos ingleses, foi severo com os plantadores da Nova Orleans, contou o caso da Charles et Georges: dirigia-se exclusivamente a Julião, que fumava, cabisbaixo.
D. Felicidade fora-se sentar ao pé de Luísa e muito inquieta, falando-lhe ao ouvido:
- Tu conheces a criada do Conselheiro?
- Não.
- Será bonita?
Luísa encolheu os ombros.
- Não sei que me diz o coração, Luísa! Estou a abafar!
E enquanto Acácio, de pé, perorava para Julião, D. Felicidade ia murmurando a Luísa as queixas da sua paixão.
Que alívio para Luísa quando eles saíram! O que ela sofrera, lá por dentro, toda aquela noite! Que maçadores, que idiotas! - E a outra sem vir! Oh, que vida a sua!
Foi à cozinha dizer a Joana:
- Espere pela Juliana, tenha paciência. Que ela não pode tardar; aquilo a mulher achou-se pior!
Mas já passava de meia-noite, já Luísa estava deitada, quando a campainha tocou de leve; depois mais forte; enfim, com impaciência.
A rapariga adormeceu, pensou Luísa. Saltou da cama, subiu descalça à cozinha. Joana, estirada para cima da mesa, ressonava ao pé do candeeiro de petróleo, que fumegava fetidamente. Sacudiu-a, fê-la pôr de pé, estremunhada; voltou, correndo, deitar-se; e sentiu daí a pouco, no corredor, a voz de Juliana dizer com satisfação:
- Já está tudo acomodado, hem? Pois eu estive no teatro. Muito bonito! Do melhor, Sra. Joana, do melhor!
Luísa adormeceu tarde, e durante toda a noite um sonho inquieto agitou-a. - Estava num teatro imenso, dourado como uma igreja. Era uma gala: jóias faiscavam sobre seios mimosos, condecorações reluziam sobre fardas palacianas. Na tribuna, um rei triste e moço, imóvel numa atitude rígida e hierática, sustentava na mão a esfera armilar, e o seu manto de veludo escuro, constelado de pedrarias como um firmamento, espalhava-se em redor em pregas de escultura, fazendo tropeçar a multidão dos cortesãos vestidos como valetes de paus.
Ela estava no palco; era atriz; debutava no drama de Ernestinho; e toda nervosa via diante de si na vasta platéia sussurrante, fileiras de olhos negros e acesos, cravados nela com furor; no meio a calva do Conselheiro, de uma redondeza nevada e nobre, sobressaia, rodeada como uma flor de um vôo amoroso de abelhas. No palco oscilava a vasta decoração de uma floresta; ela notava sobretudo, à esquerda, um carvalho secular, de uma arrogância heróica -cujo tronco tinha vaga configuração de uma fisionomia, e se parecia com Sebastião.
Mas o contra-regra bateu as palmas; era esguio, parecia-se com D. Quixote, trazia óculos redondos com aros de lata; brandia o Jornal do Comércio torcido em saca-rolhas, e gania: "Salta a cenazinha de amor! Salta-se essa maravilha!" Então a orquestra, onde os olhos dos músicos reluziam como granadas e as suas cabeleiras se eriçavam como montões de estopa, tocou com uma lentidão melancólica o fado de Leopoldina; e uma voz áspera e canalha cantava em falsete:
Vejo-as nas nuvens da tarde,
Nas ondas do mar sem fim,
E por mais longe que esteja
Sinto-o sempre ao pé de mim.
Luísa achava-se nos braços de Basílio que a enlaçavam, a queimavam; toda desfalecida, sentia-se perder, fundir-se num elemento quente como o sol e doce como o mel; gozava prodigiosamente; mas, por entre os seus soluços, sentia-se envergonhada, porque Basílio repetia no palco, sem pudor, os delírios libertinos do Paraíso! Como consentia ela?
O teatro, numa aclamação imensa bradava: "Bravo! Bis! Bis!" Lenços aos milhares esvoaçavam como borboletas brancas num campo de trevo; os braços nus das mulheres lançavam com um gesto ondeado ramos de violetas dobradas; o rei erguera-se espectralmente, e, triste, arremessou como um buquê a sua esfera armilar; e o Conselheiro logo, num frenesi, para seguir os exemplos de Sua Majestade, desaparafusando rapidamente a calva, atirou-lha, com um berro de dor e de glória! O contra-regra gania: - "Agradeçam! Agradeçam!" Ela curvava-se: os seus cabelos de Madalena rojavam pelo tablado; e Basílio, a seu lado, seguia com olhos vivos os charutos que lhe atiravam, apanhando-os com a graça de um toureiro e a destreza de um clown!
Subitamente, porém, todo o teatro teve um "ah!" de espanto. Fez-se um silêncio ansioso e trágico; e todos os olhos, milhares de olhos atônitos se fitavam nó pano de fundo, onde um caramanchão arqueava a sua estrutura toda estrelada de rosinhas brancas. Ela voltou-se também como magnetizada, e viu Jorge, Jorge que se adiantava, vestido de luto, de luvas pretas, com um punhal na mão; e a lâmina reluzia - menos que os olhos dele! Aproximou-se da rampa e curvando-se, disse com uma voz graciosa:
- Real Majestade, senhor infante, senhor governador civil, minhas senhoras, e meus senhores - agora é comigo! Reparem neste trabalhinho!
Caminhou então para ela com passos marmóreos que faziam oscilar o tablado; agarrou-lhe os cabelos, como um molho de erva que se quer arrancar; Curvou-lhe a cabeça para trás; ergueu de um modo clássico o punhal; fez a pontaria ao seio esquerdo; e balançando o corpo, piscando o olho, cravou-lhe o ferro!
- Muito bonito! - disse uma voz. - Rico trabalho!
Era Basílio que fizera entrar nobremente na platéia o seu faéton! Direito na almofada, com o chapéu ao lado, uma rosa na sobrecasaca, continha com a mão negligente a inquietação soberba dos seus cavalos ingleses; e ao seu lado, sentado como um trintanário coberto das suas vestes sacerdotais, vinha o patriarca de Jerusalém! - Mas Jorge arrancara o punhal todo escarlate; as gotas de sangue corriam até a ponta, coalhavam; caíam depois com um som cristalino, punham-se a rolar pelo tablado como continhas de vidro vermelho. Ela deitara-se, expirante, sob o carvalho que se parecia com Sebastião; então, como a terra era dura, a árvore estendeu por baixo dela as suas raízes, macias como coxins de penas; como o sol a mordia, a árvore desdobrou sobre ela as suas ramagens, como os panos de uma tenda; e das folhas deixava-lhe escorrer sobre os lábios gotas de vinho da Madeira! Ela via no entanto com terror o seu sangue sair da ferida, vermelho e forte, correr, alastrar-se, fazendo poças aqui, ribeirinhos tortuosos além. E ouvia a platéia berrar:
- O autor! Fora o autor!
Ernestinho, muito frisado, pálido, apareceu; agradecia soluçando; e, às cortesias, saltava aqui, acolá - para não sujar no sangue da prima Luísa os seus sapatinhos de verniz...
Sentiu que ia morrer! Uma voz disse vagamente: - Olá, como vai isso? - Parecia-lhe de Jorge. De onde vinha? Do céu? Da platéia? Do corredor? Um ruído forte, como de uma mala que se deixa cair, acordou-a. Sentou-se na cama.
- Bem, deixe aí - disse a voz de Jorge.
Saltou em camisa. Ele entrava. E ficaram enlaçados, num longo abraço, os beiços colados, sem uma palavra. O relógio do quarto dava sete horas.
CAPÍTULO X
Nesse dia pela uma hora Jorge e Luísa acabavam de almoçar, como na véspera da partida dele. Mas agora não pesava a faiscante inclemência da calma; as janelas estavam abertas ao sol amável de outubro; já passavam no ar certas frescuras outonais; havia uma palidez meiga na luz; à tardinha já sabiam bem os paletós; e tons amarelados começavam a envelhecer as verduras.
- Que bom achar-se a gente outra vez no seu ninho! - disse Jorge, estirando-se na voltaire.
Estivera contando a Luísa a sua viagem. Tinha trabalhado como um mouro, e tinha ganho dinheiro! Trazia os elementos de um belo relatório; criara amigos naquela boa gente do Alentejo; estavam acabadas as soalherias, as cavalgadas pelos montados, os quartos de hospedaria; e ali estava enfim na sua casinha. E como na véspera da sua partida, soprava o fumo do cigarro, cofiando com delícias o bigode - porque tinha cortado a barba! Fora a grande admiração de Luísa, quando o viu. Ele explicara, com humilhação e melancolia, que tivera um furúnculo no queixo, com o calor...
- Mas que bem te fica! - tinha ela dito - que bem que te fica!
Jorge trouxera-lhe como presente seis pratos de louça da China, muito antigos, com mandarins bojudos, de túnicas esmaltadas, suspensos majestosamente no ar azulado; uma preciosidade que descobrira em casa de umas velhas miguelistas, em Mértola. Luísa dispunha-os muito decorativamente nas prateleiras guarda-louça; e em bicos de pés, com a larga cauda do seu roupão estendida por trás, a massa loura do cabelo pesado, um pouco desmanchado sobre as costas - parecia a Jorge mais esbelta, mais irresistível, e nunca a sua cinta fina lhe atraíra tanto os braços.
- A última vez que aqui almocei, antes de partir, foi um domingo, lembras-te?
- Lembro - disse Luísa sem se voltar, colocando muito delicadamente um prato.
- E é verdade - perguntou Jorge de repente - teu primo? Viste-lo? Veio ver-te?
O prato escorregou, houve um tlintlim de copos.
- Sim, veio - disse Luísa, depois de um silêncio - esteve aí umas vezes. Demorou-se pouco...
Abaixou-se, abriu o gavetão do guarda-louça, esteve a remexer nas colheres de prata; ergueu-se enfim, voltou-se com um sorriso, vermelha, sacudindo as mãos:
- Pronto!
E foi sentar-se nos joelhos de Jorge.
- Como te fica bem! - dizia, torcendo-lhe o bigode. Admirava-o, de um modo ardente. Quando se atirara aos seus braços naquela madrugada, sentira como abrir-se-lhe o coração, e um amor repentino revolver-lho deliciosamente; viera-lhe um desejo de o adorar perpetuamente, de o servir, de o apertar nos braços até lhe fazer mal, de lhe obedecer com humildade; era uma sensação múltipla, de uma doçura infinita, que a traspassara até às profundidades do seu ser. E passando-lhe um braço pelo pescoço, murmurava com um movimento de uma adulação quase lasciva:
- Estás contente? Sentes-te bom? Dize!
Nunca lhe parecera tão bonito, tão bom; a sua pessoa depois daquela separação dava-lhe as admirações, os enlevos de uma paixão nova.
- É o Sr. Sebastião - veio dizer Juliana toda risonha para Jorge.
Jorge deu um pulo, afastou Luísa bruscamente, atirou-se pelo corredor gritando:
- Aos meus braços! Aos meus braços, celerado!
Daí a dias, uma manhã que Jorge saíra para o ministério, Juliana entrou no quarto de Luísa, e fechando a porta devagarinho, com uma voz muito amável:
- Eu desejava falar à senhora numa coisa.
E começou a dizer - que o seu quarto em cima no sótão era pior que uma enxovia; que não podia lá continuar; o calor, o mau cheiro, os percevejos, a falta de ar, e no inverno a umidade, matavam-na! Enfim, desejava mudar para baixo, quarto dos baús.
O quarto dos baús tinha uma janela nas traseiras; era alto e espaçoso; guardavam-se ali os oleados de Jorge, as suas malas, os paletós velhos, e veneráveis baús do tempo da avó, de couro vermelho com pregos amarelos.
- Ficava ali como no céu, minha senhora!
- E... aonde se haviam de pôr os baús?
- No meu quarto, em cima. E com um risinho: - Os baús não são gente, não sofrem...
Luísa disse um pouco embaraçada:
- Bem, eu verei; eu falarei ao Sr. Jorge.
- Conto com a senhora.
Mas apenas nessa tarde Luísa explicou a Jorge "a ambição da pobre de Cristo", ele deu um salto:
- O quê? Mudar os baús? Está doida!
Luísa então insistiu: era o sonho da pobre criatura desde que viera para casa! Enterneceu-o. Não, ele não imaginava; ninguém imaginava o que era o quarto da pobre mulher! O cheiro empestava; os ratos passeavam-lhe pelo corpo, o forro estava roto, chovia dentro; fora lá há dias, e ia tombando para o lado...
- Santo Deus! Mas isso é o que minha avó contava das enxovias de Almeida! Muda-a, muda-a depressa, filha!... Porei os meus ricos baús no sótão.
Quando Juliana soube o favor:
- Ai, minha senhora, é a vida que me dá! Deus lho pague! Que eu não tinha saúde para viver num cacifo daqueles.
Ultimamente queixava-se mais; andava amarela, trazia os beiços um pouco arroxeados; tinha dias de uma tristeza negra, ou de uma irritabilidade mórbida; os pés nunca lhe aqueciam. Ah! Precisava muitos cuidados, muitos cuidados!...
Foi por isso que daí a dois dias veio pedir a Luísa, se fazia o favor de ir ao quarto dos baús. E lá, mostrando-lhe o soalho velho e carunchoso:
- Isto não pode ficar assim, minha senhora, isto precisa uma esteira senão, não vale a pena mudar. Eu se tivesse dinheiro não importunava a senhora, mas...
- Bem, bem, eu arranjarei - disse Luísa com uma voz paciente.
E pagou a esteira, sem dizer nada a Jorge. Mas na manhã em que os esteireiros a pregavam, Jorge veio perguntar atônito a Luísa o que era aquilo, rolos de esteira no corredor?"
Ela pôs-se a rir; pousou-lhe as mãos sobre os ombros:
- Foi a pobre Juliana que pediu como uma esmola a esteira, que o soalho estava podre. Até a queria pagar, e que eu lha descontasse nas soldadas. Ora por uma ridicularia... - E com um gesto compassivo: - Também são criaturas de Deus; não são escravas, filho!
- Magnífico! E que não tardem os espelhos e os bronzes! Mas que mudança foi essa, tu que a não podias ver?
- Coitada! - fez Luísa - reconheci que era boa mulher. E como estive tão só, dei-me mais com ela. Não tinha com quem falar; fez-me muita companhia. Até quando estive doente...
- Estiveste doente? - exclamou Jorge espantado.
- Oh! Três dias, só - acudiu ela - uma constipação. Pois olha que dia e noite não se tirou de ao pé de mim.
Luísa ficou com receio que Jorge falasse na doença, e Juliana desprevenida negasse, por isso, nessa tarde, ao escurecer chamou-a ao quarto:
- Eu disse ao Sr. Jorge que você me tinha feito muito boa companhia na doença... - E o seu rosto abrasava-se de vergonha.
Juliana logo, risonha, contente da cumplicidade:
- Fico entendida, minha senhora! Pode estar sossegada!
Com efeito Jorge, ao outro dia, depois do café, voltou-se para Juliana, e com bondade:
- Parece que você fez boa companhia à Sra. Luísa.
- Fiz o meu dever - exclamou, curvando-se com a mão no peito.
- Bem, bem - fez Jorge, remexendo no bolso. E ao sair da sala meteu-na mão meia libra.
- Palerma! - rosnou ela.
Foi nessa semana que começou a queixar-se à Luísa, que a roupa e os vestidos, na arca, se lhe amarfanhavam... Estava-se-lhe a estragar tudo! Se ela tivesse dinheiro, não vinha com aqueles pedidos à senhora, mas... Enfim uma manhã declarou terminantemente que precisava uma cômoda.
Luísa sentiu uma raiva acender-lhe o sangue, e sem levantar os olhos do bordado
- Uma meia cômoda?
- Se a senhora quer fazer o favor, então uma cômoda inteira...
- Mas você tem pouca roupa - disse Luísa. Começava a instalar-se na humilhação e já regateava as condescendências.
A cômoda foi comprada em segredo, e introduzida ocultamente. Que dia de felicidade para Juliana! Não se fartava de lhe saborear o cheiro da madeira nova! Passava a mão, com a tremura de uma carícia, sobre o polimento luzidio!... Forrou-lhe as gavetas de papel de seda; e começava a completar-se!
Foram semanas de amargura para Luísa.
Juliana entrava no quarto todas as manhãs, muito cumprimenteira, começava a amimar, e de repente com uma voz lamentosa:
- Ai! Estou tão falta de camisas! Se a senhora me pudesse ajudar...
Luísa ia às suas gavetas cheias, cheirosas, e começava melancolicamente a pôr à parte as peças mais usadas. Adorava a sua roupa branca; tinha tudo às dúzias, com lindas marcas, sachês para perfumar; e aquelas dádivas dilaceravam-se com mutilações! Juliana por fim já pedia com secura, com direito:
- Que bonita que esta camisinha! - dizia simplesmente. - A senhora a quer, não?
- Leve, leve! - dizia Luísa sorrindo, por orgulho, para não se mostrar violentada.
E todas as noites Juliana fechada no seu quarto, encruzada na esteira, inchada de alegria, com o candeeiro sobre uma cadeira, desmarcava roupa, desfazendo as duas letras de Luísa, marcando regaladamente as suas, a linha vermelha, enormes - J C T - Juliana Couceiro Tavira!
Mas enfim cessou, porque, como ela dizia, de roupa branca estava como um ovo.
- Agora, se a senhora me quiser ajudar com alguma coisa para sair...
E Luísa começou a vesti-la.
Deu-lhe um vestido roxo de seda, um casaco de casimira preta, com bordados a sutache. E receando que Jorge estranhasse as generosidades, transformava-as para ele as não reconhecer; mandou tingir de castanho o vestido; ela mesma por sua mão pôs uma guarnição de veludo no casaco. Trabalhava para ela, agora! Como acabaria tudo aquilo, Santo Deus?
Todavia Jorge um domingo disse ao jantar, rindo:
- Esta Juliana anda uma janota! Prospera a olhos vistos.
D. Felicidade, à noite, também notou:
- Que chique! Nem uma criada do paço!
- Coitada! Coisas que ela aproveita...
Prosperava, com efeito! Não punha na cama senão lençóis de linho. Reclamara colchões novos, um tapete para os pés da cama, felpudo! Os sachês que perfumavam a roupa de Luísa iam passando para a dobra das suas calcinhas. Tinha cortinas de cassa na janela, apanhadas com velhas fitas de seda azul; e sobre a cômoda dois vasos da Vista Alegre dourados! Enfim um dia santo, em lugar da cuia de retrós, apareceu com um chignon de cabelos!
Joana pasmava daquelas tafularias. Atribuía-as à bondade da senhora, e ressentia-se de ser "esquecida". Um dia mesmo, que Juliana estreara uma sombrinha, disse diante de Luísa, com uma voz de despeito:
- Para umas tudo, para outras nada!...
Luísa riu, acudiu:
- Tolices! Eu sou a mesma pra todas.
Mas refletiu: Joana podia ter desconfianças também, ter ouvido alguma coisa a Juliana... E logo ao outro dia, para a conservar contente e amiga, deu-lhe dois lenços de seda, depois dois mil réis para um vestido; e daí por diante nunca lhe recusou licença para sair à noitinha à casa de uma tia...
A Joana ia por toda a parte falando da senhora, que era um anjo. Na rua, de resto, tinha-se notado o luxo de Juliana. Sabia-se do "quarto novo", dizia-se baixo que tinha alcatifa! O Paula decidira, com indignação, que ali positivamente havia marosca.
Mas Juliana uma tarde, diante do Paula e da estanqueira, explicou, acalmou as suspeitas.
- Ora! Dizem que tenho isto e aquilo. Não é tanto! Tenho as minhas comodidades. Mas também a maneira como eu lhes tratei a tia, de dia e de noite, sem arredar pé... Por mais que façam não me pagam, que arruinei a minha saúde!
Assim se justificou a prosperidade de Juliana. Era a família agradecida, dizia-se; tratavam-na como parenta!
E, pouco a pouco, a casa do Engenheiro teve para os criados da vizinhança a vaga sedução de um paraíso; dizia-se que as soldadas eram enormes, havia vinho à discrição, recebiam-se presentes todas as semanas, ceava-se todas as noites caldo de galinha! Cada um invejava aquela "pechincha". Pela inculcadeira, a fama da casa do Engenheiro alargou-se. Criou-se uma legenda.
Jorge, atônito, recebia todos os dias cartas de pessoas oferecendo-se para criados de quarto, criadas de dentro, cozinheiros, escudeiros, governantas, cocheiros, guarda-portões, ajudantes de cozinha... Citavam as casas titulares de que tinham saído; pediam audiência; suspeitando certas coisas uma bonita criada de quarto juntou a sua fotografia; um cozinheiro trouxe uma carta de empenho do diretor-geral do ministério.
- Estranho caso! - dizia Jorge, pasmado - disputam-se a honra de me servir! Imaginarão que me saiu a sorte grande?
Mas não dava muita atenção àquela singularidade. Vivia então muito ocupado; andava escrevendo o seu relatório; e todos os dias saía ao meio-dia, voltava às seis com rolos de papéis, mapas, brochuras, fatigado, berrando pelo jantar, radiante.
Contou o caso, todavia, rindo, um domingo à noite. O Conselheiro observou logo.
- Com o bom gênio de D. Luísa, com o seu, Jorge, neste bairro saudável, numa casa sem escândalos, sem questões de família, toda virtude, é natural que a criadagem menos favorecida aspire a uma posição tão agradável.
- Somos os amos ideais! - disse Jorge, batendo muito alegre no ombro.
A casa, com efeito, tornava-se agradável. Juliana exigira que o jantar fosse mais largo (para ter uma parte sua, sem sobejos), e como era boa cozinheira, vigiava os fogões, provava, ensinava pratos à Joana.
- Esta Joana é uma revelação - dizia Jorge - vê-se-lhe crescer o talento.
Juliana, bem alojada, bem alimentada, com roupa fina sobre a pele, colchões macios, saboreava a vida; o seu temperamento adoçara-se naquelas abundâncias; depois, bem aconselhada pela tia Vitória, fazia o seu serviço com um zelo minucioso e hábil. Os vestidos de Luísa andavam cuidados como relíquias. Nunca os peitilhos de Jorge tinham resplandecido tanto! O sol de outubro alegrava a casa, muito asseada, de uma pacatez de abadia. Até o gato engordava.
E no meio daquela prosperidade - Luísa definhava-se. Até onde iria a tirania de Juliana? Era agora o seu terror. E como a odiava! Seguia-a por vezes com um olhar tão intensamente rancoroso, que receava que ela se voltasse subitamente, como ferida pelas costas. E via-a satisfeita, cantarolando a Carta Adorada, dormindo em colchões tão bons como os seus, pavoneando-se na sua roupa, reinando na sua casa! Era justo, justos céus?
Às vezes vinha-lhe uma revolta, torcia os braços, blasfemava, debatia-se na sua desgraça, como nas malhas de uma rede; mas, não encontrando nenhuma solução, recaía numa melancolia áspera - em que o seu gênio se pervertia. Seguia com satisfação a amarelidão crescente das feições de Juliana; tinha esperanças no aneurisma: não rebentaria um dia, o demônio?
E diante de Jorge tinha de a elogiar!
A vida pesava-lhe. Apenas ele pela manhã saía e fechava a cancela, logo as suas tristezas, os seus receios lhe desciam sobre a alma, devagar, como grandes véus espessos que se abatem lugubremente; não se vestia então até às quatro, cinco horas, e com o roupão solto, em chinelas, despenteada, arrastava o seu aborrecimento pelo quarto. Vinham-lhe, por momentos, de repente, desejos de fugir, ir meter-se num convento! A sua sensibilidade muito exaltada impeli-la-ia decerto a alguma resolução melodramática - se a não retivesse, com a força de uma sedução permanente, o seu amor por Jorge. Porque o amava agora, imensamente! Amava-o com cuidados de mãe, com ímpetos de concubina... Tinha ciúmes de tudo, até do ministério, até do relatório! Ia interrompê-lo a cada momento, tirar-lhe a pena da mão, reclamar o seu olhar, a sua voz; e os passos dele no corredor davam-lhe o alvoroço dos amores ilegítimos...
De resto ela mesma se esforçava por desenvolver aquela paixão, achando nela a compensação inefável das suas humilhações. Como lhe viera aquilo? Porque sempre o amara, decerto, reconhecia-o agora - mas não tanto, não tão exclusivamente! Nem ela sabia. Envergonhava-se mesmo, sentindo vagamente naquela violência amorosa pouca dignidade conjugal; suspeitava que o que tinha era apenas um capricho. Um capricho por seu marido! Não lhe parecia rigorosamente casto... Que lhe importava, de resto? Aquilo fazia-a feliz, prodigiosamente. Fosse o que fosse, era delicioso!
Ao princípio a idéia do outro pairava constantemente sobre esse amor, pondo um gosto infeliz em cada beijo, um remorso em cada noite. Mas pouco a pouco esquecera-o tanto, o outro - que a sua recordação, quando por acaso voltava, não dava mais amargor à nova paixão, que um torrão de sal pode dar às águas de uma torrente. Que feliz que seria - se não fosse a infame!
Era a infame que se sentia feliz! Às vezes só no seu quarto, punha-se a olhar em redor com um riso de avaro: desdobrava, batia os vestidos de seda; punha as botinas em fileira, contemplando-as de longe, extática; e debruçada sobre as gavetas abertas da cômoda contava, recontava a roupa branca, acariciando-a com o olhar de posse satisfeita. Como a da Piorrinha! - murmurava, afogada em júbilo.
- Ai! Estou muito bem! - dizia ela à tia Vitória.
- Que dúvida que estás! A carta não te rendeu um conto de réis, mas olha que te trouxe um par de regalos. E é que há de ser uma pingadeira; há de ser a boa peça de linho, o bom adereço, boas moedas... E ainda muito obrigada por cima. Carda-a; filha, carda-a!
Mas já havia pouco que cardar. E lentamente Juliana começou a pensar, que agora o que devia era gozar. Se tinha bons colchões - para que se havia de levantar cedo? Se tinha bons vestidos - por que não havia de ir espairecer para a rua? Toca a tirar partido!
Uma manhã que estava mais frio deixou-se ficar na cama até às nove horas, as janelas entreabertas, um bom raio de sol na esteira. Depois explicou secamente, que tinha estado com a dor. Daí a dois dias Joana, às dez horas, veio dizer baixo a Luísa:
- A Sra. Juliana ainda está na cama; está tudo por arrumar. Luísa ficou aterrada. O quê? Teria de sofrer os seus desmazelos, como as suas exigências?
Foi ao quarto dela:
- Então você levanta-se a estas horas?
- Foi o que me recomendou o médico - replicou muito insolente.
E daí por diante Juliana poucas vezes se erguia antes da hora de servir ao almoço. Luísa pediu logo a Joana que fizesse o serviço por ela: era por pouco tempo; a pobre criatura andava tão adoentada! E para acomodar a cozinheira deu-lhe meia moeda, para a ajuda de um vestido.
Juliana depois sem pedir licença, começou a sair. Quando voltava tarde para o jantar, não se desculpava.
Um dia Luísa não se conteve; disse-lhe, vendo-a passar no corredor e calçar as luvas pretas:
- Você vai sair?
Ela respondeu, muito atrevidamente:
- É como vê. Fica tudo arrumado, tudo o que é minha obrigação. E abalou, batendo os tacões.
Ora, não lhe faltava mais nada senão estar a constranger-se por causa da Piorrinha!
Joana começava a resmungar: "passa a sua vida na rua a Sra. Juliana e eu é que agüento..."
- Se você estivesse doente, também ninguém lhe ia à mão - acudiu Luísa; aflita, quando percebia estas revoltas. E presenteava-a. Dava-lhe mesmo vinho e sobremesa.
Havia agora um desperdício na casa. Os róis cresciam. Luísa andava sucumbida. - Como acabaria tudo aquilo?
Os desleixos de Juliana iam-se tornando graves.
Para sair mais cedo fazia apenas o essencial. Era Luísa que acabava de encher os jarros, que levantava muitas vezes a mesa do almoço, que levava para o sótão roupa suja que ficava pelos cantos...
Um dia Jorge que entrara às quatro horas, viu por acaso a cama por fazer. Luísa apressou-se a dizer que Juliana saíra, mandara-a ela à modista.
Daí a dias, eram seis horas, ainda não tinha voltado para servir ao jantar. Tinha ido à modista..., explicou Luísa.
- Mas se a Juliana é unicamente para ir à modista, então toma-se outra criada para fazer o serviço da casa - disse ele. Àquelas palavras secas Luísa fez-se pálida; duas lágrimas rolaram-lhe pela face
Jorge ficou pasmado. Que era? Que tinha? Luísa não se dominou, rompeu choro nervoso, histérico.
- Mas que é, minha filha, que tens? Zangaste-te?...
Ela não podia responder, sufocada. Jorge fez-lhe respirar vinagre de toalete, beijou-a muito.
Só quando o choro acalmou é que ela pôde dizer, com voz soluçada:
- Falaste-me tão secamente, e eu estou tão nervosa...
Ele riu, chamou-lhe tontinha, limpou-lhe as lágrimas - mas ficou inquieto.
Já então lhe notara certas tristezas, abatimentos inexplicáveis, uma irritabilidade nervosa... Que seria?
Para que Jorge não tornasse a surpreender os desleixos, Luísa começou a completar todas as manhãs os arranjos. Juliana percebeu logo; e muito tranqüilamente decidiu-se a deixar-lhe de cada vez mais com que se entreter. Ora não varria, depois não fazia a cama; enfim uma manhã não vazou as águas sujas. Luísa foi espreitar no corredor que Joana não descesse, não a visse, e fez ela mesma os despejos! Quando veio ensaboar as mãos, as lágrimas corriam-lhe pelo rosto. Desejava morrer!... A que tinha chegado!...
D. Felicidade, um dia, tendo entrado de repente, surpreendera-a a varrer a sala.
- Que eu o faça - exclamou - que tenho só uma criada, mas tu!...
- A Juliana tinha tanto que engomar...
- Ai! Não lhe tires serviço do corpo, que não to agradece. E ainda se ri por cima! Se a pões em maus costumes!... Que agüente, que agüente!
Luísa sorriu, disse:
- Ora, por uma vez na vida!
A sua tristeza aumentava cada dia.
Refugiava-se então no amor de Jorge como na sua única consolação. A noite trazia-lhe a sua desforra; Juliana a essa hora dormia; não via a sua cara medonha; não a receava; não tinha de a elogiar; não trabalhava por ela! Era ela mesma, era Luísa, como dantes! Estava na sua alcova, com o seu marido, fechada por dentro, livre! Podia viver, rir, conversar, ter até apetite! E trazia com efeito às vezes marmelada e pão para o quarto - para fazer uma ceiazinha!
Jorge estranhava-a. "Tu de noite és outra", dizia. Chamava-lhe "ave noturna". Ela ria em saia branca pelo quarto, com os braços nus, o colo nu, o cabelo num rolo; e passarinhava, cantarolava, chalrava - até que Jorge lhe dizia:
- Passa da uma hora, filha!
Despia-se então rapidamente, caía-lhe nos braços.
Mas que acordar! Por mais clara que estivesse a manhã, tudo lhe parecia vagamente pardo. A vida sabia-lhe má. Vestia-se devagar, com repugnância - entrando no seu dia como numa prisão.
Perdera agora toda a esperança de se libertar! Às vezes ainda lhe vinha, como um relâmpago, a vontade de contar tudo a Sebastião, tudo. Mas quando o via, com o seu olhar honesto, abraçar Jorge, rirem ambos, e irem fumar o seu cachimbo, e ele tão cheio sempre de admiração por ela, parecia-lhe mais fácil sair para a rua, pedir dinheiro ao primeiro homem que encontrasse - que ir a Sebastião, ao íntimo de Jorge, ao melhor amigo da casa, dizer-lhe: "Escrevi uma carta a um homem, a criada roubou-ma!" Não, antes morrer naquela agonia de todos os dias, e ter ela mesma, de rastos, de lavar as escadas! As vezes refletia, pensava: - "Mas com que conto eu? -" Não sabia. Com o acaso, com a morte de Juliana... E deixava-se viver, gozando como um favor cada dia que vinha sentindo vagamente, à distância, alguma coisa de indefinido e de tenebroso onde se afundaria!
Por esse tempo Jorge começou a queixar-se que as suas camisas andavam mal-gomadas. A Juliana positivamente "perdia a mão". Um dia mesmo zangou-se; chamou-a, e atirando-lhe uma camisa toda amarrotada:
- Isto não se pode vestir, está indecente!
Juliana fez-se amarela; cravou em Luísa um olhar chamejante; mas, com os beiços trêmulos, desculpou-se: a goma era má, fora já trocá-la, etc.
Apenas, porém, Jorge saiu, veio como uma rajada ao quarto, fechou a porta e pôs-se a gritar - que a senhora sujava um ror de roupa, o senhor um ror de camisas, que se não tivesse alguém que a ajudasse não podia dar aviamento!... Quem queria negras trazia-as do Brasil!
- E não estou para aturar o gênio do seu marido, percebe a senhora? Se quer é arranjar quem me ajude.
Luísa disse simplesmente:
- Eu a ajudarei.
Tinha agora uma resignação muda, sombria, aceitava tudo!
Logo no fim da semana houve uma grande trouxa de roupa; e Juliana veio dizer que se a senhora passasse, ela engomava. Senão, não!
Estava um dia adorável; Luísa tencionava sair... Pôs um roupão, e, sem uma palavra, foi buscar o ferro.
Joana ficou atônita.
- Então a senhora vai engomar?
- Há uma carga, e a Juliana só não pode aviar tudo, coitada!
Instalou-se no quarto dos engomados - e estava laboriosamente passando a roupa branca de Jorge, quando Juliana apareceu, de chapéu.
- Você vai sair? - exclamou Luísa.
- É o que eu vinha dizer à senhora. Não posso deixar de sair. - E abotoava as luvas pretas.
- Mas as camisas, quem as engoma?
- Eu vou sair - disse a outra secamente.
- Mas, com os diabos, quem engoma as camisas?
- Engome-as a senhora! Olha a sarna!
- Infame! gritou Luísa. Atirou o ferro para o chão, saiu impetuosamente.
Juliana sentiu-a ir pelo corredor aos soluços.
Pôs-se logo a tirar o chapéu e as luvas, assustada. Daí a um momento ouviu a cancela da rua bater com força. Veio ao quarto, viu o roupão de Luísa arremessado, a chapeleira tombada. Onde teria ido? Queixar-se à polícia? Procurar o marido? Com os diabos! Fora estúpida, com o gênio! Arrumou depressa o quarto; foi-se pôr a engomar, com o ouvido à escuta, muito arrependida. Onde diabo teria ido? Devia ter cuidado! Se a impelisse a fazer algum despropósito, quem perdia? Ela, que teria de sair da casa, deixar o seu quarto, os seus regalos, a sua posição! Safa!
Luísa saíra, como louca. Na Rua da Escola um cupê passava, vazio: atirou-se para dentro, deu ao cocheiro a morada de Leopoldina. Leopoldina devia ter voltado do Porto; queria vê-la, precisava dela, sem saber para quê... Para desabafar! Pedir-lhe uma idéia, um meio de se vingar! Porque a vontade de se libertar daquela tirania - era agora menor que o desejo de se vingar daquelas humilhações. Vinham-lhe idéias insensatas! Se a envenenasse! Parecia-lhe que sentiria um prazer delicioso em a ver torcer-se com vômitos dilacerantes, uivando de agonia, largando a alma!
Galgou as escadas de Leopoldina; a campainha ficou a retinir muito tempo do puxão da sua mão febril.
A Justina apenas a viu foi a gritar pelo corredor:
- É a senhora D. Luísa, minha senhora, é a senhora D. Luísa!
E Leopoldina despenteada, com um roupão escarlate de grande cauda, correu estendendo os braços:
- És tu! Que milagre é este? Eu levantei-me agora! Entra cá para o quarto. Está tudo desarranjado, mas não importa. Mas que é isto, que é isto?
Abriu as janelas que estavam ainda cerradas. Havia um forte cheiro de vinagre de toalete; a Justina tirava à pressa uma bacia de latão, com água ensaboada; toalhas sujas arrastavam; sobre uma jardineira tinham ficado da véspera os rolos de cabelos, o colete, uma chávena com um fundo de chá cheio de pontas de cigarros. E Leopoldina corria o transparente, dizendo:
- Ora graças a Deus que honras esta casa, minha fidalga!...
Mas vendo o rosto perturbado de Luísa, os seus olhos vermelhos de lágrimas:
- Que é? Que tens tu? Que sucedeu?
- Um horror, Leopoldina! - exclamou, apertando as mãos. A outra foi fechar a porta, rapidamente.
- Então?
Mas Luísa chorava sem responder. Leopoldina olhava-a petrificada.
- A Juliana apanhou-me umas cartas! - disse enfim por entre soluços. - Quer seiscentos mil réis! Estou perdida... Tem-me martirizado... Quero que me digas, vê se te lembras... Estou como doida. Sou eu que faço tudo em casa... Morro, não posso! - E as lágrimas redobravam.
- E as tuas jóias?
- Valem duzentos mil réis. E Jorge, que lhe havia eu de dizer?
Leopoldina ficou um momento calada, e olhando em roda de si, abrindo os braços:
- Tudo o que eu tenho, no prego, minha filha, dá vinte libras!...
Luísa murmurava, limpando os olhos:
- Que expiação esta, Santo Deus, que expiação!
- Que diz a carta?
- Horrores! Estava doida... É uma minha, duas dele.
- De teu primo?
Luísa disse "sim", com a cabeça, lentamente.- E ele?
- Não sei! Está em França, nunca me respondeu.
- Pulha! Como tas apanhou, a mulher?
Luísa contou rapidamente a história do sarcófago, e do cofre.
- Mas tu também, Luísa, atirar uma carta dessas! Oh, mulher, isso é medonho!
E Leopoldina pôs-se a passear pelo quarto, arrastando a longa cauda do roupão escarlate; os seus grandes olhos negros, excitados, pareciam procurar um meio, um expediente... Murmurava:
- A questão é de dinheiro...
Luísa, prostrada no sofá, repetia:
- A questão é de dinheiro!
Então Leopoldina, parando bruscamente diante dela:
- Eu sei quem te dava o dinheiro!...
- Quem?
- Um homem.
Luísa ergueu-se, espantada:
- Quem?
- O Castro.
- O de óculos?
- O de óculos.
Luísa fez-se muito corada:
- Oh, Leopoldina! - murmurou. E depois de um silêncio, rapidamente.
- Quem to disse?
- Sei-o eu. Disse-o ele ao Mendonça. Sabes que eram unha e carne. Que te dava tudo o que tu lhe pedisses! Disse-lho mais de uma vez.
- Que horror! - exclamou Luísa subitamente indignada. - E tu propões me semelhante coisa? - O seu olhar, sob as sobrancelhas franzidas, dardejava de cólera. Ir com um homem por dinheiro! - Tirou o chapéu, violentamente, com as mãos trêmulas; arremessou-o para a jardineira, e com passos rápidos pelo quarto: - Antes fugir, ir para um convento, ser criada, apanhar a lama das ruas!
- Não te exaltes, criatura! Quem te diz isso? Talvez o homem te emprestasse` o dinheiro, desinteressadamente...
- Acreditas tu?
Leopoldina não respondeu: com a cabeça baixa, fazia girar os anéis nos dedos.
- E quando fosse outra coisa? - exclamou de repente. - Era um conto de réis, eram dois, estavas salva, estavas feliz!
Luísa sacudiu os ombros, indignada daquelas palavras - dos seus próprios pensamentos, talvez!
- É indecente! É horrível! - dizia.
Ficaram caladas.
- Ah! fosse eu!... - disse Leopoldina.
- Que fazias?
- Escrevia ao Castro, que viesse e com dinheiro!
- Isso és tu! - exclamou Luísa, arrebatadamente.
Leopoldina fez-se escarlate sob a camada de pó-de-arroz.
Mas Luísa atirou-lhe os braços ao pescoço:
- Perdoa-me, perdoa-me! Estou doida, não sei o que digo!...
Começaram ambas a chorar, muito nervosas.
Tu zangaste-te! - dizia Leopoldina cortada de soluços. - Mas é pra teu bem. É o que me parece melhor. Se eu pudesse dava-te o dinheiro... Fazia tudo. Acredita!
E abrindo os braços, indicando o seu corpo com um impudor sublime:
- Seiscentos mil réis! Se eu valesse tanto dinheiro, tinha-o amanhã!
Nós de dedos bateram à porta.
- Quem é?
- Eu - disse uma voz rouca.
- É meu marido. O animal ainda hoje não despegou de casa. Não posso abrir. Logo.
Luísa limpava os olhos, à pressa, punha o chapéu.
- Quando voltas? - perguntou Leopoldina.
- Quando puder, se não escrevo-te.
- Bem. Eu vou pensar, vou esquadrinhar...
Luísa agarrou-lhe o braço:
- E disto nem palavra.
- Doida!
Saiu. Foi subindo devagar até ao Largo de São Roque. A porta da Igreja da Misericórdia estava aberta, com o seu largo reposteiro vermelho de armas bordadas que o vento agitava brandamente. Veio-lhe um desejo de entrar. Não sabia para quê; mas parecia-lhe que depois da excitação apaixonada em que vibrara, o fresco silêncio da igreja a acalmaria. E depois sentia-se tão infeliz que se lembrou de Deus! Necessitava alguma coisa de superior, de forte a que se amparar. Foi-se ajoelhar ao pé de um altar, persignou-se, rezou o padre-nosso, depois a salve-rainha. Mas aquelas orações, que ela recitava em pequena, não a consolavam; sentia que eram sons inertes que não iam mais alto no caminho do céu que a sua mesma respiração; não as compreendia bem, nem se aplicavam ao seu caso; Deus, por elas, nunca poderia saber o que ela pedia, ali, prostrada na aflição. Quereria falar a Deus, abrir-se toda a Ele; mas com que linguagem? Com as palavras triviais, como se falasse a Leopoldina! Iriam as suas confidências tão longe que O alcançassem? Estaria Ele tão perto que a ouvisse? E ficou ajoelhada, os braços moles, as mãos cruzadas no regaço, olhando as velas de cera tristes, os bordados desbotados do frontal, a carinha rosada e redonda de um Menino Jesus!
Lentamente perdeu-se num cismar que ela não dirigia, que se formava e se movia no seu cérebro, com a flutuação de um fumo que se eleva. Pensava no tempo tão distante, em que, por melancolia e por sentimentalidade, freqüentava mais as igrejas. Ainda a mamã vivia então; e ela com o coração quebrado - quando o outro, Basílio, lhe escrevera, rompendo - procurava dissipar a sua tristeza nas consolações da devoção. Uma amiga sua, a Joana Silveira, fora por esse tempo professar à França; e ela às vezes lembrava-se de partir também, ser irmã de caridade, levantar os feridos nos campos de batalha ou viver na paz de uma cela mística! Que diferente a sua vida teria sido - desta agora tão alvoroçada de cólera e tão carregada de pecado!... Onde estaria? Longe, nalgum mosteiro antigo, entre arvoredos escuros, num vale solitário e contemplativo; na Escócia, talvez, país que ela sempre amara desde as suas leituras de Walter Scott. Podia ser nas verde-negras terras de Lammermoor ou de Glencoe, nalguma velha abadia saxônia. Em redor os montes cobertos de abetos, esbatidos nas névoas, isolam aqueles retiros numa paz funerária; num céu saudoso, as nuvens passam devagar, com recolhimento; nenhum som festivo quebra a meiga taciturnidade das coisas; revoadas de corvos cortam à tarde o ar num vôo triangular. Ali viveria entre as monjas de alta estatura e olhar céltico, filhas de duques normandos ou de lordes de clãs convertidos a Roma; leria livros doces e cheios das coisas do céu; sentada na estreita janela da sua cela, veria passar nas matas baixas os altos paus dos veados, ou pelas tardes vaporosas escutaria o som distante da bagpipe, que vai tristemente tocando o pastor que vem dos vales de Calêndar; e todo o ar estaria cheio do murmúrio choroso e gotejante dos fios de água, que por entre as relvas escuras caem de rocha em rocha!
Ou então seria outra existência mais regalada, no convento pacato de uma boa província portuguesa. Ali os tetos são baixos; as paredes caiadas faiscam ao sol, com as suas gradezinhas devotas; os sinos repicam no vivo ar azul; em roda, nos campos de oliveiras que dão azeite para o convento, raparigas varejam a azeitona cantando; no pátio lajeado de uma pedra miudinha as mulas do almocreve, sacudindo a mosca, batem com a ferradura; matronas cochicham ao pé da roda; um carro chia na estrada empoeirada e branca; galos cacarejam, brilhando ao sol; e freiras gordinhas, de olho negro chalram nos frescos corredores.
Ali viveria, engordando, com uma quebrazinha de sono à hora do coro, bebendo copinhos de licor de rosa no quarto da madre-escrivã, copiando receitas de doces com uma letra garrafal; morreria velha, ouvindo as andorinhas cantar à beira da sua grade; e o senhor bispo na sua visita, com a pitada nos seus dedos brancos, ouviria sorrindo da boca da madre-abadessa a história edificante da sua santa morte
Um sacristão, que passava, escarrou fortemente; e, como um bando de pássaros que se calam a um ruído brusco, todos os seus sonhos fugiram. Suspirou, ergueu-se devagar, foi indo para casa, triste.
Foi Juliana quem veio abrir, e logo no corredor, com a voz suplicante e baixa:
- A senhora por quem é perdoe, que depois estava doida! Estava com a cabeça perdida, não tinha dormido nada toda a noite. Fiquei mais aflita...
Luísa não respondeu, entrou na sala. Sebastião, que vinha jantar, tocava a serenata de D. Juan - e apenas ela apareceu:
- De onde vem, tão pálida?
- Debilidade, Sebastião, venho da igreja...
Jorge entrava do escritório com uns papéis na mão:
- Da igreja! - exclamou. - Que horror!
CAPÍTULO XI
Foi por esse tempo que, num sábado, o Diário do Governo publicou a nomeação do Conselheiro Acácio ao grau de Cavaleiro da Ordem de São Tiago, atendendo aos seus grandes merecimentos literários, às obras publicadas de reconhecida utilidade, e mais partes...
Na noite seguinte, ao entrar em casa de Jorge, todos o cercaram, felicitando-o com alarido; o Conselheiro, depois de os abraçar um por um, numa pressão nervosa e comovida, caiu no sofá, exausto, e murmurou:
- Não o esperava tão cedo da real munificiência! Não o esperava tão cedo! - e acrescentou, pondo a mão espalmada sobre o peito: - Direi como o filósofo: "Esta condecoração é o melhor dia da minha vida!"
E convidou logo Jorge, Sebastião e Julião para um jantar na quinta-feira, um modesto jantar de rapazes, no seu humilde tugúrio, para festejarem a régia graça.
- Às cinco e meia, meus bons amigos!
Na quinta-feira, os três, que se tinham encontrado na Casa Havanesa, eram introduzidos por uma rapariguita vesga, suja como um esfregão, na sala do Conselheiro. Um vasto canapé de damasco amarelo ocupava a parede do fundo, tendo aos pés um tapete onde um chileno roxo caçava ao laço um búfalo cor de chocolate; por cima uma pintura tratada a tons cor de carne, e cheia de corpos nus cobertos de capacetes, representava o valente Aquiles arrastando Heitor em torno dos muros de Tróia. Um piano de cauda, mudo e triste sob a sua capa de baeta verde, enchia o intervalo das duas janelas. Sobre uma mesa de jogo, entre dois castiçais de prata, uma galguinha de vidro transparente galopava; e o objeto em que se sentia mais o calor do uso era uma caixa de música de dezoito peças!
O Conselheiro recebeu-os, com o hábito de São Tiago sobre a lapela do fraque preto. Havia outro sujeito na sala, o Sr. Alves Coutinho. Era picado das bexigas, tinha a cabeça muito enterrada nos ombros; quando o seu olhar parvo se fixava nas pessoas, com pasmo, o seu bigode pelado arreganhava-se logo por hábito, num sorriso alvar que mostrava uma boca medonha cheia de dentes podres; falava pouco, esfregava sempre as mãos, concordava em tudo; havia nele o ar de um deboche banal e de um embrutecimento antigo. Era um empregado do ministério do Reino, ilustre pela sua boa letra.
Daí a pouco entrou a figura conhecida do Saavedra, redator do Século. A sua face branca parecia mais balofa; o bigode muito preto reluzia de brilhantina; as lunetas de ouro acentuavam o seu tom oficial; trazia ainda no queixo o pó-de-arroz, que lhe pusera momentos antes o barbeiro; e a mão, que escrevia tanta banalidade e tanta mentira, vinha aperreada numa luva nova, cor de gema de ovo.
- Estamos todos! - disse com júbilo o Conselheiro. E curvando-se: - Bem-vindos, meus amigos! Estamos talvez mais à vontade no meu quarto de estudo! Por aqui. Há um degrau, cuidado! Eis o meu Sancra Sancrorum!
Numa saleta muito espanejada a que as cortinas de cassa, a luz de duas janelas de peitoril e o papel claro davam um aspecto alvadio, estava a larga escrivaninha de trabalho, com um tinteiro de prata, os lápis muito aparados, as réguas bem dispostas. Via-se o sinete de armas do Conselheiro, pousado sobre a Carta Constitucional ricamente encadernada. Encaixilhada, na parede, pendia a carta régia que o nomeara Conselheiro; defronte uma litografia de El-rei; e sobre uma mesa era eminente o busto em gesso de Rodrigo da Fonseca Magalhães, tendo no alto da cabeça uma coroa de perpétuas - que ao mesmo tempo o glorificava e o chorava.
Julião pusera-se logo a examinar a livraria.
- Prezo-me de ter os autores mais ilustres, amigo Zuzarte! - disse com orgulho o Conselheiro.
Mostrou-lhe a História do consulado e do império, as obras de Delille, o Dicionário da conversação, a ediçãozinha bojuda da Enciclopédia Roret, o Parnaso lusitano. Falou dos seus trabalhos; e acrescentou que, vendo ali reunidas pessoas de tão subida ilustração, desejaria muito ler-lhes algumas das provas que estava revendo do seu novo livro - Descrição das principais cidades do reino e seus estabelecimentos, para ouvir a opinião deles, desassombrada e severa!
- Se não acham maçada...
- Prazer, Conselheiro! Prazer!
Escolheu então, "como mais própria para dar idéia da importância do trabalho", a página relativa a Coimbra. Assoou-se, colocou-se no meio da saleta, de pé, com as folhas na mão, e, com uma voz cheia, gestos pausados, leu:
- ... Reclinada molemente na sua verdejante colina, como odalisca em seus aposentos, está a sábia Coimbra, a Lusa Atenas. Beija-lhe os pés, segredando-lhe de amor, o saudoso Mondego. E em seus bosques, no bem conhecido salgueiral, o rouxinol e outras aves canoras soltam seus melancólicos trilos. Quando vos aproximais pela estrada de Lisboa, onde outrora uma bem organizada mala-posta fazia o serviço que o progresso hoje encarregou à fumegante locomotiva, vede-la branquejando, coroada do edifício imponente da Universidade, asilo da sabedoria. Lá campeia a torre com o sino, que em sua folgazã linguagem a mocidade estudiosa chama "a cabra". Para além logo uma copada árvore vos atrai as vistas: é a celebrada árvore dos Dórias, que dilata seus seculares ramos no jardim de um dos membros desta respeitável família. E avistais logo, sentados nos parapeitos da antiga ponte, em seus inocentes recreios, os briosos moços, esperança da pátria, ou requebrando galanteios com as ternas camponesas que passam reflorindo de mocidade e frescura, ou revolvendo em suas mentes os problemas mais árduos de seus bem elaborados compêndios...
- Está a sopa na mesa - veio dizer uma criada, de avental branco, muito nutrida.
- Muito bem, Conselheiro, muito bem! - disse logo o Saavedra do Século, erguendo-se. - E admirável!
Declarou para os lados com autoridade que o estilo era digno de um Rebelo ou de um Latino, e que realmente estava-se precisando muito em Portugal de uma obra daquele quilate... E pensava baixo: "Grandíssima cavalgadura!..." O que era a sua apreciação genérica de todas as obras contemporâneas - excetuando os seus artigos no Século.
- Que lhe pareceu, meu bom amigo? - perguntou baixo o Conselheiro a Julião, passando-lhe a mão sobre o ombro. - Mas uma opinião desafrontada, meu Zuzarte!
- Sr. Conselheiro - disse Julião com uma voz profunda - tenho-lhe inveja! E as suas lunetas escuras fixavam-se com uma preocupação crescente num xale-manta pardo, que a um canto cobria cuidadosamente, a julgar pelas saliências, altas pilhas de livros. Que seria? - Tenho-lhe inveja! - repetiu. - E outra coisa, Conselheiro, não se me dava de lavar as mãos.
Acácio levou-o logo ao seu quarto e retirou-se discretamente. Julião, sempre curioso, observou, surpreendido, duas grandes litografias aos lados da cama - um Ecce homo! e a Virgem das Sete Dores. O quarto era esteirado, o leito baixo e largo. Abriu então a gavetinha da mesa de cabeceira, e viu, espantado, uma touca e o volume brochado das poesias obscenas de Bocage! Entreabriu os cortinados fechados; e teve a consolação de verificar que havia sobre o travesseiro duas fronhazinhas chegadas de um modo conjugal e terno!
Apenas ele saiu do quarto, limpando as unhas com o lenço, o Conselheiro conduziu-os à sala de jantar, dizendo jovialmente:
- Não esperem o festim de Lúculo: é apenas o modesto passadio de um humilde filósofo!
Mas o Alves Coutinho extasiou-se sobre a abundância das travessas de doce; havia creme crestado a ferro de engomar, um prato de ovos queimados, aletria com as iniciais do Conselheiro desenhadas a canela.
- É um grande dia para Sebastião! - disse Jorge.
O Alves Coutinho voltou-se logo para Sebastião, esfregando as mãos, com um riso na face amarela:
- É cá dos meus, hem? Gosta do belo doce! Também me pelo, também me pelo!...
Houve então um silêncio. As colheres de prata, remexendo devagar a sopa muito quente, agitavam os longos canudos brancos e moles do macarrão.
O Conselheiro disse:
- Não sei se gostarão da sopa. Eu adoro o macarrão!
- Gosta do macarrão? - acudiu o Alves.
- Muito, meu Alves. Lembra-me a Itália! - E acrescentou: - País que sempre desejei ver. Dizem-me que as suas ruínas são de primeira ordem. Pode ir trazendo o cozido, Sra. Filomena... - Mas detendo-a, com um gesto grave: - Perdão, com franqueza, preferem o cozido ou o peixe? É um pargo.
Houve uma hesitação, Jorge disse:
- O cozido talvez.
E o Conselheiro com afeto:
- O nosso Jorge opina pelo cozido.
- Também estou pela sua! - exclamou o Alves Coutinho, voltado para Jorge, com o olho afogado em reconhecimento: - O cozidinho!
E o Conselheiro que julgava do seu dever dar à conversação nobreza e interesse, disse, limpando devagar o bigode da gordura da sopa:
- Dizem-me que é muito liberal a Constituição da Itália!
Liberal! Segundo Julião, se a Itália fosse liberal devia ter há muito expulso a coronhadas o Papa, o Sacro Colégio, e a Sociedade de Jesus!
O Conselheiro pediu, com bondade, a benevolência do amigo Zuzarte para o "chefe da Igreja".
- Não - explicou - que eu seja um secretário do Syllabus! Não que eu queira ver os jesuítas entronizados no seio da família! Mas - e a sua voz tornou-se profunda - o respeitável prisioneiro do Vaticano é o vigário de Cristo! Meu Sebastião, sirva o arroz!
Não havia que estranhar aquelas opiniões católicas do Conselheiro, ia observando Julião, porque tinha duas imagens de santos pendentes à cabeceira da cama...
A calva de Acácio fez-se rubra. O Saavedra do Século exclamou com a boca cheia:
- Não o sabia carola, Conselheiro!
Acácio, aflito, suspendeu o trinchador sobre o paio escarlate, e acudiu:
- Eu peço ao meu Saavedra que não tire desse fato ilações erradas. Os meus princípios são bem conhecidos. Não sou ultramontano, nem faço votos pelo restabelecimento da perseguição religiosa. Sou liberal. Creio em Deus. Mas reconheço que a religião é um freio...
- Para os que o precisam... - interrompeu Julião.
Riram; o Alves Coutinho torcia-se. O Conselheiro interdito respondeu, devagar, dispondo na travessa as rodelas do paio:
- Não o precisamos nós decerto, que somos as classes ilustradas. Mas precisa-o a massa do povo, Sr. Zuzarte. Senão veríamos aumentar a estatística dos crimes.
E o Saavedra do Século, erguendo as sobrancelhas, com a fisionomia muito séria:
- Pois olhe que diz uma grandíssima verdade. - Repetiu a máxima, modificando-a: - A religião é um bridão! - Fazia com o gesto o esforço de conter uma mula. E pediu mais arroz. Devorava.
O Conselheiro continuava, explicando:
- Como dizia, sou liberal, mas entendo que algumas litografias ou gravuras, alusivas ao mistério da Paixão, têm o seu lugar num quarto de cama, e inspiram de certo modo sentimentos cristãos. Não é verdade, meu Jorge?
Mas o Saavedra interrompeu ruidosamente, com a face acesa numa jovialidade libertina:
- Eu, num quarto de dormir, as únicas pinturas que admito são uma bela ninfa nua, ou uma bacante desenfreada!
- Isso, isso! - bradou o Alves Coutinho. A boca dilatava-lhe numa admiração sensual. - Este Saavedra! Este Saavedra! E baixo para Sebastião: - Tem um talento! Tem um talento!
O Conselheiro voltou-se para Julião, e puxando o guardanapo para o estômago:
- Espero que não sejam esses os painéis imorais que se vêem no seu gabinete de estudo...
Julião emendou:
- No meu cubículo. Ah! Não, Conselheiro! Tenho apenas duas litografias - uma é um homem sem pele para representar o sistema arterial, o outro é o mesmo indivíduo igualmente sem pele para se ver o sistema nervoso.
O Conselheiro teve com a sua mão branca um vago gesto enojado, e exprimiu a opinião - que na Medicina, aliás uma grande ciência!, havia coisas bastante asquerosas. Assim, ouvira dizer que nos teatros anatômicos, os estudantes de idéias mais avançadas levavam o seu desprezo pela moral até atirarem uns aos outros, brincando, pedaços de membros humanos, pés, coxas, narizes...
- Mas é como quem mexe em terra, Conselheiro! - disse Julião, enchendo o copo. - É matéria inerte!
- E a alma, Sr. Zuzarte? - exclamou o Conselheiro. Fez um gesto de vaga reticência; e julgando tê-lo aniquilado com aquela palavra suprema, abriu para Sebastião um sorriso cortês e protetor: - E que diz o nosso bondoso Sebastião?
- Estou a ouvir, Sr. Conselheiro.
- Não dê ouvidos a estas doutrinas! - Com o garfo mostrava a figura biliosa de Julião. - Mantenha a sua alma pura. São perniciosas. Que o nosso Jorge (o que é de lamentar num homem estabelecido e empregado do Estado) também vai um pouco para estas exagerações materialistas!
Jorge riu; afirmou que sim, que tinha essa honra...
- Então o Conselheiro quer que eu, um engenheiro, um estudante de Matemática, acredite que há almas que vivem no céu, com asinhas brancas, túnicas azuis, e tocando instrumentos?
O Conselheiro acudiu:
- Não, instrumentos não! - E como apelando para todos: - Não creio que tivesse falado em instrumentos. Os instrumentos são uma exageração. São, podemos dizê-lo, táticas do partido reacionário...
Ia fulminar a doutrina ultramontana - mas a Sra. Filomena colocou-lhe diante a travessa com a perna de vitela assada. Compenetrou-se logo do seu dever, afiou o trinchador com solenidade, foi cortando fatias finas, com a testa muito franzida como na aplicação de uma função grave. Então Julião, pousando os cotovelos sobre a mesa e escabichando os dentes com a unha, perguntou:
- E o ministério, cai ou não cai?
Sebastião ouvira dizer no vapor de Almada, de tarde, que a situação estava firme.
Mas o Saavedra esvaziou o copo, limpou os beiços e declarou que em duas semanas estavam em terra. Nem aquele escândalo podia continuar! Não tinham a mais pequena idéia de governo. Nem a mais leve! Assim, por exemplo, ele... - E meteu as mãos nos bolsos, firmando-se nas costas da cadeira. - Ele tinha-os apoiado, não é verdade? E com lealdade. Porque era leal! Sempre o fora em política! Pois bem, não lhe tinham despachado o primo recebedor de Aljustrel, tendo-lho prometido! E nem lhe tinham dado uma satisfação. Assim não era possível fazer política! Era uma coleção de idiotas!
Jorge alegrava-se que viessem outros; talvez lhe dessem de novo a sua comissão no ministério; e ele o que queria era estar quieto ao seu cantinho...
O Alves Coutinho calava-se, com prudência, engolindo buchas de pão.
- Ou que caiam ou que fiquem - disse Julião -, que venham estes ou que venham aqueles... Obrigado, Conselheiro - e recebeu o seu prato de vitela - ... é-me inteiramente indiferente. É tudo a mesma podridão! - O país inspirava-lhe nojo; de cima a baixo era uma choldra; e esperava breve que, pela lógica das coisas, uma revolução varresse a porcaria...
- Uma revolução! - fez o Alves Coutinho assustado, com olhares inquietos para os lados, coçando nervosamente o queixo.
O Conselheiro sentara-se e disse, então:
- Eu não quero entrar em discussões políticas, só servem para dividir as famílias mais unidas, mas só lhe lembrarei, Sr. Zuzarte, uma coisa, os excessos da Comuna...
Julião recostou-se, e com uma voz muito tranqüila:
- Mas onde está o mal, Sr. Conselheiro, se fuzilarmos alguns banqueiros, alguns padres, alguns proprietários obesos e alguns marqueses caquéticos! Era uma limpezazinha!... - E fazia o gesto de afiar a faca.
O Conselheiro sorriu, cortesmente; tomava como um gracejo aquela saída sanguinária.
O Saavedra, porém, interpôs-se, com autoridade:
- Eu no fundo sou republicano...
- E eu - disse Jorge.
- E eu - fez o Alves Coutinho, já inquieto. - Contem-me a mim também!
- Mas - continuou o Saavedra - sou-o em princípio. Porque o princípio é belo, o princípio é ideal! Mas a prática? Sim, a prática? - E voltava para todos os lados a sua face balofa.
- Sim, na prática! - exclamava o Alves Coutinho, em eco admirativo.
- A prática é impossível! - declarou o Saavedra. E encheu a boca de vitela.
O Conselheiro então resumiu:
- A verdade é esta: o pais está sinceramente abraçado à família real... Não acha, meu bom Sebastião? - Dirigia-se a ele como proprietário e possuidor de inscrições.
Sebastião, interpelado, corou, declarou que não entendia nada de política; havia todavia fatos que o afligiam; parecia-lhe que os operários eram malpagos; a miséria crescia; os cigarreiros, por exemplo, tinham apenas de nove a onze vinténs por dia, e, com família, era triste...
- É uma infâmia! - disse Julião encolhendo os ombros.
- E há poucas escolas... - observou timidamente Sebastião.
- É uma torpeza! - insistiu Julião.
O Saavedra calava-se, ocupado com o alimento; tinha desabotoado a fivela do colete; espalhava-se-lhe no rosto gordo uma cor de enfartação, e sorria vagamente, inchado.
- E os idiotas de São Bento?... - exclamou Julião.
Mas o Conselheiro interrompeu-o:
- Meus bons amigos, falemos de outra coisa. É mais digno de portugueses e de súditos fiéis.
E voltando-se logo para Jorge, quis saber como ficara a interessante D. Luísa.
Estava um pouco adoentada havia dias - disse Jorge. - Mas não era nada, mudança de estação, um bocadito de anemia...
O Saavedra, pousando o copo, e cumprimentando:
- Tive o prazer de a ver passar este verão quase todas as manhãs por minha casa - disse. - Ia para os lados de Arroios. Às vezes de trem, às vezes a pé...
Jorge pareceu um pouco surpreendido; mas o Conselheiro ia dizendo quanto lhe pesava não ter o prazer de a ver partilhar daquele modesto repasto; como celibatário porém... não tendo uma esposa para fazer as honras...
- E é o que eu admiro, Conselheiro - observou Julião -, é que tendo uma casa tão confortável, não se tenha casado, não se tenha dado o conchego de uma senhora...
Todos apoiaram. Era verdade! O Conselheiro devia-se ter casado.
- São graves, perante Deus e perante a sociedade, as responsabilidades de um chefe de família - considerou ele.
Mas enfim - disseram, é o estado mais natural. E depois, que diabo, às vezes havia de se sentir só! E numa doença! Sem contar a alegria que dão os filhos!...
O Conselheiro objetou: "os anos, as neves da fronte..."
Também ninguém lhe dizia que fosse casar com uma rapariga de quinze anos! Não, era arriscado. Mas com uma pessoa de certa idade que tivesse atrativos, cuidados de interior... Era mesmo moral.
- Porque enfim, Conselheiro, a natureza é a natureza... - disse Julião com malícia.
- Há muito, meu amigo, que se apagou dentro em mim o fogo das paixões.
Ora qual! Era um fogo que nunca se extinguia! Que diabo! Era impossível que o Conselheiro, apesar dos seus cinqüenta e cinco, fosse indiferente a uns belos olhos pretos, a umas formazinhas redondas!...
O Conselheiro corava. E o Saavedra declarou, com um circunlóquio pudico - que nenhuma idade se eximia à influência de Vênus. Toda a questão é nos gostos - disse -, aos quinze anos gosta-se de uma matrona cheia, aos cinqüenta de um frutozinho tenro... Pois não é verdade, amigo Alves?
O Alves arregalou os olhos concupiscentes, e fez estalar a língua.
E o Saavedra continuou:
- Eu, a minha primeira paixão foi uma vizinha; mulher de um capitão de navios, mãe de seis filhos, e que não cabia por aquela porta. Pois senhores, fiz-lhe versos, e a excelente criatura ensinou-me um par de coisas agradáveis... Deve-se começar cedo, não é verdade? - E voltou-se para Sebastião.
Quiseram então saber as opiniões de Sebastião - que se fez escarlate.
Por fim, muito solicitado, disse com timidez:
- Eu acho que se deve casar com uma rapariga de bem, e estimá-la toda a vida...
Aquelas palavras simples produziram um curto silêncio. Mas o Saavedra, reclinando-se, classificou uma tal opinião de burguesa; o casamento era um fardo; não havia nada como a variedade...
E Julião expôs dogmaticamente:
- O casamento é uma fórmula administrativa, que há de um dia acabar...
- De resto, segundo ele, a fêmea era um ente subalterno; o homem deveria aproximar-se dela em certas épocas do ano (como fazem os animais, que compreendem estas coisas melhor que nós), fecundá-la, e afastar-se com tédio.
Aquela opinião escandalizou a todos, sobretudo o Conselheiro, que a achou "de um materialismo repugnante".
- Essas fêmeas para quem é tão severo, Sr. Zuzarte - exclamava ele - essas fêmeas são nossas mães, nossas carinhosas irmãs, a esposa do chefe de Estado, as damas ilustres da nobreza...
- São o melhor bocadinho deste vale de lágrimas - interrompeu com fatuidade o Saavedra, dando palmadinhas sobre o estômago. Dissertou então sobre as mulheres. O que sobretudo lhes exigia era um bonito pé; não havia nada como um pezinho catita! E a todas preferia a mulher espanhola!
O Alves votava pelas francesas; citava algumas do café-concerto, criaturas de fazer perder a cabeça!... - E injetavam-se-lhe os olhos.
O Saavedra disse com um trejeito hostil:
- Sim, para um bocado de cancã... Para o cancã não há como as francesas... Mas muito chupistas!
O Conselheiro afirmou ajeitando as lunetas:
- Viajantes instruídos têm-me afiançado que as inglesas são notáveis mães de família...
- Mas frias como esta madeira - disse o Saavedra batendo na mesa. - Mulheres de gelo! - E reclamava espanholas! Queria fogo! Queria salero! Tinha o olhar brilhante do vinho; a comida acendia-lhe o sentimento.
- Uma bela gaditana, hem, amigo Alves?
Mas em presença dos doces que a Sra. Filomena dispôs sobre a mesa, o Alves Coutinho esquecera as mulheres, e, voltado para Sebastião, discutia gulodices. Indicava as especialidades: para os folhados, o Cocó! Para as natas, o Baltresqui! Para as gelatinas, o Largo de São Domingos! Dava receitas; contava proezas de lambarice, revirando os olhos:
- Porque - dizia - o docinho e a mulherzinha é o que me toca cá por dentro a alma!
Era todo o tempo que não dedicava ao serviço do Estado, dividia-o, com solicitude, entre as confeitarias e os lupanares.
Saavedra e Julião discutiam a imprensa. O redator do Século gabava a profissão de jornalista - quando a gente, já se sabe, tem alguma coisa de seu; mais tarde ou mais cedo apanhava-se um nicho, não é verdade? Depois as entradas nos teatros, a influência nas cantoras. Sempre se é um bocado temido... E o Conselheiro, cortando os ovos queimados, saboreando as alegrias da convivência, dizia a Jorge:
- Que maior prazer, meu Jorge, que passar assim as horas entre amigos, de reconhecida ilustração, discutir as questões mais importantes, e ver travada uma conversação erudita?... Parecem excelentes os ovos.
A Sra. Filomena, então, com solenidade, veio colocar-lhe ao pé uma garrafa de champanhe
O Saavedra pediu logo para abrir, porque o fazia com muito chique. E nas a rolha saltou, e, no silêncio que criou a cerimônia, se encheram os copos,
O Saavedra, que ficara de pé, disse:
- Conselheiro!
Acácio curvou-se, pálido.
- Conselheiro, é com o maior prazer que bebo, que todos bebemos, à saúde de um homem, que - e arremessando o braço, deu um puxão ao punho da camisa com eloqüência -, pela sua respeitabilidade, a sua posição, os seus vastos conhecimentos, é um dos vultos deste país. À sua saúde, Conselheiro!
- Conselheiro! Conselheiro! Amigo Conselheiro!
Beberam com ruído. Acácio depois de limpar os beiços, passou a mão trêmula pela calva, levantou-se comovido, e começou:
- Meus bons amigos! Eu não me preparei para esta circunstância. Se a soubesse de antemão, teria tomado algumas notas. Não tenho a verbosidade dos Rodrigos ou dos Garretts. E sinto que as lágrimas me vão embargar a voz...
Falou então de si, com modéstia: reconhecia, quando via na capital tão ilustres parlamentares, oradores tão sublimes, tão consumados estilistas; reconhecia que era um zero! - E com a mão erguida formava no ar, pela junção do polegar e do indicador, um 0: um zero! Proclamou o seu amor à pátria: que amanhã as instituições ou a família real precisassem dele - e o seu corpo, a sua
pena, o seu modesto pecúlio, tudo oferecia de bom grado! Queria derramar todo o seu sangue pelo trono! - E, prolixo, citou o Euriko, as instituições da Bélgica, Bocage e passagens dos seus prólogos. Honrou-se de pertencer à Sociedade Primeiro de Dezembro... - Nesse dia memorável - exclamou -, eu mesmo as minhas janelas, sem o luxo dos grandes estabelecimentos do Chiado, mas com uma alma sincera!
E terminou dizendo: - Não esqueçamos, meus amigos, como portugueses, de fazer votos pelo ilustrado monarca, que deu às neves da minha fronte, antes de descerem ao túmulo, a consolação de se poderem revestir com o honroso hábito de São Tiago! Meus amigos, à família real! - e ergueu o copo - à família modelo, que sentada ao leme do Estado, dirige, cercada dos grandes vultos da nossa política, dirige... - Procurou o fecho; havia um silêncio ansioso - dirige... - Através das lunetas negras, os seus olhos cravavam-se, à busca da inspiração, na travessa da aletria - dirige... - Coçou a calva, aflito; mas um sorriso clareou-lhe o aspecto, encontrara a frase; e estendendo o braço - ... dirige a barca da governação pública com inveja das nações vizinhas! A família real!
- À família real! - disseram com respeito.
O café foi servido na sala. As velas de estearina punham uma luz triste naquela habitação fria; o Conselheiro foi dar corda à caixa de música; e, ao som do coro nupcial da Lucia, ofereceu em redor charutos.
- E a Sra. Adelaide pode trazer os licores - disse à Filomena.
Viram então aparecer uma bela mulher de trinta anos, muito branca, de olhos negros e formas ricas, com um vestido de merino azul, trazendo numa bandeja de prata, onde tremelicavam copinhos, a garrafa de conhaque e o frasco de curaçau.
- Boa moça! - rosnou com o rosto aceso o Alves Coutinho.
Julião quase lhe tapou a boca com a mão. E falando-lhe ao ouvido, olhando o Conselheiro, recitou:
- Não ouses, temerário, erguer teus olhos
Para a mulher de César!
E enquanto se bebia o curaçau, Julião pé ante pé dirigiu-se ao escritório, e foi erguer a ponta do xale-manta pardo que tanto o preocupava; eram rumas de livros brochados, atadas com guitas - as obras do Conselheiro intactas!
Quando Jorge entrou, às onze horas, Luísa já deitada lia, esperando-o.
Quis saber do jantar do Conselheiro.
Excelente, contou Jorge, começando a despir-se. Gabou muito os vinhos. Tinha havido speechs... E de repente:
- É verdade, onde ias tu a Arroios?
Luísa passou devagar as mãos sobre o rosto para lhe cobrir a alteração. Disse, bocejando ligeiramente:
- A Arroios?
- Sim. O Saavedra, um sujeito que estava em casa do Conselheiro, diz que te via passar todos os dias para lá, de trem e a pé.
- Ah! - fez Luísa depois de tossir - ia ver a Guedes, uma rapariga que andou comigo no colégio, que tinha chegado do Porto. A Silva Guedes!
- Sílva Guedes!... - disse Jorge refletindo. - Imaginei que estava secretário-geral em Cabo Verde!
- Não sei. Estiveram aí um mês no verão. Moravam a Arroios. Ela estava doente coitada: eu ia lá às vezes. Mandava-me pedir para ir lá. Põe essa luz fora, está-me a fazer impressão.
Queixou-se então que toda a tarde estivera esquisita. Sentia-se fraca, e com uma pontinha de febre...
E nos dias seguintes não se achou melhor. Queixava-se ainda vagamente de peso na cabeça, mal-estar... Uma manhã mesmo ficou de cama. Jorge não saiu, inquieto, querendo já mandar chamar Julião. Mas Luísa insistiu que não era nada, um bocadito de fraqueza talvez... Foi também a opinião de Juliana, em cima na cozinha.
- Que aquela senhora é fraca; ali há coisa do peito - disse com importância.
Joana que estava debruçada sobre o fogão, acudiu logo:
- O que ela é, é uma santa!...
Juliana cravou-lhe nas costas um olhar rancoroso. E com um risinho:
- A Sra. Joana diz isso como se as outras fossem uma peste.
- Que outras?
- Eu, vossemecê, a mais gente...
Joana sempre remexendo nas panelas sem se voltar:
- Olhe, outra não encontra vossemecê, Sra. Juliana! Uma senhora que lhe fazer tudo o que quer, e faz ela mesma o serviço! Noutro dia andava a despejar as águas. E uma santa!
Aquele tom hostil de Joana exasperou-a; mas conteve-se; apesar da sua posição na casa, dependia dela para os caldinhos, os bifes, os petiscos; tinha diante dela a vaga timidez respeitosa das constituições franzinas pelos corpos possantes; pôs-se a dizer com uma voz tortuosa, ambígua:
- Ora! São gênios! Gosta de arrumar. Ah, lá isso deve-se dizer, é senhora de muita ordem. Mas gosta, gosta de trabalhar. Às vezes basta-lhe ver um bocadinho de pó, agarra logo no espanador... É gênio. Tenho visto outras assim... E punha a cabeça de lado franzindo os beiços.
- O que ela é, é uma santa - repetiu Joana.
- É gênio! Está sempre numa labutação. Eu nunca saio sem deixar tudo
brinco. Pois senhores, nunca está satisfeita. Até noutro dia, lá embaixo a
passar a roupa... Eu ia a sair, pois tirei logo o chapéu, e não consenti... Olhe, quer diga? Falta de cuidados, não ter filhos... Que ela não lhe falta nada...
Calou-se, remirou o pé, e com satisfação:
- Nem a mim - disse reclinando-se na cadeira. Joana pôs-se a cantarolar. Não queria questões. Mas ultimamente achava tudo aquilo muito fora dos eixos, a Juliana sempre na rua, ou metida no quarto a trabalhar para si, sem se importar, deixando tudo ao deus-dará, e a pobre senhora a varrer, a passar, a emagrecer! Não, ali havia coisa! Mas o seu Pedro que ela consultara, disse-lhe com finura, retorcendo o buço: - Elas lá se entendem! Trata tu de gozar, e não te importes com a vida dos outros. A casa é boa, toca a tirar partido!
Mas Joana sentia "lá por dentro" a crescer-lhe uma embirração pela Sra Juliana. Tinha-lhe asca pelas tafularias, pelos luxos do quarto, pelas passeatas todo o dia, pelos modos de madama; não se recusava a fazer-lhe o serviço, porque isso lhe rendia presentinhos da senhora; mas quê, tinha-lhe birra! O que a consolava era a idéia de que um piparote desfazia aquela magricela! E ia tirando partido da casa também. O Pedro tinha razão...
Juliana com efeito, agora, não se constrangia. Depois da cena da roupa assustara-se, porque, enfim, o escândalo podia-lhe fazer perder a posição; durante alguns dias não saiu, foi cuidadosa; mas quando viu Luísa resignar-se, abandonou-se logo, quase com fervor, às satisfações da preguiça e às alegriazinhas da vizinhança. Passeava, costurava fechada no seu quarto, e a Piorrinha que se arranjasse! Diante de Jorge ainda se continha: temia-o. Mas apenas ele saía! Que desforra! Às vezes estava varrendo ou arrumando - e, mal o sentia fechar a cancela, atirava o ferro, a vassoura, punha-se a panriar. Lá estava a Piorrinha, para acabar!
Luísa, no entanto, passava pior: tinha de repente, sem razão, febres efêmeras; emagrecia, e as suas melancolias torturavam Jorge.
Ela explicava tudo pelo nervoso.
- Que será, Sebastião? - era a pergunta incessante de Jorge. E lembrava-se com terror que a mãe de Luísa morrera de uma doença de coração!
Na rua, pela cozinheira, pela tia Joana, sabia-se que a do Engenheiro ia mal. A tia Joana jurava que era a solitária. Porque enfim, uma pessoa a quem não faltava nada, com um marido que era um anjo, uma boa casa, todos os seus cômodos - e a esmorecer, a esmorecer... Era a bicha! Não podia ser senão a bicha! E todos os dias lembrava a Sebastião que se devia mandar chamar o homem de Vila Nova de Famalicão, que tinha o remédio para a bicha.
O Paula explicava de outro modo:
- Ali anda coisa de cabeça - dizia, franzindo a testa, com o ar profundo.
- Sabe o que ela tem, Sra. Helena? É muita dose de novelas naquela cachimônia. Eu vejo-a de pela manhã até à noite de livro na mão. Põe-se a ler romances e mais romances... Aí têm o resultado: arrasada!
Um dia Luísa de repente, sem razão, desmaiou; e quando voltou a si ficou muito fraca, com o pulso sumido, os olhos cavados. Jorge foi logo buscar Julião; encontrou-o muito agitado, porque o concurso era para o dia seguinte, e sentia cólicas.
Durante todo o caminho não deixou de falar excitadamente da sua tese, do escândalo dos patrocinatos, do barulho que faria se fossem injustos - arrependido agora de não ter metido mais cunhas!
Depois de ter examinado Luísa veio dizer, furioso, a Jorge:
- Não tem nada! E vais-me buscar para isto! Tem anemia, o que todos temos. Que passeie, que se distraia. Distrações e ferro, muito ferro... E água fria, fria pra cima daquela espinha!
Como eram cinco horas convidou-se para jantar, deblaterando toda a tarde contra o país, amaldiçoando a carreira médica, injuriando o seu concorrente e fumando com desespero os charutos de Jorge.
Luísa tomava o ferro, mas recusava as distrações; fatigava-a vestir-se, aborrecia-lhe ir ao teatro... Depois, logo que viu Jorge preocupar-se do seu estado, quis
afetar força, alegria, bom humor; e aquele esforço abatia-a, extraordinariamente.
- Vamos para o campo, queres tu? - dizia-lhe Jorge desolado vendo-a esmorecida.
Ela, receando complicações possíveis, não aceitava; não se sentia bastante forte, dizia: onde estava mais confortável que em casa? Depois as despesas, os incômodos.
Uma manhã, que Jorge voltara a casa inesperadamente, encontrou-a em de chambre, com um lenço amarrado na cabeça, varrendo lugubremente. Ficou à porta, atônito:
- Que andas tu a fazer? Andas a varrer? Ela corou muito, atirou logo a vassoura, veio abraçá-lo.
- Não tinha que fazer... Deu-me a mania da limpeza... Estava aborrecida, ~ disso faz-me bem, é um exercício.
Jorge, à noite, contou a Sebastião aquela "tolice de se andar a esfalfar..."
- Uma pessoa que está tão fraca, minha senhora... - observou repreensivamente Sebastião.
- Mas não!" dizia ela, achava-se bem melhor! Até agora andava muito melhor...
Todavia, quase não falou nessa noite, curvada sobre o seu croché, um pouco pálida: e os seus olhos às vezes erguiam-se com uma fadiga triste, sorrindo silenciosamente, de um modo desconsolado.
Pediu a Sebastião que tocasse alguma coisa do Réquiem de Mozart. Achava tão lindo! Gostava que lho cantassem na igreja quando ela morresse...
Jorge zangou-se. Que mania de falar em coisas ridículas!
- Mas então, não é possível que eu morra?...
Pois bem, morre e deixa-nos em paz! - exclamou ele furioso.
- Que bom marido! - dizia ela sorrindo a Sebastião. Deixou cair o Croché no regaço, pediu-lhe então os dezesseis compassos da Africana. Escutava, com a cabeça apoiada à mão; aqueles sons entravam-lhe na alma com a doçura de vozes místicas que a chamavam; parecia-lhe que ia levada por elas, se rendia de tudo o que era terrestre e agitado, se achava numa praia deserta, junto ao mar triste, sob um frio luar - e ali, puro espírito, livre das misérias carnais, rolava nas ondulações do ar, tremia nos raios luminosos, passava sobre os urzes nos sopros salgados...
A melancólica atitude do seu corpo abatido enfureceu Jorge:
- Ó Sebastião, fazes-me favor de tocar o fandango, o Barba-Azul, o Pirolito, o diabo? Senão, se querem melancolia, eu começo com o cantochão!
E cantou, com um tom fúnebre:
- Dies irae, dies illae,
Solvunt saecula in favilia!..
Luísa riu-se:
- Que doido! Nem pode a gente estar triste...
- Pode! - exclamou Jorge. - Mas então venha a bela tristeza, venha a tristeza completa. - E com uma voz medonha entoou o Bendito!
- Os vizinhos hão de dizer que estamos doidos, Jorge... - acudiu ela.
- É justamente o que nós estamos! - E entrou no escritório, atirando com a porta.
Sebastião bateu alguns compassos, e voltando-se para ela, baixo:
- Então que idéias são essas? Que melancolia é essa?
Luísa ergueu os olhos para ele; viu a sua face boa e amiga, cheia de simpatia; ia talvez dizer-lhe tudo numa explosão de dor, mas Jorge saía do escritório. Sorriu, encolheu os ombros, retomou devagar o seu crochê.
No domingo seguinte, à noite, conversava-se na sala. Julião contara o seu concurso. Em resumo, estava contente: tinha falado duas horas bem, com precisão, com lucidez.
O Dr. Figueiredo dissera-lhe que devia ter amenizado um bocado mais...
- Literatos! - fazia Julião encolhendo os ombros com desprezo. - Não podem falar cinco minutos sobre o osso do tornozelo, sem trazerem as "flores da primavera" e "o facho da civilização"!
- O português tem a mania da retórica... - disse Jorge.
Neste momento Juliana entrou na sala, com uma carta.
- Oh! É do Conselheiro!
Ficaram inquietos. Mas Acácio apenas se desculpava de não poder vir, como prometera na véspera, partilhar do excelente chá de D. Luísa. Um trabalho urgente retinha-o à banca do dever. Pedia lembranças aos nossos Sebastião e Julião, e afetuosos respeitos à interessante D. Felicidade.
Uma onda de sangue abrasou o rosto da excelente senhora. Ficou a arfar, toda alterada; mudou duas vezes de cadeira, foi tocar no teclado com um dedo a Pérola de Ofir; e enfim, não se dominando, pediu baixo a Luísa que fossem para o quarto, tinha um segredo... Apenas entraram, fechando a porta da sála:
- Que me dizes à carta dele?
- Os meus parabéns - disse Luísa rindo.
- É o milagre! exclamou D. Felicidade - já é o milagre a fazer-se! - E mais baixo: - Mandei o homem! O que eu te disse, o galego!
Luísa não compreendia.
- O homem a Tui, à mulher de virtude! Levou o meu retrato e o dele. Partiu há uma semana; a mulher naturalmente já começou a enterrar-lhe as agulhas no coração...
- Que agulhas? - perguntou Luísa atônita.
Estavam de pé, junto ao toucador. E D. Felicidade com uma voz misteriosa:
- A mulher faz um coração de cera, cola-o ao retrato do Conselheiro, e durante uma semana à meia-noite crava-lhe uma agulha benta com o preparo que ela tem, e faz as orações...
- E deste o dinheiro ao homem?
- Oito moedas.
- Oh, D. Felicidade!
- Ai! Não me digas! Que já vês! Que mudanças!. Daqui a uns dias, baba-se! Ai! Nossa Senhora da Alegria o permita! Nossa Senhora o permita! Que aquele homem traz-me doida. De noite, é cada sonho! Até ando em pecado mortal! E são suores! Mudo de camisa três e quatro vezes!
E ia-se olhando ao espelho; queria convencer-se que as belezas da sua pessoa ajudariam as agulhas da bruxa; alisou o cabelo.
- Não me achas mais magra?
- Não.
- Ai estou, filha, estou! - E mostrou o corpete lasso.
Já fazia planos. Iria passar a lua-de-mel a Sintra... Os olhos afogavam-se-lhe num fluido lúbrico.
- Nossa Senhora da Alegria o permita! Tenho-lhe duas velas acesas, de dia e de noite...
Mas de repente a voz aflita de Joana bradou da escada da cozinha:
- Minha senhora! Minha senhora, acuda!
Luísa correu, Jorge também, que ouvira na sala o grito. Juliana estava estendida no soalho da cozinha, desmaiada.
- Deu-lhe de repente, deu-lhe de repente! - exclamava Joana, muito branca, a tremer. - Tombou pro lado de repente...
Julião tranqüilizou-os logo; era uma síncope, simples. Transportaram-na para a cama. Julião fez-lhe esfregar violentamente com uma flanela quente as extremidades - e, mesmo antes que Joana atarantada, em cabelo, corresse à botica por um antiespasmódico, Juliana voltava a si, muito fraca. Quando desceram à, sala, Julião disse, enrolando o cigarro:
- Não vale nada. São muito freqüentes estas sincopes, nas doenças de coração. Esta é simples. Mas é o diabo, às vezes têm um caráter apoplético e vem a paralisia; pouco duradoura, sim, porque a efusão de sangue no cérebro é muito pequena, mas enfim, sempre desagradável. - E acendendo o cigarro: - Essa mulher um dia morre-lhes em casa.
Jorge, preocupado, passeava pela sala com as mãos nos bolsos.
- Sempre o tenho dito - acudiu D. Felicidade, baixando a voz, assustada.
- Sempre o tenho dito. E desfazerem-se dela.
- Além disso o tratamento é incompatível com o serviço - disse Julião.
- Enfim, mesmo a engomar roupa se pode tomar digitalis ou quinino; mas é que o verdadeiro tratamento é o repouso, é a absoluta exclusão da fadiga. Que ela um dia se zangue ou que tenha uma manhã de canseira, e pode ir-se!
- E vai adiantada a doença? - perguntou Jorge.
- Pelo que ela diz já tem a dificuldade asmática, opressões, uma dor aguda na região cardíaca, flatulência, umidade nas extremidades - o diabo!
- Olha que espiga! - murmurou Jorge olhando em roda.
- É pô-la na rua! - resumiu D. Felicidade.
Quando ficaram sós, às onze horas, Jorge disse logo a Luísa:
- Que te parece esta, hem? É necessário descartar-mo-nos da criatura. Não quero que me morra em casa!
Ela, sem se voltar, diante do toucador, tirando os brincos começou a dizer - que não se podia mandar também a pobre criatura morrer para a rua... Lembrou vagamente o que ela tinha feito pela tia Virgínia... Ia colocando devagar as suas palavras com a cautela com que se pousa o pé num terreno traiçoeiro. - Podia-se talvez dar-lhe algum dinheiro, que ela fosse viver algures...
Jorge, depois de um silêncio, respondeu:
- Não tenho dúvida em lhe dar dez ou doze libras, e que se vá, que se arranje!
"Dez ou doze libras!" - pensou Luísa com um sorriso infeliz. - E à beira do toucador olhava para o seu rosto, ao espelho, com uma indefinida saudade, como se as suas faces devessem dentro em pouco estar cavadas pela aflição, e os seus olhos fatigados pelas lágrimas...
Porque, enfim, a crise tinha chegado. Se Jorge insistisse em despedir a criatura, ela não podia, sem provocar um espanto e uma explicação, dizer a Jorge: "não quero que ela saia, quero que ela aqui morra!" E Juliana vendo-se expulsa, desesperada, doente, percebendo que Luísa não a defendia, não a reclamava - vingar-se-ia! Que havia de fazer?
Ergueu-se ao outro dia numa grande agitação. Juliana, muito fatigada, ainda estava na cama. E enquanto Joana punha a mesa, Luísa sentada na voltaire. à janela da sala de jantar, lia maquinalmente o Diário de Notícias, quase sem compreender, quando uma notícia, no alto da página, lhe deu um sobressalto:
"Parte além de amanhã para França o nosso amigo e conhecido banqueiro Castro, da firma Castro Miranda & Cia. Sua Excelência retira-se dos negócios da praça, e vai estabelecer-se definitivamente em França, perto de Bordéus, onde comprou ultimamente uma valiosa propriedade."
O Castro! O homem que lhe dava dinheiro, o que ela quisesse!, dizia Leopoldina. Partia!... E apesar de ter achado, desde o primeiro momento, aquele recurso infame, vinha-lhe a seu pesar como uma desconsolação de o ver desaparecer! Porque nunca mais voltaria a Portugal, o Castro!... E de repente uma idéia atravessou-a, que a fez vibrar toda, erguer-se direita, muito pálida. - Se na véspera da partida dele, Santo Deus! se na véspera ela consentisse!... Oh! Era horrível! Nem pensar em tal!...
Mas pensou - e sentia-se toda fraca contra uma tentação crescente, que se lhe enroscava na alma com caricias persuasivas. É que então estava salva! Dava seiscentos mil réis a Juliana! E o demônio iria morrer para longe!
E ele, o homem, tomaria o paquete! Não teria de corar diante dele e o seu segredo ia para o estrangeiro, tão perdido como se fosse para o túmulo! - E, além disso, se o Castro tinha uma paixão por ela, era bem possível que lhe emprestasse, sem condições!...
Bom Deus! No dia seguinte podia ter ali na algibeira do seu roupão as notas, o ouro... Por que não? - Por que não? E vinha-lhe um desejo ansioso de se libertar, de viver feliz, sem agonias, sem martírios...
Voltou ao quarto. Pôs-se a remexer no toucador, olhando de lado Jorge que se vestia... A presença dele deu-lhe logo um remorso; ir pedir a um homem dinheiro, consentir nos seus olhares lascivos, nas suas palavras intencionais!... Que horror! - Mas já sutilizava. Era por Jorge, era por ele! Era para lhe poupar o desgosto de saber! Era para o poder amar livremente, toda a vida, sem receios, sem reservas...
Durante todo o almoço esteve calada. O rosto simpático de Jorge enternetecia-a: o outro parecia-lhe medonho, odiava-o já!...
Quando Jorge saiu ficou muito nervosa. Ia à janela; o sol parecia-lhe adorável, a rua atraía-a. - Por que não? Por que não?
A voz de Juliana, muito áspera, falou então nas escadas da cozinha; e aquele cantado odioso decidiu-a bruscamente.
Vestiu-se com cuidado: era mulher, quis parecer bonita. - E chegou toda esbaforida à casa de Leopoldina, quando dava meio-dia a São Roque. Encontrou-a vestida, esperando o almoço. E tirando imediatamente o chapéu, instalando-se no sofá, explicou muito claramente a Leopoldina a sua resolução. Queria o dinheiro do Castro. Emprestado ou dado, queria o dinheiro!... Estava numa aflição, devia valer-se de tudo!... Jorge queria despedir a mulher... Tinha medo de uma vingança dela... Queria dinheiro, ali estava!
- Mas assim de repente, filha! - disse Leopoldina, pasmada do seu olhar decidido.
- O Castro vai-se amanhã. Vai para Bordéus, para o inferno! É necessário fazer alguma coisa, já!
Leopoldina lembrou escrever-lhe.
- O que quiseres... Eu aqui estou!
A outra sentou-se devagar à mesa, escolheu uma folha de papel e, com o dedinho no ar, a cabeça de lado, começou a escrivinhar.
Luísa passeava pelo quarto, nervosa. Tinha agora uma resolução teimosa, que a presença de Leopoldina fortificava! Divertia-se aquela, dançava, ia ao campo, gozava, vivia, sem ter como ela uma tortura a minar-lhe, a estragar-lhe a vida! Ah! Não voltaria para casa sem levar na algibeira em boas libras o resgate, a salvação! Ainda que tivesse de ser vil como as do Bairro Alto! Estava farta das humilhações, dos sustos, das noites cortadas de pesadelos!... Queria saborear a vida, que diabo! O seu amor, o seu jantar, sem cuidados, com o coração contente!
- Vê lá - disse Leopoldina, lendo:
Meu Caro Amigo.
Desejo absolutamente falar-lhe. É um negócio grave. Venha logo que possa. Talvez me agradeça. Espero até às três horas, o mais tardar.
Com toda a estima,
Sua amiga
Leopoldina.
- Que te parece?
- Horrível! Mas está bem... Está muito bem! Risca-lhe o "talvez me agradeça". É melhor.
Leopoldina copiou o bilhete, mandou-o pela Justina, num trem.
- E agora vou almoçar, que me não tenho nas pernas.
A sala de jantar dava para um saguão estreito. As paredes estavam cobertas de uma pintura medonha, em que grandes manchas verdes semelhavam colinas, e linhas azul-ferretes representavam lagos. Um armário, no ângulo da parede, servia de guarda-louça. As cadeiras de palhinha tinham almofadinhas de paninho vermelho; e na toalha havia nódoas do café da véspera.
- De uma coisa podes tu ter a certeza - dizia Leopoldina, bebendo grandes goles de chá -, é que o Castro é um homem para um segredo!... Se te emprestar o dinheiro, que empresta, daquela boca não sai uma palavra. Lá nisso é perfeito... Olha que foi o amante da Videira anos! E nem ao Mendonça, que é o seu íntimo, disse uma palavra. Nem uma alusão! E um poço.
- Que Videira? - perguntou Luísa.
- Uma alta, de nariz grande, que tem um landô.
- Mas passa por uma mulher tão séria...
- Já tu vês! - E com um risinho: - Ai elas passam, passam. Lá passar. passam. A questão é conhecer-lhes os podres, minha fidalga!
E barrando de manteiga grandes fatias de pão, pôs-se a falar complacentemente dos escândalos de Lisboa, a desdobrar o sudário: citava nomes, especialidades, as que depois de terem feito o diabo gastam, numa devoção tardia, o resto de uma velha sensibilidade; que é por onde elas acabam, algumas é pelas sacristias! As que, cansadas decerto de uma virtude monótona, preparam habilmente o seu "fracasso" numa estação em Sintra ou em Cascais. E as meninas solteiras! Muito pequerrucho, por essas amas dos arredores, tem o direito de lhes chamar "mamã"! Outras mais prudentes, receando os resultados do amor, refugiam-se nas precauções da libertinagem... Sem contar as senhoras que, em vista dos pequenos ordenados, completam o marido com um sujeito suplementar! - Exagerava muito; mas odiava-as tanto! Porque todas tinham, mais ou menos, sabido conservar a exterioridade decente que ela perdera, e manobravam com habilidade onde ela, a tola, tivera só a sinceridade! E enquanto elas conservavam as suas relações, convites para soirées, a estima da corte - ela perdera tudo, era apenas a Quebrais!...
Aquela conversação enervava Luísa; numa tal generalidade do vício parecia-lhe que o seu caso, como um edifício num nevoeiro, perdia o seu relevo cruel, se esbatia; e sentindo-o tão pouco visível quase o julgava já justificado.
Ficaram caladas, vagamente entorpecidas por aquele sentimento de uma forte imoralidade geral, onde as resistências, os orgulhos se amolecem, se eslanguescem - como os músculos numa estufa fortemente saturada de exalações mornas.
- Este mundo é uma história - disse Leopoldina erguendo-se e espreguiçando-se.
- E teu marido onde está? - perguntou Luísa no corredor.
- Fora para o Porto. Estavam à vontade, podiam cometer crimes!
E Leopoldina, no quarto, estirando-se no canapé, com o cigarrinho La Ferme na boca, começou também a queixar-se.
Andava aborrecida há tempos; enfastiava-se, achava tudo secante; queria alguma coisa de novo, de desusado! Sentia-se bocejar por todos os poros do seu corpo...
- E o Fernando, então? - disse distraidamente Luísa, que a cada momento se aproximava da janela.
- Um idiota! - respondeu Leopoldina com um movimento de ombros, cheio de saciedade e de desprezo.
Não, realmente tinha vontade de outra coisa, não sabia bem de quê! As vezes lembrava-se fazer-se freira! (E estirava os braços com um tédio mole.) Eram tão sensaborões todos os homens que conhecia! Tão corriqueiros todos os prazeres que encontrara! Queria uma outra vida, forte, aventurosa, perigosa, que a fizesse palpitar - ser mulher de um salteador, andar no mar; num navio pirata... Enquanto ao Fernando, o amado Fernando dava-lhe náuseas! E outro que viesse seria o mesmo. Sentia-se farta dos homens! Estava capaz de tentar Deus!
E, depois de escancarar a boca, num bocejo de fera engaiolada:
- Aborreço-me! Aborreço-me!... Oh, céus! Ficaram um momento caladas.
- Mas, que se lhe há de dizer, a esse homem? - perguntou de repente Luísa.
Leopoldina, soprando o fumo do cigarro, com a voz muito preguiçosa:
- Diz-se-lhe que se precisa um conto de réis, ou seiscentos mil réis... Que se lhe há de então dizer? Que se lhe paga.
- Como?
Leopoldina disse, deitada, com os olhos no teto:
- Em afeto.
- Oh! És horrível! - exclamou Luísa, exasperada. - Vês-me aqui desgraçada, meia doida, dizes que és minha amiga, e estás a rir, a escarnecer... - A sua voz tremia, quase chorava.
- Mas também que pergunta tão tola! Como se lhe há de pagar?... Tu não sabes?
Olharam-se um momento.
- Não, eu vou-me embora, Leopoldina! - exclamou Luísa.
- Não sejas criança!
Um trem parou na rua. A Justina apareceu. Não encontrara o Sr. Castro em casa, estava no escritório. Fora lá, disse que vinha imediatamente.
Mas Luísa, muito pálida, tinha o chapéu na mão.
- Não - disse Leopoldina quase escandalizada -, tu agora não me deixas aqui com o homem! Que lhe hei de eu dizer?
- É horrível! - murmurou Luísa com uma lágrima nas pálpebras, deixando cair os braços, solicitada pelo interesse, enleada pela vergonha, muito infeliz!
- É como quem toma óleo de rícino! - disse a outra com um gesto cínico. E acrescentou, vendo o horror de Luísa: - Que diabo! Onde é que está a desonra, em pedir dinheiro emprestado? Todo o mundo pede...
Naquele momento outra carruagem, a largo trote, parou.
- Entra tu primeiro! Fala-lhe tu primeiro! - suplicou Luísa, erguendo as mãos para ela.
A campainha retiniu. Luísa, muito trêmula, muito branca, olhava para todos os lados com um olhar muito aberto, de susto, de ânsia, como procurando uma idéia, uma resolução ou um recanto para se esconder. Botas de homem rangeram na esteira da sala ao lado. Leopoldina então disse-lhe baixo, devagar, como para lhe cravar as palavras na alma, uma a uma.
- Lembra-te que daqui a uma hora podes estar salva, com as tuas cartas na algibeira, feliz, livre!
Luísa pôs-se de pé com uma decisão brusca. Foi pôr pó-de-arroz, alisou o cabelo - e entraram na sala.
Ao ver Luísa, o Castro teve um movimento surpreendido. Curvou-se, com os pés pequeninos muito juntos, inclinando a cabeça grossa, onde os cabelos muito finos alourados já rareavam.
Sobre o seu ventrezinho redondo, que a perna curta fazia parecer quase pançudo, o medalhão do relógio pousava com opulência. Trazia na mão um chicote, cujo cabo de prata representava uma Vênus retorcendo os braços. A pele tinha um rubor próspero; o bigode farto terminava em pontas agudas, empastadas em cera mostacha, de um aspecto napoleônico. E os seus óculos de ouro tinham um ar autoritário, bancário, amigo da Ordem. Parecia contente da vida como um pardal muito farto.
Com quê! Era necessário mandá-lo chamar para que se pusesse a vista em cima - começou logo Leopoldina. E depois de o apresentar a Luísa, "sua intima, sua amiga de colégio":
- Que tem feito, por que não tem aparecido?
O Castro repoltreou-se numa cadeira de braços, e batendo com o chicote nas botas, desculpou-se com os preparativos da partida...
- Sempre é verdade? Deixa-nos?
O Castro curvou-se:
- Além de amanhã. No Orenoque.
- Então desta vez os jornais não mentiram. E com demora?
- Per omnia saecula saeculorum.
Leopoldina pasmava. Deixar Lisboa! Um homem tão estimado, que se podia divertir tanto! - Pois não é verdade? - disse voltando-se para Luísa, para a tirar do seu silêncio embaraçado.
- Com certeza - murmurou ela.
Estava sentada à beira da cadeira, como assustada, pronta a fugir. E os olhares do Castro, insistentes por trás do reflexo dos óculos, incomodavam-na.
Leopoldina reclinara-se no sofá, e ameaçando-o com o dedo erguido:
- Ah! Aí nessa ida para França anda história de saias!
Ele negou frouxamente, com um sorriso fátuo.
Mas Leopoldina não achava as francesas bonitas - o que era é que tinham muito chique, muita animação...
O Castro declarou-as adoráveis. Sobretudo para a estroinice! Ah! Conhecia-as bem! Enfim, lá como mães de família não dizia. Mas para uma ceia, para um bocado de cancã não havia outras... - Afirmava-o com convicção, pois, como os burgueses "da sua roda", avaliava doze milhões de francesas por seis prostitutas do café-concerto - que tinha pago caro e enfastiado imenso!
Leopoldina, para o lisonjear, chamou-lhe estróina!
Ele sorria, deliciando-se, afiando as pontas do bigode:
- Calúnias, calúnias... - murmurava.
E Leopoldina voltando-se para Luísa:
- Comprou uma quinta magnífica em Bordéus, um palácio!...
E riam ambos de um modo muito afetado.
O Castro curvou-se então para Luísa:
- Tive o gosto de ver Vossa Excelência há tempos, na Rua do Ouro...
- Creio que também me lembro... - respondeu ela.
E ficaram calados. Leopoldina tossiu, sentou-se mais à beira do sofá e depois de sorrir:
- Pois eu mandei-o chamar porque temos uma coisa a dizer-lhe.
- Castro inclinou-se. O seu olhar não deixava Luísa, percorria-a com atrevimento, palpava-a.
- Aqui está o que é. Eu vou direita às coisas, sem preâmbulos. - E teve outro risinho. - Aqui a minha amiga está num grande apuro, e precisa um conto de réis.
Luísa acudiu, com a voz quase sumida:
- Seiscentos mil réis...
- Isso não importa - disse Leopoldina com uma indiferença opulenta estamos a falar com um milionário! A questão é esta: quer o meu amigo fazer o favor?
O Castro endireitou-se na cadeira, devagar, e com uma voz arrastada, ambígua:
- Certamente, certamente...
Leopoldina ergueu-se logo:
- Bem. Eu tenho ali no quarto a costureira à espera. Deixo-os falar do negócio.
E à porta do quarto, voltando-se para o Castro, ameaçando-o com o dedo, a voz muito alegre:
- Que o juro seja pequeno, hem?
E saiu, rindo.
O Castro disse logo a Luísa, curvando-se:
- Pois minha senhora, eu...
- A Leopoldina contou-lhe a verdade, estou numa grande aflição de dinheiro. E dirijo-me a si... São seiscentos mil réis... Procurarei pagar, o mais depressa...
- Oh, minha senhora! - fez o Castro com um gesto generoso. Começou então a dizer que compreendia perfeitamente, todo o mundo tinha os seus embaraços... Lamentava que a não tivesse conhecido há mais tempo... Sempre tivera uma grande simpatia por ela... Uma grande simpatia!...
Luísa calava-se, com os olhos baixos. Ele foi pousar o chicote na jardineira, veio sentar-se no sofá junto dela. Vendo o seu ar embaraçado, pediu-lhe que não se afligisse. Valia lá a pena por questões de dinheiro! Tinha o maior prazer em servir uma senhora nova, tão interessante... Fizera perfeitamente em se dirigir a ele. Conhecia casos em que senhoras se dirigiam a agiotas que as exploravam, eram indiscretos... - E falando tinha-lhe tomado a mão; o contato daquela pele apetecida, exaltando-lhe o desejo brutalmente, fazia-o respirar alto. Luísa, toda constrangida, nem retirara a mão; e Castro abrasado - como uma verbosidade um pouco rouca prometia tudo, tudo o que ela quisesse!... Os seus olhinhos arregalados devoravam-lhe o pescoço muito branco.
- Seiscentos mil réis..., o que quiser!...
- E quando? - disse Luísa muito perturbada.
Ele via-lhe o seio arfar - e sob a irrupção de um desejo brutal:
- Já!
Agarrou-a pela cinta, atirou-lhe um beijo voraz, quase lhe mordeu a face.
Luísa ergueu-se com o salto de uma mola de aço.
Mas o Castro escorregara sobre o tapete, de joelhos; e, prendendo-lhe sofregamente os vestidos:
- Dou-lhe o que quiser, mas sente-se! Há anos que tenho uma paixão por si. Escute! - Os seus braços trêmulos subiam; envolviam-na, e o que sentia das formas inflamava-o.
Luísa, sem ruído, repelia-lhe as mãos, recusava-se.
- O que quiser! Mas ouça! - balbuciava ele puxando-a violentamente para si. A concupiscência brutal dava-lhe uma respiração de touro.
Então, com um puxão desesperado às saias, ela soltou-se, recuando aflita:
- Deixe-me! Deixe-me!
O Castro ergueu-se, a bufar, e com os dentes cerrados, os braços abertos, rompeu para ela.
Diante daquela luxúria bestial, Luísa, indignada, agarrou instintivamente de sobre a jardineira o chicote e deu-lhe uma forte chicotada na mão.
A dor, a raiva, o desejo enfureceram-no.
- Seu diabo! - rosnou, rangendo os dentes.
Ia-se arremessar. Mas Luísa então, erguendo o braço, revolvida por uma cólera frenética, atirou-lhe chicotadas rapidamente pelos braços, pelos ombros - muito pálida, muito séria, com uma crueldade a reluzir-lhe nos olhos, gozando uma alegria de desforra em fustigar aquela carne gorda.
O Castro, assombrado, defendia-se vagamente, com os braços diante da cara, recuando; de repente, topou contra a jardineira; o candeeiro de porcelana oscilou, desequilibrou-se, rolou no chão com estilhaços de louça, e uma nódoa escura de azeite alastrou-se na esteira.
- Ai está! Vê? - disse Luísa toda a tremer, apertando ainda convulsivamente o chicote.
Leopoldina ao barulho correu, do quarto.
- Que foi? Que foi?
- Nada, estávamos a brincar - disse Luísa.
Atirou o chicote para o chão, saiu da sala.
O Castro, lívido de raiva, tinha agarrado o chapéu; e fixando terrivelmente Leopoldina:
- Agradecido! Conte comigo quando quiser!
- Mas que foi? Que foi?
- Até à vista! - rugiu o Castro. - E indo apanhar o chicote, sacudindo-o ameaçadoramente para o quarto, onde Luísa entrara:
- Grande bêbeda! - murmurou com rancor. E saiu, atirando com as portas.
Leopoldina, atônita, veio encontrar Luísa no quarto a pôr o chapéu, com as ainda trêmulas, os olhos muito brilhantes, satisfeita.
- Chegou-me cá uma coisa, e enchi-lhe a cara de chicotadas - disse ela.
Leopoldina esteve um momento a olhá-la petrificada.
- Bateste-lhe?... - E de repente dasatou a rir, convulsivamente. - O Castro de óculos, o Castro coberto de chicotadas! O Castro a levar uma coça! - Atirou-se para cima da chaise longue, rolou-se; sufocava. - Até já tinha uma pontada, Jesus! O Castro!... Vir a uma casa amiga, levar o tiro de seiscentos mil réis e ser corrido a chicote!... Com o seu próprio chicote!... Oh! Era para estourar!...
- O pior foi o candeeiro - disse Luísa.
Leopoldina ergueu-se, de salto.
E o azeite! Ai que agouro! - Correu à sala. Luísa veio encontrá-la diante da nódoa escura, com os braços cruzados, como se visse, toda pálida, catástrofes avizinharem-se. - Que agouro, Santo Deus!
- Deita-lhe sal depressa.
- Faz bem?
- Quebra o agouro.
Leopoldina correu a buscar sal; e de joelhos, salgando a nódoa;
- Ai! Nossa Senhora permita que não haja nada mau! Mas que caso este, que caso este! E agora, filha?
Luísa encolheu os ombros.
- Eu sei cá! Sofrer!...
CAPÍTULO XII
Nessa semana, uma manhã, Jorge, que se não recordava que era dia de gala, encontrou a secretaria fechada e voltou para casa ao meio-dia. Joana à porta conversava com a velha que comprava os ossos; a cancela em cima estava aberta; e Jorge, chegando despercebido ao quarto, surpreendeu Juliana comodamente deitada na chaise longue, lendo tranqüilamente o jornal.
Ergueu-se, muito vermelha, mal o viu, balbuciou:
- Peço desculpa, tinha-me dado uma palpitação tão forte...
- Que se pôs a ler o jornal, hem?... - disse Jorge, apertando instintivamente o castão da bengala. - Onde está a senhora?
- Deve estar para a sala de jantar - disse Juliana, que se pôs logo a varrer, muito apressada.
Jorge não encontrou Luísa na sala de jantar; foi dar com ela no quarto dos engomados, despenteada, em roupão de manhã, passando roupa, muito aplicada e muito desconsolada.
- Tu estás a engomar? - exclamou.
Luísa corou um pouco, pousou o ferro. - A Juliana estava adoentada, juntara-se uma carga
de roupa...
- Dize-me cá, quem é aqui a criada e quem é aqui a senhora?
A sua voz era tão áspera, que Luísa fez-se pálida, murmurou:
- Que queres tu dizer?
- Quero dizer que te venho encontrar a ti a engomar, e que a encontrei a ela lá embaixo muito repimpada na tua cadeira, a ler o jornal!
Luísa, atarantada, abaixou-se sobre o cesto da roupa lavada, começou a remexer, a desdobrar, a sacudir com a mão trêmula...
- Tu não podes fazer idéia do que aqui vai por fazer - ia dizendo. - É a limpeza, são os engomados, é um servição. A pobre de Cristo tem estado doente...
- Pois se está doente que vá para o hospital!
- Não, também não tens razão!
Aquela insistência em defender a outra, que se repoltreava embaixo na sua chaise longue, exasperou-o:
- Dize cá, tu dependes dela? Havia de dizer que tens medo dela!
- Ah! Se estás com esse gênio! - fez Luísa com os beiços trêmulos, uma lágrima já nas pálpebras.
Mas Jorge continuava muito zangado:
- Não, essas condescendências hão de acabar por uma vez! Ver aquele estafermo, com os pés para a cova, a prosperar em minha casa, a deitar-se nas minhas cadeiras, a passear, e tu a defendê-la, a fazer-lhe o serviço, ah! Não! É necessário acabar com isso. Sempre desculpas! Sempre desculpas! Se não pode que arreie. Que vá para o hospital, que vá para o inferno.
Luísa lavada em lágrimas assoava-se, soluçando.
- Bem! Agora choras. Que tens tu? Por que choras? Ela não respondia, num grande pranto.
- Por que choras, filha? - perguntou ele com uma impaciência comovida, chegando-se a ela.
- Para que me falas tu assim? - dizia, toda soluçante, limpando os olhos. Sabes que estou doente, nervosa, e tens mau gênio para mim! O que me sabes dizer são coisas desagradáveis.
- Coisas desagradáveis! Minha filha, eu disse-te lá nada desagradável! - E abraçou-a, ternamente.
Mas ela desprendeu-se, e com a voz cortada de soluços:
- Então é algum crime estar a engomar? Porque trabalho, porque trato das minhas coisas, zangas-te? Querias que eu fosse uma desarranjada? A mulher tem estado doente! Enquanto se não arranja outra é necessário fazer as coisas... Mas tu falas, falas! Para me afligir!...
- Estás a dizer tolices, filha. Não estás em ti. Eu o que não quero é que te canses!
- Para que dizes então que tenho medo dela? - E as lágrimas recomeçavam. - Medo de quê? Por que hei de eu ter medo dela? Que despropósito!
- Pois bem, não digo. Não se fala mais na criatura. Mas não chores... Vá, acabou-se - Beijou-a. E tomando-a pela cinta, levando-a docemente: - Vá, o ferro agora. Vem! Que criança que tu és!
Por bondade, por consideração com os nervos de Luísa, Jorge durante alguns dias não falou na criatura. Mas pensava nela; e aquele estafermo, com os pés para a cova, em sua casa, exasperava-o. Depois as madracices que lhe percebera, os confortos do quarto que vira na noite em que ela desmaiara, aquela bondade ridícula de Luísa!... Achava aquilo estranho, irritante!... Como estava fora de casa todo o dia, e diante dele Juliana só tinha sorrisos para Luísa, muitas atitudes de afeto, imaginava que ela se soubera insinuar e, pelas pequenas intimidades de ama a criada, se tomara necessária e estimada. Isso aumentava a sua antipatia. E não a disfarçava.
Luísa vendo-o às vezes seguir Juliana com um olhar rancoroso, tremia! Mas o que a torturava era a maneira que Jorge adotara de falar dela com uma veneração irônica; chamava-lhe "a ilustre D. Juliana, a minha ama e senhora!" Se faltava um guardanapo ou um copo, fingia-se espantado: "Como! a D. Juliana esqueceu-se! Uma pessoa tão perfeita!" Tinha gracejos que gelavam Luísa.
- A que sabia o filtro que ela te deu? Era bom?
Luísa agora, diante dele, já nem se atrevia a falar a Juliana com um modo natural; temia os sorrisos malignos, os apartes: "Anda, atira-lhe um beijo, conhece-se na cara que estás com vontade de lho atirar!" E, receando as suspeitas dele, querendo mostrar-se independente, começou na sua presença, a falar a Juliana com uma dureza brusca, muito afetada. A pedir-lhe água, uma faca, dava à voz inflexões de um rancor postiço.
Juliana, muito fina, tinha percebido tudo, e suportava calada. Queria evitar toda a questão que a perturbasse no seu conchego. Sentia-se agora muito mal, e nas noites em que não podia dormir com aflições asmáticas, punha-se a pensar com terror - se fosse expulsa daquela casa, para onde iria? Para o hospital!
Tinha por isso medo de Jorge.
- Ele está morto por me pilhar em desleixo grosso, e descartar-se de mim - dizia ela à tia Vitória -, mas não lhe hei de dar esse gosto, ao boi manso!
E Luísa, pasmada, vira-a pouco a pouco recomeçar a fazer todo o serviço, com zelo, aparentemente; e todavia às vezes não podia, vencida pela doença; tinha flatos que a faziam cair numa cadeira, arquejando, com as mãos no coração. Mas reagia. Uma ocasião mesmo vendo Luísa a passar um espanejador pelas consolas da sala, zangou-se:
- A senhora faz favor de se não meter no meu serviço? Eu ainda posso! Ainda não estou na cova!
Consolava-se então com regalos de gulodice. Durante todo o dia debicava sopinhas, croquetes, pudinzinhos de batata. Tinha no quarto gelatina e vinho do Porto. Em certos dias mesmo queria caldos de galinha à noite.
- Com o meu corpo o pago - dizia ela a Joana -, que trabalho como uma negra! Arraso-me!
Um dia, porém, que Jorge se irritara mais com a figura amarelada de Juliana, e que estava nervoso, ao achar à noite o jarro vazio e o lavatório sem toalha, enfureceu-se desproporcionadamente.
- Não estou para aturar estes desleixos! Irra! - gritou.
Luísa veio logo, inquieta, desculpar Juliana.
Jorge mordeu o beiço, curvou-se profundamente e com a voz um pouco trêmula:
- Perdão! Esquecia-me que a pessoa de Juliana é sagrada! Eu mesmo vou buscar água!
Luísa então zangou-se: se havia de estar sempre com aqueles remoques, era mandar a criada embora por uma vez! Imaginava talvez que ela amava de paixão Juliana? Se a conservava é porque era uma boa criada. Mas se ela se tornava a causa de maus humores, de questões, se ele lhe ganhara tamanho ódio, bem, então que se fosse! Era uma seca aquela ironia constante... Jorge não respondeu.
E durante a noite Luísa, sem dormir, pensava que aquilo não podia durar! Estava farta! Aturar a mulher, a sua tirania, e ouvir a todo o momento ditinhos, alusões, ah, não! Era demais! Bastava! Ele começava a desconfiar, a bomba ia estalar! Pois bem, ela mesma chegaria o lume ao rastilho! Ia mandar a Juliana embora! E que mostrasse as cartas, acabou-se! Se ele a metesse num convento, se separasse dela, bem! Sofreria, morreria! Tudo, menos aquele martírio reles, às picadinhas, medonho e grotesco!
- Que tens tu? - perguntou Jorge meio a dormir, sentindo-a inquieta.
- Espertina.
- Coitada! Conta cento e cinqüenta para trás! - E voltou-se, enrolando-se comodamente na roupa.
Ao outro dia Jorge levantara-se cedo. Devia encontrar-se com o Alonso, o espanhol das minas, e jantar com ele no Gibraltar. Depois de vestido foi à sala de jantar - eram dez horas - e voltou dizer a Luísa, com uma cortesia profunda, espaçando as palavras: - que não estava a mesa posta! Que as chávenas do chá « da véspera estavam ainda por lavar! E que a senhora D. Juliana, a ilustre senhora D. Juliana tinha saído, a seu passeio!
Eu disse-lhe ontem à noite que me fosse-me ao sapateiro... - começou Luísa, que vestia o seu roupão.
- Ah, perdão! - interrompeu Jorge muito cerimoniosamente.
- Esqueci-me outra vez que se trata de Juliana, tua ama e senhora! Perdão!
Luísa acudiu logo:
- Não. Tens razão. Tu verás! É preciso pôr um cobro...
Subiu logo à cozinha, desesperada:
- Você por que não pôs a mesa, Joana, se a outra saiu?
Mas a rapariga não ouvira sair a Sra. Juliana! Imaginara que estava para baixo, para sala! Como ela agora é que queria fazer tudo!...
Quando Joana trouxe o almoço daí a pouco Jorge veio sentar-se à mesa, torcendo muito nervosamente o bigode. Levantou-se duas vezes com um sorriso mudo para ir buscar uma colher, o açucareiro. Luísa via-lhe os músculos da face contraídos: mal podia comer, atarantada; a chávena, quando a erguia, tremia-lhe mão; com os olhos baixos espreitava Jorge às furtadelas, e o seu silêncio torturava-a.
- Tu falaste ontem que ias jantar fora hoje...
- Vou - disse secamente. E acrescentou: - Graças a Deus!
- Estás de bom humor!... - murmurou ela.
- Como vês!
Luísa fez-se pálida, pousou o talher; tomou o jornal para disfarçar uma lagrimazinha que lhe tremia na pálpebra; mas as letras confundiam-se, sentia pular o coração. De repente a campainha tocou. Era a outra, decerto!
Jorge, que se ia erguer, disse logo:
- Há de ser essa senhora. Ora, vou-lhe dizer duas palavras...
E ficou de pé, junto à mesa, aguçando devagar um palito.
Luísa, a tremer, levantou-se também:
- Eu vou-lhe falar...
Jorge reteve-a pelo braço, e tranqüilamente:
- Não, deixa-a vir. Deixa-me gozar!...
Luísa recaiu na cadeira, muito pálida.
Os tacões de Juliana soaram no corredor. Jorge aguçava tranqüilamente o seu palito.
Luísa então voltou-se para ele, e batendo as mãos, aflita:
- Não lhe digas nada!...
Ele fixou-a, assombrado:
- Por quê?
Juliana neste momento abriu o reposteiro.
- Então que desaforo é este, sair e deixar tudo por arrumar? - disse-lhe Luísa logo, erguendo-se.
Juliana, que vinha sorrindo, estacou à porta, petrificada: apesar de sua amarelidão, uma vaga cor de sangue espalhou-se nas feições.
- Não lhe torne acontecer semelhante coisa, ouviu? A sua obrigação é estar em casa pela manhã... - Mas o olhar de Juliana, que se cravava nela terrivelmente, emudeceu-a. Agarrou no bule com as mãos trêmulas. - Deite água neste bule, vá!
Juliana não se mexeu.
- Você não ouviu? - berrou de repente Jorge. E atirou uma punhada à mesa, que fez saltar a louça.
- Jorge! - gritou Luísa, agarrando-lhe no braço.
Mas Juliana fugira da sala, correndo.
- E logo na rua! - exclamou Jorge. - Faze-lhe as contas e que se vá. Ah! Estou farto! Nem mais um dia! Se a tomo a ver, desfaço-a! Até que enfim! Chegou-me a minha vez!
Foi buscar o paletó, muito excitado, e antes de sair, voltando à sala:
- E que se vá hoje mesmo, ouviste? Nem uma hora a mais! Há quinze dias que a trago aqui atravessada. Para a rua!
Luísa veio para o quarto quase sem se poder suster. Estava perdida! Estava perdida! Uma multidão de idéias, todas extremas e insensatas, redemoinhava no seu cérebro como um montão de folhas secas numa ventania: queria fugir, atirar-se ao rio, de noite; arrependia-se de não ter cedido ao Castro... De repente imaginou Jorge abrindo as cartas que Juliana lhe entregava, lendo: "Meu adorado Basílio!" Então uma cobardia imensa, amoleceu-lhe a alma. Correu ao quarto de Juliana, ia suplicar-lhe que lhe perdoasse, que ficasse, que a martirizasse!... E depois? Diria que a Juliana chorara, se atirara de joelhos! Mentiria, cobri-lo-ia de beijos... Era nova, era bonita, era ardente - convencê-lo-ia!
Juliana não estava no quarto. Subiu à cozinha; estava lá, sentada, com os olhos chamejantes, os braços nervosamente cruzados, numa raiva muda. Apenas viu Luísa, deu um salto sobre os calhares, e mostrando-lhe o punho, berrou:
- Olhe que a primeira vez que você me torne a falar como hoje, vai aqui tudo raso nesta casa!
- Cale-se, sua infame! - gritou Luísa.
- Você manda-me calar, sua p...! - E Juliana disse a palavra.
Mas a Joana correu, atirou-lhe pelo queixo uma bofetada que a fez cair, com um gemido, sobre os joelhos.
- Mulher! - bradou Luísa arremessando-se sobre a Joana, agarrando-a pelos braços.
Juliana, assombrada, fugiu.
- Ó Joana! Ó mulher! Que desgraça, que escândalo! - exclamava Luísa as mãos apertadas na cabeça.
- Racho-a! - dizia a rapariga com os dentes cerrados, os olhos como brasas - Racho-a!
Luísa andava em volta da mesa da cozinha, automaticamente, pálida como repetindo, toda a tremer:
- O que você foi fazer, mulher! O que você foi fazer!
A Joana, ainda toda revolvida de sua cólera, com o rosto manchado de vermelho, remexia furiosamente as panelas.
- E se ela me diz uma palavra, acabo-a, aquela bêbeda! Acabo-a!
Luísa desceu ao quarto. No corredor saiu-lhe Juliana, com a cuia à banda, as dedadas escarlates na face, medonha.
- Ou aquela desavergonhada vai já para a rua - gritou ela - ou eu vou-me pôr lá embaixo na escada, e quando o seu homem vier, mostro-lhe tudo!...
- Pois mostre, faça o que quiser! - disse Luísa, passando, sem a olhar.
Fora uma desesperação, um ódio que a tinham decidido. Mais valia acabar por uma vez!...
Sentia então como um alívio doloroso, em ver o fim do seu longo martírio! Havia meses que ele durava. E pensando em tudo o que tinha feito e que tinha sofrido, as infâmias em que chafurdara e as humilhações a que descera, vinha-lhe um tédio de si mesma, um nojo imenso da vida. Parecia-lhe que a tinham sujado e espezinhado; que nela nem havia orgulho intacto, nem sentimento limpo; que tudo em si, no seu corpo e na sua alma, estava enxovalhado, como um trapo que foi pisado por uma multidão, sobre a lama. Não valia a pena lutar por uma vida tão vil. O convento seria já uma purificação, a morte uma purificação maior... - E onde estava ele, o homem que a desgraçara? Em Paris, retorcendo a guia dos bigodes, chalaceando, governando os seus cavalos, dormindo com outras! E ela morreria ali, estupidamente! E quando lhe escrevera a pedir-lhe que a salvasse, nem uma palavra de resposta; nem a julgara digna do meio tostão da estampilha! O que ele lhe dizia pelas terras da Pólvora acima, naquela cupê: - Dar-lhe-ia toda a sua vida, viveria à sombra das suas saias! O infame! Já tinha talvez no bolso o bilhete da passagem! Enquanto ela fora a mulher alegre, que vem, despe o corpete, mostra um lindo colo - então bem, pronto! Mas teve uma dificuldade, chorou, sofreu - ah! não, isso não! "És um belo animal que me dás um grande prazer - perfeitamente, tudo o que quiseres; mas tornas-te uma criatura dolorida que precisa consolações, talvez uns poucos de centos de mil réis - então boas noites, cá vou no paquete!" Oh, que estúpida que é a vida! Ainda bem que a deixava!
Foi-se encostar à janela. Estava um dia muito azul, muito doce. O sol punha grandes claridades de um dourado ligeiro sobre as paredes brancas, sobre a calçada. E havia no ar uma suavidade aveludada. O Paula, em chinelas de tapete, aquecia-se à porta do estanque. Então, diante do lindo ar de inverno, enterneceu-se. Todos eram felizes naquela manhã de rosas, só ela sofria, pobre dela! E ficou a olhar, como esquecida numa vaga saudade, com uma lágrima na pálpebra... De repente viu Juliana atravessar a rua, dobrar a esquina - e daí a pouco voltar com um galego, velho e pesado, que trazia o seu saco ao ombro.
Ia-se embora! - pensou Luísa. - Mandava por fora os baús! E depois? Remetia as cartas a Jorge, ou entregava-lhas ela mesma, no portal! Santo Deus! - E parecia-lhe ver Jorge aparecer no quarto, lívido, com as cartas na mão!...
Veio-lhe um terror alucinado: não queria perder o seu marido, o seu Jorge, o seu amor, a sua casa, o seu homem! Apossou-se dela a revolta da fêmea contra a viuvez; aos vinte e cinco anos ir murchar para um convento! Não, com os diabos!
Foi direita ao quarto de Juliana.
- Vem ver se lhe levo alguma coisa? - gritou logo a outra, furiosa.
Sobre a cama estava roupa branca espalhada, pelo chão botinas embrulhadas em jornais velhos.
- E ainda cá me ficam quatro camisas, dois pares de calcinhas, três pares de meias, seis punhos na lavadeira. Fica aí o rol. E quero as minhas contas!...
- Escute, Juliana, não se vá. - Mas a voz desapareceu-lhe, as lágrimas saltaram-lhe dos olhos.
Juliana pôs-se a olhar para ela do alto, triunfando, com uma botina de duraque em cada mão.
- É mandar aquela desavergonhada embora, e está tudo acabado! - E com uma voz aguda, batendo as solas das botinas: - Fica tudo como dantes, na paz do Senhor!
Uma alegria extraordinária acendia-lhe o olhar. Vingava-se!
Fazia-a chorar! Expulsava a outra! E não perdia os seus cômodos!
- É pôr a bêbeda na rua! É pô-la na rua!
Luísa curvou os ombros, foi à cozinha devagar; os degraus da escada pareciam-lhe imensos, infindáveis. Deixou-se cair num banco, e limpando os olhos:
- Joana, venha cá, escute, você não pode continuar na casa...
A rapariga ficou a olhar para ela, espantada.
- O que a Juliana disse foi num repente... Tem estado a chorar, a arrepender-se. É a criada mais antiga. O senhor estima-a muito...
- Então a senhora manda-me embora? Então a senhora manda-me embora?
Luísa insistiu, baixo, envergonhada:
- Foi um repente, tem estado a pedir perdão...
- Eu foi para defender a senhora! - exclamou a rapariga abrindo os braços aflita.
Luísa sentiu-se indignada; e impaciente, para acabar:
- Bem, Joana, não estejamos com mais. Eu é que sou a dona da casa...
- Vou-lhe fazer as contas.
- Olha que pago este! - gritou Joana, então, desesperada. E com uma solução, batendo o pé:
- Pois o senhor é que há de dizer! Eu vou dizer tudo ao senhor! Hei de lhe contar tudo o que se passou! A senhora não tem razão!...
Luísa olhava-a, estúpida. Agora era aquela! Era daquela rapariga, teimosa na sua justiça, que vinha o desastre! Era demais! Veio-lhe um terror, sobrenatural, como um espanto da consciência, e apertando as fontes nas mãos abertas:
- Que expiação! Que expiação, Santo Deus!
De repente, como desvairada, agarrou Joana pelos braços, e falando-lhe junto do rosto:
Joana, vá-se pelo amor de Deus, vá-se! Não diga nada! Despeça-se você! - E perdendo inteiramente todo o respeito próprio, caiu de joelhos, diante da cozinheira, soluçando: - Pelas cinco chagas de Cristo, vá, Joana, minha rica vá! Peço-lhe eu, Joana! Pelo amor de Deus!
A rapariga, assombrada, rompeu num choro estridente:
- Sim, Joana, sim. Eu dou-lhe alguma coisa. Você bem vê... Não chore... Espere...
Desceu ao quarto correndo, tirou da gaveta duas libras das suas economias, voltou, galgando os degraus, meteu-lhas na mão, dizendo-lhe baixo:
- Faça uma trouxa, eu amanhã lhe mandarei o baú.
- Sim, minha senhora, - soluçava a rapariga, babada de dor - sim, minha rica senhora!
Luísa veio deixar-se cair de bruços sobre a sua chaise longue, num choro convulsivo também, desejando a morte, pedindo, num terror, piedade a Deus!
Mas a voz áspera de Juliana disse bruscamente à porta:
- Então em que ficamos?
A Joana vai-se. Que quer mais?
- Que saia já! disse a outra imperiosamente. - Que o jantar o faço eu. Por hoje, já se vê!
As lágrimas de Luísa secavam-se, de raiva.
- E a senhora agora ouça!
O tom de Juliana era tão insultante, que Luísa ergueu-se como ferida.
E Juliana, ameaçando-a, do alto, com o dedo erguido:
- E a senhora agora é andar-me direita, senão eu lhas cantarei!...
E voltou as costas, batendo os tacões.
Luísa olhou em roda, como se um raio tivesse atravessado o quarto; mas tudo estava imóvel e correto; nem uma prega das cortinas se movera, e os dois pastorinhos de porcelana sobre o toucador sorriam pretensiosamente.
Então tirou o roupão violentamente, passou um vestido sem apertar o corpete, vestiu por cima um casaco largo de inverno, atirou o chapéu para a cabeça despenteada, saiu, desceu a rua tropeçando nas saias, quase a correr.
O Paula saltou para o meio da rua para a seguir; viu-a parar à porta de Sebastião, e veio dizer à estanqueira:
- Em casa do Engenheiro há novidade!
E ficou plantado à porta com os olhos cravados para as janelas abertas, onde as bambinelas de repes verdes caiam com as suas pregas imóveis.
- O Sr. Sebastião? - perguntava Luísa à rapariguita sardenta, que correra a abrir a porta.
E ia entrando pelo corredor.
- Na sala - disse a pequena.
Luísa subiu; sentia sons de piano; abriu violentamente a porta e correndo para ele, apertando as mãos contra o peito, numa voz angustiosa e sumida:
- Sebastião, escrevi uma carta a um homem, a Juliana apanhou-ma. Estou perdida!
Ele ergueu-se devagar, assombrado, muito branco; viu-lhe o rosto manchado, o chapéu malposto, a aflição do olhar.
- Que é? Que é?
- Escrevi a meu primo - repetiu, com os olhos cravados nele, ansiosamente - a mulher apanhou-me a carta... Estou perdida!
Fez-se muito pálida, os olhos cerraram-se-lhe.
Sebastião amparou-a, levou-a meio desmaiada para o sofá de damasco amarelo. E ficou de pé, mais descorado que ela, com as mãos nos bolsos do seu jaquetão azul, imóvel, estúpido.
De repente correu fora, trouxe um copo de água, borrifou-lhe o rosto ao acaso. Ela abriu os olhos, as suas mãos errantes apalparam em redor, fitou-o espantada, e deixando-se cair sobre o braço do canapé, com o rosto escondido nas mãos, rompeu num choro histérico.
O seu chapéu caíra. Sebastião apanhou-o, sacudiu-lhe delicadamente as flores, pô-lo sobre a jardineira com cuidado; e vindo nas pontas dos pés debruçar-se junto dela:
- Então! Então! - murmurava. E as suas mãos, tocando-lhe de leve o braço, tremiam como folhas.
Quis dar-lhe água para a sossegar: ela recusou com a mão, endireitou-se devagar no sofá, limpando os olhos, assoando-se com grandes soluços.
- Desculpe, Sebastião, desculpe - dizia. Bebeu então um gole de água, ficou com as mãos no regaço, quebrada; e, uma a uma, as suas lágrimas silenciosas caíam sem cessar.
Sebastião foi fechar a porta - e vindo ao pé dela com muita doçura:
- Mas então? Que foi?
Ela ergueu para ele a sua face chorosa, onde os olhos brilhavam febrilmente, olhou-o um momento, e deixando pender a cabeça, toda humilhada:
- Uma desgraça, Sebastião, uma vergonha! - murmurou.
- Não se aflija! Não se aflija!
Sentou-se ao pé dela, e baixo, com solenidade:
- Tudo o que eu puder, tudo o que for necessário, aqui me tem!
- Oh, Sebastião!... - exclamou num impulso de reconhecimento humilde; e acrescentou: - Acredite, tenho sido bem castigada! O que eu tenho sofrido, Sebastião!
Esteve um momento com os olhos cravados no chão; e agarrando-lhe o braço de repente, com força, as palavras romperam abundantes e precipitadas, como os borbulhões de uma água comprimida que rebenta.
- Apanhou-me a carta, não sei como, por um descuido meu! Ao princípio pediu-me seiscentos mil réis. Depois começou a martirizar-me... Tive de lhe dar vestidos, roupa, tudo! Mudou de quarto, servia-se dos meus lençóis, dos finos. Era a dona da casa. O serviço quem o faz sou eu!... Ameaça-me todos os dias; é um monstro. Tudo tem sido baldado, boas palavras, bons modos... E onde tenho eu dinheiro? Pois não é verdade? Ela bem via... O que eu tenho sofrido! Dizem que estou mais magra, até o Sebastião reparou. A minha vida é um inferno. Se Jorge soubesse!... Aquela infame queria hoje dizer-lhe tudo!... E trabalho como uma negra. Logo pela manhã a limpar e varrer. Às vezes tenho de lavar as xícaras do almoço. Tenha piedade de mim, Sebastião, por quem é, Sebastião! Coitada de mim, não tenho ninguém neste mundo!
E chorava, com as mãos sobre o rosto.
Sebastião, calado, mordia o beiço; duas lágrimas rolavam-lhe também pela
face, sobre a barba. E levantando-se, devagar:
- Mas Santo nome de Deus, minha senhora! Por que não me disse há mais tempo?
- Ó Sebastião, podia lá! Uma vez estive pra lho dizer... Mas não pude, não pude!
- Fez mal...
- Esta manhã o Jorge quis pô-la fora. Embirra com ela, percebe os desmazelos. Mas não desconfia de nada, Sebastião!... - E desviou os olhos, muito escarlate. - Escarnecia-me às vezes por eu parecer tão apaixonada por ela... Mas esta manhã zangou-se, mandou-a embora. Apenas ele saiu, veio como uma fúria, insultou-me...
- Santo Deus! - murmurava Sebastião assombrado, com a mão sobre a testa.
- Talvez não acredite, Sebastião, sou eu que faço os despejos!...
- Mas merece a morte, esta infame! - exclamou batendo com o pé no chão.
Deu alguns passos pesados pela sala, devagar, as mãos nos bolsos, os seus largos ombros curvados. Voltou a sentar-se ao pé dela, e tocando-lhe timidamente no braço, muito baixo:
- É necessário tirar-lhe as cartas...
- Mas como?
Sebastião coçava a barba, a testa.
- Há de se arranjar - disse, por fim.
Ela agarrou-lhe a mão:
- Oh, Sebastião, se fizesse isso!
- Há de se arranjar.
Esteve um momento calculando - e com o seu tom grave:
- Eu vou-me entender com ela... É necessário que ela esteja só em casa... Podiam ir ao teatro, esta noite.
Levantou-se lentamente, foi buscar o Jornal do Comércio sobre a mesa, olhou os anúncios:
- Podiam ir a São Carlos, que acaba mais tarde... É o Fausto... Podiam ir ver o Fausto...
- Podíamos ir ver o Fausto... - repetiu Luísa, suspirando.
E então, muito chegados, ao canto do sofá, Sebastião foi-lhe dizendo um plano, em palavras baixas, que ela devorava, ansiosa.
Devia escrever a D. Felicidade, para a acompanhar ao teatro... Mandar um recado a Jorge, prevenindo-o que o iriam buscar ao Hotel Gibraltar... E a Joana? A Joana deixara a casa. Bem. Às nove horas, então. Juliana estaria só.
- Vê como tudo se arranja? - disse ele, sorrindo.
Era verdade... Mas daria a mulher as cartas?
Sebastião tornou a coçar a barba, a testa:
- Há de dar - disse.
Luísa olhava-o quase com ternura: parecia-lhe ver, na sua face honesta, uma alta beleza moral. E de pé diante dele, com uma melancolia na voz:
- E vai fazer isso por mim, Sebastião, por mim, que fui tão má mulher...
Sebastião corou, respondeu encolhendo os ombros:
- Não há más mulheres, minha rica senhora, há maus homens, é o que há!
E acrescentou logo:
- Eu vou buscar o camarote. Uma boa frisa, hem?... Uma frisazinha ao pé do palco...
Sorria para a tranqüilizar. Ela punha o chapéu, descia o véu com pequeninos soluços tristes, que voltavam a espaços.
No corredor encontraram a tia Joana com os braços abertos: beijou muito Luísa; aquela visita era um milagre! E que bonita que estava! Era a flor do bairro!
- Está bom, tia Joana, está bom - disse Sebastião, afastando-a brandamente.
Ora que não fosse metediço! Já lá a tinha tido mais de meia hora, também ela agora a queria um bocadinho! Assim é que ele devia ter uma mulherzinha! Uma rapariga de bem! Uma açucena!
Luísa corava, embaraçada.
E o Sr. Jorge? Que era feito dele? Ninguém o via. E a D. Felicidade?
- Está bom, basta, tia Joana! - fez Sebastião impaciente.
- Olha o sôfrego!... Ninguém lhe come a menina!... Cruzes!...
Luísa sorriu; lembrou-se então de repente que não tinha por quem mandar os bilhetes a D. Felicidade e a Jorge, ao hotel. Sebastião fê-la entrar logo embaixo no escritório: que escrevesse, ele os mandaria; escolheu-lhe o papel, molhando-lhe a pena - mais pronto, mais dedicado desde que a sabia infeliz. Luísa fez o bilhete para Jorge; e como apesar das suas aflições, se lembrou com terror de certo vestido verde decotado de D. Felicidade, acrescentou num P.S., no bilhete para ela: "o melhor é vires de preto, e não fazeres grande toalete. Nada de decotes nem de cores claras".
Quando entrou em casa, viu um galego saindo com a trouxazita de Joana. E logo no corredor sentiu a voz grossa da rapariga, que das escadas da cozinha dizia para cima, ameaçadoramente:
- Torne eu a apanhá-la, que não me sai viva das mãos, sua bêbeda!
- Bufa! Bufa! - gritou de cima Juliana. - Mas vai-te indo para o olho da rua!
Luísa escutava mordendo os beiços. Em que se convertera a sua casa! Uma praça! Uma taberna!
- Se eu te apanho! - rosnava a Joana descendo.
- Rua! Rua, sua porca! - gania a Juliana.
Luísa então chamou a rapariga:
- Joana, não procure casa, venha por aqui além de amanhã - disse-lhe baixo.
Juliana em cima cantava a Carta Adorada, com um júbilo estridente.
E daí a pouco desceu, veio dizer, muito secamente, que estava o jantar na mesa.
Luísa não respondeu. Esperou que ela subisse à cozinha, correu à sala de jantar, trouxe pão, um prato de marmelada, uma faca, veio fechar-se no quarto; - e ali jantou, a um canto da jardineira.
Às seis horas um trem parou à porta. Devia ser Sebastião! Foi ela mesma abrir, em bicos de pés. Era ele, animado, vermelho, com o chapéu na mão: trazia-lhe a chave da frisa número dezoito...
- E isto...
Era um ramo de camélias vermelhas, rodeadas de violetas dobradas.
- Oh, Sebastião! - murmurou ela, com um reconhecimento comovido.
- E carruagem, tem?
- Não.
- Eu cá mando. As oito, hem?
E desceu, todo feliz de a servir. Ela seguiu-o com o olhar que se umedecia. Foi à janela do quarto vê-lo sair. - Que homem!" - pensava. E cheirava as violetas, voltava o ramo na mão, sentia também um prazer doce na proteção dele, nos seus cuidados.
Nós de dedos bateram à porta do quarto:
- Então a senhora não quer jantar? - disse a voz impaciente de Juliana, de fora.
- Não.
- Mais fica!
D. Felicidade veio um pouco antes das oito. Luísa ficou tranqüila, vendo-a com vestido preto afogado, e o seu adereço de esmeraldas.
- Então que é isto? Que estroinice é esta, vamos a saber? - disse logo, muito alegre, a excelente senhora.
Um capricho! - O Jorge tinha jantado fora, ela sentira-se tão só!... Dera-lhe o apetite de ir ao teatro. Não pudera resistir... Tinham de o ir buscar pelo Hotel Gibraltar.
- Eu tinha acabado de jantar quando recebi o teu bilhete. Fiquei!... E estive para não vir - disse, sentando-se, com pancadinhas muito satisfeitas nas pregas do vestido. - Apertar-me depois de jantar! Felizmente não tinha comido quase nada!
Quis então saber o que ia. O Fausto? Ainda bem! De que lado era a frisa? Dezoito. Perdiam a vista da família real, era pena!... Pois estava mais longe daquela noitada de teatro!... - E erguendo-se passeava diante do toucador com olhares de lado, alisando os bandós, ajeitando as pulseiras, entalada nos espartilhos, a pupila luzidia.
Uma carruagem parou à porta.
- O trem! - disse, toda risonha.
Luísa calçando as luvas, já com a capa, olhava em redor: o coração batia-lhe alto; nos seus olhos havia uma febre. Não lhe faltava nada? - perguntou D. Felicidade. A chave da frisa? O lenço?
- Ai! O meu ramo! - exclamou Luísa.
Juliana ficou espantada quando a viu vestida para teatro. Foi alumiar, calada; e atirando a cancela com uma pancada insolente:
- Não tem mesmo vergonha naquela cara! - rosnou.
O trem já rodava quando D. Felicidade rompeu a gritar, batendo nos vidros:
- Ai? - Espere, pare! Que ferro, esqueceu-me o leque! Não posso ir sem leque!
- Pare, cocheiro!
- Faz-se tarde, filha, dou-te o meu. Toma! - fez Luísa impaciente.
Aquelas agitações abalavam a digestão comprimida de D. Felicidade; felizmente, como ela dizia, arrotava! Graças a Deus, louvada seja Nossa Senhora, que podia arrotar!
Mas a descida do Chiado alegrou-a muito. Grupos escuros, onde se gesticulava, destacavam às portas vivamente alumiadas da Casa Havanesa; os trens passavam para o lado do Picadeiro, com um rápido reluzir de lanternas ricas, que alumiavam as bandas brancas dos capotes dos criados. D. Felicidade, com a sua face jubilosa à portinhola, gozava a claridade do gás nas vitrinas, o ar de inverno; e foi com uma satisfação que viu o guarda-portão do Gibraltar, de calções vermelhos, vir com o boné na mão, à portinhola.
Perguntaram por Jorge.
E caladas, olhavam a escada de lance decorativo onde globos foscos derramavam uma luz doce. D. Felicidade, muito curiosa da "vida de hotel", reparou na engomadeira que entrou com um cesto de roupa; depois numa senhora que lhe pareceu estabanada, e que descia, vestida de soirée, mostrando o pé calçado num sapato redondo de cetim branco; e sorria de ver sujeitos roçarem-se pelo trem, lançando para dentro olhares gulosos.
- Estão a arder por saber quem somos.
Luísa calada apertava nas mãos o seu ramo. Enfim Jorge apareceu no alto da escada, conversando muito interessadamente com um sujeito magríssimo, de chapéu ao lado, as mãos nos bolsos de umas calças muito estreitas, e um enorme charuto enristado ao canto da boca. Paravam, gesticulavam, cochichavam. Por fim o sujeito apertou a mão de Jorge, falou-lhe ao ouvido, riu baixo, torcendo-se, bateu-lhe no ombro, obrigou-o muito seriamente a aceitar outro charuto - e pondo o chapéu mais ao lado foi conversar com o guarda-portão.
Jorge correu à portinhola do trem, rindo:
- Então que extravagância é esta? Teatro, tipóias!... Eu reclamo o divórcio! Parecia muito jovial. Somente tinha pena de não estar vestido... Ficaria atrás no camarote. E para as não amarrotar subiu para a almofada.
CAPÍTULO XIII
Passava das oito horas quando o trem parou em São Carlos. Um gaiato, que tossia muito, com o casaco pregado sobre o peito por um alfinete, precipitou-se a abrir a portinhola; e D. Felicidade sorria de contentamento, sentindo a cauda do vestido de seda arrastar sobre o tapete esfiado do corredor das frisas.
O pano já estava levantado. Era à luz diminuída da rampa, a decoração clássica de uma cela de alquimista; embrulhado num roupão monástico, com uma abundância hirsuta de barbas grisalhas, tremuras senis, Fausto cantava, desiludido das ciências, pousando sobre o coração a mão onde reluzia um brilhante. Um cheiro vago de gás extravasado errava sutilmente. Aqui e além tosses expectoravam. Havia ainda pouca gente. Entrava-se.
Na frisa, para se colocarem, D. Felicidade e Luísa cochichavam, com gestozinhos de recusa, olhares suplicantes:
- Oh, D. Felicidade, por quem é!
- Se estou aqui muito bem...
- Não consinto...
Enfim D. Felicidade sentou-se no lugar superior alteando o peito. Luísa ficara atrás calçando as luvas; enquanto Jorge arrumava os agasalhos, furioso com o chapéu que já duas vezes rolara.
- Tem banquinho, D. Felicidade?
- Obrigada, cá o sinto. - E remexeu os pés. - Que pena não se ver a família real!
Nos camarotes de assinantes iam aparecendo os altos penteados medonhos, enchumaçados de postiços; peitilhos de camisas branquejavam. Sujeitos entravam para as cadeiras devagar, com um ar gasto e íntimo, compondo o cabelo. Conversava-se baixo. Ao fundo da platéia havia um rumor desinquieto entre moços de jaquetão; e à entrada, sob a tribuna, viam-se, num aparato militar, correames polidos de municipais, bonés carregados de polícias; e reluzindo à luz, punhos de sabres.
Mas na orquestra correram fortes estremecimentos metálicos, dando um pavor sobrenatural; Fausto tremia como um arbusto ao vento; um ruído de folhas de lata, fortemente sacudidas, estalou; e Mefistófeles ergueu-se ao fundo, escarlate, lançando a perna com um ar charlatão, as duas sobrancelhas arrebitadas, uma barbilha insolente, un bel cavalier; e enquanto a sua voz poderosa saudava o doutor, as duas plumas vermelhas do gorro oscilavam sem cessar de um modo fanfarrão.
Luísa chegara-se para a frente; ao ruído da cadeira, cabeças na platéia voltaram-se, languidamente; pareceu decerto bonita, examinaram-na; ela, embaraçada, pôs-se a olhar para o palco muito séria: - por trás de véus sobrepostos que se levantavam, numa afetação de visão, Margarida apareceu fiando o linho, toda vestida de branco; a luz elétrica, envolvendo-a num tom cru, fazia-a parecer de gesso muito caiado; e D. Felicidade achou-a tão linda que a comparou a uma santa!
A visão desapareceu num trêmulo de rebecas. E depois de uma ária, Fausto, que ficara imóvel ao fundo do palco, debateu-se um momento dentro da túnica e das barbas, e emergiu jovem, gordinho, vestido de cor de lilás, coberto de pós-de-arroz, compondo o frisado do cabelo. As luzes da rampa subiram; uma instrumentação alegre e expansiva ressoou; Mefistófeles, apossando-se dele, arrastou-o sôfrego através da decoração. E o pano desceu rapidamente.
As platéias ergueram-se com um rumor grosso e lento. D. Felicidade um afrontada abanava-se. Examinaram então as famílias, algumas toaletes; e sorrindo concordaram que estava do mais fino.
Nos camarotes conversava-se sobriamente; às vezes uma jóia brilhava, ou a luz punha tons lustrosos de asa de corvo nos cabelos pretos onde alvejavam camélias ou reluzia o aro de metal de um pente; os vidros redondos dos binóculos moviam-se devagar, picados de pontos luminosos.
Na platéia, nas bancadas clareadas, sujeitos quase deitados namoravam com languidez; ou de pé, taciturnos, acariciavam as luvas; velhos diletantes, de lenço de seda, tomavam rapé, caturravam; e D. Felicidade interessava-se por duas espanholas de verde, que na superior imobilizavam, numa afetação casta, os seus corpos de lupanar.
Um colega de Jorge, magrinho e janota, entrou então no camarote: parecia animado e perguntou logo se não sabiam o grande escândalo!... Não. E o engenheiro, com gestos vivos das suas mãozinhas calçadas numas luvas esverdeadas, contou que a mulher do Palma, o deputado, sabiam, tinha fugido!...
- Para o estrangeiro?
- Qual! - E a voz do engenheiro tinha agudos triunfantes. - Ai é que estava o bonito. Para casa de um espanhol que morava defronte!... Era divino! De resto - e a sua voz tornou-se grave e estava entusiasmado com o baixo!
E depois de ter sorrido, olhado pelo binóculo, ficou calado, extenuado do que dissera, batendo apenas de vez em quando no joelho de Jorge, com um "Sim, Senhor!" familiar, ou um "Então que é feito?" amigável.
Mas a campainha retinia finamente. O engenheiro saiu, em bicos de pés. E o pano ergueu-se devagar na alegria da quermesse, cheia de uma luz branca e dura. Casas acasteladas branquejavam no pano de fundo, nalguma colina do Reno amiga das vinhas. Escarranchado sobre uma pipa, o barrigudo e folgazão Rei Cambrinus ria enormemente, erguendo, na sua atitude de tabuleta gótica, a vasta caneca emblemática da cerveja germânica. E estudantes, judeus, reitres e donzelas, nas suas cores vivas de paninho, moviam-se de um modo automático e sonâmbulo, aos compassos largos da instrumentação festiva.
A valsa então desenrolou-se languidamente, como um fio de melodia, em espirais suaves que ondeavam e fugiam: Luísa seguia os pezinhos das dançarinas, as pernas musculosas volteando no tablado; e as saias tufadas e curtas faziam como o girar multiplicado e reproduzido de vagos discos de cambraia.
- Que bonito! - murmurava ela com uma felicidade no rosto.
- De apetite - afirmava D. Felicidade revirando os olhos.
Certas agudezas delicadas de flautins enterneciam Luísa; e a casa, Juliana, as suas misérias, tudo lhe parecia recuado, no fundo de uma noite esquecida.
Mas o jovial Diabo adiantava-se por entre os grupos, e logo, com gestos aduncos e rapaces, cantou o Dio del oro. A sua voz arremessada afirmava, num tom brutal, o poder do dinheiro; nas massas da instrumentação passavam sonoridades claras e tilintantes de um remexer sôfrego de tesouros; e as notas altas finais caíam, de um modo curto e seco, como marteladas triunfantes cunhando o divino ouro!
Luísa então viu D. Felicidade perturbar-se; e seguindo o seu olhar negro, subitamente avivado, descobriu na geral a calva polida do Conselheiro Acácio que cumprimentava, prometendo generosamente, com a mão espalmada, a sua visita próxima.
Veio, apenas o pano desceu, e felicitou-as imediatamente por terem escolhido aquela noite: a ópera era das melhores e estava gente muito fina. Lamentou ter perdido o primeiro ato; ainda que não gostasse extremamente da música, apreciava-o por ser muito filosófico. E, tomando da mão de Luísa o binóculo, explicou os camarotes, disse os títulos, citou as herdeiras ricas, nomeou os deputados, apontou os literatos. - Ah! Conhecia bem São Carlos! Havia dezoito anos!
D. Felicidade, rubra, admirava-o. O Conselheiro sentia que não pudessem ver o camarote real: a rainha, como sempre, estava adorável.
Sim? Como estava?
De veludo. Não sabia se roxo, se azul-escuro. Afirmar-se-ia, e viria dizer...
Mas quando o pano subiu, ficou sentado por trás de Luísa começando logo a explicar - que aquela (Siebel, colhendo flores no jardim de Margarida), posto que segunda dama, ganhava quinhentos mil réis por mês...
- Mas apesar destes ordenadões morrem quase sempre na miséria - disse com reprovação. - Vícios, ceias, orgias, cavalgadas...
A portinha verde do jardim abriu-se, e Margarida entrou devagar, desfolhando o malmequer da legenda, caracterizada de virgem, com as duas longas tranças louras. Cismava, falava só, amava: a doce criatura sente em volta de si o ar pesado, e quereria bem que sua mãe voltasse!
Os olhos de Luísa encheram-se então de melancolia, com a saudosa balada do rei de Tule; aquela melodia dava-lhe a vaga sensação de um pálido país de amores espirituais, banhado de luares frios, longe, no Norte, junto a um mar gemente - ou de tristezas aristocráticas, cismadas num terraço, sob a sombra de um parque...
Mas o Conselheiro preveniu-as, dizendo:
- Agora é que é! Reparem. Agora é o ponto capital.
De joelhos, diante do cofre das jóias, a dama requebrava-se, garganteando; apertava nas mãos o colar, extasiada; punha os brincos com denguices delirantes; e da sua boca muito aberta saía um canto trinado, de uma cristalinidade aguda - entre o vago sussurro da admiração burguesa.
O Conselheiro disse discretamente:
- Bravo! Bravo!
E, excitado, dissertou: aquilo era o melhor da ópera! Era ali que se via a força das cantoras...
D. Felicidade quase tinha medo que lhe estalasse alguma coisa na garganta. Preocupava-se também com as jóias. Seriam falsas? Seriam dela?
- É para a tentar, não é verdade?
- É um drama alemão - disse-lhe baixo o Conselheiro.
Mas Mefistófeles ia arrastando a boa Marta; Fausto e Margarida perdiam-se nas sombras cúmplices do jardim afrodisíaco - e o Conselheiro observou que todo aquele ato era um pouco fresco.
D. Felicidade murmurou-lhe - entre repreensiva e extática:
- Quantas cenas não terá tido assim, maganão!
O Conselheiro fitou-a, indignado:
- O quê, minha senhora? Levar a desonra ao seio de uma família!
Luísa fez-lhe chuta, sorrindo. Interessava-se agora. Tinha escurecido; uma faixa de luz elétrica enchia o jardim de um vago luar azulado, onde os maciços arredondados se recortavam a pastas escuras; e Fausto e Margarida enlaçados, quase desfalecidos soltavam de um modo expirante o seu dueto: uma sensualidade delicada e moderna, com relances de um requinte devoto, arrastava-se na orquestra gemente; o tenor esforçava-se, agarrando o peito, com um jeito mórbido dos quadris, o olhar anuviado; e desprendendo-se da lânguida arcada dos violoncelos, o canto subia para as estrelas...
Al pallido chiarore
dei astri d`oro.
Mas o coração de Luísa batia precipitadamente; vira-se de repente sentada no divã, na sua sala, ainda tomada dos soluços do adultério, e Basílio, com o charuto ao canto da boca, batia distraído no piano aquela ária - "Al pallido chiarore dei astri d`oro". Dessa noite tinha vindo toda a sua miséria! - e subitamente, como longos véus fúnebres que descem e abafam, as recordações de Juliana, da casa, de Sebastião, vieram escurecer-lhe a alma.
Olhou o relógio. Eram dez horas. Que se passaria?
- Estás incomodada? - perguntou-lhe Jorge.
- Um pouco.
Margarida apoiava-se, expirante de voluptuosidade, ao rebordo da sua janelinha. Fausto corre. Enlaçam-se. E entre as gargalhadas do Diabo e o roncar dos rabecões - o pano desceu, pondo uma reticência pudica...
D. Felicidade, abrasada, quis água. Jorge apressou-se: queria bolos? Neve? A excelente senhora hesitou; o chique da neve atraía-a, mas coibiu-se com terror da cólica. Veio sentar-se ao fundo ao pé de Luísa, e ficou a olhar, vagamente cansada; havia um sussurro lento; bocejava-se discretamente; e o fumo dos cigarros, entrando de fora, fazia uma névoa apenas perceptível que enchia a sala, ia prender-se ao lustre, embaciando ligeiramente as luzes. Quando Jorge saiu o Conselheiro acompanhou-o; ia acima tomar o seu copo de gelatina...
- É a minha ceia em dia de São Carlos - disse.
Voltou daí a pouco, limpando os beiços ao lenço de seda, ter com Jorge que fumava no pequeno patamar junto à entrada das cadeiras:
- Veja isto, Conselheiro! - disse-lhe logo Jorge indignado, mostrando a parede. - Que escândalo!
Tinham desenhado, com o charuto apagado sobre a parede caiada, enormes figuras obscenas; e alguém, prudente e amigo da clareza, ajuntara por baixo as designações sexuais com uma boa letra cursiva.
E Jorge, revoltado:
- E passam por aqui senhoras! Vêem, lêem! Isto só em Portugal!...
O Conselheiro disse:
- A autoridade devia intervir, decerto... - Acrescentou com bonomia: - São rapazes, com o charuto. Apreciam muito esta distração... - E sorrindo, recordando-se: - Uma ocasião mesmo, o Conde de Vila Rica, que tem graça, muita graça, insistiu comigo, dando-me o charuto, para que eu fizesse um desenho... - E mais baixo: - Eu dei-lhe uma lição severa. Tomei o charuto...
- E fumou-o?
- Escrevi.
- Uma obscenidade?
O Conselheiro, recuando, exclamou com severidade:
- Jorge, conhece o meu caráter! Pois supõe...? - E acalmando-se: - Não, tomei o charuto e escrevi com mão firme: HONRA AO MÉRITO!
Mas a campainha retiniu, entraram no camarote. Luísa incomodada não quis sentar-se à frente. E o Conselheiro, grave, tomou o seu lugar - defronte de D. Felicidade. Foi para a nutrida senhora um momento feliz, de um gozo requintado. Estavam ambos, ali, como noivos! O seu peito abundante arfava; via-se a saírem; mais tarde de braço dado, entrarem num cupê estreito, pararem à porta da casa conjugal, pisarem o tapete da alcova. Tinha um suor à raiz dos cabelos - e vendo o Conselheiro sorrir-lhe, amável, com a sua calva toda luzidia ao gás, sentia um reconhecimento apaixonado pela mulher de virtude que àquela hora, no fundo da Galiza, estava cravando agulhas num coração de cera!...
Mas de repente o Conselheiro bateu na testa, arremessou-se sobre o chapéu, saiu impetuosamente. Olharam-se inquietos. D. Felicidade empalideceu; seria alguma dor? Santo Deus! Já murmurava baixo uma reza.
Mas viram-no entrar logo, e dizer com uma voz triunfante:
- De azul-escuro!
Abriram grandes olhos, sem compreender.
- Sua Majestade a rainha! Tinha prometido verificá-lo, cumpri-o!
E sentou-se com solenidade, dizendo a Luísa:
- Lamento que se esconda nesse recanto, D. Luísa! Na sua idade! Na flor dos anos! Quando tudo na vida é cor-de-rosa!
Ela sorriu. Estava agora muito sobressaltada. A cada momento olhava o relógio. Sentia-se doente; os pés arrefeciam-lhe, uma vaga febre fazia-lhe a cabeça pesada. O seu pensamento estava na casa, em Juliana, em Sebastião, cortado de palpites, de esperanças, de terrores... E via, sem compreender, a multidão de soldados vestidos de cores bipartidas, com armas obsoletas, que marchavam, paravam numa cadência afetada, erguendo uma poeira sutil no tablado malregado. Um coro vigoroso ressoava: era a marcha arrogante e festiva dos reires alemães celebrando a alegria das excursões vitoriosas pelos países do vinho, e a posse das bolsas mercenárias cheias de sonoros risdales! E os seus olhos seguiam um barbaças corpulento, que, por cima dos gorros quadrados dos besteiros, balançava monotonamente um largo quadrado de paninho - a bandeira do Santo Império, negra, vermelha e de ouro!
Mas então ergueu-se um rumor no fundo da platéia. Vozes duras altercavam. "Ordem! ordem!" dizia-se. Localistas na superior puseram-se rapidamente em bicos de pés na palhinha das cadeiras. Quatro policias e dois municipais apareceram à porta do fundo; e depois de uma troça, de risadas, foram levando um moço lívido, que cambaleava - e o lado esquerdo do seu jaquetão de pelúcia estava todo vomitado!
Mas fez-se logo silêncio: o pano de fundo oscilava um pouco acotovelado pela saída festiva dos reitres e dos populares; e no palco deserto, tendo à direita um pórtico oscilante de catedral e à esquerda a portinha triste de uma casa burguesa, Valentim, com uma longa pêra, à beira da rampa, beijava sofregamente uma medalha; mas Luísa não o escutava. Pensava com o coração confrangido: que fará a esta hora Sebastião?
Sebastião, às nove horas, por um nordeste agudo que torcia as luzes do gás dentro dos candeeiros, dirigia-se devagar à casa de um comissário de policia, seu primo afastado, o Vicente Azurara. Uma velha servente, engelhada como uma maçã raineta, levou-o ao quarto escolástico, onde o senhor comissário estava a cozer uma grande constipação; encontrou-o com um gabão pelos ombros, os pés embrulhados num cobertor, tomando grogues quentes, e lendo o Homem dos três calções. Apenas Sebastião entrou, tirou do nariz adunco as grandes lunetas, e erguendo para ele os olhos pequeninos, chorosos de defluxo, exclamou:
- Estou com um diabo de uma constipação há três dias, que me não quer largar... - E rosnou algumas pragas, passando a mão magra e nodosa sobre uma face trigueira, de linhas duras, a que um espesso bigode grisalho dava ferocidade.
Sebastião lamentou-o muito; não admirava, com a estação que ia!... Aconselhou-lhe água sulfúrica com leite fervido.
- Eu, se isto não despega - disse o comissário rancorosamente -, atiro-lhe amanhã para dentro com meia garrafa de genebra; e se não for por bem, há de ir à força... E que há de novo?
Sebastião tossiu, queixou-se de andar também adoentado, e chegando a cadeira para ao pé do primo Vicente, pondo-lhe a mão sobre o joelho:
- Ó Vicente, tu, se eu te pedisse um polícia pra me acompanhar cá para uma coisa, só para meter medo, só para fazer que uma pessoa restitua o que tirou, tu davas ordem, bem?
- Ordem para quê? - perguntou lentamente o Vicente, com a cabeça baixa, os olhinhos avermelhados em Sebastião.
- Ordem para me acompanhar, para se mostrar. É só para se mostrar. É um caso esquisito... Para meter medo... Tu sabes que eu não sou capaz... E para que uma pessoa restitua o que tirou. Sem fazer escândalo...
- Roupas? Dinheiro?
E o comissário cofiava refletidamente o bigode com os seus longos dedos magros, muito queimados de cigarro.
Sebastião hesitou:
- Sim. Roupas, coisas... E para não haver escândalo... Tu percebes...
O Vicente murmurou com um ar profundo, fixando-o:
- Um policia para se mostrar...
Escarrou ruidosamente. E franzindo a testa:
- Não é coisa de política?
- Não! - fez Sebastião.
O comissário embrulhou mais os pés no cobertor, rolou em redor os olhos, ferozmente:
- Nem toca com gente graúda?
- Qual!
- Um policia para se mostrar... - ruminava o Vicente. - Tu és um homem de bem... Dá cá aquela pasta de cima da cômoda.
Tirou um papel pautado, examinou, acavalando a luneta no nariz, meditou com a mão em garra sobre a testa:
- O Mendes... Serve-te o Mendes?
Sebastião, que não conhecia o Mendes, acudiu logo:
- Sim, quem quiseres. É só para se mostrar...
- O Mendes. E um homenzarrão. É sério, foi da Guarda.
Fez-lhe aproximar o tinteiro; escreveu devagar a ordem; releu-a duas vezes; cortou os tt, secou-a à chaminé do candeeiro; e dobrando-a com solenidade:
- À segunda divisão!
- Obrigado, Vicente. É um grande favor... Obrigado. E agasalha-te, homem. E não te esqueças: água sulfúrica da Farmácia Azevedo na Rua de São Roque; meia chávena de leite fervido... E obrigado. Não queres nada, hem? ar
- Não. Dá uma placa ao Mendes. É sério, foi da Guarda!
- E acavalando as lunetas retomou o Homem dos três calções.
Sebastião daí a meia hora, seguido do robusto Mendes, que marchava militarmente, com os braços um pouco arqueados, encaminhava-se para casa de Jorge. Não tinha ainda um plano definido. Calculava naturalmente que Juliana vendo àquela hora da noite, o polícia com o seu terçado, se aterraria, imaginaria Boa Hora, o Limoeiro, a costa da África, entregaria as cartas, pediria misericórdia! E depois? Pensava vagamente em lhe pagar a passagem para o Brasil, ou dar-lhe quinhentos mil réis para ela se estabelecer longe, na província... O essencial era aterrá-la!
Juliana com efeito, depois de abrir a porta, apenas viu subir, atrás de Sebastião o policia, fez-se muito amarela, exclamou:
- Credo! Que temos nós?
Estava embrulhada num xale preto, e o candeeiro de petróleo, que ela erguia, prolongava na parede a sombra disforme da cuia.
- Ó Sra. Juliana, faça o favor de acender luz na sala - disse Sebastião tranqüilamente.
Ela fixava no polícia um olhar faiscante e inquieto.
- Ó senhor, que aconteceu? Credo! Os senhores não estão em casa. Eu se soubesse nem tinha aberto... Há alguma novidade? Olha o propósito!
- Não é nada... - disse Sebastião, abrindo a porta da sala. - Tudo em paz.
... Ele mesmo acendeu com um fósforo uma vela na serpentina - que fez sair vagamente da sombra os dourados dos caixilhos das gravuras, a pálida face do retrato da mãe de Jorge, um reflexo de espelho.
- Ó Sr. Mendes, sente-se, sente-se!
O Mendes colocou-se à beira da cadeira com a mão na cinta, o terçado entre os joelhos, muito soturno.
- Esta é que é a pessoa - disse Sebastião indicando Juliana, que ficara à porta da sala atônita.
A mulher recuou, lívida:
- Ó senhor Sebastião, que brincadeira é esta?
- Não é nada, não é nada...
Tomou-lhe o candeeiro da mão, e tocando-lhe no braço:
- Vamos lá dentro à sala de jantar.
- Mas que é? É alguma coisa comigo? Credo! E esta! Olha que desconchavo!
Sebastião fechou a porta da sala de jantar, pousou o candeeiro sobre a mesa, onde havia ainda um prato com côdeas de queijo e um fundo de vinho num copo, deu alguns passos fazendo estalar nervosamente os dedos, e parando bruscamente diante de Juliana:
- Dê cá umas cartas que roubou à senhora...
Juliana teve um movimento para correr à janela, gritar.
Sebastião agarrou-lhe o braço, e fazendo-a sentar com força sobre a cadeira:
- Escusa de ir à janela gritar, a policia já está dentro de casa. Dê cá as cartas, ou para a enxovia!
Juliana entreviu num relance um quarto tenebroso no Limoeiro, o caldo do rancho, a enxerga nas lajes frias...
- Mas que fiz eu? - balbuciava. - Que fiz eu?
- Roubou as cartas. Dê-as para cá, avie-se.
Juliana, sentada à beira da cadeira, apertando desesperadamente as mãos, rosnava por entre os dentes cerrados:
- A bêbeda! A bêbeda!
Sebastião, impaciente, pôs a mão no fecho da porta.
- Espere, seu diabo! - gritou ela erguendo-se com um salto. Fixou-o rancorosamente, desabotoou o corpete, enterrou a mão no peito, tirou uma carteirinha. Mas de repente batendo com o pé, num frenesi:
- Não! Não! Não!
- Diabos me levem se você não for dormir à enxovia! - Entreabriu a porta. - Ó Sr. Mendes!
- Aí tem! - gritou ela atirando-lhe a carteira. E brandindo para ele os punhos: - Raios te partam, malvado!
Sebastião apanhou a carteira. Havia três cartas: uma muito dobrada era de Luísa; leu a primeira linha: "Meu adorado Basílio"; e muito pálido guardou logo tudo na algibeira interior do casaco. Abriu então a porta: a possante figura do Mendes estava na sombra.
- Está tudo arranjado, Sr. Mendes - a voz tremia-lhe um pouco -, não lhe quero tomar mais tempo.
O homem fez uma continência, calado; quando Sebastião, no patamar, lhe resvalou na mão uma libra, o Mendes curvou-se respeitosamente e disse, com uma voz pegajosa:
- E para o que quiser, o sessenta e quatro, o Mendes, que foi da Guarda. Não se incomode Vossa Senhoria. Às ordens de Vossa Senhoria minha mulher e filhos agradecem. Não se incomode Vossa Senhoria. O sessenta e quatro, O Mendes, que foi da Guarda!
Sebastião fechou a cancela, voltou à sala de jantar. Juliana ficara numa cadeira, aniquilada; mas apenas o viu, erguendo-se furiosamente:
- A bêbeda foi-lhe contar tudo! Foi você que arranjou a armadilha! Também você dormiu com ela!...
Sebastião, muito branco, dominava-se.
- Vá pôr o chapéu, mulher. O Sr. Jorge despediu-a. Amanhã mandará buscar os baús...
- Mas o homem há de saber tudo! - berrou ela. - Este teto me rache se eu não lhe disser tudo tintim por tintim. Tudo! As cartas que recebia, onde ia ver o homem. Deitava-se com ela na sala, até os pentes lhe caíam na balbúrdia. Até a cozinheira lhes sentia o alarido!
- Cale-se! - bradou Sebastião com uma punhada na mesa, que fez tremer toda a louça do aparador e esvoaçar os canários. E com a voz toda trêmula, os beiços brancos: - A polícia tem o seu nome, sua ladra! A menor palavra que você diga vai para o Limoeiro, e pela barra fora. Você não roubou só as cartas; roubou roupas, camisas, lençóis, vestidos... - Juliana ia falar, gritar. - Bem sei - continuou ele violentamente - deu-lhos ela, mas à força, porque você a ameaçava. Você arrancou-lhe tudo. É roubo. É de África! - É o que é dizer ao Jorge, pode ir dizer. Vá. Veja se ele a acredita. Diga! São algumas bengaladas que leva por esses ombros, sua ladra!
Ela rangia os dentes; Estava apanhada! Eles tinham tudo por si, a polícia, a Boa Hora, a cadeia, a África!... E ela - nada!
Todo o seu ódio contra a Piorrinha fez explosão. Chamou-lhe os nomes mais obscenos. Inventou infâmias.
- É que nem as do Bairro Alto! E eu - gritava - sou uma mulher de bem, nunca um homem se pode gabar de tocar neste corpo. Nunca houve raio nenhum que me visse a cor da pele. E a bêbeda!... - Tinha arremessado o xale, alargou ansiosamente o colar do vestido. - Era um desaforo por essa casa! E o que eu passei com a bruxa da tia! É o pago que me dão! Os diabos me levem se eu não for para os jornais. Vi-a eu abraçada ao janota, como uma cabra!
Sebastião a seu pesar escutava-a, com uma curiosidade dolorosa por aqueles pormenores; sentia desejos agudos de a esganar, e os seus olhos devoravam-lhe as palavras. Quando ela se calou arquejante:
- Vá, ponha o chapéu, e para a rua!
Juliana então alucinada de raiva, com os olhos saídos das órbitas, veio para ele e cuspiu lhe na cara!
Mas de repente a boca abriu-se-lhe desmedidamente, arqueou-se para trás, levou com ânsia as mãos ambas ao coração, e caiu para o lado, com um som mole, como um fardo de roupa.
Sebastião abaixou-se, sacudiu-a; estava hirta, uma escuma roxa aparecia-lhe aos cantos da boca.
Agarrou no chapéu, desceu as escadas, correu até a Patriarcal. Um cupê passava; atirou-se para dentro, mandou a "todo o que der", para a casa de Julião; e obrigou-o a vir imediatamente, mesmo em chinelas, sem colarinho.
- É caso de morte, é a Juliana - balbuciava muito pálido.
E pelo caminho, entre o ruído das rodas e o tilintar dos caixilhos, contava ente que entrara em casa de Luísa, que achara Juliana muito despeitada por ter sido despedida, e que a falar, a esbracejar, de repente, tombara para o lado!
- Foi o coração. Estava para dias - disse Julião, chupando a ponta do cigarro.
Pararam. Mas Sebastião desorientado, ao sair, fechara a porta! E dentro só a morta! O cocheiro ofereceu a sua gazua, que serviu.
- Então nem se vai a uma passeatinha ao Dafundo, meus fidalgos? - disse o homem, metendo a gorjeta na algibeira.
Mas vendo-os atirar com a porta:
- Também não é gente disso - rosnou com desprezo, batendo a parelha.
Entraram.
No pequeno pátio o silêncio da casa pareceu a Sebastião pavoroso. Subia, aterrado, os degraus, que se lhe afiguravam infindáveis; e, com fortes pancadas do coração, esperava ainda que ela estivesse apenas adormecida num desmaio simples, ou já de pé, pálida e respirando!
Não. Lã estava como a deixara, estendida na esteira, com os braços abertos, os dedos retorcidos como garras. A convulsão das pernas arregaçara-lhe as saias, viam-se as suas canelas magras com meias de riscadinho cor-de-rosa e as chinelas de tapete; o candeeiro de petróleo, que Sebastião esquecera ao pé sobre uma cadeira, punha tons lívidos na testa, nas faces rígidas; a boca torcida fazia uma sombra; e os olhos medonhamente abertos, imobilizados na agonia repentina, tinham uma vaga névoa, como cobertos de uma teia de aranha diáfana. Em redor tudo parecia mais imóvel, de um hirto morto. Vagos reflexos de prata reluziam no aparador; e o tique-taque do cuco palpitava sem descontinuar.
Julião apalpou-a, ergueu-se sacudindo as mãos, disse:
- Está morta com todas as regras. E necessário tirá-la daqui. Onde é o quarto?
Sebastião, pálido, fez sinal com o dedo que era por cima.
- Bem. Arrasta-a tu, que eu levo o candeeiro. - E como Sebastião não se movia: - Tens medo? - perguntou rindo.
Escarneceu-o: que diabo, era matéria inerte, era como quem agarrava uma boneca! Sebastião, com um suor à raiz dos cabelos, levantou o cadáver por debaixo dos braços, começou a arrastá-lo, devagar. Julião adiante erguia o candeeiro; e por fanfarronada cantou os primeiros compassos da marcha do Foosto. Mas Sebastião escandalizou-se, e com uma voz que tremia:
- Largo tudo, e vou-me...
- Respeitarei os nervos da menina! - disse Julião curvando-se.
Continuaram calados. Aquele corpo magro parecia a Sebastião de um peso de chumbo. Arquejava. Nas escadas uma das chinelas do cadáver soltou-se, rolou. E Sebastião sentia aterrado alguma coisa que lhe batia contra os joelhos; era a cuia caída, suspensa por um atilho.
Estenderam-na na cama; Julião, dizendo que se deviam seguir as tradições- pôs-lhe os braços em cruz e fechou-lhe os olhos.
Esteve um momento a olhá-la:
- Feia besta! - murmurou, estendendo-lhe sobre o rosto uma toalha enxovalhada.
Ao sair examinou, admirado, o quarto:
- Estava mais bem alojada que eu, o estafermo!
Fechou a porta, deu a volta à chave:
- Requiescat in pace - disse.
E desceram, calados.
Ao entrar na sala, Sebastião, muito pálido, pôs a mão no ombro de Julião:
- Então achas que foi o aneurisma?
- Foi. Enfureceu-se, estourou. É dos livros...
- Se não se tivesse zangado hoje...
- Estourava amanhã. Estava nas últimas... Deixa em paz a criatura. Está começando a esta hora a apodrecer, não a perturbemos.
Declarou então, esfregando as mãos com frio, que comia alguma coisa. Achou no armário um pedaço de vitela fria, uma garrafa meia de Colares. Instalou-se e, com a boca cheia, deitando o vinho do alto:
- Então sabes a novidade, Sebastião?
- Não.
- O meu concorrente foi despachado!
Sebastião murmurou:
- Que ferro!
- Era previsto - disse Julião com um grande gesto. - Eu ia fazer um escândalo, mas... - e teve um risinho - amansaram-me! Estou num posto médico, deram-me um posto médico! Atiraram-me um osso!
- Sim? - fez Sebastião. - Homem, ainda bem, parabéns. E agora?
- Agora, roê-lo.
De resto, tinham-lhe prometido a primeira vagatura. O posto médico não mau... Em definitivo, a situação melhorara...
- Mas mesquinha, mesquinha! Não saio do atoleiro...
Estava farto de Medicina, disse depois de um silêncio. Era um beco sem saída. Devia-se ter feito advogado, político, intrigante. Tinha nascido para isso!
Ergueu-se, e com grandes passadas pela sala, o cigarro na mão, a voz cortante, expôs um plano de ambição: - O país está a preceito para um intrigante com vontade! Esta gente toda está velha, cheia de doenças, de catarros de bexiga, de antigas sífilis! Tudo isto está podre por dentro e por fora! O velho mundo constitucional vai a cair aos pedaços... Necessitam-se homens!
E plantando-se diante de Sebastião:
- Este pais, meu caro amigo, tem-se governado até aqui com expedientes. Quando vier a revolução contra os expedientes, o país há de procurar quem tenha os princípios. Mas quem tem aí princípios? Quem tem aí quatro princípios? Ninguém; têm dívidas, vícios secretos, dentes postiços; mas princípios, nem meio! Por conseqüência se houver três patuscos que se dêem ao trabalho de estabelecer meia dúzia de princípios sérios, racionais, modernos, positivos, o país tem de se atirar de joelhos e suplicar-lhes: "Senhores, fazei-me a honra insigne de me pôr o freio nos dentes!" Ora, eu devia ser um destes. Nasci para isso! E seca-me a idéia de que enquanto outros idiotas, mais astutos e mais previdentes, hão de estar no poleiro a reluzir ao sol, al hermoso sol portugués, como se diz nas zarzuelas, eu hei de estar a receitar cataplasmas a velhas devotas, ou a ligar as rupturas de algum desembargador caduco.
Sebastião calado pensava na outra, morta em cima.
- Estúpido país, estúpida vida! - rosnou Julião.
Mas uma carruagem entrou na rua, parou à porta.
- Chegam os príncipes! - disse Julião. Desceram logo.
Jorge ajudava a Luísa a sair do trem, quando Sebastião, abrindo a porta bruscamente:
- Houve cá grande novidade!
- Fogo? - gritou Jorge voltando-se aterrado.
- A Juliana, que lhe rebentou o aneurisma - disse a voz de Julião da sombra da porta.
- Oh, com os diabos! - E Jorge atarantado procurava à pressa na algibeira troco para o cocheiro.
- Ai, eu já não entro! - exclamou logo D. Felicidade, mostrando à portinhola a sua larga face envolvida numa manta branca. - Eu já não entro!
- Nem eu! - fez Luísa toda trêmula.
- Mas para onde queres que vamos, filha? - exclamou Jorge.
Sebastião lembrou que podiam ir para casa dele. Tinha o quarto da mamã, era só pôr lençóis na cama.
- Vamos, sim! Vamos, Jorge! É o melhor! - suplicou Luísa.
Jorge hesitava. A patrulha que ia passando ao alto da rua, ao ver aquele grupo junto à lanterna do trem, parou. E Jorge enfim, instado, muito contrariado, consentiu.
- Diabo de mulher, morrer a semelhante hora! A carruagem vai-a levar, D. Felicidade...
- E a mim, que estou em chinelas! - acudiu Julião.
D. Felicidade lembrou então, como cristã, que era necessário alguém, para velar a morta...
- Ora, pelo amor de Deus, D. Felicidade! - exclamou Julião entrando logo para a carruagem, batendo com a portinhola.
Mas D. Felicidade insistia: era uma falta de religião! Ao menos pôr duas velas, mandar chamar um padre!...
- Largue, cocheiro! - berrou Julião impaciente.
A carruagem deu a volta. E D. Felicidade à portinhola, apesar de Julião que a puxava pelos vestidos, gritava:
- É um pecado mortal! É uma irreverência! Ao menos duas velas!
O trem partiu a trote:
Luísa agora tinha escrúpulos: realmente podia-se mandar chamar alguém...
Mas Jorge enfureceu-se. Chamar quem, àquela hora? Que beatice! Estava morta, acabou-se! Enterrava-se... Velar o estafermo! Fazer-lhe talvez câmara ardente. Queria ela ir velá-la?...
- Então, Jorge, então!... - murmurava Sebastião.
- Não, é demais! É vontade de criar embaraços, que diabo!
Luísa baixava a cabeça; e, enquanto Jorge, praguejando, ficou atrás a fechar a porta da casa, ela foi descendo a rua pelo braço de Sebastião.
- Estourou de raiva - disse-lhe ele baixinho.
Toda a rua Jorge resmungou. Que idéia, irem dormir agora fora de casa! Realmente era levar muito longe as mariquices!...
Até que Luísa lhe disse, quase chorando:
- Vê se me queres torturar mais e fazer-me mais doente, Jorge!
Ele calou-se, mordendo furioso o charuto. E Sebastião, para a sossegar, propôs que viesse a tia Vicência, a preta, velar a Juliana.
- Era talvez melhor - murmurou Luísa.
Chegaram à porta de Sebastião. O frufru do vestido de seda de Luísa, àquela hora, na sua casa, dava uma comoção a Sebastião: a mão tremia-lhe ao acender as velas da sala. Foi acordar a tia Vicência para fazer chá; tirou ele mesmo os lençóis dos baús, apressado, feliz daquela hospitalidade. Quando voltou à sala, Luísa estava só, muito pálida, ao canto do sofá.
- Jorge? - perguntou ele.
- Foi ao seu escritório, Sebastião, escrever ao pároco para o enterro... E com os olhos brilhantes, numa voz sumida e assustada: - Então?
Sebastião tirou da algibeira a carteirinha de Juliana. Ela agarrou-a sofregamente - e com um movimento brusco tomou-lhe a mão e beijou-lha.
Mas Jorge entrava, sorrindo.
- Então agora está mais descansada, a menina?
- Inteiramente - disse ela com um suspiro de alívio.
Foram tomar chá. Sebastião contou a Jorge, corando um pouco, a maneira como entrara em casa, a Juliana lhe estivera a dizer que fora despedida, e falando, exaltando-se, zás, de repente, caíra para o lado morta...
E acrescentou:
- Coitada!
Luísa via-o mentir, olhando-o com adoração.
- E a Joana? - perguntou Jorge de repente. Luísa, sem se perturbar, respondeu:
- Ah, esqueci-me dizer-te... Tinha pedido licença para ir ver uma tia que está muito mal, para os lados de Belas... Diz que volta amanhã... Mais uma gota de, chá, Sebastião...
Esqueceram-se depois de mandar a Vicência - e ninguém velou a morta.
CAPÍTULO XIV
Luísa passou a noite às voltas, com febre. Jorge de madrugada ficou assustado da freqüência do seu pulso e do calor seco da pele.
Ele mesmo muito nervoso, não pudera dormir.
O quarto, onde se não acendera luz havia muito, tinha uma frialdade desabitada na parede, junto ao teto, havia manchas de umidade; e a cama antiga de colunas torneadas sem cortinados, o velho trenó do século passado com o seu espelho embaciado davam, à luz bruxuleante da lamparina, um sentimento triste de convivências extintas. O achar-se ali com a sua mulher, numa cama alheia, trazia-lhe, sem saber por quê, uma vaga saudade; parecia-lhe que se dera na sua vida uma alteração brusca - e que, semelhante a um rio a que se muda o leito, a sua existência, desde essa noite, começaria a correr entre aspectos diferentes. O nordeste fazia bater os caixilhos da vidraça, e uivava encanado na rua.
Pela manhã, Luísa não se pôde levantar.
Julião, chamado à pressa, tranqüilizou-os:
- É uma febrezita nervosa. Quer sossego, não vale nada. Foi o medozinho de ontem, hem?
- Sonhei toda a noite com ela - disse Luísa. - Que tinha ressuscitado... Que horror!
- Ah! Pode estar sossegada... E já a aviaram, a mulher?
- O Sebastião lá anda com a maçada - disse Jorge. - E eu vou dar uma vista de olhos.
Na rua já se sabia a morte da Tripa Velha.
A mulher que a veio amortalhar, uma matrona muito picada das bexigas com os olhos avermelhados da paixão da aguardente, era conhecida da Sra. Helena. Estiveram um momento a palrar ao sol, à porta do estanque:
- Muito que fazer agora, Sra. Margarida, hem?
- Bastante, bastante, Sra. Helena - disse a amortalhadeira com a voz um pouco rouca. - No inverno sempre há mais obra. Mas tudo gente velha, com os frios. Nem um corpinho bonito para vestir...
A Sra. Margarida tinha predileções artísticas. Gostava de um bonito corpo de dezoito anos, uma mocinha fresca para lavar, escarolar, enfeitar... Entrouxava à má cara a gente velha. Mas com as raparigas novas esmerava-se: acatitava as pregas da mortalha; calculava o chique de uma flor, de um laço; trabalhava com os requintes ajanotados de uma modista do sepulcro.
A estanqueira contou-lhe muitas particularidades sobre a Juliana, os favores dos patrões, as tafularias dela, os luxos do quarto tapetado... A Sra. Margarida dizia-se "banzada". E para quem agora iria tudo aquilo? - perguntavam. - A Tripa Velha não tinha parentes...
- Era uma riqueza para a minha Antoninha! - disse a amortalhadeira traçando o xale com tristeza.
- Como vai ela, a pequena?...
- Aquilo vai mal, Sra. Helena. Aquela cabeça doida! - E exalando a sua dor com loquacidade: - Deixar o brasileiro que a trazia nas palminhas... E por quem? Por aquele desalmado, que lhe come tudo, que já lhe arranjou um filho e que a derreia com pau... Mas então, as raparigas são assim... Vão atrás do palmo de cara... Que ele é bonito rapaz! Mas um bêbedo!... Coitada!... Pois vou vestir a boneca, Sra. Helena. - E entrou na casa compungidamente.
O padre já chegara também. Estava na sala com Sebastião, que conhecia de Almada, e falava de lavoura, de enxertos, das regas, numa voz grossa - passando, com um gesto lento da sua mão cabeluda, o lenço enrolado por debaixo do nariz. As janelas em toda a casa estavam abertas ao sol muito doce. Os canários chilreavam.
- E estava há muito tempo na casa, a defunta? - perguntou o padre a Jorge, que passeava pela sala, fumando.
- Há quase um ano.
O padre desdobrou lentamente o lenço, e sacudindo-o, antes de se assoar:
- A sua senhora há de sentir muito... É um tributo universal!...
E assoou-se com estrondo.
A Joana, então, de xale e lenço, apareceu, em bicos de pés. Soubera pelos vizinhos que a Juliana "arrebentara", que os senhores estavam em casa do Sr. Sebastião. Vinha de lá. Luísa mandara-a entrar no quarto. Quando a viu doente, a sua rica senhora, lacrimejou muito. Luísa disse-lhe - que agora estava tudo como dantes, podia voltar...
- E ouça. Joana, se o Sr. Jorge lhe perguntar... que esteve em Belas com à tia...
A rapariga fora logo buscar a trouxa e vinha instalar-se - um pouco assustada da morte em casa.
Daí a pouco o Paula bateu discretamente à porta.
Ali vinha oferecer-se para o que fosse necessário naquele transe! E tirando e pondo rapidamente o boné, raspando o pé, dizia com a sua voz catarrosa:
- Lamento a desgraça, lamento a desgraça! Todos somos mortais...
- Bem, bem, Sr. Paula, não é necessário nada - disse Jorge. - Obrigado!
E fechou bruscamente a cancela.
Estava impaciente por se desembaraçar "daquela estopada"; e mesmo como o enfastiavam as marteladas espaçadas dos homens pregando o caixão, em cima, chamou a Joana:
- Diga a essa gente que se avie. Não vamos ficar aqui toda a vida!
A Joana foi logo dizer que o senhor estava um frenesi! Tinha-se feito já íntima da Sra. Margarida. A amortalhadeira fora mesmo com ela à cozinha para tomar uma "sustanciazinha". Como o lume estava apagado, contentou-se com sopas de pão em vinho.
- Sopinha de burro - dizia, fazendo estalar a língua.
Mas estava enojada com a defunta! Nunca vira bicho mais feio. Um corpo de sardinha seca! E pondo um olhar complacente nas belas formas de Joana: - A menina, não. A menina tem-me o ar de ter muito bom corpo... - E parecia calcular como talharia a mortalha para aquelas linhas robustas.
Joana disse escandalizada:
- Longe vá o agouro, cruzes!
A outra sorriu; faltavam-lhe dois dentes; e aflautando a voz:
- Tem-me passado pela mão muita gente fina, minha menina. Mais uma gotinha de vinho, faz favor? É do Cartaxo, não? É muito aveludado! Rica gota!
Enfim, com grande satisfação de Jorge, às quatro horas os homens desceram o caixão. A vizinhança estava pelas portas. O Paula, mesmo por fanfarronada, disse com dois dedos adeus ao esquife, murmurando:
- Boa viagem!
Jorge em cima, ao sair, perguntou a Joana:
- E você não tem medo de ficar aqui só?
- Eu não, meu senhor. Quem vai não volta!
Tinha medo, com efeito; mas preparava-se a passar a noite com o Pedro, e batia-lhe o coração de alegria de "terem a casa por sua" até de manhã, e de se poderem rolar amorosamente, como fidalgos, por cima do divã da sala.
Jorge voltou com Sebastião para casa, e apenas entrou no quarto, onde Luísa estava deitada:
- Tudo pronto - disse, esfregando as mãos. - Lã vai para o Alto de São João, devidamente acondicionada. Per omnia saecula soeculorum!
A tia Joana, que estava à cabeceira de Luísa, acudiu:
- Ai, quem lá vai, lá vai... Mas boa mulher não era ela!
- Era um bom estafermo - disse Jorge. - Esperemos que a esta hora esteja a ferver na caldeira de Pero Botelho. Não é verdade, tia Joana?
- Jorge! - fez Luísa repreensivamente. E julgou dever rezar-lhe baixo dois padre-nossos por alma.
Foi tudo o que a terra deu na sua morte àquela que ia rolando a essa hora, ao trote de duas velhas éguas, para a vala dos pobres, e que fora na vida Juliana Couceiro Tavira!
No dia seguinte Luísa estava melhor; falaram mesmo, com grande desconsolação da tia Joana, em voltar para casa. Sebastião não dizia nada, mas quase desejava secretamente que uma convalescença a retivesse ali semanas indefinidas. Ela parecia tão agradecida! Tinha olhares tão reconhecidos, que só ele compreendia! E era tão feliz tendo-a ali e a Jorge na sua casa! Conferenciava com a tia Vicência sobre o jantar; andava pelos corredores e pela sala com respeito, quase em bicos de pés, como se a presença dela santificasse a casa; enchia os vasos de camélias e violetas; sorria beatamente ao ver Jorge, à sobremesa, saborear e gabar o seu velho conhaque; sentia alguma coisa de bom acalentá-lo como um manto acolchoado e macio; e já pensava que, quando ela partisse, tudo lhe pareceria mais frio, e com uma tristeza de ruína!
Mas daí a dois dias voltaram para casa.
Luísa ficou muito agradada com a criada nova. Fora Sebastião que a arranjara. Era uma rapariguita asseadinha e branca, com grandes olhos bonitos e pasmados, um ar amorável; chamava-se Mariana; e foi logo correndo dizer a Joana que morria pela senhora! Tinha uma carinha de anjo! Que linda que era!
Jorge logo nessa manhã mandou os dois baús de Juliana à tia Vitória.
Luísa, quando ele saiu à tardinha, fechou-se no quarto, com a carteirinha de Juliana, correu os transparentes por precaução, acendeu uma vela, e queimou as cartas. As mãos tremiam-lhe; e via, com os olhos marejados de lágrimas, a sua vergonha, a sua escravidão irem-se, dissiparem-se num fumo alvadio! Respirou completamente! Enfim! E fora Sebastião, aquele querido Sebastião!
Foi então à sala, à cozinha, ver a casa: tudo lhe pareceu novo, a sua vida cheia de doçura; abriu todas as janelas; experimentou o piano; rasgou mesmo em pedaços, por superstição, a música da Medjé, que lhe dera Basílio; conversou muito com a Mariana; e saboreando o seu caldo de galinha de convalescente, com a face alumiada de felicidade:
- "Que bem que vou passar agora!" - pensava.
Quando sentiu no corredor os passos de Jorge que entrava, correu, deitou-lhe os braços ao pescoço, e com a cabeça no ombro dele:
- Estou tão contente hoje! E se tu soubesses, é tão boa rapariga a Mariana!
Mas nessa noite a febre voltou. Julião, de manhã achou-a pior. Crescimentos... - disse descontente.
Estava receitando, quando D. Felicidade entrou, muito excitada. Ficou toda surpreendida de ver Luísa doente; e debruçando-se sobre ela, disse-lhe logo ao ouvido:
- Tenho que te contar!
Apenas Jorge e Julião saíram, desabafou, sentada aos pés da cama - com uma voz ora baixa pela gravidade da confidência, ora aguda pelo ímpeto da indignação:
Tinha sido roubada! Indignamente roubada! O homem que mandara a Tui, o grande ladrão, tinha escrito à Gertrudes, à criada, que não estava resolvido a voltar a Lisboa; que a mulher de virtude mudara de povoação; que ele não queria saber mais desse negócio e que até o achava esquisito; que oferecia o seu préstimo em Tui - tudo isto numa boa letra de escrevente público, num português horrível - e do dinheiro nem palavra!
- Que te parece o mariola? Oito moedas! Eu, se não fosse pela vergonha, ia direita à policia... Ai! Os galegos pra mim acabaram! Por isso o Conselheiro não se chegava ao rego! Pudera! A mulher nunca lançou a sorte!... - Porque se já não acreditava na honestidade dos galegos, não perdera a fé no poder das bruxas.
Que ela não era pelas oito moedas! Era pelo ferro! E depois, quem sabe onde estaria agora a mulher! Ai, era de endoidecer!... Que te parece, hem?
Luísa encolheu os ombros, muito abafada na roupa, as faces escarlates, cerravam-lhe os olhos numa sonolência pesada: D. Felicidade aconselhou-lhe vagamente um suadouro, suspirando; e, como Luísa não lhe podia dar consolações, saiu para ir à Encarnação desabafar com a Silveira.
Nessa madrugada Luísa piorou. A febre recrudescera. Jorge inquieto, vestiu-se à pressa, às nove horas da manhã, foi buscar Julião. Descia a escada rapidamente, abotoando ainda o paletó, quando o carteiro subia, tossindo o seu catarro.
- Cartas? - perguntou Jorge.
- Uma para a senhora - disse o homem. - Flá de ser para a senhora...
Jorge olhou o envelope; tinha o nome de Luísa, vinha da França.
- De quem diabo é isto? - pensou. Meteu-a no bolso do paletó, e saiu.
Daí a meia hora voltava com Julião, num trem.
Luísa dormitava, amodorrada.
- É preciso cautela... Vamos a ver... - murmurou Julião coçando devagar a cabeça, enquanto do outro lado do leito Jorge o olhava ansiosamente.
Receitou e ficou para almoçar com Jorge. Estava um dia frio e pardo. A Mariana, abafada num casabeque, servia com os dedos vermelhos, inchados de frieiras. E Jorge sentia-se entristecer, como se toda a névoa do ar se lhe fosse lentamente depositando e condensando na alma.
A que se podia atribuir semelhante febre? - dizia, muito desconsolado. Tão extraordinário! Havia seis dias, ora melhor, ora pior...
- Estas febres vêm por tudo - replicou Julião, partindo tranqüilamente uma torrada - Às vezes por uma corrente de ar, às vezes por um desgosto. Tenho eu, por exemplo, um caso curioso: um sujeito, um Alves, que esteve para falir, e que viveu, coitado, durante dois meses em torturas. Há duas semanas, por um golpe de fortuna - a velhaca às vezes tem destes caprichos - arranjou todos os seus negócios, viu-se livre. Pois senhor, desde então tem uma febre assim, tortuosa, complexa, com sintomas disparatados... O que é? É que a excitação nervosa abateu, e a felicidade trouxe-lhe uma revolução no sangue. Pode muito bem dar à casca. Faz então a falência geral, a grande, aquela em que o credor é implacável, saca à vista, e... per omnia saecula!
Ergueu-se, e acendendo o cigarro:
- Em todo o caso um repouso absoluto. E necessário ter-lhe o espírito em algodão em rama. Nada de palestra, nada de frases, e se tiver sede, limonada. Até logo!
E saiu, calçando as luvas pretas que usava agora desde que pertencia ao posto médico.
Jorge voltou à alcova: Luísa ainda dormitava. Mariana, sentada ao pé numa cadeirinha baixa, com o rostinho muito triste, não tirava de Luísa os seus grandes olhos vagamente espantados.
- Tem estado muito inquieta - murmurou.
Jorge apalpou a mão de Luísa que ardia, conchegou-lhe a roupa. Beijou-a devagarinho na testa, foi cerrar as portas da janela, defronte da alcova. - E passeando no escritório, voltavam-lhe as palavras de Julião: "São febres que vêm por um desgosto!" Pensava na história do negociante, recordava aquele estado de abatimento e de fraqueza de Luísa que o preocupava tanto, ultimamente, tão inexplicável! Ora, tolices! Desgosto de quê? Em casa de Sebastião estivera tão animada! Nem a morte da outra lhe fizera abalo! - De resto acreditava pouco nas febres de desgosto! Julião tinha uma Medicina literária. Pensou mesmo que seria mais prudente chamar o velho Dr. Caminha...
Ao meter a mão no bolso, então, os seus dedos encontraram uma carta: era a que o carteiro lhe dera, de manhã, para Luísa. Tornou a examiná-la com curiosidade; o sobrescrito era banal, como os que há nos cafés ou nos restaurantes; não conhecia a letra; era de homem, vinha da França... Atravessou-o um desejo rápido de a abrir. Mas conteve-se, atirou-a para cima da mesa, embrulhou devagar um cigarro.
Voltou à alcova. Luísa permanecia na sua modorra: a manga do chambre arregaçada descobria o braço mimoso, com a sua penugem loura; a face escarlate fazia as pestanas longas pousavam pesadamente, no adormecimento das pálpebras finas; um anel do cabelo caíra-lhe sobre a testa, e pareceu a Jorge adorável e tocante com aquela cor, a expressão da febre. Pensou, sem saber por que, que outros a deveriam achar linda, desejá-la, dizer-lho, se pudessem... Para que lhe escreviam da França? Quem?
Voltou ao escritório, mas aquela carta sobre a mesa irritava-o: quis ler um livro, atirou-o logo impaciente; e pôs-se a passear, torcendo muito nervoso o forro das algibeiras.
Agarrou então a carta, quis ver, através do papel delgado do envelope; os dedos, mesmo irresistivelmente, começaram a rasgar um ângulo do sobrescrito. Ah! Não era delicado aquilo!... Mas a curiosidade, que governava o seu cérebro, sugeriu-lhe toda a sorte de raciocínios, com uma tentação persuasiva: - estava doente, e podia ter alguma coisa urgente; se fosse uma herança? Depois ela não tinha segredos, e então em França! Os seus escrúpulos eram pueris! Dir-lhe-ia que a abrira por engano. E se a carta contivesse o segredo daquele desgosto, do desgosto das teorias de Julião!... Devia abri-la então para a curar melhor!
Sem querer achou-se com a carta desdobrada na mão. Num relance ávido devorou-a. Mas não compreendeu bem; as letras embrulhavam-se; chegou-se à janela, releu devagar:
Minha querida Luísa.
Seria longo explicar-te, como só antes de ontem em Nice - de onde cheguei esta madrugada a Paris - recebi a tua carta que pelos carimbos vejo que percorreu toda a Europa atrás de mim. Como já lá vão dois meses e meio que a escreveste, imagino que te arranjaste com a mulher, e que não precisas do dinheiro. De resto se por acaso o queres, manda o telegrama e tem-lo aí em dois dias. Veio pela tua carta que não acreditaste nunca que a minha partida fosse motivada por negócios. Es bem injusta. A minha partida não te devia ter tirado, como tu dizes, `todas as ilusões sobre o amor`, porque foi realmente quando saí de Lisboa que percebi quanto te amava, e não há dias, acredita, em que me não lembre do Paraíso. Que boas manhãs! Passaste por lá por acaso alguma outra vez? Lembra-te do nosso lanche? Não tenho tempo para mais. Talvez em breve volte a Lisboa. Espero ver-te, porque sem ti Lisboa é para mim um desterro.
Um longo beijo do
Teu do C.
Basílio.
Jorge dobrou o papel, lentamente, em duas, em quatro dobras, atirou-o para cima da mesa, disse alto:
- Sim, senhor! Bonito!
Encheu o cachimbo de tabaco maquinalmente, com os olhos vagos, os beiços a tremer: deu alguns passos incertos pelo escritório: - de repente arremessou o cachimbo que despedaçou um vidro da janela, bateu com as mãos desvairado, e atirando-se de bruços para cima da mesa, rompeu a chorar, rolando a cabeça entre os braços, mordendo as mangas, batendo com os pês, louco!
Ergueu-se subitamente, agarrou a carta, ia com ela à alcova de Luísa. Mas a lembrança das palavras de Julião imobilizou-o: "Que esteja sossegada, nada de frases, nenhuma excitação!" Fechou a carta numa gaveta, meteu a chave na algibeira. E de pé, a tremer, com os olhos raiados de sangue, sentia idéias insensatas alumiarem-lhe bruscamente o cérebro, como relâmpagos numa tormenta - matá-la, sair de casa, abandoná-la, fazer saltar os miolos...
Mariana bateu ligeiramente à porta, disse-lhe que a senhora o chamava. Uma onda de sangue subiu-lhe à cabeça; fitava a Mariana, estúpido, batendo as pálpebras:
- Já vou - disse com a voz rouca.
Ao passar na sala, diante do espelho oval, ficou pasmado do seu rosto manchado, envelhecido. Foi correr uma toalha molhada pela face, alisou o cabelo; e ao entrar na alcova, ao vê-la, com os seus grandes olhos dilatados onde a febre reluzia, teve de se agarrar à barra do leito, porque sentiu, em redor, as paredes oscilarem como lonas do vento.
Mas sorriu-lhe:
- Como estás?
- Mal - murmurou ela debilmente.
Chamou-o para o pé de si com um gesto muito fatigado.
Ele veio, sentou-se sem a olhar.
- Que tens? - disse ela chegando o rosto para ele. - Não te aflijas. - E tomou a mão que ele pousara à beira do leito.
Jorge, com um repelão seco, sacudiu a mão dela, ergueu-se bruscamente com os dentes cerrados; sentia uma cólera brutal; ia-se, com medo de si, de um crime, quando ouviu a voz de Luísa, arrastando-se, numa lamentação:
- Por que, Jorge? Que tens?...
Voltou-se; viu-a meio erguida com os olhos abertos para ele, uma angústia no rosto; e duas lágrimas caíam-lhe, silenciosamente.
Atirou-se de joelhos, agarrou-lhe as mãos, aos soluços.
- Que é isto? - exclamou a voz de Julião à porta da alcova.
Jorge, muito pálido, ergueu-se devagar.
Julião levou-o para a sala, e cruzando terrivelmente os braços diante dele:
- Tu estás doido? Pois tu sabes que ela está num estado daqueles, e vais-te pôr a fazer-lhe cenas de lágrimas?
- Não me pude conter...
- Estoura. Eu estou a cortar-lhe a febre por um lado, e tu a dar-lha por outro? Estás doido!
Estava realmente indignado. Interessava-se por Luísa como doente. Desejava muito curá-la; e sentia uma satisfação em exercer o domínio de pessoa necessária naquela casa, onde as suas visitas tinham tido sempre uma atitude dependente; mesmo agora, ao sair, não se esquecia de oferecer negligentemente um charuto a Jorge.
Jorge foi heróico durante toda essa tarde. Não podia estar muito tempo na alcova de Luísa, a desesperação trazia-o num movimento contraditório; mas ia lá a cada momento, sorria-lhe, conchegava-lhe a roupa com as mãos trêmulas; e ela dormitava, ficava imóvel a olhá-la feição por feição, com uma curiosidade dolorosa e imoral, como para lhe surpreender no rosto vestígios de beijos alheios, esperando ouvir-lhe nalgum sonho da febre murmurar um nome ou uma data; e amava-a mais desde que a supunha infiel, mas de um outro amor, carnal e perverso. Depois ia-se fechar no escritório, e movia-se ali entre as paredes estreitas, como um animal numa jaula. Releu a carta infinitas vezes, e a mesma curiosidade roedora, baixa, vil, torturava-o sem cessar: Como tinha sido? Onde era o Paraíso? Havia uma cama? Que vestido levava ela? O que lhe dizia? Que beijos dava?
Foi reler todas as cartas que ela lhe escrevera para o Alentejo, procurando descobrir nas palavras sintomas de frieza, a data da traição! Tinha-lhe ódio então, voltavam-lhe ao cérebro idéias homicidas - esganá-la, dar-lhe clorofórmio, fazer-lhe beber láudano! E depois imóvel, encostado à janela, ficava esquecido num cismar espesso, revendo o passado, o dia do seu casamento, certos passeios que dera com ela, palavras que ela dissera...
Às vezes pensava - seria a carta uma mistificação? Algum inimigo dele podia tê-la escrito, remetido para a França. Ou talvez Basílio tivesse outra Luísa em Lisboa, e por engano ao sobrescritar o envelope tivesse escrito o nome da prima; e a alegria momentânea que lhe davam aquelas fantasias fazia-lhe parecer a realidade mais cruel. Mas como fora? Como fora? Se pudesse saber a verdade! Tinha a certeza que sossegaria, então! Arrancaria decerto do seu peito aquele amor como um parasita imundo; apenas ela melhorasse, levá-la-ia a um convento, e ele iria morrer longe, na África, ou algures... Mas quem saberia?... JULIANA!
Era ela que sabia! Decerto! E todas as condescendências dela por Juliana, os móveis, o quarto, as roupas, compreendeu tudo! Era a pagar a cumplicidade! Era a sua confidente! Levava as cartas, sabia tudo. E estava na vala, morta, sem poder falar, a maldita!
Sebastião, como costumava, veio à noitinha. Não havia ainda luzes, e, apenas ele entrou, Jorge chamou-o ao escritório, calado, acendeu uma vela, tirou a carta da gaveta.
- Lê isto.
Sebastião ficara assombrado ao ver o rosto de Jorge. Olhava a carta fechada, e tremia. Apenas viu a assinatura, uma palidez de agonia cobriu-lhe o rosto. Parecia-lhe que o soalho tinha uma vibração onde ele se firmava mal. Mas dominou-se leu devagar, pousou a carta sobre a mesa, sem uma palavra.
Jorge disse então:
- Sebastião, isto pra mim é a morte. Sebastião, tu sabes alguma coisa. Tu vinhas aqui tu sabes. Dize-me a verdade!
Sebastião abriu devagar os braços e respondeu:
- Que te hei de eu dizer? Não sei nada!
Jorge agarrou-lhe as mãos, sacudiu-lhas, e procurando o seu olhar ansiosamente:
- Sebastião, pela nossa amizade, pela alma de tua mãe, por tantos anos que temos passado juntos, Sebastião, dize-me a verdade!...
- Não sei nada. Que hei de eu saber?
- Mentes!
Sebastião disse apenas:
- Podem-te ouvir, homem!
Houve um silêncio: Jorge apertava as fontes nas mãos, com passadas pelo escritório, que faziam vibrar o soalho; e de repente pondo-se diante de Sebastião quase suplicante:
- Mas dize-me ao menos o que fazia ela! Saía? Vinha aqui alguém?
Sebastião respondeu devagar, os olhos fixos na luz:
- Vinha o primo às vezes, ao princípio. Quando a D. Felicidade esteve doente, ela ia vê-la... O primo depois partiu... Não sei mais nada.
Jorge esteve um momento a olhar Sebastião, com uma fixidez abstrata.
- Mas que lhe fiz eu, Sebastião? Que lhe fiz eu? Adorava-a! Que lhe fiz eu para isto? Eu, que a adorava, àquela mulher!
Rompeu a chorar.
Sebastião ficara de pé junto à mesa, estúpido, aniquilado.
- Foi talvez uma brincadeira, apenas... - murmurou.
- E o que diz a carta? - gritou Jorge, voltando-se numa cólera, sacudindo o papel. - Este "Paraíso!", "As boas manhãs" lá passadas! E uma infame!...
- Está doente, Jorge - disse apenas Sebastião.
Jorge não respondeu. Passeou calado algum tempo. Sebastião, imóvel, fatigava a vista contra a chama da luz. Jorge então fechou a carta na gaveta, e tomando o castiçal com um tom de lassidão lúgubre e resignado:
- Queres vir tomar chá, Sebastião?
E não tornaram mais a falar na carta.
Nessa noite Jorge dormiu profundamente. Ao outro dia o seu rosto estava impassível, de uma serenidade lívida.
Foi daí por diante o enfermeiro de Luísa.
A doença, depois de uma marcha incerta durante três dias, definiu-se: eram crescimentos; enfraquecia muito, mas Julião estava tranqüilo.
Jorge passava os seus dias ao pé dela. D. Felicidade vinha ordinariamente pelas manhãs; sentava-se aos pês da cama, e ficava calada, com uma face envelhecida; aquela esperança na mulher de Tui tão subitamente destruída, abalara-a como um velho edifício a que se tira subitamente um pilar; ia-se tornando ruína; e só se animava quando o Conselheiro aparecia pelas três horas a saber da "nossa formosa enferma". Trazia sempre alguma palavra grave que dizia com um tom profundo, conservando o chapéu na mão, sem querer entrar alcova, por pudor:
- A saúde é um bem que só apreciamos quando nos foge!
Ou:
- A doença serve para aquilatarmos os amigos.
E terminava sempre:
- Meu Jorge, as rosas da saúde bem cedo reflorirão nas faces de sua virtuosa esposa!...
De noite Jorge dormia vestido, num enxergão sobre o chão; mas apenas cerrava os olhos uma ou duas horas. O resto da noite procurava ler: começava um romance mas nunca ia além das primeiras linhas; esquecia o livro, e com a cabeça entre as mãos punha-se a pensar: era sempre a mesma idéia - como tinha sido? Conseguira reconstituir aproximadamente, com lógica, certos fatos; via bem Basílio chegando, vindo visitá-la, desejando-a, mandando-lhe ramos, perseguindo-a indo-a ver aqui e além, escrevendo-lhe; mas depois? Viera já a compreender que o dinheiro era para Juliana. A criatura tivera alguma exigência: tinha-os surpreendido? Possuía cartas?... E encontrava, naquela reconstrução dolorosa, falhas, vazios, como buracos escuros, onde a sua alma se arremessava sofregamente. Então começava a recordar os últimos meses desde a sua volta do Alentejo, e como ela se mostrara amante, e que ardor punha nas suas carícias... Para que o enganara então?
Uma noite, com precauções de ladrão, rebuscou todas as gavetas dela, esquadrinhou os vestidos, até as dobras da roupa branca, as caixas de colares, de rendas; viu bem o cofre de sândalo; estava vazio, nem o pó de uma flor seca! Às vezes punha-se a fitar os móveis no quarto, na sala, a sondá-los como se quisesse descobrir neles os vestígios do adultério. Ter-se-iam sentado ali? Ele teria ajoelhado aos pés dela, acolá sobre o tapete? Sobretudo o divã tão largo, tão cômodo, desesperava-o; tomou-lhe ódio. Veio a detestar mesmo a casa, como se os tetos que os tinham coberto, os soalhos que os tinham sustentado tivessem uma cumplicidade consciente. Mas o que o torturava sobretudo eram aquelas palavras - o "Paraíso, as boas manhãs..."
Luísa então já dormia tranqüilamente. Ao fim de uma semana os crescimentos desapareceram. Mas estava muito fraca: no dia em que pela primeira vez se levantou, desmaiou duas vezes; era necessário vesti-la, trazê4a amparada para a chaise longue; e não dispensava Jorge, queria-o ali, ao pé, com exigências de criança! Parecia receber a vida dos seus olhos, a saúde do contato das suas mãos. Fazia-lhe ler o jornal pela manhã, e vir escrever para ao pé dela. Ele obedecia, e mesmo aquelas instâncias eram para a sua dor como carícias consoladoras. É porque o amava decerto!
Sentia então, maquinalmente, abertas de felicidade. Surpreendia-se dizer-lhe ternuras, a rir com ela, esquecido, como dantes! E, estendida na chaise longue, Luísa, contente, percorria antigos volumes da Ilustração Francesa, que lhe mandara O Conselheiro - "onde", segundo ele lhe dissera, podia, ao mesmo tempo que se divertia com os desenhos, adquirir noções úteis sobre importantes acontecimentos históricos; ou, com a cabeça reclinada, saboreava a felicidade de melhorar, de estar livre das tiranias da outra, das amarguras do passado.
Uma das suas alegrias era ver entrar a Mariana com o seu jantarzinho disposto num guardanapo sobre o tabuleiro; tinha apetite, saboreava muito o cálice de vinho do Porto, que Julião recomendara; quando Jorge não estava, fazia longas conversações com Mariana, palrando baixo, consolada, e lambendo colherinhas de gelatina.
Às vezes, calada, com os olhos no teto, fazia planos. Dizia-os depois a Jorge: iria estar duas semanas no campo, para ganhar forças; à volta começaria a bordar tiras de casimira para cobrir as cadeiras da sala; porque queria ocupar-se muito da casa, viver recolhida; ele não voltaria ao Alentejo, não sairia de Lisboa, não é verdade? E a sua vida seria dai por diante de uma doçura contínua e fácil.
Mas Luísa às vezes achava-se macambúzio. Que tinha? Ele explicava pela fadiga, pelas noites maldormidas... Se adoecesse, ao menos, dizia ela, que fosse quando ela estivesse forte para o tratar, para o velar!... Mas não adoeceria, não? E fazia-o sentar ao pé de si, passava-lhe a mão pelos cabelos, com o olhar quebrado, porque com as forças que renasciam vinham os impulsos do seu temperamento amoroso. Jorge sentia que a adorava, e era mais desgraçado!
Luísa, só consigo, tinha outras resoluções. Não tornaria a ver Leopoldina, e freqüentaria as igrejas. Saía da doença com uma vaga sentimentalidade devota. Durante a febre, em certos pesadelos de que lhe ficara uma indistinta idéia aterrada, vira-se às vezes num lugar pavoroso, onde corpos se erguiam, torcendo os braços, do meio de chamas escarlates; formas negras giravam com espetos em brasa, um rugido de agonia subia para a mudez do céu; e já lhe tocavam o peito línguas de fogueiras, quando alguma coisa de doce e de inefável de repente a refrescava; eram as asas de um anjo luminoso e sereno, que a tomava nos braços; e ela sentia-se elevar, apoiando a cabeça contra o seio divino, que a penetrava de uma felicidade sobrenatural; via as estrelas de perto, ouvia frêmitos de asas. Aquela sensação deixara-lhe como uma recordação saudosa do céu. E aspirava a ela, nas debilidades da convalescença, esperando ganhá-la pela pontualidade à missa, e pela repetição de coroas à Virgem.
Enfim uma manhã veio à sala, e abriu pela primeira vez o piano; Jorge, à janela, olhava para a rua - quando ela o chamou, e sorrindo:
- Estou a detestar, há tempos, aquele divã - disse. - Podia-se tirar, não te parece?
Jorge sentiu uma pancada no coração: não pôde responder logo; disse, enfim, com esforço:
- Sim, parece...
- Estou com vontade de o tirar - disse ela saindo da sala, arrastando tranqüilamente a longa cauda do seu roupão.
Jorge não pôde destacar os olhos do divã. Veio mesmo sentar-se nele; passava a mão sobre o estofo às listras; e sentia um prazer doloroso em verificar que fora ali.
Principiara a vir-lhe agora uma espécie de resignação sombria; quando a ouvia gozar tanto as melhoras, falar com felicidade de futuros tranqüilos, decidia-se a aniquilar a carta, esquecer tudo. Ela tinha-se arrependido decerto, amava-o: para que havia de criar a sangue-frio uma infelicidade perpétua? Mas quando a via com os seus movimentos lânguidos estender-se na chaise longue, ou ao despir-se mostrar a brancura do seu colo - e pensava que aqueles braços tinham enlaçado outro homem, aquela boca gemido de amor numa cama alheia - vinha-lhe uma onda de cólera bruta, precisava sair para a não esganar!
Para explicar os seus maus humores, os seus silêncios, começou a queixar-se, a dizer-se doente. E as solicitudes dela, então, as interrogações mudas do seu olhar inquieto faziam-no mais infeliz - por se sentir amado, agora que se sabia traído!
Um domingo enfim Julião deu licença a Luísa para se deitar mais tarde, e fazer à noite as honras da casa. Foi uma alegria para todos vê-la na sala, ainda um pouco pálida e fraca - mas, como disse o Conselheiro, restituída aos deveres domésticos e aos prazeres da sociedade!
Julião que veio às nove horas achou-a como nova. E abrindo os braços, no meio da sala:
- E que me dizem à novidade? - exclamou. - A peça do Ernesto teve um triunfo!...
Assim tinham lido nos jornais. O Diário de Notícias dizia mesmo que o "autor chamado ao proscênio, no meio do mais vivo entusiasmo, recebera uma formosa coroa de louros". Luísa declarou logo que queria ir ver!
- Mais tarde, D. Luísa, mais tarde - acudiu com prudência o Conselheiro. - Por ora é conveniente evitar toda a comoção forte. As lágrimas que não deixaria de derramar, conheço o seu bom coração, podiam produzir uma recaída. Não é verdade, amigo Julião?
- Decerto, Conselheiro, decerto. Eu também quero ir. Quero convencer-me por meus olhos...
Mas o ruído de uma carruagem, lançada a trote largo, que parou à porta, interrompeu-o. A campainha retiniu fortemente.
- Aposto que é o autor! - exclamou ele.
E quase imediatamente a figura radiante de Ernestinho, de casaca, precipitou-se na sala; ergueram-se com ruído, abraçaram-no: mil parabéns! Mil parabéns! E a voz do Conselheiro, dominando as outras:
- Bem-vindo o festejado autor! Bem-vindo!
Ernesto sufocava de júbilo. Tinha um sorriso imobilizado; as asas do nariz dilatavam-se-lhe, como para respirar os incensos; trazia o peito alto, enfunado de orgulho; e movia a cabeça, sem cessar, como num agradecimento instintivo a multidões aplaudidoras.
- Aqui estou! Aqui estou! - disse.
Sentou-se ofegante; e, com um modo amável de Deus, bom rapaz, declarou que os últimos ensaios de apuro não lhe tinham deixado um momento para vir ver a prima Luísa. Tinha tido naquela noite um instante de seu, mas devia voltar às dez horas para o teatro: até nem mandara a tipóia embora...
Contou então largamente o triunfo. Ao principio tivera "grandes cólicas". Todos as tinham, os mais acostumados, os mais ilustres! Mas apenas o Campos disse o monologo do primeiro ato - "e como o disse!" haviam de ver, uma coisa sublime - os aplausos romperam. Tinha agradado tudo. No fim era um barulho, gritos pelo autor, salvas de palmas... Ele viera ao palco, arrastado; não queria, mas obrigaram-no, a Jesuína por um lado, a Maria Adelaide por outro! Um delírio! O Saavedra do Século tinha-lhe dito: "o amigo é o nosso Shakespeare!" O Bastos da Verdade tinha afirmado: "és o nosso Scribe!" Houve uma ceia. E tinham-lhe dado uma coroa.
- E serve-lhe? - acudiu Julião.
- Perfeitamente; um bocadinho larga...
O Conselheiro disse com autoridade:
- Os grandes autores, o famigerado Tasso, o nosso Camões são sempre representados com as suas respectivas coroas.
- É o que eu lhe aconselho, Sr. Ledesma - acudiu Julião, erguendo-se e batendo-lhe no ombro -, é que se faça retratar de coroa!...
Riram.
E Ernestinho, um pouco despeitado, desdobrando o seu lenço perfumado:
- O Sr. Zuzarte não dispensa o seu epigramazinho...
- É a prova da glória, meu amigo. Nos triunfos dos generais vitoriosos, em Roma, havia um bobo no préstito!
- Eu não sei! - disse Luísa muito risonha. - É uma honra para a família!...
Jorge concordou. Passeava pela sala fumando; e disse que gozava tanto a coroa, como se tivesse direito a usá-la...
E Ernestinho voltando-se logo para ele:
- Sabes que lhe perdoei, primo Jorge? Perdoei à esposa...
- Como Cristo...
- Como Cristo - confirmou o Ernestinho, com satisfação.
D. Felicidade aprovou logo:
- Fez muito bem! Até é mais moral!
- O Jorge é que queria que eu desse cabo dela - disse Ernestinho, rindo tolamente. - Não se lembra, naquela noite...
- Sim, sim - fez Jorge, rindo também, nervosamente.
- O nosso Jorge - disse com solenidade o Conselheiro - não podia conservar idéias tão extremas. E decerto a reflexão, a experiência da vida...
- Mudei, Conselheiro, mudei - interrompeu Jorge.
E entrou bruscamente no escritório.
Sebastião, inquieto, foi devagar ter com ele. Estava às escuras.
- Aqueles idiotas não se calarão? Não se irão? - disse ele abafadamente, agarrando o braço de Sebastião.
- Sossega!
- Oh, Sebastião! Sebastião! - E a sua voz tremia, com lágrimas.
Mas Luísa, da sala, gritou:
- Que conspiração é essa aí dentro às escuras?
Sebastião apareceu logo, dizendo:
- Nada, nada. Estávamos lá dentro... - E acrescentou baixo: - O Jorge está fatigado. Está adoentado, coitado!
Notaram, quando ele voltou - que tinha com efeito o ar esquisito.
- Não, realmente não me sinto bom, estou incomodado!
- E a débil D. Luísa precisa o repouso do seu leito - disse o Conselheiro erguendo-se.
Ernestinho que não se podia demorar, ofereceu logo ao Conselheiro e a Julião - a sua carruagem, que era uma caleche, se iam para a Baixa...
- Que honra - exclamou Julião olhando Acácio - irmos na tipóia do grande homem!
E enquanto D. Felicidade se agasalhava, os três desceram.
No meio da escada Julião parou, e cruzando os braços:
- Ora aqui vou eu entre os representantes dos dois grandes movimentos de Portugal desde 1820. A Literatura - e cumprimentou Ernestinho - e o Constitucionalismo! - e curvou-se para o Conselheiro.
Os dois riram, lisonjeados.
- E o amigo Zuzarte?
- Eu? - E baixando a voz: - Até há dias um revolucionário terrível. Mas agora...
- O quê?
- Um amigo da Ordem! - gritou com júbilo.
E desceram, contentes de si e do seu país, para se meterem na tipóia do grande homem!
CAPÍTULO XV
Ao outro dia Jorge foi ao ministério, onde não tinha aparecido nos últimos tempos. Mas demorou-se pouco. A rua, a presença dos desconhecidos ou dos estranhos torturava-o; parecia-lhe que todo o mundo sabia; nos olhares mais naturais via uma intenção maligna, e nos apertos de mão mais sinceros uma irônica pressão de pêsames; as carruagens mesmo que passavam davam-lhe a suspeita de a terem conduzido ao rendez-vous, e todas as casas lhe pareciam a fachada infame do Paraíso. Voltou mais sombrio, infeliz, sentindo a vida estragada. E logo no corredor ao entrar ouviu Luísa cantarolando, como outrora, a Mandolinata!
Estava-se a vestir.
- Como estás tu? - perguntou, pondo a um canto a sua bengala.
- Estou boa. Hoje estou muito melhor. Um bocado fraca ainda...
Jorge deu alguns passos pelo quarto, taciturno.
- E tu? - perguntou-lhe ela.
- Para aqui ando - disse tão desconsoladamente que Luísa pousou o pente, e com os cabelos soltos veio pôr-lhe as mãos nos ombros, muito carinhosa:
- Que tens tu? Tu tens alguma coisa. Estranho-te tanto há dias! Não és o mesmo! Às vezes estás com um cara de réu... Que é? Dize.
E os seus olhos procuravam os dele, que se desviavam perturbados.
Abraçou-o. Insistia, queria que dissesse tudo à "sua mulherzinha".
- Dize. Que tens?
Ele olhou-a muito, e de repente, com uma resolução violenta:
- Pois bem, digo-te. Tu agora estás boa, podes ouvir... Luísa! Vivo num inferno há duas semanas. Não posso mais... Tu estás boa, não é verdade? Pois bem, que quer dizer isto? Dize a verdade!
E estendeu-lhe a carta de Basílio.
- O que é? - fez ela muito branca. E o papel dobrado tremia-lhe na mão.
Abriu-a devagar, viu a letra de Basílio, num relance adivinhou-a. Fixou Jorge um momento de um modo desvairado, estendeu os braços sem poder falar, levou as mãos à cabeça com um gesto ansioso como se se sentisse ferida, e oscilando, com um grito rouco, caiu sobre os joelhos, ficou estirada no tapete.
Jorge gritou. As criadas acudiram. Estenderam-na na cama. Ele quis que Joana corresse a chamar Sebastião; e ficou, como petrificado, junto ao leito, olhando-a, enquanto Mariana toda trêmula desatacava os espartilhos da senhora.
Sebastião veio logo. Felizmente havia éter, fizeram-lho respirar; apenas abriu lentamente os olhos, Jorge precipitou-se sobre ela:
- Luísa, ouve, fala! Não, não tem dúvida. Mas fala. Dize, que tens?
Ao ouvir a voz dele desmaiou outra vez. Movimentos convulsivos sacudiam-lhe o corpo. Sebastião correu a buscar Julião.
Luísa parecia adormecida agora, imóvel, branca como cera, as mãos pousadas sobre a colcha; e duas lágrimas corriam-lhe devagar pelas faces.
Um trem parou, Julião apareceu esbaforido.
- Achou-se mal de repente... Vê, Julião. Está muito mal! - disse Jorge. Fizeram-lhe respirar mais éter; despertou outra vez. Julião falou-lhe, tomando-lhe o pulso.
- Não, não, ninguém! - murmurou ela retirando a mão. Repetiu com impaciência: - Não, vão-se, não quero... - As suas lágrimas redobravam. E como eles saiam da alcova para a não excitar contrariando-a, ouviram-na chamar:
- Jorge!
Ele ajoelhou-se ao pé da cama, e falando-lhe junto do rosto:
- Que tens tu? Não se fala mais em tal. Acabou-se. Não estejas doente. Juro-te, amo-te... Fosse o que fosse, não me importa. Não quero saber, não.
E como ela ia falar, ele pousou-lhe a mão na boca:
- Não, não quero ouvir. Quero que estejas boa, que não sofras! Dize que estas boa! Que tens? Vamos amanhã para o campo, e esquece-se tudo. Foi uma coisa que passou...
Ela disse apenas com a voz sumida:
- Oh! Jorge! Jorge!
- Bem sei... Mas agora vais ser feliz outra vez... Dize, que sentes?
- Aqui - disse ela, e levava as mãos à cabeça. - Dói-me!
Ele ergueu-se para chamar Julião, mas ela reteve-o, atraiu-o; e devorando-o com os olhos onde a febre se acendia, adiantando o rosto, estendia-lhe os lábios. Ele deu-lhe um beijo inteiro, sincero, cheio de perdão.
- Oh, minha pobre cabeça! - gritou ela.
As fontes latejavam-lhe, e uma cor ardente, seca, esbraseava-lhe o rosto.
Como era habituada a enxaquecas, Julião tranqüilizou-os; recomendou um sossego imóvel e sinapismos de mostarda aos pés - até que ele voltasse.
Jorge ficou junto do leito, taciturno, cortado de pressentimentos, de sustos, suspirando às vezes.
Eram então quatro horas; caía uma chuva miudinha, enevoada; a alcova tinha uma luz lúgubre.
- Não há de ser nada... - dizia Sebastião.
Luísa agitava-se no leito, apertando as mãos na cabeça, torturada pela dor crescente, cheia de sede.
Mariana acabava de arrumar em pontas de pés, vagamente assombrada daquela casa, onde só vira desgosto e doença; mas só o pousar sutil dos seus passos fazia sofrer Luísa, como se fossem marteladas sobre o crânio.
Julião não tardou; logo da porta do quarto, o aspecto dela inquietou-o. Acendeu um fósforo, aproximou-lho do rosto; e aquela luz fez-lhe dar um grito como se um ferro frio lhe trespassasse a cabeça.
Os olhos dilatados tinham um reluzir metálico. Conservava-se muito quieta, porque o gesto mais lento lhe dava na nuca dores penetrantes que a dilaceravam. Só de vez em quando sorria para Jorge com uma expressão de aflição serena e muda.
Julião fez logo pôr três travesseiros, para lhe conservar a cabeça alta. Fora caía o crepúsculo úmido. Andavam em bicos de pés, com cuidado; e mesmo tiraram o relógio da parede para afastar o tique-taque monótono. Ela começava agora a murmurar sons cansados, e a voltar-se com movimentos bruscos que lhe arrancavam gritos; ou imóvel gemia de um modo contínuo e angustioso. Tinham-lhe envolvido as pernas num longo sinapismo; mas não o sentia. Pelas nove horas começou a delirar; a língua tornara-se-lhe branca e dura, como de gesso sujo.
Julião fez logo aplicar na cabeça compressas de água fria. Mas o delírio exacerbava-se.
Ora tinha um murmúrio espesso, um vago rosnar modorrento - onde os nomes de Leopoldina, de Jorge, de Basílio voltavam incessantemente; depois debatia-se, esgarçava a camisa com as mãos; e, arqueando-se, os seus olhos rolavam, como largos bugalhos prateados onde a pupila se sumia.
Sossegava mais; dava risadinhas de uma doçura idiota; tinha gestos lentos sobre o lençol, que aconchegavam e acariciavam, como num gozo tépido; depois começava a respirar ansiosamente, vinham-lhe expressões torturadas de terror, queria enterrar-se nos travesseiros e nos colchões, fugindo a aspectos pavorosos; punha-se então a apertar a cabeça freneticamente, pedia que lha abrissem, que a tinha cheia de pedras, que tivessem piedade dela! - e fios de lágrimas corriam-lhe pelo rosto. - Não sentia os sinapismos; expunham-lhe agora os pés nus ao vapor de água a ferver, carregada de mostarda; um cheiro acre adstringia o ar do quarto. Jorge falava-lhe com toda a sorte de palavras consoladoras e suplicantes: pedia-lhe que sossegasse, que o conhecesse; mas de repente ela desesperava-se, gritava pela carta, maldizia Juliana - ou então dizia palavras de amor, enumerava somas de dinheiro... Jorge temia que aquele delírio revelasse tudo a Julião, às criadas; tinha um suor à raiz dos cabelos - e quando ela, um momento, julgando-se no Paraíso - e nas exaltações do adultério, chamou Basílio, pediu champanhe, teve palavras libertinas, Jorge fugiu da alcova alucinado, foi. para a sala às escuras, atirou-se para o divã a soluçar, arrepelou-se, blasfemou.
- Está em perigo? - perguntou Sebastião.
- Está - disse Julião. - Se sentisse os sinapismos, ao menos! Mas estas malditas febres cerebrais...
Calaram-se vendo Jorge entrar na alcova, com o rosto manchado, esguedelhado.
E Julião tomando-o pelo braço, levando-o para fora:
- Ouve lá, é necessário cortar-lhe o cabelo, e rapar-lhe a cabeça.
Jorge olhou-o com um ar estúpido:
- O cabelo? - E agarrando-lhe os braços: - Não, Julião, não, hem? Pode se fazer outra coisa. Tu deves saber. O cabelo não! Não! Isso não, pelo amor de Deus! Ela não está em perigo. Para quê?
Mas aquela massa de cabelo era o diabo, impedia a ação da água!
- Amanhã, se for necessário. Amanhã! Espera até amanhã... Obrigado, Julião, obrigado!
Julião consentiu, contrariado. Fazia então umedecer constantemente as compressas da cabeça, e como Mariana trêmula, desjeitosa, molhava muito o travesseiro, foi Sebastião que se colocou à cabeceira da cama, toda a noite, espremendo sem cessar uma esponja, de onde a água gotejava lentamente; tinham jarros fora da varanda, na sala, para dar à água uma frialdade gelada. O delírio alta noite acalmara um pouco. Mas o seu olhar injetado tinha uma aspecto selvagem: as pupilas pareciam apenas um ponto negro.
Jorge, sentado aos pés da cama, com a cabeça entre as mãos, olhava para ela: lembravam-lhe vagamente outras noites de doença assim, quando ela tivera a pneumonia; e melhorara! Até ficara mais linda, com tons de palidez que lhe adoçavam a expressão! Iriam para o campo quando ela convalescesse; alugaria uma casinha; voltaria à noite no ônibus, e vê-la-ia de longe na estrada vindo ao seu encontro, com um vestido claro, na tarde suave!... Mas ela gemia, ele erguia os olhos sobressaltado; e não lhe parecia a mesma; afigurava-se-lhe que se ia dissipando, desaparecendo naquele ar de febre que enchia a alcova, no silêncio mórbido da noite, e no cheiro da mostarda. Um soluço sacudia-o, e recaía na sua imobilidade.
Joana, em cima, rezava. As velas, com uma chama alta e direita, extinguiam-se.
Enfim uma vaga claridade desenhou nos transparentes brancos os caixilhos da vidraça. Amanhecia. Jorge ergueu-se, foi olhar para a rua. Não chovia; a calçada secava. O ar tinha uma vaga cor de aço. Tudo dormia; e uma toalha, esquecida à janela das Azevedos, agitava-se ao vento frio, silenciosamente.
Quando entrou na alcova Luísa falava com uma voz extinta; sentia muito vagamente os sinapismos, mas a dor de cabeça não cessava. Começou a agitar-se - e o delírio dai a pouco voltou. Julião, então, determinou que se lhe rapasse o cabelo.
Sebastião foi acordar um barbeiro na Rua da Escola - que veio logo, com um ar transido, a gola de casaco levantada; e batendo o queixo começou a tirar imediatamente de um saco de couro as navalhas, as tesouras, devagar, com as mãos moles da gordura das pomadas.
Jorge foi refugiar-se na sala; parecia-lhe que grandes pedaços mutilados da sua felicidade caíam com aquelas lindas tranças, destruídas às tesouradas; e com a cabeça nas mãos recordava certos penteados que ela usava, noites em que os seus cabelos se tinham desmanchado nas alegrias da paixão, tons com que brilhavam à luz... Voltou ao quarto, atraído irresistivelmente; sentiu na alcova o ruído seco e metálico das tesouras; sobre a mesa, numa caixa de sabão, estava um velho pincel de barba, entre flocos de espuma... Chamou Sebastião baixo:
- Dize-lhe que se avie! Estão-me a matar a fogo lento! É demais. Que ande depressa!
Foi à sala de jantar, errou pela casa; a manhã fria clareava; erguera-se vento, que ia levando, aos pedaços, nuvens de um tom alvadio.
Quando tornou a entrar no quarto, o barbeiro guardava as navalhas com a mesma lentidão mole; e tomando o seu chapéu desabado, saiu em bicos de pés murmurando num tom funerário:
- Estimo as melhoras. Deus há de permitir que não seja nada...
O delírio com efeito daí a uma hora acalmou; - e Luísa caiu numa sonolência prostrada com gemidos fracos, que saíam de seus lábios como a lamentação interior da vida vencida.
Jorge tinha então dito a Sebastião que desejava chamar o Dr. Caminha. Era um médico velho que tratara a sua mãe, e que curara Luísa da pneumonia, no segundo ano de casada. Jorge conservara uma admiração agradecida por aquela reputação antiquada; e agora a sua esperança voltava-se sofregamente para ele, ansiando pela sua presença como pela aparição de um santo.
Julião condescendeu logo. Até estimava! E Sebastião desceu correndo, para ir a casa do Dr. Caminha.
Luísa, que saíra um momento do seu torpor, sentiu-os falar baixo. A sua voz extinta chamou Jorge:
- Cortaram-me o cabelo... - murmurou tristemente.
- É para te fazer bem - disse-lhe Jorge, quase tão agonizante como ela. - Cresce logo. Até te vem melhor...
- Ela não respondeu; duas lágrimas silenciosas, correram-lhe pelos cantos dos olhos.
Devia ser a última sensação; a prostração comatosa ia-a imobilizando, apenas a sua cabeça rolava num movimento doce e vagaroso sobre o travesseiro, gemendo sempre com um cansaço triste; a pele empalidecia como um vidro de janela, por trás do qual lentamente uma luz se apaga; e mesmo os ruídos da rua que começavam não a impressionavam, como se fossem muito distantes e abafados em algodão.
Ao meio-dia D. Felicidade apareceu. Ficou petrificada quando a viu tão mal; e ela que a vinha buscar para irem à Encarnação, talvez às lojas! Tirou logo o chapéu, instalou-se; fez arranjar a alcova, tirar as bacias, os velhos sinapismos que arrastavam, compor a cama - porque não havia pior para um doente que desarranjo no quarto; e muito corajosamente animava Jorge.
Uma carruagem parou à porta. Era o Dr. Caminha, enfim!... Entrou atabafado no seu cachenê de quadrados verdes e pretos queixando-se muito do frio; - e tirando devagar as grossas luvas de casimira, que pôs dentro do chapéu metodicamente, adiantou-se para a alcova com um passo cadenciado, acamando com a mão as suas repas grisalhas já muito coladas ao crânio pela escova.
Julião e ele ficaram sós na alcova.
No quarto os outros esperavam calados, ao pé de Jorge, pálido como cera, com os olhos vermelhos como carvões.
- Vai-se-lhe pôr um cáustico na nuca - veio dizer Julião.
Jorge devorava com o olhar ansioso o Dr. Caminha, que se pusera a calçar tranqüilamente as suas luvas de casimira, dizendo:
- Vamos a ver com o cáustico. Não está bem... Mas há ainda pior. E eu volto, meu amigo, eu volto.
O cáustico foi inútil. Não o sentia, imóvel e branca, com as feições crispadas; e tremuras passaram-lhe de repente nos nervos da face como vibrações fugitivas.
- Está perdida - disse Julião baixo a Sebastião.
D. Felicidade ficou muito aterrada, falou logo nos sacramentos.
- Para quê? - resmungou Julião impaciente.
Mas D. Felicidade declarou que tinha escrúpulos, que era um pecado mortal; e chamando Jorge para o vão da janela, toda trêmula:
- Jorge, não se assuste, mas seria bom pensar nos sacramentos...
Ele murmurava como assombrado:
- Os sacramentos!
Julião chegou-se bruscamente, e quase zangado:
- Nada de tolices! Qual sacramentos! Para quê? Ela nem ouve, nem compreende, nem sente. E necessário deitar-lhe outro cáustico, talvez ventosas, e é o que é! Isso é que são os sacramentos!
Mas D. Felicidade escandalizada, muito abalada, começou a chorar. Esqueciam Deus, e em Deus é que está o remédio! - dizia, assoando-se com estrondo.
- Pelo que Deus faz por mim... - exclamou Jorge, saindo do seu torpor. E batendo as mãos, como revoltado por uma injustiça: - Por que realmente, que fiz eu para isto? Que fiz eu?...
Julião ordenara outro cáustico. Havia agora na casa um movimento alucinado. Joana entrava de repente com um caldo inútil que ninguém pedira, os olhos muito vermelhos de chorar. Mariana soluçava pelos cantos. D. Felicidade ia, vinha pelo quarto, refugiando-se na sala para rezar, fazendo promessas, lembrando que se chamasse o Dr. Barbosa, o Dr. Barral.
E Luísa no entanto estava imóvel; uma cor macilenta ia-lhe dando às faces tons cavados e rígidos.
Julião extenuado pediu um cálice de vinho, uma fatia de pão. Lembraram-se então que desde a véspera não tinham comido, e foram à sala de jantar onde Joana, sempre lavada em lágrimas, serviu uma sopa, e ovos. Mas não achava as colheres, nem os guardanapos; murmurava rezas, pedia desculpa; enquanto Jorge, com os olhos inchados, fitos na borda da mesa, a face contraída, fazia dobras na toalha.
Depois de um momento pousou devagarinho a colher, desceu ao quarto. Mariana estava sentada aos pés do leito; Jorge disse-lhe que fosse servir os senhores; e apenas ela saiu, deixou-se cair de joelhos, tomou uma das mãos de Luísa, chamou-a baixo; depois mais forte:
- Escuta-me. Ouve, pelo amor de Deus. Não estejas assim, faze por melhorar. Não me deixes neste mundo, não tenho mais ninguém! Perdoa-me. Dize que sim. Faze sinal que sim ao menos. Não me ouve, meu Deus!
E olhava-a ansiosamente. Ela não se movia.
Ergueu então os braços ao ar numa desesperação alucinada.
- Sabes que creio em ti, meu Deus. Salva-a! Salva-a! - E arremessava a sua alma para as alturas: - Ouve, meu Deus! Escuta-me! Sê bom!
Olhava em roda, esperando um movimento, uma voz, um acaso, um milagre! Mas tudo lhe pareceu mais imóvel. A face lívida cavava-se; o lenço que lhe envolvia a cabeça desarranjara-se, via-se o crânio rapado, de uma cor ligeiramente amarelada. Pôs-lhe então a mão na testa, hesitando, com medo; pareceu-lhe que estava fria! Abafou um grito, correu para fora do quarto, e deu com o Dr. Caminha que entrava, tirando pausadamente as luvas.
- Doutor! Está morta! Veja. Não fala, está fria...
- Então! Então! - disse ele. - Nada de barulho, nada de barulho!
Tomou o pulso de Luísa, sentiu-o fugir sob os dedos, como a vibração expirante de uma corda.
Julião veio logo. E concordou com o Dr. Caminha que as ventosas eram inúteis.
- Já as não sente - disse o doutor sacudindo o tabaco dos dedos.
- Se se lhe desse um copo de conhaque?... - lembrou de repente Julião. E vendo o olhar espantado do doutor: - Às vezes estes sintomas de coma não querem dizer que o cérebro esteja desorganizado; podem ser apenas a inação da força nervosa exausta. Se a morte é irremediável não se perde nada; se é apenas uma depressão do sistema nervoso, pode-se salvar...
O Dr. Caminha, com o beiço descaído, oscilava incredulamente a cabeça:
- Teorias! - murmurou.
- Nos hospitais ingleses... - começou Julião.
O Dr. Caminha encolheu os ombros com desprezo.
- Mas se o doutor lesse... - insistiu Julião.
- Não leio nada! - disse o Dr. Caminha com força - tenho lido demais! Os livros são os doentes... - E curvando-se, com ironia: - Mas se o meu talentoso colega quer fazer a experiência...
- Um copo de conhaque ou de aguardente! - pediu Julião à porta.
E o Dr. Caminha sentou-se comodamente "para gozar o fracasso do talentoso colega".
Levantaram Luísa; Julião fez-lhe engolir o conhaque; quando a deitaram ficou na mesma imobilidade comatosa; o Dr. Caminha tirou o relógio, viu as horas, esperou; havia um silêncio ansioso; enfim o doutor ergueu-se, tomou-lhe o pulso, apalpou a frialdade crescente das extremidades; e indo buscar silenciosamente o chapéu começou a calçar as luvas.
Jorge foi com ele até à porta:
- Então, doutor? - disse, agarrando-lhe com uma força desvairada o braço.
- Fez-se o que se pôde - disse o velho, encolhendo os ombros.
Jorge ficou estúpido no patamar, vendo-o descer. As suas passadas vagarosas nos degraus caíam-lhe com uma percussão medonha no coração. Debruçou-se no corrimão, chamou-o baixo. O doutor parou, levantou os olhos; Jorge pôs as mãos para ele, com uma ansiedade humilde:
- Então não é possível mais nada?
O doutor fez um gesto vago, indicou o céu.
Jorge voltou para o quarto, encostando-se às paredes. Entrou na alcova, atirou-se de joelhos aos pés da cama, e ali ficou com a cabeça entre as mãos num soluçar baixo e continuo.
Luísa morria: os seus braços tão bonitos, que ela costumava acariciar diante do espelho, estavam já paralisados; os seus olhos, a que a paixão dera chamas e a voluptuosidade lágrimas, embaciavam-se como sob a camada ligeira de uma pulverização muito fina.
D. Felicidade e Mariana tinham acendido uma lamparina a uma gravura de Nossa Senhora das Dores, e de joelhos rezavam.
O crepúsculo triste descia; parecia trazer um silêncio funerário.
A campainha, então, tocou discretamente; e daí a momentos apareceu a figura do Conselheiro Acácio.
D. Felicidade ergueu-se logo; e vendo as suas lágrimas, o Conselheiro disse lugubremente:
- Venho cumprir o meu dever, ajudar-lhes a passar este transe!
Explicou que encontrara por acaso o bom Dr. Caminha, que lhe contara a fatal ocorrência! Mas muito discretamente não quis entrar na alcova. Sentou-se numa cadeira, colocou melancolicamente o cotovelo sobre o joelho, a testa sobre a mão, dizendo baixo a D. Felicidade:
- Continue as suas orações. Deus é imperscrutável em seus decretos.
Na alcova, Julião estivera tomando o pulso de Luísa; olhou então Sebastião, fez-lhe o gesto de alguma coisa que voa e desaparece... Aproximaram-se de Jorge, que não se movia, de joelhos, com a face enterrada no leito:
- Jorge - disse baixinho Sebastião.
Ele levantou o rosto desfigurado, envelhecido, os cabelos nos olhos, as olheiras escuras.
- Vá, vem - disse Julião. E vendo o espanto do seu olhar: - Não, não está morta, está naquela sonolência... Mas vem.
Ele ergueu-se, dizendo com mansidão:
- Pois sim, eu vou. Estou bem... Obrigado.
Saiu da alcova.
O Conselheiro levantou-se, foi abraçá-lo com solenidade:
- Aqui estou, meu Jorge!
- Obrigado, Conselheiro, obrigado.
Deu alguns passas pelo quarto; os seus olhos pareciam preocupar-se com um embrulho que estava sobre a mesa; foi apalpá-lo; desapertou as pontas, e viu os cabelos de Luísa. Ficou a olhá-los, erguendo-os, passando-os de uma das mãos para outra, e disse com os beiços a tremer:
- Fazia tanto gosto neles, coitadinha!
Tornou a entrar na alcova. Mas Julião tomou-lhe o braço, queria-o afastar do leito. Ele debatia-se docemente; e, como uma vela ardia sobre a mesinha ao pé da cabeceira, disse, mostrando-a:
- Talvez a incomode a luz...
Julião respondeu comovido:
- Já não a vê, Jorge!
Ele soltou-se da mão de Julião, foi debruçar-se sobre ela; tomou-lhe a cabeça entre as mãos com cuidado para a não magoar, esteve a olhá-la um momento; depois pousou-lhe sobre os lábios frios um beijo, outro, outro, murmurava:
- Adeus! Adeus!
Endireitou-se, abriu os braços, caiu no chão.
Todos correram. Levaram-no para a chaise longue.
E enquanto D. Felicidade num pranto aflito fechava os olhos de Luísa, o Conselheiro, com o chapéu sempre na mão, cruzava os braços, e oscilando a sua calva respeitável, dizia a Sebastião:
- Que profundo desgosto de família!
CAPÍTULO XVI
Depois do enterro de Luísa, Jorge despediu as criadas, foi para casa de Sebastião.
Nessa noite pelas nove horas o Conselheiro Acácio, muito abafado, descia o Moinho de Vento, quando encontrou Julião, que vinha de ver um doente na Rua da Rosa. Foram andando juntos, conversando de Luísa, do enterro, da aflição de Jorge.
- Pobre rapaz! Aquilo é que é sofrer! - disse Julião compadecido.
- Era uma esposa modelo!... - murmurou o Conselheiro.
De resto, disse, vinha justamente de casa do bom Sebastião, mas não pudera ver o seu Jorge; tinha-se estirado sobre a cama, e dormia profundamente. E acrescentou:
- Ultimamente lia eu que aos grandes golpes sucedem sempre sonos prolongados. Assim, por exemplo, Napoleão depois de Waterloo, depois do grande desastre de Waterloo!
E passado um momento, continuou:
- É verdade. Fui ver o nosso Sebastião... Fui mostrar-lhe... - E interrompendo-se, parando: - Porque eu entendi que era o meu dever dedicar um tributo à memória da infeliz senhora. Era o meu dever, e não me eximia a ele! E estimo tê-lo encontrado, porque quero saber a sua a opinião conscienciosa e desassombrada.
Julião tossiu, e perguntou:
- É um necrológio?
- É um necrológio.
E o Conselheiro, apesar de não achar próprio, na sua posição, o entrar em cafés públicos, lembrou a Julião que poderiam descansar um momento no Tavares, se não estivesse muita gente, e ele poderia ler-lhe "a produção".
Espreitaram.
Estavam apenas, a uma mesa, dois velhos calados defronte dos seus cafés, com os chapéus na cabeça, apoiados a bengalas de cana-da-Índia. O moço dormitava ao fundo. Uma luz crua e intensa enchia a sala estreita.
- Há um silêncio propicio - disse o Conselheiro.
Ofereceu um café a Julião; e tirando então do bolso uma folha de papel pautado, murmurou: - Infeliz senhora! - Inclinou-se para Julião, e leu:
NECROLÓGIO
À MEMÓRIA DA SENHORA D. LUÍSA MENDONÇA DE BRITO CARVALHO
Rosa de amor, rosa purpúrea e bela,
Quem entre os goivos te esfolhou na campa?
- É do imortal Garrett! - E continuou com uma voz lenta e lúgubre:
- "... Mais um anjo que subiu ao céu! Mais uma flor pendida na tenra haste que o vendaval da morte, em sua inclemente fúria, arremessou maldesabrochada para as trevas do túmulo..."- Olhou Julião para solicitar a sua admiração, e vendo-o curvado a remexer o seu café, prosseguiu com entonações mais funerárias:
- "Detendo-vos, e olhai a terra fria! Ali jaz a casta esposa tão cedo arrancada às carícias do seu talentoso cônjuge. Ali soçobrou, como baixei no escarcéu da costa, a virtuosa senhora, que em sua folgazã natureza era o encanto de quantos tinham a honra de se aproximar do seu lar! Por que soluçais?"
- Um café, ó Antônio! - bradou a voz rouca de um sujeito grosso, de jaquetão, que se sentou ao pé, pondo com ruído a bengala sobre a mesa e deitando o chapéu para o cachaço.
O Conselheiro olhou-o de lado, com rancor. E baixando a voz:
- "... Não soluceis! Que o anjo se não pertence à terra pertence ao céu!..."
- O Sô Guedes esteve já por aí? - perguntou a voz rouca.
O criado disse detrás do balcão, limpando com uma rodinha as travessas de metal:
- Ainda não, senhor D. José!
- "... Ali" - continuou o Conselheiro - "seu espírito, librando-se nas cândidas asas, entoa louvores ao Eterno! E não cessa de pedir ao Onipotente mercês e favores para derramar sobre a cabeça do dileto esposo, que um dia, não duvideis, a encontrará nas regiões celestes, pátria das almas de tão subido quilate..." - E a voz do Conselheiro aflautava-se para indicar aquela ascensão paradisíaca.
- E ontem à noite esteve cá, o Sô Guedes? - insistiu o sujeito de jaquetão com os cotovelos sobre a mesa, fumando como uma chaminé.
- Esteve tarde. Lá pelas duas horas.
O Conselheiro sacudiu o papel com um desespero mudo; por trás dos vidros da luneta escura fuzilavam-lhe nos olhos os despeitos homicidas de autor interrompido. Mas prosseguiu:
- "...E vós, ó almas sensíveis, vertei as lágrimas, mas vertendo-as, não percais de vista que o homem deve curvar-se aos decretos da Providência..."
E interrompendo-se:
- Isto é para dar coragem ao nosso pobre Jorge! - Continuou: - "... da Providência. Deus conta com mais um anjo, e a sua alma brilha pura..."
- Esteve com a pequena, o Sô Guedes? - fez o sujeito, quebrando no mármore da mesa a cinza do charuto.
O Conselheiro suspendeu-se, pálido de raiva.
- Deve ser pessoa da mais baixa extração! - rosnou com ódio.
E o criado erguendo a vozinha fina detrás do balcão:
- Não, não; tem vindo agora com uma espanhola daí de cima da rua. Uma magrinha, com o cabelo eriçado, uma capa vermelha.
- A Lola! - acudiu o outro com satisfação. E espreguiçou-se com voluptuosidade à recordação da Lola.
O Conselheiro agora apressava-se:
- "... E de resto, o que é a vida? Uma rápida passagem sobre o orbe, e vão sonho de que acordamos no seio do Deus dos Exércitos, de que todos nos indignos vassalos."
E com esta frase monárquica o Conselheiro terminou.
- Que lhe parece, com franqueza?
Julião sorveu o fundo da chávena, e colocando-a devagar no pires, lambendo os beiços:
- É para imprimir?
- Na Voz Popular com tarjeta preta.
Julião coçou convulsivamente a caspa, e erguendo-se:
- Está muito bom. Muito bom, Conselheiro!
E Acácio procurando o troco para o moço:
- Creio que está digno dela, e de mim!
E saíram calados.
A noite estava muito escura; erguera-se um nordeste frio; gotas de chuva tinham caído. Ao Loreto, Julião parou subitamente; e exclamou:
- Ai, esquecia-me! Sabe a novidade, Conselheiro? A D. Felicidade recolhe-se à Encarnação.
- Ah!
- Disse-mo agora. Eu fui justamente vê-la antes de ir ver um doente à Rua da Rosa. Estava com uma febrezita. Coisa de nada... A comoção, o susto! E deu-me parte: recolhe-se amanhã à Encarnação.
O Conselheiro disse:
- Sempre conheci naquela senhora idéias retrógradas. É o resultado das manobras jesuíticas, meu amigo! - E ajuntou com a melancolia do liberal descontente: - A reação levanta a cabeça!
Julião tomou familiarmente o braço do Conselheiro, e sorrindo:
- Qual reação! É por sua causa, ingrato...
O Conselheiro estacou:
- Que quer o meu nobre amigo insinuar?
- Sim, homem! Não sei como diabo descobriu uma coisa grave...
- O quê? Acredite...
- O que eu também descobri, seu maganão! Que o Conselheiro tem duas travesseirinhas na cama, tendo só uma cabeça... Disse-mo ela! - E rindo muito, dizendo-lhe "adeus! adeus!" desceu rapidamente a Rua do Alecrim. O Conselheiro ficou imóvel, no largo, de braços cruzados, como petrificado. - Que infeliz senhora! Que funesta paixão! - murmurou enfim. E acariciou o bigode, com satisfação.
Como tinha de passar a limpo o necrológio apressou-se a entrar em casa. Abancou com uma manta sobre os joelhos; bem depressa as responsabilidades de prosador distraíram-no das preocupações de homem; e até às onze horas a sua bela letra cursiva e burocrática desenrolou-se nobremente sobre uma larga folha de papel inglês, no silêncio do seu Sanctum Sanctotum. Terminava quando a porta rangeu, e a Adelaide, com um xale forte pelos ombros, veio dizer, numa voz constipada:
- Então hoje não se faz nenê?
- Não tardo, minha Adelaide, não tardo!
E releu baixo, enlevado. Pareceu-lhe então que o final não era comovente: queria terminar por uma exclamação dolorosa, prolongada como um "ai"! Meditou, com os cotovelos sobre a mesa, a cabeça entre os dedos muito abertos; Adelaide então, chegando-se devagar, passou-lhe a mão pela calva; aquele doce amoroso fez decerto saltar a idéia como uma faísca, porque tomou rapidamente a pena, e acrescentou:
- "Chorai! Chorai! Enquanto a mim, a dor sufoca-me!"
Esfregou as mãos com orgulho. Repetiu alto num tom plangente:
- "Chorai, chorai; enquanto a mim, a dor sufoca-me!" - E passando o braço concupiscente pela cinta da Adelaide, exclamou:
- Está de fazer sensação, minha Adelaide!
Ergueu-se. Tinha terminado o seu dia. Fora bem preenchido e digno; de manhã certificara-se com regozijo no Diário do Governo, que a família real "passava sem novidade"; cumprira o dever de amigo, acompanhando Luísa aos Prazeres numa carruagem da Companhia; a alta das inscrições assegurava-lhe a paz da sua pátria; compusera uma prosa notável; a sua Adelaide amava-o! E decerto se deliciou na certeza destas felicidades, que contrastavam tanto com as imagens sepulcrais que a sua pena revolvera, porque Adelaide ouviu-o murmurar:
- A vida é um bem inestimável! - E acrescentar como bom cidadão: Sobretudo nesta era de grande prosperidade pública!
E entrou no quarto com a cabeça ereta, o peito cheio, os passos firmes, erguendo alto o castiçal.
A sua Adelaide seguia-o bocejando; estava cansada da constipação e - de uma hora de ternuras, que tivera à tardinha, com o louro e meigo Arnaldo, caixeiro da Loja da América.
Àquela hora dois homens desciam de uma carruagem à porta do Hotel Central; um trazia uma ulster de xadrez, o outro uma longa peliça. Um ônibus quase ao mesmo tempo parou, carregado de bagagens.
Um criado alemão, que conversava embaixo com o porteiro, reconheceu-os logo, e tirando o coco:
- Oh, senhor D. Basílio! Oh, senhor visconde!
O Visconde Reinaldo, que batia os pés nas lajes, rosnou de dentro da sua peliça:
- É verdade, aqui estamos outra vez na pocilga!
Mas àquela hora?
- A que horas queria você que chegássemos? Às horas da tabela, talvez! Doze horas de atraso, essa bagatela! Em Portugal é quase nada...
- Houve algum transtorno? - perguntava o criado com solicitude, seguindo-os pela escada.
E Reinaldo, pisando com um pé nervoso o esparto do corredor:
- O transtorno nacional! Descarrilou tudo! Estamos aqui por milagre! Abjeto país!... - E desabafava a sua cólera com o criado: tê-la-ia desabafado com as pedras da rua, tanto era o excesso da bílis: - Há um ano que a minha oração é esta: "Meu Deus, manda-lhe outra vez o terramoto!" Pois todos os dias leio os telegramas a ver se o terramoto chegou... e nada! Algum ministro que cai, ou algum barão que surge. E de terramoto nada! O Onipotente faz ouvidos de mercador às minhas preces... Protege o país! Tão bom é um como outro! - E sorria, vagamente reconhecido a uma nação, cujos defeitos lhe forneciam tantas pilhérias.
Mas quando o criado, muito consternado, lhe declarou - que não havia senão um salão e uma alcova com duas camas, no terceiro andar - a cólera de Reinaldo não conheceu restrições:
- Então havemos de dormir no mesmo quarto? Você pensa que o senhor D. Basílio é meu amante, seu devasso? Está tudo cheio? Mas quem diabo se lembra de vir a Portugal? Estrangeiros? É justamente o que me espanta! - E encolhendo os ombros com rancor: - É o clima, é o clima que os atrai! O clima, este prodigioso engodo nacional! Um clima pestífero. Não há nada mais reles de que um bom clima!...
E não cessou de invectivar o seu país, enquanto o criado à pressa, sorrindo servilmente, punha sobre a jardineira pratos, fiambre, um frango frio e borgonha.
Reinaldo vinha vender a última propriedade, e acompanhara Basílio que voltava a terminar "o secante negócio da borracha". E não cessava de rosnar soturnamente de dentro da peliça:
- Aqui estamos! Aqui estamos no chiqueiro!
Basílio não respondia. Desde que chegara a Santa Apolônia, recordações do Paraíso, da casa de Luísa, de todo aquele romance do verão passado, começavam a voltar, a atrai-lo, com um encanto picante. Fora encostar-se à vidraça. Uma lua fria, lívida, corria agora entre grossas nuvens cor de chumbo; às vezes uma grande malha luminosa caía sobre a água, faiscava; depois tudo escurecia; vagas mastreações desenhavam-se na obscuridade difusa; e algum fanal de navio tremeluzia friamente.
"Que fará ela a esta hora!" - pensava Basílio. - naturalmente, deitava-se... Mal sabia que ele estava ali, num quarto do Hotel Central...
Cearam.
Basílio levou a garrafinha de conhaque para a cabeceira da cama; e com a cara coberta de pó-de-arroz, os folhos da sua camisa de dormir abertos sobre o peito, muito estendido, soprando o fumo do charuto, gozava uma lassidão confortável.
- E amanhã estou-te daqui a ver - disse Reinaldo. - Vai-te logo meter com a prima!
Basílio sorriu; o seu olhar errou um pouco pelo teto; certas recordações das belezas dela, do seu temperamento amoroso, trouxeram-lhe uma vaga voluptuosidade; espreguiçou-se. - Que diabo! - disse - é uma linda rapariga! Vale imenso a pena! - Bebeu mais um cálice de conhaque, e daí a pouco dormia profundamente. Era meia-noite.
Àquela hora Jorge acordava, e sentado numa cadeira, imóvel, com soluços cansados que ainda o sacudiam, pensava nela. Sebastião, no seu quarto, chorava baixo. Julião, no posto médico, estendido num sofá, lia a Revista dos Dois Mundos. Leopoldina dançava numa soirée da Cunha. Os outros dormiam. E o vento frio que varria as nuvens e agitava o gás dos candeeiros ia fazer ramalhar tristemente uma árvore sobre a sepultura de Luísa.
Daí a dois dias pela manhã Basílio, no Rossio, procurava, com o olhar em redor, um cupê decente. Mas o Pintéus, avistando-o de longe, lançou logo a parelha.
- Cá está o Pintéus, meu amo! - Parecia encantado de tornar a ver o senhor D. Basilinho, e apenas ele lhe disse:
- Lá acima, à Patriarcal, ó Pintéus!
- À casa da senhora? Pronto, meu amo. - E endireitando-se na almofada, bateu.
Quando a tipóia parou à porta de Jorge - o Paula saiu para a rua, a estanqueira correu de dentro do balcão, a criada do doutor debruçou-se logo na janela. E imóveis arregalavam os olhos.
Basílio tocara a campainha, um pouco nervoso: esperou, arremessou o charuto, tomou a puxar o cordão com força.
- As janelas estão trancadas, meu amo - disse o Pintéus.
Basílio recuou ao meio da rua: as portadas verdes estavam fechadas, a casa tinha um aspecto mudo.
Basílio dirigiu-se ao Paula:
- Os senhores que ali moram, estão para fora?
- Já não moram - disse o Paula soturnamente, passando a mão sobre o bigode.
O Paula escarrou, e cravou em Basílio um olhar desolado:
- Vossa Senhoria é o parente?
Basílio disse sorrindo.
- Sou o parente, sou.
- Então não sabe?
- O quê, homem de Deus?
O Paula esfregou o queixo, e bamboleando a cabeça:
- Pois sinto dizer-lho. A senhora morreu.
- Que senhora? - perguntou Basílio. E fez-se muito branco.
- A senhora! A senhora D. Luísa, a mulher do Sr. Carvalho, o Engenheiro... E o Sr. Jorge está em casa do Sr. Sebastião. Ali ao fim da rua. Se Vossa Senhoria lá quer ir...
- Não! - fez Basílio com um gesto rápido da mão. Os beiços tremiam-lhe um pouco. - Mas que foi?
- Uma febre! Rapou-a em dois dias!
Basílio dirigiu-se ao cupê devagar, com a cabeça baixa. Olhou mais uma vez para a casa; fechou com força a portinhola. O Pintéus bateu para a Baixa.
O Paula então aproximou-se do estanque:
- Não lhe fez muita mossa! Fidalgos! Canalha! - murmurou.
A estanqueira disse lamentosamente:
- Pois eu não sou parenta, e todas as noites lhe rezo dois padre-nossos por alma...
- E eu! - suspirou a carvoeira.
- Há de lhe isso servir de muito! - rosnou o Paula, afastando-se.
Estava ultimamente mais amargo. Vendia pouco. Aquelas mortes na rua traziam-no desconfiado da vida. Cada dia detestava mais os padres! E todas as noites lia a Nação que lhe emprestava o Azevedo, repastando-se com rancor de artigos devotos que o exasperavam, o impeliam para o ateísmo; e o descontentamento das coisas públicas inclinava-o para a comuna. Como ele dizia, achava tudo uma porcaria.
Foi decerto sob este sentimento que, voltando-se à porta do estanque, disse às vizinhas com um ar lúgubre:
- Sabem o que isto é? Sabem o que tudo isto é? - Fazia um gesto que abrangia o Universo. Fitou-as de um modo irado, e rosnou esta palavra suprema:
- Um monte de estrume!
Ao descer a Rua do Alecrim, Basílio viu o Visconde Reinaldo à porta do Hotel Street. Mandou parar o Pintéus, e saltando do cupê:
- Sabes?
- O quê?
- Minha prima morreu.
O Visconde Reinaldo murmurou polidamente:
- Coitada!...
E foram descendo a rua, de braço dado, até ao Aterro. O dia estava glorioso; um friozinho sutil errava; no ar luminoso, leve, trespassado de sol, as casas, os galhos das árvores, os mastros das faluas, as mastreações dos navios tinham uma nitidez muito desenhada; os sons sobressaíam com uma tonalidade cantada e alegre; o rio reluzia como um metal azul; o vapor de Cacilhas ia soltando rolos de fumo que tomavam a cor do leite; e ao fundo as colinas faziam na pulverização da luz uma sombra azulada, onde as casarias caiadas rebrilhavam.
E os dois, passeando devagar, iam falando de Luísa.
O Visconde Reinaldo, delicado, lamentava a pobre senhora, coitada, que se tinha deixado morrer por um tempo tão lindo! - Mas em resumo, sempre achara aquela ligação absurda...
Porque enfim fossem francos: que tinha ela? Não queria dizer mal da pobre senhora que estava naquele horror dos Prazeres, mas a verdade é que não era uma amante chique; andava em tipóias de praça; usava meias de tear; casara com um reles indivíduo de secretaria; vivia numa casinhola, não possuía relações decentes; jogava naturalmente o quino, e andava por casa de sapatos de ourelo; não tinha espírito, não tinha toalete... que diabo! Era um trambolho!
- Para um ou dois meses que eu estivesse em Lisboa... - resmungou Basílio com a cabeça baixa.
- Sim, para isso talvez. Como higiene! - disse Reinaldo com desdém.
E continuaram calados, devagar. Riram-se muito de um sujeito que passava governando atarantadamente dois cavalos pretos: - Que faéton! Que arreios! Que estilo! Só em Lisboa!...
Ao fundo do Aterro voltaram; e o Visconde Reinaldo passando os dedos pelas suíças:
- De modo que estás sem mulher...
Basílio teve um sorriso resignado. E, depois de um silêncio, dando um forte raspão no chão com a bengala:
- Que ferro! Podia ter trazido a Alphonsine! E foram tomar xerez à Taverna Inglesa.
Setembro de 1876 - Setembro de 1877.
"O PRIMO BASÍLIO"
(CARTA A TEÓFILO BRAGA)
Newcastle, 12 de março de 1878.
Meu caro Teófllo Braga.
E de você que tenho recebido, depois das minhas duas tentativas de arte, as cartas mais animadoras e mais recompensadoras. E você, como o nosso belo e grande Ramalho, que mais me tem empurrado pra diante. Eu nunca respondi à sua excelente carta sobre o Padre Amaro; contava então ir a Lisboa, e lá conversar largamente consigo; o homem propõe, a ocasião dispõe - e as poucas semanas, que aí estive passaram, sem nos encontrarmos. Talvez você imaginasse que a sua carta de então me tinha passado sobre o espírito como água sobre guta-percha. Está bem enganado: embebi-me dela. Ela deu-me valor e arranque para me atirar ao Primo Basílio - com a consolação de que vale a pena escrever um livro quando se tem um leitor como você.
A sua última foi para mim um grande alívio. Eu estava-lhe com receio: como todos os artistas, creia, eu trabalho para três ou quatro pessoas, tendo sempre presente a sua crítica pessoal. E muitas vezes, depois de ver a Primo Basílio impresso, pensei: - "o Teófilo não vai gostar!" Com o seu nobre e belo fanatismo da Revolução, não admitindo que se desvie do seu serviço nem uma parcela do movimento intelectual - era bem possível que você vendo a Primo Basílio separar-se, pelo assunto e pelo processo, da arte de combate a que pertencia a Padre Amaro, a desaprovasse. Por isso a sua aprovação foi para mim uma agradável surpresa, e todavia a sua aprovação é mais ao processo que ao assunto, e você vendo-me tomar a família como assunto, pensa que eu não devia atacar esta instituição eterna, e devia voltar o meu instrumento de experimentação social contra as produtos transitórios, que se perpetuam além do momento que os justificou, e que de forças sociais passaram a ser empecilhos públicos. Perfeitamente: mas eu não ataco a família - ataco a família lisboeta - a família lisboeta produto do namoro, reunião desagradável de egoísmos que se contradizem, e mais tarde ou mais cedo centro de bambochata. No Primo Basílio que apresenta, sobretudo, um pequeno quadro doméstico, extremamente familiar a quem conhece bem a burguesia de Lisboa; - a senhora sentimental, mal-educada, nem espiritual (porque cristianismo já a não tem; sanção moral da justiça, não sabe a que isso é), arrasada de romance, lírica, sobreexcitada no temperamento pela ociosidade e pelo mesmo fim do casamento peninsular que é ordinariamente a luxúria, nervosa pela falta de exercício e disciplina moral, etc., etc. - enfim a burguesinha da Baixa; por outro lado o amante - um maroto, sem paixão nem a justificação da sua tirania, que a que pretende é a vaidadezinha de uma aventura, e a amor grátis; do outro lado a criada, em revolta secreta contra a sua condição, ávida de desforra; por outro lado a sociedade que cerca estes personagens - a formalismo oficial (Acácio), a beatice parva de temperamento irritado (D. Felicidade), a literaturinha acéfala (Ernestinho), o descontentamento azedo, e o tédio de profissão (Julião) e às vezes quando calha, um pobre bom rapaz (Sebastião). Um grupo social, em Lisboa, compõe-se, com pequenas modificações, destes elementos dominantes. Eu conheço vinte grupos assim formados. Uma sociedade sobre estas falsas bases, não está na verdade: atacá-las é um dever. E neste ponto o Primo Basílio não está inteiramente fora da arte revolucionária, creio. Amaro é um empecilho, mas os Acácios, os Emestos, os Saavedras, os Basílios são formidáveis empecilhos; são uma bem bonita causa de anarquia na meia da transformação moderna; merecem partilhar com a Padre Amaro da bengalada da homem de bem.
A minha ambição seria pintar a sociedade portuguesa, tal qual a fez a Constitucionalismo desde 1830 e mostrar-lhe como num espelho, que triste país eles formam - eles e elas. É o meu fim nas Cenas da vida portuguesa. É necessário acutilar o mundo oficial, a mundo sentimental, o mundo literária, o mundo agrícola, o mundo supersticioso - e com todo o respeito pelas instituições que são de origem eterna, destruir as falsas interpretações e falsas realizações, que lhe dá uma saciedade podre. Não lhe parece você que um tal trabalho é justo?
Enquanto ao processo - estimo que você o aprove. Eu acho no Primo Basílio uma superabundância de detalhes, que obtive, e abafo um pouca a ação; o meu processo precisa simplificar-se, condensar-se - e estuda isso; o essencial é dar a nota justa; um traço justo e sóbrio, cria mais que a acumulação de tons e de valores - como se diz em pintura. Mas isto é querer muito. Pobre de mim - nunca poderei dar a sublime nota da realidade eterna, como a divina Balzac - au a nata justa da realidade transitória cama a grande Flaubert! Estes deuses e estes semideuses da arte estão nas alturas - e eu, desgraçadinho, rabeio nas ervas intimas. E todavia se já houve sociedade que reclamasse um artista vingador é esta! E sobretudo, vista de longe no seu conjunto, e contemplada de um meio farte como este aqui (sejam quais forem os seus grandes males, forte decerto) que contrista, achá-la tão mesquinha, tão estúpida, tão convencionalmente pateta, tão grotesca e tão pulha!
Alegra-me que você queira escrever alguma coisa sobre o Basílio; a sua opinião, publicada, daria ao meu pobre romance uma autoridade imprevista. Dar-lhe-ia um direito de existência; e de todos os defeitos, faltas, ou erros que você notar - tomarei cautelosamente nota. Eu tenho a paixão de ser lecionado; e basta darem-me a entender o bom caminho para eu me atirar para ele. Mas a crítica, ou a que em Portugal se chama a crítica, conserva sobre mim um silêncio desdenhoso.
Como você viu bem o caráter do Basílio! Está claro que a fortuna nunca o poderia ter moralizado; a sua fortuna, como você diz, foi um bambúrrio; era pulha antes, um pulha pobre - depois tornou-se apenas um pulha rico. Pessoas amigas escrevem-me dizendo, que parece incrível que um homem que trabalhou na Brasil com valor; seja no fundo um canalha! Estranha opinião! A Bahia considerada - como a Fonte Santa da Purificação...
Basta de cavaqueira. Se você publica algum livro por esta ocasião - mande-mo; e se tiver par aí alguns volumes da sua História da literatura a de mais, e que lhe não façam falta, dê-os ao Ramalho que ele nos manda. Eu, os que tinha, perdi-os estupidamente, com as obras de Shakespeare, de V. Hugo, num caixote, caminho da Havre, e outras abras mais. Escrevi para o Porto a um amigo a mandá-los pedir; e nunca me respondeu sequer: e eu preciso deles para um pequeno trabalho. Se não se esquecer - lembre-se. Um abraço do
Seu grande admirador, e dedicado amigo velho, Eça de Queirós.
Autor: Eça de Queirós
Produção Visual: Carlos Cunha