NA TRILHA
João do Burro vive de um quase nada. Se pode dizer um autônomo. Na trilha anda e é por lá que trabalha. Recolhe de um tudo: garrafas, latas, papéis, sucatas, o de sobra - lixo. Tudo de que precisa está no burrinho: apetrechos de casa, ferramentas, e com isso amassa, amarra, faz fardos, vende aqui e acolá, pela trilha que o leva. Dorme onde der, come o que puder. De seu apenas o burro e... a mulher.
João segue quase sempre a pé. O burro é para carregar as tralhas todas. A mulher o acompanha, a uns vinte passos atrás. Deus não quis que ela lhe desse filhos - mais braços para o trabalho. Aliás, ela não lhe dera nada. E João, às vezes carrancudo, olhava para trás e via aquele pacote trôpego, miúdo e mesquinho a segui-lo... sempre a segui-lo. Tinha-lhe ganas de ódio. Apertava deliberadamente o passo só para vê-la transformar-se num ponto minúsculo e difuso e sentir arroubos de libertação. Mas ele cansava e parava e, antes mesmo de enrolar o fumo na palha, ela chegava ofegante e estacava a uns vinte passos dele. Ficava imóvel, entumecida, olhando para os pés.
De noite, quando deitavam a largo para dormir sob céu aberto, João matutava olhando de soslaio para aquele monte de trapos. Era trôpega porque manca; não olhava porque vesga... miúda, doentia e suja. Quando arrumara a mulher, coisa de precisão, ela era então jovem. Mas, no momento mesmo que a vira, sentira ânsias de repulsa. Aquela coisa quieta, pequena, muito branca lembrava nada. Mansidão, quietude e servilidade lhe fora dado por qualidade; a João, anos depois, isso parecia fardo.
Era fiel, pois homem de têmpera e princípios dera sua palavra ao padre. Também não tinha ímpetos físicos que o pudessem atormentar. Batia nela raramente, como era de direito do marido, e nunca por culpa dela mesma. Eram coisas do infortúnio, desapontamentos com a vida. No mais seguia como os outros homens: a única manta fiada à mão que possuíam era para ele. O casaco, as botas, e ela se embrulhava num triste espetáculo de trapos.
João alternava sentimentos entre dó e rancor. No sentir dó da mulher, assumia-se mau e lhe tinha rancor por isso. Já pensara - Deus o livre! - em matá-la. Ou, deixá-la perdida trilha afora. Mas qual! Farejadora como era, logo o encontraria e a vinte passos esperaria...
Naquele dia em especial, João do Burro encontrava-se irritado, amargurado. Tinha feito vendas, uns miúdos, na roça do Seu Jofre aquele mesmo de quem todos riam por dizer que a patroa era quem mandava. E João observara e pensara naquela mulher: alta, magra, feição enérgica, saia enrolada nas pernas arando como qualquer homem dali. Não parava um segundo, ativa, despachada. Punha a mão no ombro do patrão e ele no dela e juntos davam boas gargalhadas. À noite, na janta, estava limpa, de cabelo trançado falando e fazendo planos para o plantio, para o gado novo... E João desejou aquela mulher. Como podiam rir de um homem que tinha por mulher uma daquelas?! Uns trouxas! Aquilo sim é que era companheira. Cúmplice, estava com seu homem em tudo; mulher para o que desse e viesse. Então João odiou muito a sua. Tinha mais estima pelo burro que lhe servira melhor em anos e anos.
Semblante carregado, João desta feita monta no burro e escapole sem deitar olhar atrás. Arranca para a venda. Precisa beber, tirar o seco da garganta, clarear as idéias. E no meio daquela falação de homens, dos causos contados, esquece um pouco da desdita. Chega mesmo a rir com gosto e em meio ao riso solto avista, pela porta aberta, a figura desfeita, estática, pequena trouxa de trapo, olhos postos no chão. Pessoas passam por ela sem nem a ver. Ninguém lhe esbarra, toca ou parece notá-la. Era como se sempre estivera ali, naquele mesmo lugar. As lágrimas sobem aos olhos de João que ri mais e mais. E é rindo que sai da venda, toma do burro e embrenha na trilha. Não, não há mais pressa, mesmo quando o riso frenético se torna um pranto convulso. Afinal sempre lhe restará vinte passos de liberdade...
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