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Contos-->o santo alugado -- 11/06/2001 - 21:56 (ida lehner de almeida ramos) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

O Santo Alugado



Entre as prendas de bodas, que não im
pressionavam, como as profusas que os noivos ho
je recebem, em qualidade e volume, dificilmente se
perderiam Marina e Abel. Pródigo era, isso sim,o
material de embalagem,- caixas de papelão,papéis
manilha e de seda amarrotados, barbantes e fiti
lhos e cartões de congratulações. E os presentes,-
bomboneiras de vidro,jogos para licor e para água,
um ferro de passar, uma reduzida bateria de alumí
nio, fruteiras de louça, uma Santa Ceia pintada e
dois cruxifixos,além dos indefectíveis aparelhos de ca
fé e de chá. Nada muito dispendioso, que as posses
eram poucas e os parentes e amigos modestos, mas
ainda assim, visto com olhos de amor,tudo foi aca
rinhado e estimado pelos noivos.
Voltando da viagem a Santos, ao pene
trarem na casinha de quatro cômodos novinha em
folha, Marina e Abel consideravam dádivas líricas
as próprias cortinas de cassa, esvoaçando nas janelas.
Novo mundo. Um fluído de ternura lhes percorria a
ponta dos dedos, ao tocarem cada objeto. Assim, a
simples tábua de picar carne constituía nas mãos de
Marina o símulo de um autêntico cristal da Boêmia
e nas do noivo, fortes e firmes, a cestinha de vime
para o pão significava mais do que se fosse de mar
fim. Tudo eram risos, sua juventude também.
-"E isto, o que será?" Desembrulhavam
os últimos presentes sôbre o leito. Era uma caixinha
retangular, de tom azul tendente a roxo, que ao ser
aberta revelou a imagem de um santo de argila, tos
camente esculpido. Era pintado de côres excessivamente
acentuadas, trazia as mãos postas em prece e uma sa
cola ou bolsa a tiracolo. Garranchos mal feitos,na ba
se, batizavam a imagem com o nome de Santo Ono
fre.-"Santo Onofre..." meditou Marina.-"É o padro
eiro..." -"Vejamos o cartão", adiantou Abel. E sorriu:
-"É do Tio Luciano, aquêle que tanto viaja, lembra?
Ora, vejam só! Nem apareceu no casamento, o malan
dro; mas, se mandou presente, na certa recebeu o con
vite. Porque não apareceu?"
-"É aquele tio que você diz ser tão rico?
Mas você não dizia que esperava dele no mínimo um
aparêlho de jantar?" -"Marina!", admoestou-a o
marido. -"Veja que cartão delicado. -"Aos diletos so
brinhos, paz e saude. Esta imagem é benta e eu trou
xe da Bahia para vocês. Que os abençõe e ajude San
to Onofre, o padroeiro da prosperidade. Tio Luciano".
Abel ficou pensativo. Depois, como se despertasse subi
tamente, disse:-"Marina, era isto o que nos faltava!
Quantas vezes falei que me faltava apenas um alavan
ca para me tornar um homem rico? Aí está-, já te
mos nosso santo protetor. Tio Luciano parece que adi
vinhou meus pensamentos. Aparelho de jantar eu com
pro com o tempo; agora é rezar, minha filha, rezar
com muita fé para santo Onofre".
Marina, um tanto cética, não se manifestou.
Se êle pensava assim, se o tio rico pensava assim, o
melhor era deixar o barco correr.No domingo,embora
a imagem já fosse benta, levaram-na à igreja do
bairro e ouviram com patética seriedade o sermão do
pároco; depois, viram-no aspergir, com ar de estra
nheza, a princípio, depois com de resignação, a água
abençoada sôbre a imagem. Já no dia seguinte, o san
to ganhava o seu oratório rústico, de madeira bruta,e
era alçado à parede do quarto de dormir do casal.
-"Aqui êle ouvirá melhor as nossas precisões", afir
mou Abel.
E de fato as ouviu. Daí por diante e por
expressa recomendação do chefe da casa, nunca o san
to precisou lamentar a ausência de flores e de lampa
rinas. A determinados períodos, a imagem berrante e
tosca era lavada, polida e adorada,principalmente por
Abel, devoto número um. Em troca, o Santo sempre
revelou profundo interêsse no desenvolvimento dos bens
do par de eternos namorados. Encarapitado em seu
oratório, ouviu, a prinípio, preces no sentido da insta
lação de uma quitanda; atendidas, ouviu outras que
lhe endereçavam a mais cálida gratidão.
Um ano passado, revestiu-se o dormitório
com novas tintas e cobriu-se o leito com ricas col
chas de seda. Marina, já meio convertida, trocou as
modestas cortinas por outras de melhor qualidade e o
oratório primitivo foi substituído por outro, mais anti
go, um primor de artesanato, vindo de Minas Gerais.
Naturalmente porque se sentia amado,em sua imagem,
o Santo enchia-se de enternecimento para com os
dois e traduzia sua gratidão com prosperidade cada
vez mais alentada. Tanto que, dois anos após, conce
deu integral apoio ao novo projeto que tinham em
mente, - de montar o maior e mais bem sortido
empório do bairro. Montaram-no e receberam,criam
êles, nova onda cheia de abastança.Houve na residên
cia do casal, principalmente no quarto que abrigava
o Santo, radical transformação:-deu-se sumiço aos
velhos móveis, novamente foram trocadas as cortinas
e sob os pés do milagreiro foi posta uma toalha de
renda francesa. Reformas e ampliações na casa tam
bém foram uma consequência.
Duas vêzes por ano costumava a imagem
ficar muito só, quando os afilhados se afastavam pa
ra temporadas, ou na praia,ou em estâncias hidromi
nerais. A empregada se limitava a tirar-lhe o pó e
a fazer-lhe um indiferente e apressado sinal da
cruz. Quando Marina regressava, cercava-a nova
mente de flores e de ternura.
Consumiu o tempo mais alguns anos. Abar
rotarem-se cofres bancários com o dinheiro de Abel,
que, cero dia, observou à mulher que o empório já
não o satisfazia, nem ao seu modo de conceber a vi
da. Fossem embora largos os lucros, isso de ficar
horas atrás de um balcão, lidando com mercadorias
às vezes até mal-cheirosas, não era mais com êle.
Tencionava agora penetrar no ramo de eletro-do
mésticos, rendoso e limpo, empreendimento econômico
de maior vulto e de lucro mais significativo. Mais
tarde ampliaria o negócio em uma rede de filiais, se
possível,-valha-nos Santo Onofre-por todo o país.
Marina que se preparasse, que deixasse de
vez de pilotar o fogão, aplicando em seu corpo um
tanto mais de vaidade; que tomasse mais serviçais,
porque dessa data em diante luxariam com recepções
de estilo. Marina se preparou. Deferidas pelo Santo
as pretensões ligadas à nova empreitada, viu,de seu
nicho(com a reforma, abriram-lhe um lindo nicho
iluminado na parede) crescer em número e qualida
de o guarda-roupa da mulher; viu também cresce
rem-lhe as unhas, polidas e esmaltadas. Observou
o seu cabelo, escovado e arrumado, e sua pele ma
cia e fresca adornada com adereços de alto valor.
Notou também que em Abel apurou-se o gôsto de
se vestir, manifestado através de ternos de casimira
inglesa; e o prazer de fumante,com tragadas e exs
puição de fumaça macia de de custosos havanas.
O bafo favorável de fortuna que invadira a
casa tornava-a, contudo, mais e mais antiquada
e insuficiente para os donos. A primeira loja pro
criou logo; instalou-se outra e depois outra, tudo
com retumbante cerimônia de inauguração. Os esta
belecimentos de Abel viraram cadeia que envolvia
primeiro a cidade, depois o Estado inteiro. Era jus
to que o notável casal se mudasse o quanto antes
para uma residência mais condigna.Foi um palácio
o novo lar. Contratado um arquiteto de fama, er
gueu-se o casarão amplo, vistoso,circundado de ár
vores prescritas por paisagista; vieram para decorá
-lo mármores da Itália,quadros da França e por
celanas austríacas. A água verde da piscina refle
tia a presença dos luxuosos carros importados, de
seus proprietários.
Instalada a especial mobília, surgiu um
problema:-e o nicho do Santo? Tramara o subcon
sciente dos novos milionários, talvez, propositado es
quecimento. Abel culpava Marina, dizia que o cons
trutor deveria ser alertado para isso;Marina punha
tosda a responsabilidade no marido. O certo é que,
quando se certificaram de que não sobrara,por mais
que se empenhassem, uma vaga para o Santo, Ma
rina sugeriu que se a colocasse na lavanderia, lugar
arejado e alegre. Não que a imagem, feiosa e rústica,
os envergonhasse; eram moda, na época, os calun
gas do Nordeste, os bonecos e bichos do Vitorino.
Mas a solução dada por Marina satisfez Abel.
Bem no íntimo, beliscava-a certo temor
supersticioso por despojar-se tão friamente de um ob
jeto bento que, de qualquer forma, fôra alvo de in
tensa fé de sua parte e da do marido. Era difícil des
ligar a extrema boa sorte de ambos, da influência,
mais do que evidente, do bom protetor. Houvera,sim,
alguma relação, muito embora Abel hoje mofasse dis
so, atribuindo a si próprio, unicamente, as razões de
seu sucesso. Mas, como respeitasse ainda a opinião
da mulher e não quisesse preocupar-se com ridícula
rias, pôs a funcionar sua máquina de idéias e dela
extraiu o que lhe pareceu mais conveniente. -"Ó Ma
rina, você se lembra do Silva, nosso compadre? Vi
via em casa, nos tempos da quitanda... Quando bati
zamos sua caçula,você é que fez aquela suculenta ma
carronada, lembra?"
Ela não gostava que lhe recordassem os
tempos da quitanda, do fogão à lenha, das agruras
dos primeiros tempos e indagou,com um laivo de aze
dume na voz:-"Sim, lembro. O que tem o Silva?"
-"Estive pensando... E se lhe entregássemos a ima
gem? Uma vez o compadre me jurou que era devoto
fervoroso de Santo Onofre e me propôs... acho que
contei a você, na ocasião. Me propôs que eu lhe ce
desse a imagem por algum tempo. Isso há muitos
anos, não se lembra?" A mulher pensou um pouco
e disse:-"Sim, estou lembrada". -"Então por que
não lhe oferecemos o Santo agora? O coitado, mais
a mulher, devem estar apinhados de filhos, vivendo
aquela vidinha miserável de operário braçal. Quem sa
be êle aprende, como eu, a ganhar mais que uns tro
cados? A sugestão, a fé... A fé remove montanhas, já
disseram". A mulher sobressaltou-se: -"Você fala em
dar? Dar ao Silva nosso bom santinho?
- Não. Não definitivamente. Também a
mim desgosta brincar com as coisas divinas, superiores.
Mas poderíamos... Vamos dizer, emprestar-lhe a ima
gem. Ou melhor, emprestar não é bem o têrmo. Pode
ríamos alugar... É, sim, alugar o santo por uma de
terminada quantia e por um prazo fixado antes". -
"Que horror, Abel! Não será heresia?"-"Ora, heresia!
Onde está a cultura que você vem adquirindo êsses anos
todos? A imagem é um símbolo, uma chave, um meio
para fazer dinheiro. É verdade que ela deu uma certa
fôrça, no início, mas daí a pensar que foi responsável
pelo meu sucesso... O sujeito que a tem em seu poder,
como eu tive, acredita demais em sua energia positiva.E
vai à luta, como eu fui; o sucesso vem mesmo, não se
discute".-"Não sei, não sei", ponderou Marina, um
tanto assustada.-"Escute, aqui, Madame. Quem, como
eu, vendeu bananas a um tostão a duzia e chegou ao
ponto a que cheguei, tem certa autoridade para impor
seu ponto de vista. E meu ponto de vista é que toda
vitória tem um preço. Eu carreguei muito saco de cebo
la, lutei muito atrás de um balcão, sem medir sacrifício.
Pode ser que o santo me tenha auxiliado, mas nossos
bens, querida, não se fizeram sozinhos".
Marina estava quase admitindo que êle ti
nha razão. Abel prosseguiu: -"Que o santo me perdõe,
mas o preço da fortuna não me saiu barato. Ora, o
compadre Silva, sempre desejou progredir; eu o tenho
visto raramente nestes últimos anos,mas, pelo que pude
perceber, não largou mão das velhas ilusões. Está aí a
chance que lhe dou,-o estímulo proporcionado por San
to Onofre. Mas é justo que pague por isso." Aflorou
aos lábios de Marina o argumento de que ninguém
lhes alugara a imagem, que ela fôra um presente de
núpcias muito querido, que quem a dera já não era
mais dêste mundo. Muita reflexão posterior, orientada
por Abel, convenceu-a de que se o estropiado santo am
parasse o compadre, em breve Haveria nova família de
posses e seus filhos tirariam a barriga da miséria.
Dá-la não ousariam, com receio pelas con
sequências que poderiam advir, mas não fazia mal al
gum alugá-la; além do que, seu grotesco aspecto não
condizia com o da nova casa. E havia ainda a vanta
gem de poder solicitá-la de novo, se acaso precisassem.
Resolvida a questão, Abel procurou o compadre logo
mais, verificando que em nada se enganara:- um ban
do de crianças mal vestidas cercou-o em algazarra, ad
mirando-lhe o carro último tipo, as roupas, o fino tra
to. Deu a bênção à afilhada, uma garota de olhos côr
do céu, e, sob inteiro silêncio, já que cessara o alvorôço
que provocara sua chegada, entregou ao Silva o pacote
de papel florido, em que fôra envolta a imagem.E não
custou a enternecer-se consigo proprio, lembrando a
oportunidade que estava dando àquela criançada, sem
o mínimo resquício de egoismo. O compadre, a prin
cípio também enternecido com seu gesto, tomou um sus
to tremendo ao saber o preço do aluguel.
Era demais. Seus parcos vencimentos jamais
comportariam tal despesa. Abel foi compreensivo, huma
no:-"Compadre Silva, será apenas uma situação provi
sória. Faça um empréstimo,há tantos corretores na pra
ça, basta ter alguma garantia. Você tem uma?" -"A
casa. Estou comprando pelo Instituto". -"Ora, então,
tome algum dinheiro emprestado. Para mim é impossí
vel fazer por menos. Afinal, meu caro, o risco vale, o
santo é realmente milagroso. Eu não lhe proporia um
negócio que não desse lucro, você me conhece bem".
Assim o paciente e humilde Onofre mudou
de ares, depois de tantos anos. Totalmente deprimido e
um ar de ironia no olho pintado, viu Abel afastar-se,
sem lhe dirigir um sentimento de adeus. Mas a fase de adaptação passou depressa. A mudança para o novo
lar lhe permitiu outra vez a condição de venerabilidade;
mãos de seda o colocaram num recôncavo da sala,que
parecia feito a propósito para sua vinda. A família in
teira, mesmo a miudagem, fitava-o com grande unção.
Tantas súplicas lhe desferiam os olhares que, não fôsse
a qualidade de santificado, corria o risco de tornar-se
vaidoso. Terços inteiros se rezavam diante dele; absorvia
com prazer a fé daquelas almas, o fervor das preces.
De quem merecia maior devoção era de Este
la, a afilhada de Abel, cujos olhos azuis lhe solicitavam
coisas e mais coisas.Aqui era melhor em vários aspectos,
-não havia carência de flores, que o quintal bem gran
de fornecia. O milionário fôra pródigo, não na conces
são de vantagens pecuniárias, mas na do prazo contra
tado do aluguel. Passou-se longo tempo; lento mas fir
me foi-se tornando o progresso do Silva. Daí a um
ano, o Santo começou a notar, cheio de angústia, cer
tas transformações no modo de vida dos recentes prote
gidos. Matricularam-se as crianças em bons colégios, o
odor de caros e gostosos petiscos já passara a impregnar
a casa toda. Estela, mais do que as outras, sofreu com
pleta metamorfose nas roupas, nos gestos, no andar.Era
a adolescência que chegara, mas com sonhos e projetos
não dantes imaginados.
Tudo isso amedrontava o rústico santo, que
todavia não se podia queixar de ser esquecido. Não, os
terços continuaram, as orações sempre fervorosas, diante
da velha imagem. Sem demora a casa foi ampliada, re
cebeu móveis novos, um televisor e outros luxos. E, para
seu agrado, deram-lhe de presente iluminação indireta
azul. Meses depois,chegou um emissário enviado por Abel.
Vinha, disse ao Silva, rescindir o contrato, pagar a mul
ta decorrente e buscar a imagem. Os negócios do patrão
tinham, em vista da crise geral, decaído totalmente; além
disso, sofrera um terrível acidente de automóvel que quase
o deixara paralisado. Então não sabiam? Toda a impren
sa publicou... E agora o patrão, com risco de invalidez
permanente, estava sujeito a complicações cardíacas. Sem
direção, a firma tivera um colapso; houve dois desfalques,
além da traição de dois gerentes, que faziam espionagem
comercial pró empresa concorrente. O pagamento das dívi
das forçara-o a abrir mão de várias propriedades e logo,
sim, logo lhe lhe consumiria até as jóias da mulher.
O enorme palacete ainda era deles, mas perigava.
Por essa razão o Sr. Silva deveria restituir a imagem ao
seu legítimo dono, que estava disposto a pagar polpuda in
denização pela quebra do contrato.O compadre de Abel ou
viu em silêncio as razões apontadas pelo contador e, en
quanto isso,refletia. Afinal, mal começara a degustar o néc
tar da prosperidade e já lhe faziam cair por terra as pre
tensões? Foi inflexível na resposta: -pagaria o aluguel es
tipulado assídua e religiosanente, como até agora viera fa
zendo. Devolver a imagem, isso nunca, ainda mais agora
que sua vida traçara um rumo de claras esperanças.Depois,
o próprio Abel lhe oferecera a imagem, portanto que esperas
se. Findo o prazo, iria devolver-lhe o santo.Estivesse sosse
gado; e recomendou ao porta-voz que levasse muitas lem
branças ao seu patrão.
Findo o prazo, o Silva devolveu a imagem.Não
a autêntica, porém, mas outra, adquirida após cansativa
visita a tudo quanto foi santeiro da cidade. Encontrou um
Santo Onofre também de barro, levemente maior que o ori
ginsl. Lavaram-no, êle e a mulher, para que o colorido
novo, berrante, descorasse. Em seguida o submeteram a um
empírico processo de envelhecimento, antes da restituição. Tu
do inútil. Abel foi alertado por Marina, que como ninguém
conhecia a antiga imagem e que, facilmente, se apercebeu do
embuste. Era falsa, era falsa! Que o marido notasse a gros
seira imitação do nome gravado na base. O Silva, aquele
mal-agradecido, tentara enganá-los. Ó ingratidão!O cora
ção de Abel, já bem trôpego, não resistiu. Suas mãos des
carnadas tiveram ainda fôrças para, numa heresia final,
atirar ao chão e fazer em cacos a falsa imagem; e morreu
nos braços de uma envelhecida e amarga Marina.
Sem grande mágoa pelo fato, além do ar com
pungido adotado no entêrro do compadre, o Silva logo se
atirou no lucrativo negócio de olhos vegetais, de soja, de mi
lho e de girassol; verdadeira cornucópia da qual, em breve,
começaram a jorrar as regaladas benesses de abastança e de
prestígio. Instituídas nos costumes reformas de todo o tipo,
mudou-se-lhes o sotaque de gente simples e a instrução lhes
operou estranhas metamorfoses. Pouco a pouco o santo foi
compreendendo. Principiaram a rarear os olhares súplices
que lhe eram dirigidos, as preces ardentes resumiram-se em mecânico e distraído mover de lábios. Apenas Laurinda, mu
lher do Silva, ainda se interessava pelo santo, rogando-lhe
perdão pela parca devoção dos outros membros da família.
Imagine só, era uma falta de tempo... As crianças no colé
gio, o marido na agitação dos negócios, Estela numa roda-viva de chás e reuniões.
Então era assim? Repetiam-se as mesmas si
tuações por que já passara e, nesse caminhar, logo lhe devo
tariam a mais completa indiferença. Até Laurinda mudaria,
estava certo. Certa noite a descorada imagem viu confirma
dos, em parte, seus receios. Estela discutia com os pais e seus
redondos olhos, antes tão candidamente azuis, fulguravam e
despediam chispas que pareciam relâmpagos. -"E não vou
permitir, ouçam bem, que na casa nova vocês perturbem o
equlíbrio da decoração com pieguices sentimentais como essa".
Por instinto o santo se compenetrou de que aquilo deveria
ser com êle. Mas então sua predileta, a bonequinha antes
tão piedosa, os olhos de céu... Não era possível. Mas, ante
o mutismo dos pais, ela prosseguiu:-"Vocês me perdõem, é
que acho que essas velharias ridículas só têm lugar entre gen
te de classe inferior..." O santo não queria ouvir mais, era
insuportável a amargura que o invadia.
Laurinda, angustiada, pediu-lhe: -"Minha filha,
não fale assim de um santo tão milagroso! Veja o que fêz
por nós. Não zombe das coisas divinas, dá até mêdo. Veja
o exemplo de seu padrinho. Não é mesmo, Silva? Você ain
da era criança, Estela..." Ela protestou:-"Ora, Mamãe, não
sou mais criança. Eu me lembro muito bem,- o padrinho fi
cou misrável porque não teve capacidade para gerir sua fortu
na. A fortuna que êle fez, graças aos seus esforços, também
perdeu por sua própria culpa. Êle morreu porque tinha che
gado sua hora. O que me admira, Mamãe, é ver que você
dá crédito a essas sandices". O Silva, que no íntimo dava
razão à filha, e vendo que Laurinda perdia terreno, argumen
tou, para não desgostá-la:-"Mas, filha, usam-se tantos ob
jetos antigos, a cidade está cheia de antiquários, de arte popu
lar... Celeste revidou: -"Mas êsse é um monstrengo, Papai.
Nada tem de artistico, você não vê? Sei que tem lá sua im
portância sentimental para ambos. Vá lá que seja um mal
necessário, está certo. Não digo que joguem fora a imagem,
mas para que colocá-la em lugar de evidência? A nova casa
twerá adega, lavanderia, uma garagem imensa... Tanto canti
nho escondido onde ela poderá" -sorriu com ironia -"olhar
por nós, pecadores".
Outra vez! Então outra vez! E desta vez o mal sa
indo da própria beleza, da boca de quem o enternecera tanto!
Se de carne, o santo sangraria; mas, por ser de barro e por
pejo, ali ficou, hirto, frio até a noite. Quando todos dormiam,
não pôde mais tolerar tanta ingratidão, tanta inconsequência.
Tudo pesou sôbre a imagem debilitada, de tal maneira que o
barro não resistiu. Partiu-se em cacos minúsculos para que
não os juntassem jamais e foi caindo, do nicho luminoso,para
a forração cinza do assoalho, como a deixar sôbre a luxuosa
evidência da posperidade o sêlo primeiro e único da eterna fa
lência do homem, -o pó, nada mais do que êle.


Ida Lehner de Almeida Ramos
Jundiai – sp
Idalehner@bol.com.br
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