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Contos-->O INIMIGO -- 02/07/2000 - 08:12 (ida lehner de almeida ramos) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
O Inimigo

De rasgão no beiço, o menino mal teve tempo de saltar o muro escorregadio. O cachorro ficou dando pulos do outro lado, a goela rubra escancarada, arreganhando os alvos dentes pontudos. A fera latia com quanta força tinha. Não provinha do animal o ferimento que lhe ardia terrivelmente no lábio inferior, mas sim do garoto magro e aloirado do casarão. Cesarino menoscabara-lhe a fôrça e agora tinha de reconhecer que o estrangeiro, a quem a sua turma chamava de Além, era de fato dono de alguma superioridade. Figura de alma do outro mundo, aquele gringo grã-fino perna-fina era quieto, introvertido, o tipo acabado de quem fugiria ao primeiro desaforo; e fora Cesarino quem fugira. Também, à traição, qualquer pirralho é valente.
Que covarde! Caiu feito um bicho em cima de Cesarino, com ciúme daquelas porcarias de laranjas verdolengas e temporãs. E, sabe o que mais, a casa, embora chique pra danar, era casa alugada, de aluguel recente, coisa de dois ou três meses,- nem era propriedade do rato branco... Porcaria de laranjas! -"Droga de la-ran-jas!" berrou, no alto do muro, para quem quisesse ouvir, o corpo já dependurado do lado de cá, a salvo do canzarrão. Mas o outro menino desaparecera. Cesarino deslisou, a medo foi até o tanque, lavou o lábio ferido, que lhe doía a valer, enxugando-o na fralda da camisa.
Agora era ouvir a mãe e a avó. Resolveu enfrentá-las e foi todo um novelo de admoestações. -"Bem feito, quem mandou pular o muro? O vizinho está no seu direito, pois não? E se o outro viesse para o nosso quintal, quem era o primeiro a achar ruim, quem?" A voz da avozinha era desdentada, mas cheia de amor: -"Ah, menino, se ele te furasse o olho? Virgem santa!" Depois, o que teve foi o jantar quentinho, sopa de feijão com macarrão, bem grossa, de como ele gostava. Salada não quis, que lhe arderia o lábio, mas aceitou com satisfação o ovo frito, privilégio que não merecia todos os dias. Antes de se deitar, a mãe lhe pôs salmoura no ferimento, sob protesto.
Estava de corpo moído, que susto dá quebradeira. Enrolado no lençol de morim alvejado, pôs-se a maquinar vinganças. O mal era que o outro não podia ser ofendido com palavrão, visto que não entendia patavina de brasileiro. Isso lhe fertilizava a raiva. Retrovertendo o caso, sentia que o desfecho lhe fôra totalmente injusto.: -"Mas que reação mais estúpida! Isso nem roubo era... Fazer um tremendo carnaval por umas míseras laranjas azedas! O tal que passava a melão, a peras, a uvas daquelas bem rechonchudas, rosadas?” Me diga, que moleque não gosta de cravar as unhas na fina casca, franzir o nariz em caso do sumo espirrar e chupar as laranjas em duas metades , uma pitada de sal em cada uma, para adoçar,?
A tentação vinha havia dias. Certo que as duas honravam os vizinhos com seu respeito, reverência de pessoas antigas; por essa razão, foi com espanto que ouviu o comentário da mãe: -"Gente orgulhosa, estrangeira. Nem cumprimenta os pobres. Que diferença da senhora do doutor Alípio! Como era educada!" A avó acrescentou -"E as empregadas, então! Não querem prosa com ninguém, acho que a ordem vem de cima". Cesarino apenas ouvia.
A pagem do garoto branquela já o havia chamado um dia pelo nome:- Além. - "Nome estranho", pensou. Todavia, armou-se de coragem ,já que o gringo tinha perfil e elegância de príncipe, e convidou-o para jogar bola. Fê-lo através de gestos. Se ele não entendia o que falava, devia manjar a linguagem universal da mímica. E não é que o antipático passou tesinho por Cesarino, de mão dada com a pagem, parecendo nem ter dado pela sua presença? Talvez nunca tivesse ouvido falar em pelada, a sedução de todo garoto brasileiro. -"Tem vergonha. Deve ser acanhado"- pensou, transbordando de compreensào pelo mundo.
Mãe e avó sempre tinham razão. Gente rica, ainda mais das estranjas, é gente diferente. As laranjas ali estavam, pintando de amarelo e os ricaços, agora, estavam com jeito de quem deixa fruta apodrecer no pé. Cesarino se decidira.. Como era sua obrigação regar os canteiros de hortaliças, todas as tardes, foi para o fundo do quintal na hora costumeira, sem botar desconfiança nas duas.
Já tinha ouvira um bom sermão na semana passada, quando se atrevera a contar-lhes a intenção. Trepou no muro limoso, vasculhou o território demoradamente, viu-o livre. Saltou do outro lado. A laranjeira cobiçada estava bem à mão, pendente de frutos. Apanhou um, dois, ia encher-se deles, veriam. Uma laranja rolou pelo chão bem varrido. Agachou-se para apanhá-la, quando algo o preveniu de que havia gente por perto. Virou-se com brusquidão e deu com o estrangeirinho, os olhos medonhos, empunhando uma vara curta e irregular. Cesarino quis explicar, apontando a árvore, os olhos humildes,
Era pobre, não tinha a cara e a roupa de pobre? O outro não pareceu entender. O físico franzino cresceu, avançou e a mão sem cor brandiu a vareta com força. Cesarino fez um gesto de esquivança, rápido, para trás e para baixo, mas tempo não houve,- foi apanhado de raspão no lábio inferior. Urrou de raiva e dor, mas não pôde reagir. Alguém apareceu na soleira da porta dos fundos e atiçou o animal contra ele. Estava em território alheio, melhor fugir. Correu o quanto pôde, saltou o muro e, antes de atingir a salvação completa, lançou o desafio que já nem tinha graça: -"Dro-ga de la-ran-jas!"
E agora era amargar a derrota, engolir a superioridade inconteste daquele antipático. Havendo motivo, sua turma também brigava, dizia nomes, dava pés-de-ouvido, não levava desaforo pra casa, mas se um deles precisasse, disporia da própria camisa para ajudar..Companheirismo puro. Não lhe saía da cabeça o risinho cruel do outro. Pão-duro, miserável. ele que se precavesse. Atiçaria o bando todo contra o gringo. Quando caiu no sono, a vingança lhe sabia a doce de coco na boca dos pensamentos.
Depois, foi aquela sucessão de reuniões com a turma, num terreno baldio cheio de mato e entulho. Na primeira, todos prèviamente avisados e cônscios da quase tragédia que se abatera sobre ele. O sol queimava, todavia a parede alta da farmácia ao lado lhes propiciava boa sombra. - “É gente da França”, revelara um miudinho de nome Elias. -”Eu sei porque tenho um tio que trabalha na fábrica do velho, logo ali, depois da refinação.” Seguiram-se daí informes que davam a ficha quase completa da família, com a ressalva de que havia um certo mistério em torno dela. -"É gente rica pra burro", finalizara o Urso, um garoto de cabelo arrepiado, demonstrando estar por dentro do assunto. - “Me parece que está meio perigando a mudança da família para a mansão no Jardim Ana Maria, um verdadeiro luxo, porque o velho está com idéia de voltar para a França. Ninguém sabe por que."
Cesarino sentiu a frustração: -"Voltar, agora? Não! Ah, temos de pegar o filhote do demo o mais depressa possível". Mastigou um capim. -"Então o moleque é francês? Não faz mal, não tenho medo de francês, nem de alemão, nem de raça alguma. O covarde me bateu, não bateu? Portanto me paga.”. Levantou-se, deu um chute no chão. A seu apelo, a meninada mostrou-se solidária, - cada um cumpriria o seu dever.
O desafio estava feito. Riram bastante, antes da despedida. ”O rapaz tem pagem, que frescura!” E daí se seguiu um festival de chacotas, visando as preferências do antagonista pelo próprio sexo, a procedência da família, seus arrevezados gostos culinários. Após tudo, Cesarino concluiu, desafiante, que poderia contar sempre com sua turma, e, enfadado, que o bate-boca infindável acabara por irritá-lo.
O ódio fermentava, principalmente no peito da vítima. Restava urdir o plano, estudar-lhe a execução. Aliás, nos encontros subsequentes, ele tomaria ares de grande herói e debuxaria a estória com pormenores exagerados, desde o tamanho da fera que o perseguira, até a gravidade do ferimento. Elias, o mais ponderado, os aconselhou: - “ O francesinho é de carne e osso, como todo mundo, ora bolas! Façam bem feito. Depois, se aparecer alguém do Juizado, alguém tem prova? Eu não, ninguém sabe de nada e meu tio ainda conserva o emprego”. Genial, o Elias.
Cesarino voltava pra casa todo animado, depois de cada reunião, com comichões de orgulho pelo corpo. Que vontade de contar tudo às duas, dizer-lhes de sua importância entre a pivetada do bairro. Todo dia, depois das obrigações, punha-se à espreita. Num suceder de horas, o quartel-general do desafeto foi vigiado por ele e seus companheiros, como se via nos filmes policiais.
As horas, como os dias, têm pressa. E foram passando com urgência. Nada do garoto. Saía, sim, e muito, o proprietário da casa; uma e outra vez, aparecia a esposa, uma loira elegante, de expressão um leve angustiada. Mais raramente ainda, o que se via era uma mulher alta, encorpada, usualmente vestida de branco, que deveria ser a governante. O motorista da família acompanhava a todos, dirigindo um Mercedes cor de asfalto.
.. A vigilância era uma questão de brio. A garotada apostava. Quem vira um vulto na janela de cima? Quem entrara e saíra hoje, e a que horas? Com o tempo, foi-se desvanecendo o objetivo principal do esquema. O francesinho sumira. Dir--se-ia que morrera. Para a gente do casarão, a criançada simplesmente não existia. Aquilo foi dando sinais de fadiga em quase todos. Decorrido menos de um mês, ninguém achava encanto na espionagem. Havia coisas menos aborrecidas a fazer, jogar pelada no campinho atrás da refinação, discutir o Campeonato do Mundo, a saída ou a permanência do técnico da seleção.
Um a um, foram se declarando demissionários. Até o Urso, líder do bando, se afastou. Cesarino ficou revoltado com a injustiça. E sua revolta descarregou toda na causa única de seus desgostos, o gringo. Debandada geral, mas ainda assim não esmorecia. Espreitava através dos buracos no muro, a ver se descobria o desgraçado, se o pegava desprevenido no quintal, a sós, sem, o cão de guarda, sem a pagem. O menino sumira de vez. Além de tudo, a mãe e a avó de Cesarino deram para implicar com ele, ultimamente; o que é que ele vivia espiando no casarão, se laranjas não havia mais, se tinham caído de podres?
Um dia, por acaso, viu o estrangeirinho. Cesarino jogava palitos em frente à mansão, do outro lado da rua, com Zé Luís, o único que lhe permanecera fiel. Eram quatro horas da tarde. Nada de vento; fazia um calor enorme. Pôs tento quando uma perua azul-cinza encostou no meio-fio. -"Visita", disse ao outro. -"O velho não saiu hoje pra trabalhar. Temos novidade". Despertada a curiosidade de ambos, viram quando desceu do carro um homem calvo, sisudo, de maleta na mão. -"Será um médico? Será que tem alguém doente na casa?" O homem apertou a campainha, mas não esperou muito. Devia estar sendo aguardado com ansiedade, porque foi recebido pelo próprio dono, muito solícito. -"Então não é o pai o doente".
Cesarino deu instruções a Zé Luís, atravessou a rua e ficou ali, encostado às grades, prevendo algum acontecimento importante. O homem calvo demorou- se mais de hora, mas os garotos não arredaram pé. Havia um adesivo colado no vidro da perua, que o vingador inùtilmente tentava ler, quando o homem que lhes parecera sisudo saiu da casa, sorridente, trazendo pela mão o menino. Ele caminhava dócil e despreocupado. . À porta ficou o casal, de mãos dadas, a loira debulhada em lágrimas. -"Será que o desgraçado vai para o colégio interno?, pensou Cesarino, amargurado porque o plano de vingança ruía totalmente por terra. . -"É, vai, sim. Está todo contente, o filho da mãe” - disse em voz alta, sentindo tremendo despeito ao ver seu pássaro fugir, sem castigo nem nada.
Carinhosamente, o homem pô-lo dentro da viatura. Lá atrás ficaram os pais, a mãe de cabeça pendida sobre o ombro, e mais a governanta e a pagem. O carro partiu, sem nenhum aceno. O velho, que era a própria imagem da derrota, entrou na casa, amparando a mulher pelo braço.
Cesarino sentiu-se ludibriado, cheio de revolta:- "Você viu? Rico tem jeito pra tudo! Bem que eu adivinhava que o rato branco ia-se safar desta!" Entretanto, Zé Luís, que zanzara o tempo todo pelo local, tinha novidade: -"O nego aqui descobriu uma coisa. Você viu, eu anotei o que estava escrito na perua". Riu, estendendo um farrapo de papel. -"Mas não manjo nada. Veja". Escrito em horrendas garatujas, Cesarino leu, também sem entender: -"Instituto Pestalozzi para Crianças Excepcionais".
-"Bem que eu adivinhava! Sujeito de sorte, esse estranja! Faz o que bem quer e ganha de prêmio colégio de primeira!" Voltaram aos palitos, por pouco tempo; já ia caindo a noite e eles se separaram, mudos pelo malogro.. Chegando a casa, meio infeliz, meio aliviado pelo desfecho da estória, sentia lá no fundo que o menino escapara à sua vingança para todo o sempre. Ao entrar, gritou: -"Mãe, me dá sopa!"- E daí a nada, sentou-se com apetite diante do prato fumegante.


Ida Lehner de Almeida Ramos

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