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Contos-->O DESENHO DA BOCA -- 13/06/2001 - 15:28 (Mario Jacoud) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Nenhum sentimento de surpresa quando atendeu o telefonema do antigo colega de faculdade, isso aconteceu a cada ano, nos últimos quinze anos. Quem se surpreendeu foi o amigo, quando ele aceitou o convite. O encontro anual da sua turma de formandos, tantos foram os convites, tantas foram as recusas. Desta vez queria mesmo comparecer, menos pelos amigos, é que acordara pensando em Cristina, talvez tenha sonhado com ela, não que isso fosse freqüente, ao contrário, o esforço para arranca-la da memória fora tão grande que expulsou-a também dos sonhos constantes dos primeiros dias de solidão. Ou, quem sabe, ainda sonhava com ela e não sabia, ou não lembrava. Quem quer lembrar de pesadelo? Por isso estava intrigado, o primeiro pensamento do dia foi dela, tão forte, tão vivo, que procurou seu corpo com as mãos, apalpou o vazio, levava o medo nas mãos e sentiu uma espécie de alívio quando não a encontrou.
Até o momento do telefonema, outras lembranças vieram, ela esteve presente no banho, na mesa do café, nas ruas a caminho do trabalho, no almoço bebeu o vinho que ela gostava. Ao voltar para casa preparou-se rapidamente para o encontro anual, quem sabe ela também fosse, afinal se sua presença estava dentro dele, de forma tão completa, restava materializa-la para, aí sim, guardar para si a imagem atual, como uma nova fotografia. Seriam os mesmos olhos, o mesmo sorriso?
A única fotografia estava no álbum, colada na última página descansava entre gravuras de família. Pai, mãe e avós precediam o rosto jovem, dois olhos negros sobre o sorriso claro, o último dos sorrisos na última das gavetas, junto aos objetos envelhecidos, em desuso, aqueles que desocuparam a memória, os que foram substituídos por outros sorrisos, estes guardados na primeira gaveta. É como se a memória fosse composta de gavetas, a primeira com as lembranças mais recentes, e a última atulhada de coisas desbotadas, descoloridas, como a aquarela dos tempos da escola, por isso o sorriso branco sob os olhos negros se destacavam. Ele arrancou a lembrança do álbum, dobrou em duas a memória insistente e guardou no bolso da camisa, o último dos sorrisos no lugar devido, no peito, como se o coração fosse a primeira gaveta da memória. Ele sente que chegou o momento de alguma mudança, não uma coisa banal como mudar de casa, domicílio, residência ou coisa que valesse, não bastava encaixotar os objetos úteis e desfazer-se dos inúteis, era preciso uma análise de cada coisa, lembrar como vieram parar ali, como chegaram até ele e estacionaram comodamente em qualquer gaveta. Ele percebe que agora o tempo não passa do modo mais simples, como antes quando um acontecimento se sobrepunha ao anterior, como que querendo apaga-lo, nesta fase da vida todos os objetos guardados tem uma história, e todas essa histórias são capítulos da história maior, não há como apaga-los, por mais descoloridos que estejam. Na primeira das lembranças, o capítulo mais importante no bolso da camisa, os olhos negros são duas tatuagens sobre os dentes cravados no peito, no mesmo ponto onde, última vez que se amaram, ela deixou a marca de batom, o desenho da boca era um alvo vermelho.
No carro, a caminho do restaurante, seus movimentos ao dirigir eram automáticos, ele era passageiro da viagem ao passado. Quando a conheceu, no primeiro ano da faculdade, era como tantas outras de sua idade, todas bem parecidas nas gírias da moda, nas roupas, no corte do cabelo, mas bastaram alguns encontros, uns poucos beijos, breves momentos reservados somente para eles, longe dos amigos e dos estudos, para descobrir que ela era única, inconfundível nos gestos, na voz, na beleza. Moraram juntos até a formatura, até o dia em que encontrou o bilhete no apartamento, a letra trêmula confessando outro amor. Não quis procura-la, não teve mais notícias, preferiu o caminho mais fácil, porém o mais doloroso, esquecer, repelir, pouco a pouco, dia a dia. A cada lágrima se desfazia de uma lembrança, de um carinho, de um olhar. Não fazia planos, caso a visse. Um como vai, tudo bem, casou, filhos? Importante, agora, era vê-la, como se pudesse trocar a antiga foto por uma mais recente, pensando assim bateu no bolso da camisa, a certificar-se que ela continuava ali, no seu peito.
Ela não estava, não chegara ou não viria, entre um e outro cumprimento o olhar ansioso desviava incontrolável para a porta do restaurante. A todo instante chegava mais um retardatário. Não era ela quem sempre se atrasava? Trocando cartões, números de telefones, risadas e recordações, o olhar tinha vida própria, os sentidos se confundiam, ouvia seu riso, inalava seu perfume, sentia seu gosto no copo de vinho. Pensou em sair, voltar para casa e tentar esquecer aquele dia, quem sabe ainda era sonho? Quem sabe ainda sonhava quando acordou pensando nela. Não teve tempo de despedir-se do amigo mais próximo, a porta iluminou-se no sorriso largo, alegre como uma adolescente, ela foi ao seu encontro, os olhos negros ainda mais vivos. O beijo foi demorado, não houve palavra que falasse mais que o silêncio, abraçados por longo tempo, ela quebra a inércia, abaixa-se e beija seu peito, o desenho da boca era um alvo vermelho.

(Mário Jacoud)








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