Usina de Letras
Usina de Letras
80 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62352 )

Cartas ( 21334)

Contos (13268)

Cordel (10451)

Cronicas (22544)

Discursos (3239)

Ensaios - (10412)

Erótico (13576)

Frases (50729)

Humor (20058)

Infantil (5476)

Infanto Juvenil (4795)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140851)

Redação (3316)

Roteiro de Filme ou Novela (1064)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1961)

Textos Religiosos/Sermões (6224)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Contos-->Rosinha da Terra -- 22/05/2000 - 11:28 (Marcos Gimenes Salun) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Ninguém passa por aqueles lados. Fundão de mundo, credo! Bicho do mato, que é bicho do mato, espreita de longe, sem coragem de chegar. No riachinho frio que corre quase por baixo da mataria que toma conta de tudo, nem peixe se atreve a morar. Erva daninha ali cresce feito feijão de vara, subindo pelos paus secos, se enroscando pelas árvores. Sabe-se lá que diabo foi fazer Rosinha naquele pedaço de chão bruto.

Um fogãozinho de lenha sempre fumegando, um pedaço de chão limpo fazendo de terreiro, duas galinhas magras e uma enxada velha, sem corte. Rosinha lidando com a terra, aquela terra que Deus se esqueceu de por nome. A casa até que dá uma vista boa no meio daquela desgraceira. Quatro paredes, branquinhas, fazendo inveja para a cor pardacenta do mato, do chão, das galinhas.

Rosinha lida com a terra, remexendo o chão e atirando sementes de milho, que crescem meio sufocadas e botam a cara para o mundo desafiando as ervas daninhas. Os pássaros de quando em vez aparecendo, estragando um pouco do milho mirrado que teima em subir. Rosinha lidando com as galinhas, magras feito urubú.

Noitinha, uma panela de ferro borbulha uma água suja com qualquer coisa parecida com uma raiz, alguns grãos de milho verde. Rosinha lidando com a lenha que estala no fogo.

Nas noites quentes, quando o ar sufoca, Rosinha senta num tronco do lado de fora da casa e fica olhando o negro pontilhado do céu. Conta as estrelas, cisma com a lua, pita um cigarro de palha. Fica parada um bom tempo nesse deixa vir. Depois, quando o cigarro acaba, entra e se estica na rede.

Olha para o teto, iluminado pelo fogo some-não-some do fogão de lenha. Adormece, e não sabe se sonha. As vezes desperta no meio da noite com algum barulho de fora. Atina um pouco e volta a dormir. Na certa alguma ave noturna. Coruja talvez. Pelo vão da janela entreaberta, o luar às vezes vem clarear o chão de terra batida. Beija as pernas de Rosinha. Deita-se com ela na rede. E depois sai, feito um ladrão.

Se o sol achasse Rosinha na rede, com certeza a beijaria. E a acordaria com um acariciar quente, gostoso. Lamberia suas pernas e a despertaria. Mas, antes que o sol venha, Rosinha já lida com a terra. Colhe os ovos, quando há. E antes mesmo de lidar com a terra, Rosinha se banha. Num pedacinho do riacho, onde o mato tem medo de crescer, porque ali passa Rosinha, o corpo moreno se desnuda e as águas o banham. Devagar, bem devagar. Rosinha vai deixando a água fria despertar seu corpo, mansamente.

Depois é o sol. Seca Rosinha devagar, com medo de ferir a beleza selvagem daquela morena da terra. Rosinha, deitada na beira do riacho, deixa o sol secar até a última gota de água de seu corpo. Então se levanta. Veste os mesmos trapos e volta à sua lida. Quando vai chegando perto do terreiro, já tem traçada a rotina do dia. E lida com a terra. Limpa um pouco do mato que sufoca o milho, ajeita o mato cortado para um canto. Enxuga a testa. Olha o céu. Pensa que "era bom uma chuvinha". Estica o pescoço para as banda do morro, sua última paisagem, e continua carpindo.

No meio do mato bruto que investe contra tudo, vez por outra encontra um fruto selvagem. Se bom de comer, come. Se não, esmaga com a enxada sem corte.

Houve um tempo em que Tufão ladrava por aquelas bandas. Bom cachorro o Tufão. Morreu, mordido de cobra, o coitado. Agora só tem suas galinhas magras, um riacho, uma casinha branca de pa-redes caiadas e uma rede. Seu milho, magro também para cuidar. "Era bom uma companhia". Sem ninguém com quem falar, ou mesmo para olhar somente, Rosinha canta. E seu canto penetra no mato, nas raízes, e faz eco no morro por trás do riacho. Rosinha canta e lida com a terra.

*

Numa tarde, dessas em que Rosinha fica debu-lhando milho, ele chega. Vem, não sabe de onde, montando um baio suado. Fedendo de longe. Rosinha para com seu trabalho e olha o estranho. O homem barbudo, roupa suja e mal cheiro, vai se aproximando. O passo moroso de seu baio faz um balanço cheio de cadência. Apeia. "Comida e pousada por uma noite". "Se achegue seu moço".

Rosinha põe mais água no seu caldinho da pa-nela de ferro. Fica olhando o homem. Olha sua barba crescida, seu cabelo seboso. Antes de escurecer, o homem vai até o riacho. Tira a poeira. Comem com a noite escurecendo tudo.

Nem uma palavra. Rosinha ajeita um pouco de lenha no fogão. "Durma em minha rede que eu dou um jeito". E só. O homem dorme mesmo. Entregue. Rosinha fica acordada, olhando o estranho que dorme.

Lá fora o céu pontilha se turva com nuvens grossas. Chuva. Rosinha fica na beira do fogo, pi-tando. Depois do cigarro cochila. Não prega o olho, e fica mirando o estranho. Sabe-se lá o que pensa. Fica riscando o chão com um galhinho seco. O barulho da chuva lá fora incomoda Rosinha. Vai até a porta. "Bom pra roça, essa chuva". Volta para perto do fogão, se ajeita um pouco e adormece.

*

Manhãzinha. O sol chega tímido, secando um pouco a terra molhada pela chuva da noite. Rosinha acorda antes do sol e do estranho. Vai ao riacho. Nua, se banha. E se seca ao sol. Volta e não vê mais o estranho deitado. Olha lá fora e vê o baio pastando o mato molhado. Não foi embora.

O estranho vem do riacho. Rosinha cora. "Me viu nua". Diz bom dia e Rosinha responde num sopro. "Me chamo João". "Eu Rosinha". Começam uma con-versa à toa, para ter o que conversar. Rosinha envergonhada por ter sido vista nua.

Rosinha lida com a terra. O estranho, para pa-gar a pousada, ajuda. Sem conversas. Só trabalho e sol. Mais quente do que o comum. Com a noite o estranho pede para ficar mais uns dias antes de seguir viagem. Rosinha diz que sim.

João e Rosinha se amam. Numa noite de lua. A luz do luar não se atreve a invadir o ninho. Passa o tempo e João ficando. "Vou buscar umas coisas e volto logo. Me espera". Rosinha quer um vestido novo, uma mão de cal na casinha. João diz me espera.

Rosinha espera. No bucho uma criança. João demora um mês e volta. Trás o que Rosinha pediu. Pinta a casa de branco. Aumenta a rocinha miúda. Ajeita os teréns na casa. Rosinha é feliz. No bucho, bem crescido, a criança chuta.

"Me vou de novo". Rosinha treme. Seu homem vai embora. "Não, não vai. Demora coisa de um mês e volta". Rosinha acompanha seu homem até um pedaço do caminho. Volta e espera. Espera um mês. Dois. Três.

Pariu uma menina. João, quando voltasse ia gostar. Mas já demorava muito a voltar. Rosinha vai se atarantando. Cuida da menina, que também chama de Rosinha. Rosinha porque esse nome parece o mais bonito. Rosinha porque nasceu de Rosinha.

*

Rosinha, a que é mãe, endoidou. A que é filha já teve a primeira regra. João nunca mais voltou. A roça se encheu de mato. O milho secou. O riacho é mais frio. A que é filha se banha no riacho, nua, e se seca ao sol. A que é mãe, doida, foi embora. Procurar seu homem.

A que ficou lida com a terra, com a lenha. As galinhas morreram há muito. Os pássaros, vez por outra, comem o milho que custa a crescer. Rosinha, filha de Rosinha da terra é quem cuida da rocinha mirrada. Essa Rosinha vai ficar na casinha caiada, des-botando. Vai lidar com a terra bruta, esquecida por Deus. O luar vai beijar as pernas da Rosinha que ficou. Vai se deitar com ela na rede e embalar seu sono. Numa tarde qualquer talvez apareça um estranho.

***********************************
Do volume "Os Pardais do Largo" - 1978
***********************************
Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui