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Contos-->PASSAGEM DAS ÁGUAS -- 03/05/2002 - 12:07 (Sergio Felix) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos


Era manhã de levantar, como foi o dia de ontem. Acordei no mesmo relógio de todos os dias; vesti o mesmo corpo, escovei os mesmos dentes, risquei a minha mesma cabeça com um pente fino e joguei os cabelos para o mesmo lado de sempre – com a parte mais cheia para o lado direito. Depois de tudo fui até a estante e peguei os livros matematicamente. Era uma jornada geográfica até a escola – pensei enquanto deixava os lápis e os cadernos devidamente penteados na bolsa – teria que atravessar várias ruas descalçadas, algumas curvas e uma ponte inacabada sobre o rio.

Costumava contar os passos da minha casa até a escola subtraindo a ponte; só que, mesmo eles sendo os mesmos sempre, sempre estavam mudando. Um dia, o homem velho e caolho, dono da venda, vendo a mim, menino contador, perguntou por que eu contava os passos todos os dias. Eu vi o homem e fiquei assombrado, ele se curvara ainda mais e se transformara de um momento para o outro em um grande ponto orgânico de interrogação. Parei, pensei, pensei outra vez para me certificar que tinha pensado; parei de novo para confirmar a parada e nada acontecia. Não adiantava insistir – eu não sabia responder. O homem calado também pensou, parou, viu-me e, assombrado, foi embora satisfeito. Depois disso parei de pensar em inventar geometrias.

Tudo seguia como de costume, até que lá pelo meio da aula um amigo meu que sentava próximo, gritou em palavras maiúsculas apontando na minha direção: “HOJE É O ANIVERSÁRIO DELE!”. Bastou isso para que todos saíssem dos seus redutos escolares e se aproximassem de mim. A sala repentinamente encheu-se de um coro de mil vozes e de uma batida ritmada de mãos espalmadas. Eu olhava assustado o rosto das pessoas e eles estavam abertos. Suas bocas moviam-se como se marchassem e delas eram expulsos grandes dentes caninos. Eram dentes aptos a morderem um aniversariante como se fosse um bolo decorado. Por alguns instantes fiquei extasiado vendo aquela coreografia avolumar-se sobre mim; era sem dúvida uma traição coletiva, todos sabiam exatamente o que fazer e o que falar naquele momento - menos eu. Já haviam me ensinado o dia e o mês do meu aniversário, só que ninguém me explicou o que fazer quando isso acontecesse. E a música afiada que não acabava nunca! Ela entrava cortando os meus ouvidos e fazia o meu corpo vibrar!. Um calor subia à cabeça me fazendo sofrer a agonia de uma morte longa e cruel. Pensei que ficaria ali para sempre, eu estava entregue à própria sorte naquela situação inamovível. Todos diziam “parabéns pra você!” E eu não sabia por quê; o que fazer? Deveria sorrir ou chorar? Onde colocar as mãos? Sem saber o que fazer resignei-me e então, abaixei a cabeça covardemente recluso e abraçado ao meu destino. Era insuportável a idéia de não saber o que fazer no meu próprio aniversário. Eu não tinha respostas.

A partir daquele dia eu me possui de uma vontade jamais sentida: frequentaria todos os aniversários só para estudar o que faz um aniversariante; copiaria cada movimento da anatomia do seu rosto, até um leve levantar da sobrancelha e não o perderia de vista um instante sequer. E como vingança eu cantaria com a minha boca mais estridente, espalmaria as minhas mãos o mais que pudesse e bateria uma contra a outra até ficarem completamente exaustas. Ninguém poderia escapar do meu plano de vingança, eles não sabiam mas eu tinha uma lista secreta com todos os nomes e as suas datas de aniversário. Ao se aproximar do dia esperado eu informava à todos o nome vitimado, sussurrando uma voz fria e cortante.

Muitas e outras mãos ritmadas se seguiram após àquele nefasto dia desconsertado. Eu faria agora 12 anos e era sem dúvida um dia especial, recheado de erros especiais, de doces e palavras especiais. O mundo me pertencia e eu sorvia toda a sua existência. O que seria do mundo se eu não existisse hoje? Certamente estaria incompleto ou ao menos faltando um dia. Sentia dedos gigantes em todos os lugares apontando-me e escolhendo-me, eu me tornara visível em toda a minha solidez. O dia abria suas cortinas para que eu me vestisse de púrpura e música; que todos viessem ao meu encontro e me trouxessem ouro e mirra: se chegavam estavam óbvios e quando não vinham eu me desconsolava. Invadia-me então uma tristeza sobrenatural, pairada como névoa em manhãs silenciosas – não uma tristeza de mágoa nem de sonhos impossíveis era uma tristeza latente que me acompanhava; tristeza de portos e cartas, tristeza de portas e acenos, tristeza que espera os momentos esvaziados para adensar a chuva. Eu segui pelas ruas e após algumas curvas chorei debruçado sobre a ponte do rio, toda a minha liquidez. Sofri ao ver o barco de papel perder as mãos do menino verde. Via-me derramado lá no fundo enriquecendo a passagem das águas onde muitas pessoas seguiam dependuradas entre si: umas barrigas, outras primaveras, algumas velas. “Feliz Aniversário!” – assim todos me falavam e eu me dizia “por quê”; assim muitas e outras águas trouxeram espumas prateadas. Por que feliz nascimento se eu tinha a morte exposta na vanguarda? Perguntas somavam à minha cabeça mas não eram porquês de respostas e verdades, e sim de uma multidão rápida de imagens desinteriorizadas. Eu então derretido com as mãos espalmadas na fenda molhada, chorei abraçado à cabeça abaixada. Chorei pelas minhas outras soluções que me dão vidas paralelas e com as quais eu me multiplico e volto a chorar. Chorei pelos cabelos óbvios assanhados nas águas do rio. Chorei porque não sabia se já devia sorrir. Chorei porque não sabia se devia chorar.

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