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Contos-->Um artista da fome -- 17/03/2003 - 12:29 (Franz Kafka) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

O interesse por artistas da fome diminuiu muito nas últimas décadas. Se antigamente a organização por conta própria deste tipo de espectáculos trazia o seu lucro, hoje em dia isso seria absolutamente impossível. Os tempos eram outros. Na altura toda a cidade seguia o artista da fome; a cada dia do seu jejum aumentava a afluência; todos queriam ver o artista da fome ao menos uma vez por dia; nos últimos dias inscreviam-se pessoas para poderem ficar sentadas o dia inteiro em frente à pequena jaula; até durante a noite, à luz de archotes que aumentavam o efeito, apareciam visitantes; em dias de sol trazia-se a jaula para o exterior para que o artista da fome fosse mostrado às crianças; se para os adultos o espectáculo não passava de um divertimento no qual participavam porque estava na moda, as crianças, por seu lado, estarrecidas, as bocas abertas, segurando as mãos umas das outras para se sentirem mais seguras, as crianças observavam a palidez do artista da fome, observavam o maillot preto por trás da qual sobressaíam poderosas as suas costelas, observavam-no sentado na palha, visto que rejeitava qualquer cadeira, a acenar de tempos a tempos por cortesia, viam-no responder a perguntas com um sorriso forçado, a esticar o braço para que lhe pudessem sentir a magreza, mas logo se afundando em si próprio, porque todos lhe eram indiferentes, até mesmo o bater, para ele tão importante, do relógio, única mobília da jaula, limitava-se a olhar em frente, de olhos quase fechados e a bebericar aqui e ali de um minúsculo copito de água para humedecer os lábios. Além dos diferentes espectadores que iam passando, havia também uns guardas permanentes, normalmente e curiosamente talhantes de profissão, que eram escolhidos pelo público e que tinham por função vigiar o artista da fome dia e noite, e sempre três de cada vez, para que ele não pudesse de maneira nenhuma ingerir qualquer alimento. Isto não passava porém de uma formalidade introduzida para satisfação das massas, dado que os verdadeiros aficionados sabiam perfeitamente que durante o período de jejum o artista da fome nunca, sob quaisquer circunstâncias, nem sequer se a tal fosse forçado, comeria a mais pequena migalha; proibia-o a honra da sua arte. Claro que nem todos os guardas eram capazes de o compreender, havia grupos de vigia nocturna que executavam o seu trabalho de forma desleixada, sentavam-se a jogar às cartas num canto propositadamente afastado com o objectivo de conceder ao artista da fome um pouco de descanso que, pensavam eles, seria por ele utilizado para sacar de umas provisões secretas. Este era o tipo de guardas que mais torturava o artista da fome; entristeciam-no; ficava-lhe muito mais difícil jejuar; por vezes suplantava a sua debilidade e cantava durante todo o tempo que durava a vigília, cantava até não mais poder para mostrar às pessoas como eram injustas as suas suspeitas. Mas isto de pouco lhe servia; os guardas ficavam apenas impressionados com a habilidade do artista da fome que era capaz de comer enquanto cantava. Gostava muito mais daqueles guardas que se sentavam bem junto às grades, e que, não satisfeitos com a sombria luz nocturna da sala, o iluminavam com lanternas eléctricas postas à sua disposição pelo empresário. A forte luz não o incomodava, fosse como fosse não dormia e de qualquer das formas era sempre capaz de dormitar sob qualquer iluminação e a qualquer hora, mesmo numa sala sobrelotada e barulhenta. Estava disposto a passar a noite acordado com esses guardas; estava disposto a divertir-se com eles, a contar-lhes histórias da sua vida nómada e a ouvir também as histórias deles, tudo isso para os manter acordados, para lhes poder mostrar que não guardava nada de comestível dentro da gaiola e que jejuava como nenhum deles era capaz. O maior momento de felicidade chegava contudo com a manhã e com um pequeno-almoço cujo custo era suportado pelo próprio artista da fome e ao qual os guardas se atiravam com o apetite de homens saudáveis após uma longa noite de vigília. Havia apesar de tudo quem quisesse ver neste pequeno-almoço uma tentativa corrupta de subornar os guardas, mas isso já era ir longe demais, e quando lhes perguntavam se, em nome da causa, eram capazes de fazer a vigia da noite sem pequeno-almoço, esquivavam-se na resposta, mantendo porém teimosamente as suas suspeitas. Esta era aliás uma das várias suspeitas indissociáveis do jejum. Ninguém, por exemplo, era capaz de passar todas as noites e todos os dias a vigiar ininterruptamente o artista da fome e, assim sendo, ninguém podia confirmar com os seus próprios olhos se de facto se tinha jejuado ininterruptamente e sem falhas; apenas o artista da fome o podia confirmar, era ele portanto o único espectador capaz de se satisfazer plenamente com o seu jejum. Contudo, e por uma razão diferente, o artista da fome nunca ficava satisfeito; talvez não tivesse emagrecido por causa do jejum - tanto que havia quem, para seu próprio desconsolo, fosse incapaz de assistir ao espectáculo por não suportar tal visão - mas por causa da insatisfação que sentia consigo mesmo. De facto, só ele sabia, e nem os mais aficionados o sabiam, como era fácil jejuar. Era a coisa mais fácil do mundo. Não o escondia, mas ninguém acreditava, acusavam-no de estar a ser modesto ou, a maior parte das vezes, de querer chamar a atenção ou até mesmo de ser um aldrabão para quem jejuar era fácil porque encontrara uma maneira fácil de o fazer, um aldrabão que tinha ainda por cima o descaramento de quase o admitir. A tudo isto tinha que se sujeitar e com o passar dos anos acabara mesmo por se habituar, mas esta insatisfação corroía-o por dentro e jamais depois dum período de jejum - e esta verdade tinha que lhe ser concedida -, jamais deixara a jaula de livre vontade. O empresário fixara o tempo máximo de jejum em quarenta dias, após os quais sempre o proibira de jejuar, mesmo nas grandes metrópoles, e isto por uma boa razão. É que durante quarenta dias, e com uma intensificação progressiva da publicidade, conseguia-se normalmente manter o interesse de uma cidade, mas a partir daí o público recuava e a afluência decaía; é claro que havia pequenas diferenças entre as várias cidades e países mas a regra aplicada era a do limite de quarenta dias. Ao quadragésimo dia era então aberta a porta da jaula decorada com flores, uma multidão entusiasmada enchia o anfiteatro, tocava uma banda militar, dois médicos entravam na jaula para tomar as necessárias medidas ao artista da fome, o resultado era anunciado a toda a sala por um megafone e aproximavam-se duas jovens senhoras, todas felizes por terem sido elas as eleitas, e tentavam conduzir o artista da fome para fora da jaula e descer com ele uns degraus até uma mesa onde o esperava uma refeição cuidadosamente seleccionada. E nesta altura o artista da fome protestava sempre. Ainda apoiava de livre vontade os seus braços esqueléticos nas mãos que as senhoras debruçadas lhe estendiam prestavelmente, mas recusava-se a levantar. Porque é que tinha que acabar agora que quarenta dias haviam já passado? Era capaz de aguentar muito mais, aguentava infinitamente; porquê acabar no melhor momento, ou antes mesmo de atingir o melhor momento de jejum? Porque é que o privavam da glória de poder continuar a jejuar, de ser não só o maior artista da fome de todos os tempos, que provavelmente já era, mas de se superar a si próprio, até ao inconcebível, dado que não encontrava limites para a sua capacidade de jejum. Porque é que esta gente que dizia tanto o admirar, porque tinham eles tão pouca paciência; se ele era capaz de suportar o prolongamento do jejum, porque não eram eles também capazes de o fazer? Além disso estava cansado, estava confortavelmente sentado na palha e obrigavam-no a levantar-se e a aproximar-se da comida que só de imaginá-la lhe subiam os vómitos que com esforço continha por respeito para com as senhoras. E olhava para cima, olhava para os olhos das senhoras aparentemente amáveis mas na verdade cruéis e abanava a cabeça demasiado pesada para o fraco pescoço que a sustentava. Acontecia então o que sempre acontecia. O empresário aproximava-se, levantava silencioso - a música não permitia qualquer discurso - os braços por trás do artista da fome como se convidasse o céu a observar a sua obra aqui sentada no meio da palha, este mártir lamentável que o artista da fome era de facto mas num sentido completamente diferente; agarrava o artista da fome pela cintura fina e exagerando o cuidado com que o fazia tentava criar a ilusão de que segurava um objecto altamente delicado; e entregava-o - isto depois de o sacudir um pouco sem que o público o notasse, fazendo com que as pernas e o tronco do artista da fome baloiçassem para um lado e para o outro - às senhoras que entretanto tinham ganho uma palidez de defuntas. Nesta altura o artista da fome já a tudo se submetia; deixara cair a cabeça sobre o peito e era como se se tivesse enrolado sobre si próprio e assim se mantivesse inexplicavelmente; o corpo escavado; as pernas, apertadas uma contra a outra ao nível dos joelhos em instinto de conservação, raspavam o chão como se aquele não fosse o chão verdadeiro, como se ainda procurassem o verdadeiro chão; e todo o peso, peso por sinal levíssimo, do seu corpo repousava sobre uma das senhoras que, à procura de ajuda, a respiração ofegante - não fora assim que imaginara o cargo honorário - começava por endireitar o pescoço o mais possível para evitar que pelo menos o seu rosto tocasse no do artista da fome, mas depois, sentindo que a experiência falhava e que a sua colega, mais feliz, em lugar de a ajudar, se limitava a segurar a medo a mão do artista da fome, esse pequeno embrulho de ossos, a senhora rompia em lágrimas que escorriam sob as gargalhadas entusiastas da sala até que um funcionário, já há muito preparado para o efeito, dali a levava. Vinha então a comida que o empresário enfiava na boca do artista da fome adormecido numa espécie de sono que mais parecia um desmaio; e ao mesmo tempo que o alimentava, o empresário falava animadamente esforçando-se por desviar a atenção do público do estado em que o artista da fome se encontrava; pedia-se depois ao público um brinde, pedido que teria sido supostamente sussurrado pelo artista da fome ao ouvido do empresário; a orquestra reforçava tudo isto com uma grande fanfarra, as pessoas dispersavam e ninguém tinha o direito de se considerar descontente com aquilo a que acabara de assistir, ninguém, tirando o artista da fome, sempre e apenas ele. Assim viveu durante muitos anos com pequenas pausas regulares para recuperação, numa aparente glória, admirado pelo mundo mas apesar de tudo quase sempre triste, uma tristeza que crescia por ninguém por ela mostrar qualquer consideração. Mas como é que o podiam consolar? Que mais podia ele desejar? E se por acaso aparecesse uma pessoa de bom coração que o lamentasse e que quisesse explicar-lhe que a sua tristeza provinha muito provavelmente do jejum, podia acontecer, sobretudo quando o jejum ia mais adiantado, que o artista da fome respondesse com um ataque de fúria e que, para susto de todos, começasse a sacudir as grades da jaula como um animal. Para este tipo de situações o empresário dispunha de um castigo de que gostava de fazer uso. Desculpava o artista da fome diante da audiência, admitia que a irritabilidade do artista da fome só poderia ser perdoada por aqueles que em tempos tivessem jejuado, pois para homens bem alimentados ela era incompreensível; referia-se, a propósito, àquela afirmação do artista da fome igualmente incompreensível de que seria capaz de jejuar por muito mais tempo; elogiava a forte ambição, a boa vontade e a grande capacidade de abnegação contidas em tal afirmação; procurava todavia logo de seguida refutar a afirmação mostrando fotografias que na altura vendia e onde se via o artista da fome a um quadragésimo dia de jejum deitado numa cama, quase apagado de tão enfraquecido. Esta distorção da verdade, que o artista da fome tão bem conhecia mas que de cada vez que era proferida tanto o enervava, era um castigo demasiado pesado para ele. A consequência de um jejum interrompido antes de tempo era apresentada como a causa da sua interrupção! Era impossível lutar contra esta incompreensão, contra este mundo de incompreensão. Agarrado às grades, ansioso, esforçava-se de boa fé por ouvir as palavras do empresário, mas quando apareciam as fotografias largava de imediato as grades, afundava-se na palha suspirando e o público, já sossegado, podia voltar a aproximar-se e a observá-lo. As testemunhas destas cenas, quando se punham a recordá-las uns anos mais tarde, encontravam muitas vezes dificuldade em se compreender a si próprias. Isto porque entretanto se deu aquela reviravolta já referida; quase de um dia para o outro; poderiam encontrar-se causas mais profundas, mas quem é que estava interessado em as procurar; certo dia, e isto é o que interessa, o artista da fome mimado viu-se abandonado pela multidão que antes o procurava e que agora visitava outros espectáculos. O empresário arrastou-o mais uma vez por meia Europa na esperança de aqui ou ali ainda encontrar o velho interesse; em vão; como se de um secreto acordo se tratasse, desenvolvera-se uma repulsa geral contra a exposição do jejum. É claro que tal fenómeno não aconteceu de um momento para o outro e que agora, retrospectivamente, as pessoas se lembravam de alguns acontecimentos aos quais na altura não fora dada a devida atenção, indícios que não foram devidamente suprimidos, mas de qualquer das formas já era demasiado tarde para os tentar combater. Havia a certeza de que o jejum voltaria a estar na moda, mas para os que estavam vivos este consolo não servia. O que devia então fazer o artista da fome? Aquele que fora aclamado por milhares de pessoas não se podia agora contentar com umas barracas em pequenas feiras de aldeia, além de que não só era demasiado velho como sobretudo demasiado fanático do jejum para se dedicar a uma outra profissão. Despediu-se assim do empresário, companheiro de um percurso de vida incomparável, e deixou-se contratar por um grande circo; para não ferir a sua sensibilidade, não leu sequer o contrato. Um circo grande, com um sem número de pessoas e animais e aparatos que se equilibram e completam, pode sempre vir a precisar do que quer que seja que lhe apareça, até mesmo de um artista da fome, desde que as suas exigências sejam modestas, claro está, e para mais contratava-se neste caso, não apenas o artista da fome, mas também o seu velho e conceituado nome, e não se podia sequer afirmar que se tratava, sendo esta uma arte cuja qualidade não era prejudicada pelo avanço da idade, de um artista esgotado, um artista longe do ponto alto das suas capacidades a pretender terminar os seus dias no sossego de um circo, antes pelo contrário, o artista da fome assegurava ser capaz, o que era credível, de jejuar tão bem quanto antes, afirmava inclusivamente que se o deixassem fazer conforme queria, o que lhe prometeram sem reservas, agora sim espantaria finalmente o mundo, uma afirmação que aliás provocou como reacção um sorriso entre os colegas de profissão, visto ignorar a realidade do momento que se vivia e que o artista da fome com o entusiasmo facilmente esquecia. Mas o artista da fome não tinha perdido por completo a noção das proporções e aceitou com naturalidade o facto de não ser colocado no meio da arena com a sua jaula como atracção principal, mas sim no exterior, junto aos estábulos, num local de passagem de resto bastante concorrido. Para informação do público tinham sido colocados grandes letreiros coloridos à volta da jaula. Quando o público se dirigia aos estábulos para visitar os animais nos intervalos do espectáculo, era quase inevitável que passasse pelo artista da fome e que parasse um pouco à sua frente, e mais tempo ficaria não fosse a pressão, no estreito corredor, daqueles que, na ânsia de chegar aos estábulos e sem compreenderem porque se parava a meio do caminho, impossibilitavam uma observação mais longa e sossegada. E era por isso que o artista da fome, que começava por desejar aquelas horas de visita que davam sentido à sua vida, passava depois a temê-las. A princípio suportava com dificuldade a espera pelos intervalos do espectáculo; observava deliciado a multidão que se acotovelava ao aproximar-se até se convencer - mesmo o mais obstinado e quase consciente esforço para iludir as evidências acabava por ser incapaz de contrariar os factos - de que a maior parte das vezes o objectivo daquela multidão que por ele passava, quase sempre, sem excepções, era visitar os estábulos. E vê-los ao longe sempre foi o momento mais bonito. Quando a multidão se aproximava, ensurdeciam-no os gritos e as discussões dos dois grupos que se acumulavam constantemente à sua frente, o primeiro - e este viria a ser aquele que o artista da fome mais detestava - que o queria observar confortavelmente, não porque o compreendesse, mas por capricho e teimosia, e o segundo que queria apenas visitar os estábulos. Depois da grande multidão, aproximavam-se uns quantos retardatários e estes, apesar de não estarem impedidos de parar em frente à jaula quanto tempo lhes apetecesse, passavam rapidamente, a passos largos, quase sem olhar, para chegarem a tempo de ver os animais. Era raro o feliz acontecimento de um pai que aparecia com os seus filhos, que apontava com o dedo para o artista da fome e explicava detalhadamente do que se tratava, contava de tempos antigos em que ele assistira a espectáculos semelhantes embora de muito maiores dimensões, e as crianças, que, devido à insuficiente preparação das escolas e da própria vida que levavam, continuavam a pouco perceber do que viam - o que era para eles jejuar? - deixavam porém adivinhar no brilho dos seus olhos curiosos qualquer coisa de novo, de melhores tempos que se aproximavam. Talvez, dizia então às vezes o artista da fome para si próprio, talvez tudo melhorasse se a sua jaula não estivesse tão perto dos estábulos. Esta localização tornava a escolha do público demasiado fácil, já para não falar do que sofria com o fedor dos estábulos, o barulho dos animais durante a noite, o transporte da carne crua para as feras e os rugidos durante as refeições que constantemente o oprimiam. Mas não era capaz de apresentar queixa à direcção; além disso deveria estar grato aos animais pela quantidade de visitantes que tinha, entre os quais de quando em vez se encontrava um que a si estava destinado, e quem sabe onde o esconderiam se ele tentasse chamar a atenção para a sua existência, ele que no fundo era apenas um obstáculo no caminho para os estábulos. Ainda para mais um pequeno obstáculo, um obstáculo cada vez mais pequeno. As pessoas familiarizaram-se com a estranha ideia de, nos dias de hoje, se querer chamar a atenção do público para um artista da fome e esta familiarização foi o veredicto final. Podia jejuar quanto quisesse, e fazia-o, mas já nada o podia salvar, as pessoas não olhavam para ele. Tente-se explicar a arte do jejum! Não é possível explicá-la a quem não a sente. Os bonitos letreiros iam ficando sujos e ilegíveis, arrancaram-nos e ninguém se deu ao trabalho de os substituir; o pequeno quadro com o número dos dias de jejum, que em tempos antigos fora diariamente actualizado, já há muito marcava o mesmo número, visto que após as primeiras semanas até esta simples tarefa cansava os funcionários do circo; e apesar de tudo o artista da fome continuava a jejuar como em tempos sonhara, e fazia-o sem esforço como então havia afirmado, embora ninguém lhe contasse os dias, e assim ninguém, nem mesmo o próprio artista da fome, sabia a que ponto chegara a sua proeza, e o seu coração pesava cada vez mais. E quando, de tempos a tempos, um brincalhão qualquer parava em frente à jaula e troçava do número desactualizado no quadro e falava de fraude, dizia-se então a mentira mais estúpida que a indiferença e a maldade mais profunda poderiam inventar, porque o artista da fome não enganava ninguém, ele trabalhava honestamente, era o mundo que o enganava negando-lhe a sua recompensa. Muitos mais dias passaram e até isto teve o seu fim. Certo dia um fiscal reparou na jaula e perguntou aos assistentes porque é que se mantinha inutilizada e cheia de palha apodrecida uma jaula tão boa. Ninguém lhe soube responder até que um deles, vendo o quadro com os números, se lembrou do artista da fome. Revolveram a palha com umas forquilhas e encontraram o artista da fome. "Ainda estás a jejuar?" perguntou-lhe o fiscal, "quando é que vais acabar com isso?" "Perdoem-me todos", murmurou o artista da fome; apenas o fiscal de ouvido encostado às grades o conseguiu perceber. "Claro", disse o fiscal e apontou a testa com o dedo para ilustrar aos restantes funcionários o estado do artista da fome, "nós perdoamos-te." "Sempre quis que vocês admirassem o meu jejum", disse o artista da fome. "Nós admiramo-lo", disse o fiscal em tom conciliador. "Mas não deviam admirá-lo", disse o artista da fome. "Então não o admiramos", disse o fiscal, "mas porque é que não o devemos admirar?" "Porque eu tenho que jejuar, não posso fazer outra coisa", disse o artista da fome. "Olha-me este", disse o fiscal, "então porque é que não podes fazer outra coisa?" "Porque eu", disse o artista da fome, e para que nada se perdesse falou ao ouvido do fiscal com os lábios esticados, como se lhe fosse dar um beijo, "porque não encontrei alimento de que gostasse. Se o tivesse encontrado, acredita que não teria chamado tanto a atenção e que me teria empanturrado como tu e todos." Foram estas as suas últimas palavras, mas nos seus olhos desfeitos permanecia a convicção, já não orgulhosa mas ainda firme, de que continuava a jejuar. "Toca a arrumar isto!" disse o fiscal, e enterraram o artista da fome com a palha. Na jaula colocaram uma jovem pantera. Até os mais insensíveis podiam sentir a agradável recuperação que sofrera aquela jaula antes deserta e agora habitada por este animal selvagem que se mexia com vitalidade de um lado para o outro. Nada lhe faltava. Os guardas traziam-lhe sem grande hesitação as refeições de que o animal gostava; parecia que ele nem sequer sentia saudades da liberdade; aquele corpo nobre, de tal forma dotado que quase estoirava, parecia também trazer consigo a liberdade; parecia que ela se alojara algures nas suas mandíbulas. E a alegria de viver brotava com tal ardor das suas fauces que não era fácil para os espectadores suportá-la. Mas dominavam-se, rodeavam a jaula e não queriam por nada dali sair.


Tradução de Maria Vieira Mendes
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