Letras de canções de roda tradicionais viraram objeto de polêmica e renderam, inclusive, debates intermináveis entre pais e especialistas. O argumento é que tais músicas poderiam estimular a agressividade e violência nas crianças. Mas será isso mesmo?
Natália Kenupp
nkenupp@jornaldacomunidade.com.br
É quase impossível ouvir alguém cantar versos como Ciranda Cirandinha, vamos todos cirandar, ou “atirei o pau no gato, mas o gato não morreu” e não se remeter à infância. Sempre presentes nas rodinhas e no imaginário infantil, as cantigas ultrapassam modismos e o tempo, sendo as mesmas cantadas e passadas de pais para filhos. Canções aparentemente inofensivas, que traduzem o respeito às tradições e ao folclore brasileiro. Alguns educadores, entretanto, não pensam assim, e dizem que essas músicas estimulam a agressividade e a violência entre as crianças. Alterações em músicas como Atirei o pau no gato, O cravo brigou com a rosa e Boi da cara preta foram feitas, recentemente, por esse segmento contrário ao conteúdo das antigas cantigas.
Inclusive, na web, milhares de internautas receberam e repassaram um e-mail cujo conteúdo descreve os supostos absurdos contidos nas versões, em português, das canções tradicionais de roda (no exterior, as letras seriam menos nocivas) e ainda apregoa que o brasileiro teria auto-estima baixa em decorrência de traumas provocados pelas músicas infantis.
No site Por trás das letras, o jornalista e escritor Hélio Consolaro rebate firmemente as argumentações do texto. Segundo ele, houve uma análise prematura, que não considerou os aspectos históricos, assim como os componentes da cultura e da alma dos brasileiros. “Apesar da linguagem politicamente incorreta de nossas canções de ninar e de roda, às vezes, com incentivo à violência, ensinando a maltratar os animais, não se educaram aqui George W. Bush nem Tony Blair”, alfineta.
Em defesa da tradição
Consultor da escola Arvence há 18 anos, Américo Peixoto não acredita que as antigas cantigas de roda estimulem o mau comportamento. “A violência existe até no desenho Tom & Jerry e ninguém diz nada. A criança não vai querer atirar o pau no gato porque ouviu a música, pois ela fica mais atenta à melodia do que à letra. É derrubar toda uma tradição por um purismo extremista”, defende.
Na escola, são mostradas as duas versões da música para os alunos, sendo que a ênfase maior é dada às tradicionais. “A professora contextualiza a música, valorizando a história”, conta a coordenadora pedagógica da escola Arvence, Elielza Coelho.
Valores culturais
Milca Moraes, professora de música do Centro de Ensino Candanguinho (Cecan), relembra um caso em que foi executada uma música na qual um coelhinho tomava coca-cola. Rapidamente, os pais interferiram, argumentando que o refrigerante não inspirava hábitos saudáveis. “Utilizamos sempre canções de valor cultural, que estimulem sentimentos como companheirismo e afeto”, explica Milca.
Segundo a professora, a música tem um poder muito forte na vida de qualquer pessoa, principalmente dos pequenos. “As canções envolvem a criança, provocam emoções diversas, além de ajudarem no desenvolvimento da audição e da fala”, avalia. “Os pequenos aprendem a lidar melhor com as frustrações, já que nem todos os momentos da vida são felizes”.
Quanto às modificações, Milca diz preferir as músicas originais, mas passa as duas versões para seus alunos, sem preconceitos.
Ambiente saudável
A psicóloga Paula Dely, em seu artigo Cantigas de roda e agressividade, define como ambiente saudável aquele em que são estimuladas diversas emoções. Nesse sentido, as músicas, aliada às brincadeiras, exercem um papel fundamental. “A criança precisa viver em um espaço de amor e força, sem ter medo de seus sentimentos ou de suas fantasias, para que consiga utilizar a agressividade como uma força produtiva”, analisa.
Direto às origens
A psicóloga Tatiana Fernandes sempre busca as origens culturais brasileiras, na hora de colocar seu filho Rodrigo, de dois anos, para dormir. Músicas como Boi da cara preta e “A canoa virou” ajudam a acalmá-lo. Segundo a psicóloga, as músicas estimulam a fantasia e a imaginação, pois funcionam como historinhas, com começo, meio e fim. “A infância é propícia ao sonho, já que, na fase adulta, dificilmente há tempo para isso”, observa. Além da importância nos sonhos e criatividade, as canções são bons instrumentos para memorização, desenvolvimento da expressão corporal e do ritmo.
Grupos como Palavra cantada fazem sucesso no ramo. A dupla formada por Sandra Peres e Paulo Tatit tem grande prestígio entre os professores e alunos. Ambos são totalmente favoráveis às cantigas de roda, tendo até mesmo um CD em homenagem à essa grande tradição. “Elas são um patrimônio cultural e, portanto, devem ter o seu sentido original preservado”, defende Paulo Tatit.
Novas versões
Atirei o pau no gato
versão original
Atirei o pau no gato
Mas o gato não morreu
Dona Chica admirou-se
Do berro que o gato deu
versão modificada
Não atire o pau no gato
Porque isso não se faz
O gatinho é nosso amigo
Não devemos maltratar os animais
Boi da cara preta
versão original
Boi, boi, boi
Boi da cara preta
Pega essa menina
Que tem medo de careta
versão modificada
Boi, boi, boi
Boi do Piauí
Pega essa menina
Que tem medo de dormir
O cravo brigou com a rosa
versão original
O cravo ficou doente
A rosa foi visitar
O cravo teve um desmaio
A rosa pôs-se a chorar
versão modificada
O cravo ficou doente
A rosa foi visitar
O cravo teve um desmaio
A rosa pôs-se a chorar
A rosa deu um remédio
O cravo logo sarou
O cravo foi levantado
A rosa o abraçou
***
Texto adicionado em 1/7/2009:
A Escola na Idade do Crime
F. Maier
Não atirei o pau no gato.
Mas meti o canivete no mané,
dei porrada na professora,
meti a faca no professor,
dei um tiro no diretor
e meti uma navalha no loirinho de olho azul.
Tá me estranhando?
Gostou do meu trezoitão, fessô?
Se eu não passar de ano, você não vai passar de 2009!
Um Caje e uma Papuda a mais não vai fazer diferença!