Abundam, na literatura das Relações Internacionais, considerações quanto aos estados soberanos serem os principais atores da política internacional, do Realismo Político de Hans Morgenthau ao Institucionalismo neoliberal de Robert Keohane , passando pelo Construtivismo de Alexander Wendt. Essas considerações, via de regra, localizam historicamente a Paz de Westphalia (1648) como “marco fundante” dessa centralidade dos estados soberanos. Equivale a dizer: de 1648 em diante, haveria um sistema internacional perene constituído de estados e organizado segundo o princípio da soberania, em contraposição a períodos anteriores onde teriam ocorrido tentativas de estabelecimento de “ordens hegemônicas”. Adam Watson, como os autores da Escola Inglesa, é um dos mais ardorosos defensores dessa idéia resultante do embate entre os defensores de uma “ordem hegemônica” e dos defensores da soberania estatal que se tornaria princípio dominante: “O tratado de Paz de Westphalia era a Carta de uma Europa permanentemente arranjada segundo um princípio não-hegemônico” (WATSON, Adam. The evolution of international society. Routledge, 1992, p. 182).
A utilização de Westphalia como “marco fundante” do sistema internacional moderno se tornou tão presente no estudo das Relações Internacionais que mesmo por autores críticos das orientações teóricas dominantes na disciplina a adotavam – caso, por exemplo, do teórico crítico Andrew Linklater e do teórico pós-moderno David Campbell, que afirmam ser necessário reconstruir a política internacional “para além de Westphalia”, em diferentes bases. Não obstante, autores como Stephen Krasner e Andreas Osiander se propuseram a efetuar sistemática análise crítica dessa formulação virtualmente canônica. Os pontos de partida destes autores são diferentes, bem como suas conclusões dão respostas diferentes à problemática hodierna da “erosão da soberania” e da redefinição do caráter da própria política internacional.
Krasner busca demonstrar que o “estado de coisas” no plano internacional jamais se conformou ao que se tradicionalmente chamou “modelo de Westphalia”.
O autor, investigando as diferentes utilizações do termo “soberania” nos estudos em Relações Internacionais, cria uma “tipologia da soberania” quadrúplice. À soberania dita “de Westphalia” Krasner associa os conceitos de autonomia e territorialidade. Ela implicaria um sistema internacional composto de entidades autônomas territorialmente organizadas e com controle exclusivo de processos no interior de seus respectivos territórios – os estados, ditos soberanos.
Em seguida, Krasner propõe uma hipótese deveras intrigante, afirmando ser relevante a constatação de que violações da autonomia e da territorialidade dos estados constituíram não exceção, mas regra, no plano internacional desde 1648. O sistema internacional, dito anárquico (em contraposição ao plano doméstico), não proveria alguma entidade capaz de impedir as violações – os estados, pois, seriam livres para buscar auferir ganhos violando a autonomia alheia ou pactuando entre si, criando processos trans-fronteiriços sobre os quais crescentemente perdem controle.
Krasner analisa as possibilidades de violação da autonomia e da territorialidade dos estados, nas quais pelo menos um dos estados envolvidos obteria algum ganho, chegando a nova “tipologia quadrúplice” – através de convenção, contrato, imposição e coerção , os estados operariam violações nos ditames da soberania “de Westphalia”, conforme seja do seu interesse, confirmando as palavras de outro autor, Raymond Aron: “...os estados não admitem árbitro, tribunal ou lei superiores à sua vontade” (ARON, Raymond. Paz e Guerra Entre as Nações. Brasília: Editora da UnB, 1986, p.147).
Krasner afirma, enfim, ser necessário o reconhecimento desse fato por parte dos analistas. Uma vez que assumamos esse cenário de “hipocrisia”, no qual o conceito de soberania westphaliana, conquanto frágil, persiste como referencial ou convenção para os estados (para os mais estados mais “fracos”, uma garantia mínima de respeito à sua integridade; para os mais “fortes”, controle sobre sua esfera doméstica), diversos entre si, formularem suas ações em termos de interesses, poder e valores, estaremos mais próximos de obter mais paz e estabilidade do que aderindo irrefletidamente à “formulação canônica”, dita falaciosa. Portanto, o uso “consciente” do referencial westphaliano faria sentido, no âmbito do estudo das Relações Internacionais.
Por fim, Krasner emite uma afirmação intrigante, embora esta aparentemente apenas confirme sua tese da simultânea “fragilidade e resiliência” da soberania “de Westphalia”:
“entidades políticas não-estatais (impérios, tribos, ligas comerciais) desapareceram, mas ao mesmo tempo os princípios de Westphalia foram freqüentemente ignorados” (KRASNER, Stephen. Compromising Westphalia. International Security 20:3, 1995, p.118).
Podemos entender que o autor buscou apartar o desaparecimento de entidades políticas não-estatais do que ele chamou soberania westphaliana. Veremos, em seguida, após a exposição da análise de Andreas Osiander e em comparação com esta última, que a constatação de Krasner diz mais do que aparenta sobre diversas problemáticas de relevo nas Relações Internacionais hodiernas.
Osiander, por seu turno, desconstrói o que considera ser “o mito de Westphalia”. Munido de extensa análise histórica, ele afirma que nem as disputas políticas da Guerra dos 30 Anos, nem tampouco o acordo de Paz de Westphalia que foi corolário da guerra ensejaram o surgimento do conceito de soberania em contraposição a princípios universalistas associados a comunidades políticas não-estatais, como impérios. O tratado de Paz em questão não reafirmou ou concedeu soberania a nenhum dos estados que se contrapuseram ao Sacro Império Romano-Germânico no curso da guerra, nem tampouco marcou o desaparecimento desse último (pelo contrário, afirma Osiander – o referido tratado lida quase que exclusivamente com o relacionamento entre o império e outros atores, bem como com o relacionamento do poder imperial com as partes do império, este último operando num marco sumamente DIVERSO da soberania territorialmente organizada).
O Sacro Império Romano-Germânico, segundo Osiander, consistiria num complexo arranjo jurídico-institucional organizado a partir de um princípio de autonomia das partes frente às instituições imperiais (e ao próprio imperador) – dito “landeshoheit” (OSIANDER, Andreas. Sovereignty, international relations and the Westphalian mith. International Organization 55:2, 2001, p.270). Este conceito (para o autor, deveras mais adequado para a compreensão do Sacro Império do que o de soberania) faria do império não um estado, mas uma entidade política precursora dos modernos “sistemas de governança” internacionais, nos termos em que Robert Keohane & Joseph Nye Jr. definiram estes últimos:
“Conjunto de instituições e processos, formais e informais, responsáveis pela regulação da ação coletiva de um ou mais grupos humanos” (NYE JR., Joseph S. & KEOHANE, Robert O. “Introduction” in NYE JR., Joseph S. & DONAHUE, John D. (editores). GOVERNANCE IN A GLOBALIZING WORLD. Washington: Brookings Institution Press, 2000, p.12).
Osiander, pois, nos traz duas considerações de relevo. Primeiro, comunidades políticas diferentes do estado nacional coexistiam com este, num mesmo sistema internacional, operando com conceitos diferentes dos de soberania (algo de considerável relevância nos dias que correm, nos quais estados interagem com “outros atores” no plano internacional, colocando em xeque a supremacia analítica do conceito de soberania) – e nem por isso eram ditos atores de menor importância. Dessa forma, Osiander se contrapõe a Barry Buzan & Richard Little, na caracterização dos sistemas internacionais de eras passadas. Esses autores afirmam, sobre os atores que constituíam os mencionados sistemas:
“Quando o processo de urbanização superou os laços de clã e tribo, o modo descentralizado de organização sócio-política que tinha dominado a maior parte da história humana deu lugar a um sistema mais centralizado que podemos reconhecer como uma FORMA DE ESTADO” (BUZAN, Barry & LITTLE, Richard. International systems in world history. Remaking the study of international relations. Oxford, Oxford University Press, 2000, p. 167)
Buzan e Little, não obstante trabalharem com sistemas internacionais compostos por impérios nômades, cidades-estado e impérios, consideram todas essas entidades políticas ”formas de estado”, trabalhando, pois, sempre no marco da soberania territorialmente organizada. Assim, eles considerariam o Sacro Império como um estado, que Osiander demonstra ser inviável, bem como inviável é a compreensão da articulação do Sacro Império e seus constituintes partindo do conceito de soberania. A “recuperação” da conformação original do Sacro Império Romano-Germânico por parte de Osiander tem conseqüências deveras relevantes para o debate hodierno sobre a reformulação da política internacional.
A segunda constatação de Osiander diz respeito ao significado da “formulação canônica” de Westphalia. Para o autor, ela derivou de propaganda “antiuniversalista” por parte dos movimentos nacionalistas dos séculos XIX e XX (que, no dizer de Ernest Gellner, “engendraram as nações” - GELLNER, Ernest. Nações e nacionalismo. Lisboa, Portugal: Gradiva, 1993), posteriormente disseminada (entre outros, por Leo Gross, a cujos trabalhos muitos autores fizeram referência - OSIANDER, Andreas. Obra citada, p.264). Nesse sentido, o “mito de Westphalia” pode ser tido tanto como uma “ideologia do estatocentrismo” bem como, carecendo de verossimilhança histórica, corresponderia ao que Eric Hobsbawn caracterizou como “tradição inventada” (HOBSBAWN, Eric & RANGER, Terence. A Invenção das Tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997), colocada a serviço dos defensores do conceito de soberania (vale dizer, os próprios estados), em seu embate para se impor às comunidades políticas de outra conformação.
Retomemos a frase de Krasner que citei previamente, a que apartava Westphalia do desaparecimento de entidades políticas não-estatais. Cientes da argumentação dos parágrafos pregressos, poderíamos contrapor à esta visão de Krasner a idéia, fundada no argumento de Osiander, de que a “tradição inventada” de Westphalia foi elemento que contribuiu para a sobrepujação e eliminação de outros corpos políticos por parte dos estados soberanos. Para o autor, Westphalia trata-se, enfim, de uma arma ideológica na “revolução nacionalista” dos séculos XIX e XX, sendo, pois, inadequado como referencial para o estudo das Relações Internacionais.
Numa avaliação crítica, temos que Krasner questiona Westphalia, mas não a centralidade dos estados soberanos na política internacional. Trabalhando no marco da chamada “analogia doméstica” (modelando o plano internacional em contraposição às estruturas de autoridade política no plano interno), Krasner inevitavelmente deriva para a reificação do estatocentrismo calcado na soberania (e, adicionalmente, no suposto da anarquia sistêmica). Novamente, retomo Buzan & Little na sua análise dos sistemas internacionais de outrora:
“Essas unidades (cidades-estado, impérios, tribos nômades e impérios nômades) eram capazes de gerar uma estrutura interno/externo de uma forma que unidades PRÉ-INTERNACIONAIS não eram” (BUZAN, Barry & LITTLE, Richard, obra citada, p. 167)
Seguindo a formulação realista de que unidades “internacionais” são construídas exclusivamente segundo o modelo da “analogia doméstica”, Krasner constata que, na ausência de uma instância de autoridade superior à dos estados no plano internacional, a soberania westphaliana é útil na medida em que é um referencial, não um constrangimento, à ação dos estados. Uma vez que o ponto de partida da análise são estruturas dotadas do “monopólio do uso legítimo da força no plano interno”, Krasner torna outros corpos políticos não-estatais pouco relevantes como atores internacionais (ademais, como a quase totalidade dos autores da tradição Realista). Dessa forma, não obstante Krasner descarte a “formulação canônica” por esta não refletir adequadamente o “estado de coisas” no plano internacional pós-1648, sua crítica pára no plano formal. O conteúdo da “formulação canônica” é, por ele, reafirmado.
Quanto ao debate contemporâneo sobre “a erosão da soberania” e a redefinição da política internacional, para Krasner, este está condenado de antemão, uma vez que a soberania sempre teria sido erodida e, não obstante, persistiu, por ser útil aos estados. Uma vez assumindo, como o autor afirma em outra de suas obras, que “a soberania é uma hipocrisia organizada” (KRASNER, Stephen. SOVEREIGNTY: ORGANIZED HIPOCRISY. Princeton: Princeton University Press, 1999), estaríamos mais dotados para ensejar mais paz e estabilidade num sistema internacional que, a rigor, nunca teria mudado. Krasner não abre brechas para o surgimento de outros atores ou novos princípios ordenadores do sistema internacional, uma vez desconsiderando o papel do “mito de Westphalia” como instrumentos dos estados na sobrepujação de entidades não-estatais e, ainda, reafirmando a supremacia da vontade dos estados como elemento que dominou os acontecimentos no plano internacional. Sua abordagem do sistema internacional é, pois, estática e estatocêntrica.
Osiander, por seu turno, trabalha no marco de uma pluralidade de conceitos caracterizadores de comunidades políticas num mesmo sistema internacional (soberania e “landeshoheit”). Nesse sentido, sua análise muito têm a contribuir para a “redefinição da política internacional”, uma vez que, à semelhança de 1648, verifica-se hodiernamente a existência de entidades políticas (como a União Européia) diversas dos estados e que, por isso mesmo, são problematicamente inseridas em análises de cunho tradicional, estabelecendo uma relação deveras complexa com o conceito de soberania. O autor, pois, não reifica o estatocentrismo, admitindo a existência de outros atores, como o Sacro Império Romano-Germânico (e, numa analogia com o presente, a União Européia), atuando em pé de igualdade com os estados não obstante operarem com princípios distintos frente a seus constituintes, no plano interno. Sua análise do sistema internacional, em contraposição à de Krasner, pode ser dita dinâmica e não-estatocêntrica. Sua crítica do “mito westphaliano”, enfim, abrange os planos da forma E do conteúdo, indo além da mera constatação de que a “soberania é uma hipocrisia organizada” para, possivelmente, concluir que ela é uma “hipocrisia inventada”, posta a serviço do estatocentrismo e que teve papel importante na sobrepujação de entidades políticas não-estatais pelos estados.
BIBLIOGRAFIA
ARON, Raymond. Paz e Guerra Entre as Nações. Brasília: Editora da UnB, 1986.
BUZAN, Barry & LITTLE, Richard. International systems in world history. Remaking the study of international relations. Oxford, Oxford University Press, 2000.
CAMPBELL, David. “Political Prosaics, Transversal Politics, and the Anarchical World” in SHAPIRO, Michael & ALKER, Hayward. Challenging Boundaries: Global Flows, Territorial Identities. Minneapolis, University of Minnesota Press, 1996.
GELLNER, Ernest. Nações e nacionalismo. Lisboa, Portugal: Gradiva, 1993
HOBSBAWN, Eric & RANGER, Terence. A Invenção das Tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
KEOHANE, Robert O. “Theory of World Politics: Structural Realism and Beyond”. In: KEOHANE, Robert O. (ed.). Neorealism and Its Critics. New York: Columbia University Press, 1986.
KRASNER, Stephen. Compromising Westphalia. International Security 20:3, 1995.
KRASNER, Stephen. Sovereignty: Organized Hypocrisy. Princeton: Princeton University Press, 1999.
LINKLATER, Andrew. The Transformation of Political Community: Ethical Foundations of the Post-Westphalian Era. Columbia, University of South Carolina Press, 1998.
NYE JR., Joseph S. & KEOHANE, Robert O. “Introduction” in NYE JR., Joseph S. & DONAHUE, John D. (editores). Governance in a globalizing world. Washington: Brookings Institution Press, 2000.
OSIANDER, Andreas. Sovereignty, international relations and the Westphalian myth. International Organization 55:2, 2001.
WATSON, Adam. The evolution of international society. Routledge, 1992.
WENDT, Alexander. Social Theory of International Politics. Cambridge, Cambridge University Press, 1999.