"Eu não tenho condições nem vontade de dizer o que quer que seja sobre mim ou, mesmo, sobre meu futuro, e, por meio deste, pela última vez vos conclamo a tomar conhecimento deste fato, seus cuzões."
["Ich bin nicht in der Lage noch willens irgendetwas ueber mich oder gar meine Zukunft zu sagen, und ich fordere euch hiermit zum letzten Mal auf, diese Tatsache zur Kenntniss zu nehmen, ihr Arschloecher."]
Entre nós, Peter Handke é mais conhecido como parceiro cinematográfico de Wim Wenders: "O medo do goleiro diante do pênalti" [Die Angst des Tormanns beim Elfmeter], "Movimento Errado" [Falsche Bewegung] e "Asas do Desejo" [Der Himmel über Berlin].
Pouca gente sabe que o próprio Handke filmou duas de suas narrativas: "A mulher canhota" [Die linkshändige Frau] e "A ausência" [Die Abwesenheit].
De Handke, no auge do boom translatício (1986/87), eu traduzi, para a Editora Brasiliense, "O medo do goleiro diante do pênalti" e "Bem-Aventurada Infelicidade" [Wunschloses Unglück], as duas narrativas enfeixadas num só volume. Foi um suor convencer o editor a usar na capa a palavra “narrativas”. Pensando em inglês, ele teria sapecado “novelas”.
É preciso dizer que, para nós, Handke foi trazido sem respeito à cronologia de sua obra, com os títulos sendo lançados a esmo, sem qualquer parâmetro crítico. Apenas mais um pós-moderno, poderia ter dito algum resenhista no calor da hora.
Só não podiam faltar, nas edições brasileiras dos autores alemães traduzidos, referências ao nazismo, aos horrores da guerra, ao holocausto e etc. Se possível, uma suástica na capa. Incluir o meu posfácio foi igualmente uma luta.
Os escritores de orelhas e contracapas, e os há, quase nunca sabem muito bem o que fazem. Por pouco, a contracapa de "O medo do goleiro diante do pênalti" não me sai com um Handke alemão, lutando ferozmente contra o nazismo e contra os horrores da guerra. A tempo, consegui alertar o escritor de contracapa (não foi tão simples, pois ele alardeava larga experiência no ramo): Handke é austríaco e nunca fez do nazismo ou dos horrores da guerra o seu assunto. Apenas acusava os autores do pós-guerra, os pais da pátria, os campeões da causa alemã - e isso lhes rendeu dois prêmios da Academia Sueca - de combaterem o nazismo e os horrores da guerra com a mesma linguagem que os havia produzido.
Handke foi menino prodígio. Suas peças-faladas foram êxitos incontestáveis. Sua importância para a geração de 68 está longe de poder ser devidamente equacionada.
Entre nós, pouca gente sabe que Handke foi um dos maiores nomes do teatro alemão do último quartel do século XX.
"Insulto ao Público" [Publikumsbeschimpfung] ficou cinco anos em cartaz num teatro em Frankfurt. Até que Handke proibiu sua encenação por tempo indeterminado, considerando superado o efeito de choque que fizera o seu êxito. E para evitar, suponho, sua agatachristianização. Só voltou a liberá-la nos anos 90.
Vi "Insulto ao Público", na encenação de um grupo amador de Porto Alegre, em 1973. Foi no Teatro São Pedro, em São Paulo, com o apoio do Instituto Goethe. Eu não sabia quem era Handke. E o Brasil já passava a receber um escândalo europeu daqueles anos revolucionários, sem saber que ele era isso. Ter chegado tão rapidamente ao país é um feito que fala em favor de seu autor.
Vi "Insulto ao Público" mais duas vezes, na Berlim pós-queda-do-muro, em 1993, nas encenações, diametralmente opostas, de um grupo de Berlim e de um grupo polonês.
Um artigo comemorativo dos trinta anos de Handke, publicado na internet por Celeste Aída Galeão (tese sobre "Die Hornissen", USP, início dos anos 70), ignora as minhas traduções de "O medo do goleiro diante do pênalti" e de "Bem-Aventurada Infelicidade". A autora ficou livre de ter de levar em conta a minha releitura de Handke, para o Brasil, no posfácio: "O mundo é velho, não é verdade, Sr. Loser?" Quinze anos se passaram e, lamentavelmente, é esse o texto mais completo e crítico já escrito sobre Peter Handke entre nós. O boom translatício foi bom enquanto durou. Hoje, a nossa defasagem em relação à literatura alemã, é só conferir, aumentou de 20 para 30 anos.
Sobre "O medo do goleiro diante do pênalti", sobre esse título que já era o título do filme que o Instituto Goethe fazia circular pelos bolsões cult da nossa intelectualidade, alguns gostariam que ele fosse diferente. Gostaria de brindá-los com um excesso: "O cagaço do guarda-redes no instante em que se vai bater o tiro de onze jardas".
Handke ficou sendo, para nós, um autor de narrativas meio esquisitas. Nós, os tradutores, poderíamos ser culpados por isso, em vários sentidos. Uma vez, na Brasiliense, alguém lamentava ser Handke ilegível para brasileiros. Alguém sugeriu ser demasiado Europa Central para o nosso paladar tropicaliente. Quem sabe ainda me refaça, em futuro próximo, do arrevezamento estilístico que me foi atribuído na época do lançamento. Tinha e não tinha razão o único resenhista do livro quando do lançamento: Erwin Theodor Rosenthal. Ainda volto ao tema.
Pouca gente sabe que Handke escreveu poemas em prosa, contos curtos, ensaios que ainda continuam atuais. Que contribuiu com a radiodifusão austríaca antes de se tornar uma celebridade. Peitou o Grupo 47, apontando para o equívoco de sua opção pelo realismo. Relatar realisticamente os horrores da guerra, é preciso que se diga, também faria prolongar os "horrores do pós-guerra", para usar a expressão feliz de Hubert Fichte. A instituição literária achou ótimo. Heinrich Böll foi prêmio Nobel de Literatura em 1972. Günther Grass foi laureado em 1989.
Só em 1993, estando em Berlim, pude compreender a razão pela qual, subitamente, tanto Wenders como Handke passaram a ser malvistos, personas non gratas para a inteligência brasileira. Haviam pecado contra a mídia internacional a serviço da globalização. Haviam desafiado, mais uma vez, o stablishment. Tudo como nos velhos tempos. Ou, se quiserem, como no velho oeste. A mídia divide o mundo em bandidos e mocinhos. A nova intelectualidade francesa saliva fartamente. E a periferia engole e balança o rabicó. Ter denunciado, durante a Guerra da Bósnia, a "demonização dos sérvios", pode ter custado a Peter Handke a perda da própria paciência. O menino prodígio dos anos 60, que não perdoava a burrice da esquerda universitária, fez por não merecer o lugar que lhe caberia na história da literatura alemã do pós-guerra e das guerras localizadas que passaram a proliferar pelo mundo. A frase que encabeça este artigo é Handke em seu estado mais característico: indignação pura.
Enquanto isso, um bando de cuzões continua a fazer sermões pios contra os horrores da guerra, contra o nazismo e contra o genocídio, e a dormir (serenos?) sobre todos os horrores que pairam sobre uma cultura administrada em seus mínimos escaninhos.
É preciso rever, com urgência, a história da literatura alemã, senhores germanistas pelo mundo afora. Urge reler Peter Handke, para não nos esquecermos de que a indignação é hoje artigo em falta. E terá de ser reconquistada.
Em "Insulto ao Público", Handke dava o seu grito de liberdade, propondo, aos fanáticos por conteúdos, a consciência aguda e revolucionária de que a linguagem é sobretudo jogo, que não se deve ficar boiando a esmo, à superfície das palavras e das frases.
Handke propõe um mergulho em profundidade. Contra a crença no realismo da representação, usava a imagem do pássaro que bica uma natureza-morta. Em "Insulto ao Público", quatro atores conversam longamente com os espectadores sobre tudo o que diz respeito à instituição do teatro, declarando ser a platéia o acontecimento da noite: "Vocês são impagáveis." Nessa conversa com o público, perpassam todas as grandes teorias do teatro. Isso toma dois terços do texto, quando uma frase introduz a sessão de xingamento: "Mas, antes disso, vocês serão insultados. Porque insultar é também uma maneira de nos comunicarmos."
Como diz Celeste Aída Galeão, em seu desinformado artigo na internet, Handke é o autor do pós-guerra que mais traduções mereceu no Brasil. Mas, como ela e com ela, o público brasileiro ficou sem saber quem é mesmo esse tal de Peter Handke.
Handke continua atual. Um dia será preciso dizer isso com bastante firmeza. Por enquanto, os adeptos do realismo ainda podem prosseguir em seu sono de mais de um século. Mas a realidade jamais os perdoará por terem-na reduzido a um único modelo de interpretação: o modelo realista.
Qualquer semelhança com o "pensamento único" destes nossos tempos globalizantes, não é, nunca foi apenas uma coincidência. Alguns quiseram que assim fosse.