Usina de Letras
Usina de Letras
100 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62352 )

Cartas ( 21334)

Contos (13268)

Cordel (10451)

Cronicas (22544)

Discursos (3239)

Ensaios - (10412)

Erótico (13577)

Frases (50732)

Humor (20059)

Infantil (5476)

Infanto Juvenil (4795)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140853)

Redação (3316)

Roteiro de Filme ou Novela (1064)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1961)

Textos Religiosos/Sermões (6224)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
cronicas-->brilhanta-a senhora do velorio -- 01/10/2000 - 09:00 (ida lehner de almeida ramos) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
B r i l h a n t a


Tinha uma memória prodigiosa. Tanto que, decorridos muitos anos após seu passamento, alguns raros cidadãos de Jundiaí ainda prestam à lendária figura louváveis comentários a respeito dessa virtude. Vestia-se só de negro, num traje comprido e em enfeites, como se trajasse um símbolo da morte, sua fiel amiga de todo o sempre.
Há cerca de um ano, talvez, prometi a amigos relatar em conto a origem e a vida dessa mulher, de costumes verdadeiramente pitorescos. Ia a todos os enterros, conhecesse ou não os falecidos, e não faltava às missas de sétimo dia encomendadas por intenção de suas respectivas almas. Ao colher os demais dados sobre ela, tais foram os empecilhos, que me senti verdadeiramente frustrada e sem demora desisti do conto, resolvida a resgatar apenas em crónica a vida de Brilhanta.
O fato ensinou-me que o que me falta é vocação para pesquisadora biográfica de quem quer que seja, embora tenha a meu favor, hoje, as deficiências de locomoção que me impossibilitam trabalhos dessa ordem.
Mais de cem anos teria ela hoje e os parquíssimos informes obtidos aqui e ali, sòmente me afiguram uma vida envolta em suaves e providenciais fumaças de confusão. Posso apenas imaginar que ela deveria ter sido delicada menina, depois uma adolescente cheia de sonhos, tal como toda adolescente. Em claróes rápidos como o acender de um isqueiro, pequenas e remotas lembranças, de como.ela realmente foi, de lugares que percorreu quando ainda se movia com os pés alados da infància, só consegue calcular a precáriia imaginação.
Vejo-a então a caminho de algum evento, invariavelmente pela rua do Rosário, a segunda via em importància da cidade, que contava, à época, menos de cinquenta mil habitantes. Desconheço qual seja seu rumo. Seria o rinque de patinação, do mesmo nome da via pública, então no auge da moda, ou seria a sessão vesperal do cine Politeama? O fato é que percebo seu corpo fremir no aguardo de um evento que, sei, nunca acontecerá.
Seria o encontro com algum namorado? Será que ela, jamais, teve um namorado? Acredito que nunca entrou num rinque de patinação, nem ao menos assistiu a alguma fita de cinema. É que a memória me leva até o povo que sapeava as entradas dos locais de diversão, no meu próprio tempo. Entrevejo-a no seu, uma garota no meio de um aglomerado de pessoas, garota de alta modéstia e de baixas pretensões.
Informaram-me que, quando de mais idade, ela vivia em companhia da irmã.. Qual era seu nome? O informante não soube responder. Apenas que faziam juntas tricó destinado a recém-nascidos, sendo fácil visualizar o produto do artesanato de ambas: - sapatinhos, gorrinhos, luvinhas, .casaquinhos e mais objetos terminados em dimi nutivo. O melhor da remuneração estava nos elogios da freguesia, senhoras prenhes da melhor sociedade.
. Nessa fase, suponho, já poderiam ter alguns gastos, alguma extravagància em seu cotidiano. Salvo pequenas rusgas, cabíveis entre duas ir mãs solteironas, que sabiam inapelável o fato de terem de residir juntas até o fim, pareciam ser uma pela outra,.boas amigas, enfim. Deviam possuir um rádio. Antes do advento da televisão, todo brasileiro que se prezasse tinha um aparelho radiofónico. Quem sabe, a par com as novelas ( ah, o Direito de Nascer!), deleitavam-lhes os ouvidos sambas, choros e modinhas da nossa música popu lar e as cançonetas napolitanas da origem de seus pais.
Residiam em casa modesta, quase dependurada em barranco, ali no início da rua do Retiro, quase no largo de Santa Cruz. A rotina das duas devia ser a de duas solteironas,- o café juntas, pela manhã, depois a visita obrigatória à venda, que expunha os seus artigos, em sacas, às portas de madeira, muito altas.
A mais velha, naturalmente, deveria enfrentar o fogão, objeto de prazer diário. Adoravam o aroma dos temperos que envolvia toda a casa, despertando nelas a vontade antecipada de comer. Aí almoçavam em silêncio, em sinal de respeito, que era o que a mãe lhes ensinara. Hora sagrada, dizia ela.
A tarde era reservada para o tricó, depois vinha o jantar e eis terminado o dia, cujo ponto final era dado na reza, a que assistiam, celebrada na matriz, na hora do àngelus. Ouviam então o sonido dos sinos, anunciando a bênção e o término das orações. E é só o que. posso comentar a respeito.
De como Brilhanta se tornou a enciclopédia viva das datas de luto e morte e das missas de sétimo dia, de conhecidos e desconhecidos, é um mistério que ninguém soube decifrar. Não sei se foi Deus quem lhe outorgou essa faculdade que serviu para notabilizá-la em nossa cidade. Verdade que, decorridos vários anos de um acontecimento pessoal que muito me envolveu, encontrei-me uma vez com Brilhanta e lhe indaguei sobre a data de falecimento de minha mãe. Sem a mínima hesitação, respondeu-me: 10 de junho de 1948.
Acertou na mosca.


Ida Lehner de Almeida Ramos

Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui