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cronicas-->O DILEMA DA PALAVRA -- 23/08/2002 - 04:24 (Deise Gê) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Oi, pessoal! Este é o meu texto preferido. É o meu cartão de apresentação. Ele foi publicado ontem, dia 22/8, no jornal "A TARDE", no Caderno 2, na seção "Ultraleve". É importante que se realce que "A Tarde" é o maior jornal em circulação do Norte-Nordeste do Brasil.Aí vai:


Ultraleve
O dilema da palavra


Deise Gê*

Sou uma operária da palavra. Incansáveis e belas foram as jornadas de trabalho em que me debrucei sobre folhas em branco para escrever histórias. De acordo com a finalidade do meu texto, a minha palavra teve usos diversos. Já foi parafuso prendendo orações coordenadas singelas, já foi lantejoula costurando rimas ricas em versos de paz, já foi comprimido aliviando certas dores de amores, já foi bicicleta, foguete, passarinho, já foi oração, já foi grito de guerra e já foi silêncio.

Um dia, a cabeça me pediu um tempo, depois que a consciência lhe pediu arrego. Parei para pensar no que teria sido feito das minhas frases de efeito mais queridas, das minhas metáforas de estimação e dos epílogos impressionantes que eu escrevi sobre a metamorfose das borboletas.

A não ser pela memória RAM do meu computador, eu não teria como resgatar do passado as minhas impressões de mundo. Mentem os que dizem que os pensamentos vão e as palavras ficam. Mentira, não ficam, exceto em livros empoeirados em ninhos de ácaros debochados. Não fica palavra sobre palavra porque palavras o tempo, o vento e o mofo levam.

Falta à palavra um senso industrial, uma conotação empresarial, um espírito comercial, uma campanha de marketing, ou talvez uma marca, um logotipo, um outdoor ou, sei lá, algo mirabolante que a transforme num bem durável. É preciso que haja oficinas, laboratórios e fábricas de palavras, para que se escute falar que acaba de chegar ao mercado a última palavra em palavras. Para que se possa dizer que esta ou aquela frase é um produto revolucionário.

Há quanto tempo as palavras não fazem revoluções?

Eu quero que a minha palavra seja vendida em cores cítricas, do azul-neon ao verde-alface e que seja lançada mês que vem nas versões índigo e fumê. Eu quero que a minha palavra constitua reserva de mercado, seja importada e exportada para os tigres asiáticos, seja estampada nas camisas do chicago bulls, seja aplaudida de pé nos comícios do fim do mundo. Quero que ela seja feita com fibra ótica e revestida de partículas de policarbonato de alta resistência.

Quero que a minha palavra ultrapasse a barreira do som e seja lançada da barreira do inferno, que seja construída com tecnologia de ponta, que seja blindada e biodegradável, que não contenha agrotóxicos, que não seja transgênica, que tenha um genoma decente, que seja ecologicamente correta, que seja ética e, ufa, que não acabe em pizza.

Quero que ela seja transparente nas pontas e tenha um miolo de acrílico com flores-do-campo. Que dê choque se for lida com os olhos molhados. Que seja, ao mesmo tempo, sofisticada e básica, adaptando-se a qualquer ambiente. Que seja barata somente nas liquidações de fim de estação. Que esteja protegida pelo código do consumidor, que não tenha código de burras, que voe a mais de 800 km/h, que seja compatível com racionamentos de energia e que resista aos apagões culturais com sua luz de emergência.

Quero que a minha palavra possa ser usada nas formas incandescente, fluorescente e efervescente. Que borbulhe quando for colocada na banheira de hidromassagem, que embriague quando for ingerida sem champanhe. Que possa ser bebida ou comida, injetada ou deglutida. Que entre na veia sem passar pelo fígado.

Que mereça o apoio dos sindicatos, que seja lema de passeatas, que suscite parcerias milionárias, que não seja económica na produção de emoções, que tenha sua excelência reconhecida internacionalmente nos museus de arte moderna. Que moa, pique e triture os preconceitos e reduza os pensamentos a purpurina pura. Que seja um êxito de vendas sem precedentes na história.

Quero que a minha palavra seja campeã de audiência, elogiada pelo design aerodinàmico que combina letras com precisão cirúrgica, que tenha leveza na forma e força no conteúdo, que possa ser tomada em gotas pelas crianças e enfeite salas e cozinhas com a mesma eficiência. Que não engorde e que mantenha os cérebros sarados para a posteridade. Que seja exposta em feiras, em bienais e em carnavais, nas categorias luxo e originalidade, que seja tremendamente anabolizante e inche os músculos da imaginação com sopa de letrinhas aminoácidas.

Quero que a minha palavra seja fashion, que arrase nas passarelas e nas praças de alimentação dos shoppings urbanos, que ilumine os sorrisos lindos das top models, que renda medalhas de ouro, prêmios nobéis, subidas ao pódio e hino nacional. Que vença concursos, que gere empregos, que dê suporte às telecomunicações e que ajude a curar o càncer. Quero que a minha palavra seja a musa do verão, a miss Brasil e a rainha da bateria. Que atravesse o Atlàntico, que me leve ao Afeganistão, que inspire o meu projeto de customização, que possa ser usada com a minha jaqueta jeans na cerimónia de entrega do Oscar.

Quero que a minha palavra me transforme numa pessoa importante, num mito, num mago, que me dê prestígio, que assegure a minha liberdade e me faça pisar tapetes de veludo vermelho. Quero que a minha palavra me leve ao papa, à Copa e às Olimpíadas e, depois, me traga de volta para o meu jardim. Não não não, eu não quero criar confusão! Eu só quero que a minha palavra faça uma revolução.

* Deise Gê é pedagoga e escritora premiada pela Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro e pela Academia Brasileira de Letras.



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