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Contos-->TANTA ADOLESCÊNCIA E NENHUM JAMES DEAN -- 20/02/2004 - 23:41 (PAULO FONTENELLE DE ARAUJO) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

            – Nós não podemos suportar mais os grilhões que escravizam o povo, Sr. Presidente. O dorso dos filhos dessa terra foi por demais açoitado.

            – Essa foi boa, você tirou essa da novela... Como é o nome? Tinha uma escrava branca no meio.

            – Deixa eu falar. Nosso povo está morrendo, debaixo do tacão dos torturadores. Nós sabemos que existe tortura neste país, Sr. Presidente. Existe o pau-de-arara.

             Os três adolescentes, Célio, Túlio e André, nunca puderam explicar o sentido daquela empreitada. Enviar uma mensagem gravada ao presidente do Brasil.

             Aconteceu em um domingo chuvoso, quando ouviam música no quarto de Célio, filho único de um casal de advogados que não estavam em casa. O menino desatou a falar de sua aparelhagem de som: volume,  decibéis, alcance, distribuição do som entre as caixas acústicas. Quando Túlio traduziu a música que tocava.

             – Escutem o refrão. O cara diz “the life is a hole”. A vida é um buraco.

             Os meninos se calaram. Notaram a verdade da tradução.  A vida realmente é o maior buraco do mundo. “A life is a hole. “Hole” bem grande, uma verdadeira culatra.

            No momento seguinte, os três, preenchidos de boas intenções cívicas, usavam a aparelhagem de som para verbalizar, através de uma fita cassete, suas impressões sobre o governo do General Figueiredo.

             – É um representante da ditadura imposta ao Brasil desde 1964.

            A ditadura da qual falavam parecia muito distante das rotinas do colégio que estudavam, contudo sabiam, o país vivia sob uma ditadura em 1979.

             – Precisamos sair dessa culatra – afirmou André.

             Combinaram: a fita-bomba seria entregue ao próprio chefe da nação. Ele escutaria a verdade.

             – Deixa o microfone comigo. A miséria, Sr. Presidente, se alastra pelos campos, pelas cidades, e o senhor vive de costas para o país dentro de um gabinete suntuoso, nos labirintos do Palácio do Planalto.

            – Sr. Presidente. A consciência do povo implodirá o sistema que o senhor chefia. Uma bomba que... Desliga aí que eu perdi a sequência – disse Célio.

            – Uma bomba que explodisse e levasse para os grotões do inferno a canalha instalada nos quartéis – completou André.

            – Interessante, mas o que é um grotão?

            – Deixa eu ver no dicionário. Significa vale profundo.

            – Isto não combina com inferno.

            – Ah... agora já foi.

            –Então sou eu, liga aí. Sr. Presidente, o povo unido jamais será vencido...

            – Não, cara. Essa frase todo mundo usa. Parece refrão de escola de samba. Fale outra coisa... Quer ver: “O povo vai eliminar a aristocracia militar, vai lavar a sua humilhação no sangue, Sr. Presidente. As colunas de indigentes subirão a rampa do poder e comerão os brioches da liberdade e da justiça”.

            – Nossa! Que legal!

            – Brioche e aristocracia... O Túlio tirou do livro sobre a Revolução Francesa, não foi?

            – Não interessa a origem... Analise o contexto.

            – Nossa! Você tá demais!

            Passaram duas horas gravando uma fita C-120. Não perceberam. O protesto foi mais duelo de retórica do que uma crítica ao sistema que, de fato, não conheciam.

            Em 1979, os três locutores conheciam os programas esportivos da tevê, a música das discotecas, a pizza de quatro queijos, o fliperama curto-circuito na cabeça, o impacto de slogans de marca de tênis e bordões da época que prometiam muito. Um dia as meninas choveriam nas hortas de meninos adolescentes.

             Terminaram os discursos na anistia aos presos políticos.

             – Meu pai disse que é um movimento suprapartidário...

            – Pra mim é nome de bebida: suco de laranja, anistia, pinga e groselha. 

             Mas sobrou o problema da remessa do “pacote” ao presidente do Brasil. Um artefato de natureza subversiva.

            E se as vozes fossem analisadas pelo Serviço Nacional de Informações? E se o SNI fizesse a análise do material sonoro e criasse a matriz de probabilidades, que determinasse a região do país, a classe social dos manifestantes, a idade dos timbres instalados na fita cassete?           

            “Moram na cidade de São Paulo, idade mental de 17 anos. São moleques comunistas de classe média. O som é de boa qualidade, provavelmente o aparelho é desta marca japonesa. Investiguem as casas de som da cidade e procurem saber quem comprou citado conjunto estereofônico nos últimos seis meses. Esses fedelhos não perdem por esperar. Vamos enquadrá-los na Lei de Segurança Nacional.” 

            Enquadrar era termo mais perigoso daquele ano de 1979. Lembrava achar a hipotenusa que se – e somente se – fosse um ser vivo, teria a feição medonha, da medusa gerada nos infernos matemáticos.

             Os três tremeram.

             – Como vamos nos livrar desse pepino?

            –Eu não sei, acho que é nossa obrigação...

            – Deixa eu falar. Um aviso! Liga aí! Sr. Presidente, caso o senhor queira nos torturar, saiba bem, os nossos corações possuem a fibra dos grandes mártires e não descansaremos enquanto...

            – Pode parar. A fita acabou quando você falou em fibra. 

             André encarregou-se do envio. Guardou o objeto durante alguns dias. Depois achou melhor apagar o petardo. Gravou um programa de sambas antigos em cima dos “discursos”. 

            Tinha aquele chorinho, “A vida é um buraco”, do Pixinguinha.

 

 

e-mail: phcfontenelle@gmail.com

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