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Contos-->RATOON -- 15/12/2000 - 00:15 (João Ferreira) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
RATOON

João Ferreira/Jan Muá


A rua não tem lá esse movimento. Mas tem tradições e é importante nos planos da comunidade local. Melhor seria uma rua moderna, atualizada, com carros importados e madames jovens vestidas a rigor. Mas a rua está neste estado mesmo. O antigo meio-fio desgastado, o asfalto irregular. A criançada perdeu o entusiasmo dos jogos locais. A iluminação é deficiente. Durante o dia, o trânsito está moribundo. O Detran não destaca mais seus oficiais para fiscalização do tráfego. Serviço público não há. Tanta acomodação gerou uma situação estranha, sem vida, sem algazarra.
O que ainda lhe dá alguma notoriedade é o fato de a rua ter de quando em quando alguns eventos de crônica abrilhantada pela presença de dois personagens famosos que fariam as delícias do rarará de Macaco Simão.
No fundo, a pouca vida da rua se resume aos despiques entre apaniguados liderados por Ratoon e Ofídia. Há luta, fofoca, ranzanzinice, alguns ódios e tudo por uma questão de poder na gestão do condomínio. Às vezes a coisa fica preta. Os moradores aderiram a esta briga de bairro com o mesmo ânimo com que os guerreiros medievais se entregavam à conquista de um castelo. E, imaginando o futuro, pelo rumo que as coisas estão tomando, o prognóstico menos pessimista aponta na direcão de outra guerra de cem anos. Vejamos em detalhe essa guerra espelhada na ação dos líderes.
De um lado, fica Ratoon, vulgarmente chamado pelo nome de Polemifon. Pessoa de muita categoria, conhecidíssima na região, desde o tempo do faroeste americano, quando a valentia era avaliada pela rapidez no gatilho. Isso valeu-lhe sair da obscuridade muito cedo. Sempre foi notado pela garra e também pelo verbo fluente. Conflito para ele era para resolver na sibilina armadilha verbal ou na tocaia.
Do outro lado estava Ofídia, inimiga figadal de Polemifon. Vizinha de paredes, casa ao lado. Dona de terras e de lavras, garbosa em seu traje, nutria a vaidade pessoal de ser "society" no quadro de uma casta social "démodé". O fato colocava-a em contraste direto com seu rival que tinha habilidades públicas para articular as demandas políticas do povão e era pessoa de costumes simples. Dotada de semblante aparentemente conciliador, Ofídia era astuciosa, movia guerra aberta contra quem não aceitasse sua liderança no bairro e odiava os simpatizantes de Polemifon.
Por este proceder é que os campos foram se estremando. Desta feita, a guerrilha local inteiramente personalizada começava a pôr à prova o talento político dos dois adversários da rua.
Ofídia possuía uma filosofia própria para reger seus comportamentos. Polemifon, por sua vez, tornou-se um habilidoso orquestrador da opinião pública, treinado na arte de reverter situações a seu favor. Em seus olhos luzentes, ardia a volúpia de confundir Ofídia e sua gang.
A adversária, fogosa e dominadora, deitava e rebolava para conter o ódio que sentia quando Polemifon contabilizava seus sucessivos triunfos junto aos moradores da rua. Faltava-lhe porém prática política para equilibrar as ações.
Entre os dois pólos, a vida da rua passava pelas decisões das duas lideranças. Os moradores estavam divididos. A favor de Polemifon pela sua argumentação consistente, manifestava-se a meninada envolvida em politica. A favor de Ofídia, os moradores mais reacionários e, de carona, os praticantes do fisiologismo corrupto e político. A líder conservadora não sabia disfarçar o desconforto que sentia diante de seu advrsário. Mas no meio destra briga dual, o que tornava perplexa a imprensa e a própria opinião pública, era a indiferença dos moradores.
Que uma rua é uma rua, eles sabiam. Não desconheciam que uma rua deveria ser, antes de tudo, uma manifestação de vida. E isso porque era aqui que as pessoas se encontravam , era aqui que elas circulavam, tentavam viver e sobreviver. O que os intrigava era uma rua de classe média e sem maiores preocupações financeiras ostentar este rosto defunto.
Por pesquisas encomendadas por um poder local, antes mesmo da era Bresser-Pereira , foi verificado como raridade conseguir ver de uma só vez, no local, todos os moradores. E isso apesar de serem frequentes as reuniões, as idas e vindas do e para o trabalho, o que mostrava que a maior parte deles cultivava um absenteísmo irresponsável, em visível acomodação.
Em vista disso, a opinião pública sempre se debruçava sobre a mesma pergunta: afinal, quem detinha o controle das atividades dos moradores? A resposta era quase um debate e mereceria uma bolsa de apostas. Só que na realidade a resposta era lhana e clara: Entre Polemifon, Ofídia e assessores políticos, cada um detinha seu quinhão.
O mais escandaloso era que os patrões nem sequer sabiam em que se ocupavam seus trabalhadores. A indiferença desses profissionais do trabalho era pública e havia gerado um fato político. Notório para outros bairros, exatamente por tratar-se de uma rua pública, com chefes de família e trabalhadores autônomos, o fato gerou um perfil da rua como se de terra desolada se tratasse.
Ofídia, carioca da gema, sabia que politicamente só tinha uma saída: ganhar o controle da situação.
Estava ciente que Polemifon tinha a habilidade de mobilizar com facilidade os habitantes da rua. O apelido de "Ratoon" mostrava que, além de esperteza e habilidade natural, o líder manipulava o grupo jovem do tamborim, que puxava vitórias estrondosas na disputa territorial a favor da causa de seu chefe.
A batalha que agora se desenhava era pelo controle da rua. Ganharia quem conseguisse junto aos moradores a adesão política de decidir se a vida da rua devia ser reorganizada, reestruturada ou não. Mais do que isso. Para Ofídia interessava manter as posições que conquistara junto ao síndico, à margem do voto do conselho dos moradores. Mais do que tudo lutaria por conservar as antigas posições territoriais para sua gang nas casas da rua. Polemifon, na tranquilidade do fumo de seu charuto, apostava que o projeto de Ofídia era fogo de palha. Na verdade, já tinha adiantadas negociações junto à associação legalizada dos moradores para obter um alvará de transferência da gang para outro local.
A luta entrava agora no inferno zodiacal. Os dois arquiinimigos esforçavam-se por manter suas posições. Só que as forças eram desiguais.
O currículo de Ofídia não tinha nenhum fato brilhante que lhe desse um feedback estratégico para poder ousar uma luta aberta com Polemifon. Este, por sua vez, tinha larga folha de serviços e glórias de êxitos estratégicos.
Assim, um dia, na sua jogada imprevisível, Polemifon armou uma cartada decisiva para colocar sua adversária fora de combate. Uma cartada destinada a destruí-la junto à opinião pública.
Aconteceu. Na hora em que Ofídia passava toda se saracoteando na rua, frente à janela de Polemifon, este retraiu-se para dentro, foi à despensa e pegou uma batata. Segurando-a na mão, debruçou-se no parapeito da janela olhando disfarçamente o movimento da rua. Quando Ofídia já se encontrava a distância adequada, arremessou, com pontaria certeira, contra Ofídia a batata que tinha na mão. Ao ser atingida, Ofídia balançou. Olhou em todas as direções, baixou o rosto de raiva, enquanto Ratoon discretamente, já se havia retraído novamente para dentro da sala. Esperando capciosamente o desenvolvimento da cena, Polemifon ouviu um xingamento e pareceu-lhe ser de Ofídia. Voltou então à janela, como simples observador. Naquele momento, uma senhora, surgia na esquina da rua. Ofidia, que se voltara para trás, ainda meio tonta e julgando ter descoberto sua agressora, apanhou do chão a batata e, num ato de vingança, arremessou-a na direção da senhora transeunte. Por sua vez, um cavalheiro que acabara de assomar à esquina da rua, ao ver a senhora ser agredida, apanha uma pedra do chão e acerta a testa de outro transeunte que passava. Numa batalha de batatas, paus e pedras, a rua havia-se transformado numa autêntica praça de guerra, com Ofídia inteiramente envolvida no prélio. Ela gritava, xingava e atirava pedras. Era como se estivesse lutando contra o mundo todo. Como ela, todos gritavam e se agrediam, sendo que, em poucos minutos, a confusão era geral. No parapeito da janela, com toda a ironia de Machado de Assis, Polemifon observava o conflito já de proporcões gigantescas. De sorrisinho malandro olhava na direção de Ofídia que ainda brigava, inteiramente descontrolada, em luta corporal, xingando a tudo e todos. Só de olhar sentia um prazerzinho como espectador privilegiado, e via-se como um pequeno diabo em clímax extático ao ver sua adversária se desgastando à toa.
Na cabeça de Polemifon surgia um argumento definitivo. Iria para o conselho de moradores defender a ideia de que Ofídia e sua gang não tinham mais moral para permanecerem na rua onde moravam outras pessoas da maior respeitabilidade.
Entendia que aquela famosa rua não tinha jeito. Segundo testemunhas, antigamente ainda se sentia a juventude e as brigas tinham um ar de guerra como se fosse entre gente viva. Mas agora... a velharada lutava por nada. Ou melhor, a rua era apenas uma forma espetacular de ranzinice. Mostrava que a velhice tomara conta de todos. Faltava um projeto jovem e competente para fazer voltar a vida à rua. Mas, onde estava a juventude? Onde estavam os projetos? A situação era caótica.
Ali, já ninguém buscava sequer um sentido existencial. A rua não tinha mais o segredo de sua razão de existir. Tudo se perdera. Ninguém ensinava aos novos o saber acumulado nos livros e na experiência para eles próprios trazerem a vida de volta. Ninguém se preocupava em trocar experiências. E pior do que tudo, o síndico não buscava soluções com seu conselho. No desbarato da comunidade, era gritante a caricatura deste pequeno Brasil “démodé”, preso emocionalmente ao “antes quebrar do que torcer”.
Em outros bairros similares, havia vestígios de vida, o que contrastava com a situação desta rua do Planalto. Nesses bairros, os moradores acompanhavam a vida das crianças e dos jovens. Havia disputa entre a meninada. Mas isto em nada impedia o desenvolvimento natural das relações humanas. As mães orientavam. Havia projetos desportivos e culturais, atividades organizadas. Tudo funcionava. As quadras de esporte, as piscinas, as academias de ginástica, os cursos de inglês, e, o síndico, aparecia como supervisor das atividades do bairro.
Na rua de Polemifon e Ofídia, não. O público sabia que a mesmice dominava havia muitos anos. As pessoas não tinham mais bandeira. Falavam sempre do mesmo, de seus ódios e diferenças. Não se integravam na vida maior da comunidade. Não falavam nunca de amor. Frustradas, desprezavam a vida, refugiavam-se no espelho e passavam o tempo contemplando o próprio umbigo, sem merecerem o salário que o contribuinte lhes pagava.
Polemifon, que acompanhava a histeria política da rua, achava que só havia uma solução. Segundo ele, a solução teria que ser tirada da moral social pública. Sustentava que só o conselho local poderia acabar com a situação irregular. Embora achasse que o caso era para uma condenação às galés, Polemifon conteve-se e escreveu uma carta ao síndico, propondo uma reunião extraordinária para tratar do caso.
O Síndico, que acompanhava preocupado a inércia do bairro achou que a idéia era uma opção conveniente e convocou o conselho. Aberta a sesão, concedeu a palavra ao antigo pistoleiro do faroeste. Prestigiado, Ratoon, sem citar Bóris Casoy, demonstrou perante os conselheiros e moradores do bairro que o que se passava naquela rua era uma vergonha. Era mesmo e por isso havia que mudar. E numa estratégia política longamente arquitetada, mostrou que Ofídia e sua gang eram os causadores da decadência e do atraso da rua, por carência de projeto e por lutarem apenas por interesses pessoais. Mostrou mapas onde claramente se apontavam os prejuízos para os jovens e para o desenvolvimento da rua. A solução era buscar a qualidade de vida da rua.
que só havia uma solução. Essa solução teria que ser tirada da moral social e pública. E só o conselho podia acabar com essa situação irregular. Com esse fim escreveu uma carta ao síndico pedindo uma reunião extraordinária.
O síndico, que acompanhava preocupado a inércia do bairro, achou bemvinda a ideia e convocou o conselho e concedeu a palavra a Ratoon. Com a palavra, Ratoon demonstrou por a+b que o que se passava na rua era vergonhoso. Havia que mudar. E, numa estratégia política previamente concebida, mostrou ao conselho que Ofídia e sua gang estavam atrasando o desenvolvimento social da rua, por carência de projeto e por lutarem apenas por interesses pessoais. Apresentando dados tornou evidentes os prejuízos que sobravam para os jovens e para a modernização em relação à qualidade de vida da rua.
Convencido por Polemifon, o Conselho votou maciçamente a exclusão de Ofídia e de sua gang das casas que ocupavam na rua decadente.
Com a saída de Ofídia e de sua gang, a rua foi reorganizada, limpa, o trabalho voltou a ser uma das fontes de energia do bairro, a juventude voltou a circular pelas pistas vicinais e pela rua principal, incutindo vida em todas as organizações da cidade, fazendo da rua um novo projeto público de desenvolvimento. Polemifon passou a ser elogiado pela vitória da inteligência contra o fisiologismo representado por Ofídia.
Sem ficar convencida, Ofídia deixou a rua, emigrando para país distante, enquanto Ratoon se recolheu ao litoral fluminense. Novos espaços, novas mentes, novas disposições são cantadas em crônica na antiga rua paralisada. E a rua jura que vai ser feliz para sempre.

1995.
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