O HOMEM MORTO NA CALÇADA
Foge, meu amigo,
para tua solidão.
Friedrich Nietzsche
E
u estaria melhor não fosse essa pequena úlcera, esse princípio de stress, essa amigdalitezinha, essa distensão no esternocleidomastódeo, essa cefaléia intermitente, essa hipertensãozinha de nada e mais alguns probleminhas bobos. O médico louco insiste em classificar como neurose urbana incipiente. Mas, também essa cidade não muda mesmo. Esse clima seco e esses contrastes sociais matam qualquer um. Quando paro para olhar o povo, não paro de pensar: de onde sai tanta gente? Como aquela passarela do suporta tanto peso?
O vai-e-vem das pessoas pode ser comparado a um formigueiro nessa época em que as folhas caem; e que driblam-se com uma agilidade futebolística para não se tocarem. Parecem hipnotizados por alguma força sobrenatural. Dificilmente dirigem o olhar para os mendigos de mãos estendidas pelo calçamento, não lêem cartazes, nem grafites em muros. Quando muito, defrontam-se à alguma vitrine. A lua tímida, mas um imenso globo amarelo, desponta por trás de nuvens esparsas. Essa turba louca nem vê a lua linda. Parece, cada um, preocupado em chegar primeiro à algum lugar.
Uma névoa ácida cobre a cidade, sobe um gosto agridoce de sangue à boca. A lua linda... A turba louca. Choques culturais... Diferença de valores... Muita coisa separa os homens. O mundo antropofágico, devora a si mesmo e aos outros. O planeta, hoje, corre preparando o outro dia. As estradas estão aí, escancaradas. Resta-nos escolher. Devo dar razão à turba?
Há um homem morto na calçada. Homem sem objetivos. Homem sem itinerários. Homem imune. Homem imóvel. O homem descalço, morto na calçada: homem mínimo. O homem maculado maculando a calçada limpa: obstáculo na plataforma intransitável. Homem cálido, caído e morto. Homem obscuro, morto sob a lua louca. Homem indelével e irrefutável, morto na calçada. Morto. Morto. Morto.
A lua já vai dobrando a esquina. Estou pasmo como um monge budista, percorrendo a solidão dos outros.
Simão de Miranda
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