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Contos-->Um sonho quente... -- 29/08/2007 - 21:01 (paulino vergetti neto) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Um Sonho Quente...






“O sereno da noite, escondido dos olhos pela escuridão do final de tarde, esfriava o ar ainda morno. A ema correu sem muita pressa à frente da arapuca dos preás, próxima ao oitão de casa. Nem achei tempo para movimentar a soca-tempero e acertar aquele tesouro cheio de carne. Meus olhos ficaram se lastimando de sua fuga; permaneci quieto a vasculhar o horizonte da caatinga, interrompido pelos galhos secos desfolhados do término da estação seca. Até aquela ave solitária procurava à-toa o alimento da vida. Faltava apenas Graciliano, papel e caneta – sem Baleia – é claro, senão a ema não teria desfilado sem riscos. Mas fui eu quem a vi e quem ali estava e pronto!
Os dias sempre são desiguais, não diante do tempo, impropriamente medido pelos homens, mas porque nem toda manhã é igualmente desserenada, nos verões do sertão quente que, mesmo inóspito, esconde a vida para encher a sobrevivência de seus campos.
Acordei atordoado. Meu quarto estava um forno. O pescoço molhado fingia fartura de água. Lá longe eu ouvi bater os pingos no zinco da cisterna – talvez na calha troncha que, boquiaberta, esperava tão ansiosa que as águas descessem pelas entranhas das telhas e a enchessem. Quis até gritar de alegria – seria chuva mesmo? Quando esperamos por ela ao longo de seis verões seguidos, custa-nos acreditar que é ela mesmo que ouvimos. Até sonhando poderia estar. A zoada quem sabe, não seria a areia vomitada por algum redemoinho atrevido criado pela quentura do tempo.
Pulei da cama e corri na direção da porta. Fui atrás da maior alegria do sertanejo – a água que cai do céu e devolve ao homem uma promessa de fartura e bom ano. Cadê zinco, cadê pingo, cadê chuva. Quando ultrapassei a porta, haja estrada à vista. Meu olhar ardia com o beijo do sol quente.
Cruzei seixo a seixo de veredas e estradas largas. Quando passava a procissão de miseráveis retirantes no lombo de velhos caminhões, a cortina de areia e barro não me deixava ver seus acenos. Ouvia apenas a algazarra que não representava em absoluto a alegria de uma fuga, mas a tristeza de não poder ficar-se onde se gosta, onde se ama, onde se quer ficar...
Senti sede – que nunca havia sentido outrora. Lembro-me de que caminhei até a exaustão. Por instantes de cócoras, minhas canelas cederam ao peso do corpo e dos ossos que ainda pesavam por sobre os joelhos, e sentei-me no chão mormaçado sob a copa de um juazeiro teimoso, ainda verde, ainda vivo. Os olhos escureceram o tempo e nem estava ele perto da noite. Era a voz da fome persistente. Olhei para as folhas verdes da árvore e a boca salivou; não pela fome, mas pela mania matutina de escovar os dentes com a suculenta seiva de seu entrecasca ou com a cobertura de suas sementes. Não daria certo comê-las: seus frutos estavam imaturos.
Quando o redemoinho passou, com a vista agora cinzenta e não mais negra, vi a briga de dois galos-de-campina. Pareciam trancafiados numa bola alvirrubra. Embolavam bem próximos aos meus pés. Mexi com o dedão do pé direito e vi quando apenas um alçou vôo. O outro, espantado, quase vivo e quase morto, aquietou-se a olhar-me. A ave queria morrer.
Eu carecia dele para sobreviver, ele de mim para acudi-lo. Um de nós podia morrer; ele era o que estava mais próximo da morte. Avancei para ele sem pensar, retirei-lhe as penas, espremi o bucho, retirei-lhe as tripas quase secas e de um só golpe devorei-o. A digestão foi remorsiva e longa. Senti um nojo vindo da alma. Mas fazer o quê?
O dia foi passando na calmaria do calor imenso que fazia. Nem cobra andava nas estradas anunciando chuva. Um passarinho na barriga me deixaria viver mais alguns dias. Pus-me semifarto e condenado a palitar os dentes e a olhar as pernas do dia – eram tantas.”
Dessa vez era eu quem quase pulava da cama mesmo. Tudo para trás desse horizonte era sonho. De tanta fome que estava quando fui dormir, alisou-me esse pesadelo. Levantei-me, fui à porta, abri a parte superior e vi o sol que ao menos havia nascido e já secava quase tudo o que beijava – até a água enlamaçada do barreiro da frente de casa. Cadê pingo d’água, cadê chuva: a calha, penca e quase a cair, ardia de quente. Foi então que vi que aquele dia que nascera, seria apenas um outro da via-crúcis que tínhamos que atravessar para tentar vencê-la. Mas não deixaria o sertão por nenhuma enxurrada noutro destino. Por aqui o sonho mostra quase sempre o que esperamos e parece nunca chegar.
Ao meio-dia fugiu outro punhado de desconsolados do sertão. Foram para os lados das Minas Gerais. Duvido que se acostumem. Pode até ser que sim..., mas, quando arrumarem qualquer tostão e puserem no bolso, é só deste solzão sertanejo que se lembrarão e para aqui sempre retornarão. Aí, vão tornar a sonhar como eu e viver a esperança da fartura de água e de sonhos.
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