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Contos-->O Brasil nosso de cada dia -- 19/11/2007 - 14:56 (Adalberto Antonio de Lima) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos


O BRASIL NOSSO DE CADA DIA, apresenta fragmentos literários de autores da família, a saber:
Francisco de Assis Lima e Silva, Neomísia Antônia de Sousa,Adalberto Antônio de Lima e Francisco José Rodrigues





Organização
Adalberto Antônio de Lima

Preparação dos originais
Fernanda Veloso Lima

Texto original

O BRASIL NOSSO DE CADA DIA

Editora T. Mais Oito

2007 – 1ª ed.

Créditos

SILVA, Francisco de Assis Lima; SOUSA, Neomísia Antônia; LIMA, Adalberto Antônio; RODRIGUES, Francisco José.







Como chuvas de verão

Desde a era romântica do Ginásio Marcos Parente
Testemunho com alegria uma bela história de vida
A caminhada firme do irmão Assis é forte exemplo
Para as novas gerações é tocha alta que só alumia

Num mundo cruel de pouco amor e muita ganância
Doou a mais pura parte de si para a família crescer
Aos amigos brindou com um espírito franciscano
Aos estranhos nuvens claras de atenção e respeito

Pelo vasto mundo de Deus logo cedo na estrada pisou
Ao jovem corajoso S. Paulo ou Goiás não foi distante
Pois em todo lugar onde viveu a compreensão plantou
Como missão amor ao próximo jorrou por todo canto

O homem simples recheado de bondade deixa marcas
Para esquecer rápido as ingratidões escreve na areia
Rancor que destrói alma de sua vida nunca faz parte
Suas boas ações sempre brilham como céu de estrelas

Uma refinada índole sertaneja que o vento manso molda
Levou tempos melhores em conselhos para frágeis almas
Provando dito popular que belas palavras nos comovem
Mas a verdade é que somente belos exemplos arrastam

Ao ver seu bravo irmão caçula em concurso aprovado
Como Zezinho ao filho inquietou-lhe o excesso de zelo
Para Brasília levando ao dirigente do Banco sua fala
A nomeação logo surgiu assinada pelos dedos de Deus

Noutro momento de grande dor e humana presença
Noticiou a precoce ida de Rominho como bom cirineu
O fardo ficou leve na distante colina do doído aceno
Virou presente ao Altíssimo aqueles olhinhos negros

Lembro de você em bom momento subindo no cajueiro
Ao lado do companheiro amigo Deca na Casa do Icaraí
Com fartos risos e prosas que cativavam até o caseiro
A quem festa de cem anos em carinhoso afago prometia

Somente após ver família na fé e no amor bem vingada
Reservou algum tempo da vida para os sonhos próprios
Em Socorrinha encontrou da laranja o outro belo lado
Nas duas lindas filhas o perfume das flores dos bosques

O Armazém Flor de Lis patrocina a Luar do Sertão
Aos Céus de Picos a voz romântica de Nelson Levar
Por um discotecário desconhecido mais tarde irmão
Poesia do Adelino diz aos ouvintes que viver é amar

O Casarão que guardo em minhas doces lembranças
Representou o grande projeto de educação fraternal
A cada irmão oportunidade de construir seus sonhos
Com luta árdua cultuando fé e vivendo em dignidade

Na Avenida Getúlio Vargas a melhor mercadoria está
Pensamento positivo em cada frase um cliente encanta
A sinceridade boa em cada gesto florido com muita paz
Sorriso humano de brinde ao povo simples interiorano

Cunhado irmão e amigo te guardo no melhor da mente
Sempre passando o filme de tuas firmes e belas ações
Assim aprendi a entender seu perene crescer pungente
Imagens vivas que sempre voltam como chuvas de verão


(Francisco José Rodrigues)









SUMÁRIO


Francisco de Assis Lima e Silva
Na trilha da vida...........................
Caindo na trilha............................
No Hospital.................................
Novamente garimpando a sorte................

Neomísia Antônia de Sousa
Fragmentos de Genealogia e memórias de uma família.....................................

Adalberto Antônio de Lima
Histórias que meu pai contava...............

Francisco José Rodrigues
Ofício de Vida.............................
Não há vitória sem luta....................


Apresentação



Mais um grão de trigo entra no celeiro de nosso acervo cultural. “O Brasil nosso de cada dia”, organizado por Adalberto Antônio de Lima, tem em Francisco de Assis Lima a maior participação. Neomísia entra na coletânea, com fragmentos revisados de “Genealogia e memórias de uma família”, solo 2006. Adalberto aparece com trechos inéditos das histórias contadas por seu pai, e Francisco José, fecha o último capítulo com “Ofício de Vida”. Os textos dos diferentes autores se completam e dão uma boa amostra da realidade brasileira.
Rica em regionalismo a obra apresenta variantes lingüísticas do Nordeste, ainda em uso na região. Retrata a vida do nordestino nascido em família pobre, a luta com muita honestidade para conquistar seu espaço e obter meios para viver com dignidade. Mesmo utilizando uma linguagem informal, frases bem elaboradas induzem a mais de uma leitura tais como, o jogo de palavras envolvendo cidades no percurso de viagem das personagens, Castanhal cidade do Pará e castanhal... Colinas cidade e colinas... Bacabal cidade e bacabal, espécie de palmeira. Um exemplo disso é encontrado em “... a grande águia ficou quinze anos sem poder sobrevoar as colinas do Maranhão, nem armar sua rede em bacabal...” O puxão de orelha significando literalmente puxar a concha auditiva e o puxão de orelha, lição de moral, ou ainda “... pela primeira vez senti os espinhos de carrapicho que o inimigo semeou no meio do feijoal. Senti-me só. Sozinho e embaraçado nos espinhos de carrapicho do caminho...” - Uma clara alusão bíblica ao joio e trigo e às dificuldades que haveria de encontrar na vida. Por último, carolina, a planta medicinal comparada com Carolina a mãe forte e brava que luta pela cura do filho, entre outras.

...


Francisco de Assis Lima e Silva


Dados biográficos



Francisco de Assis Lima e Silva nascido 06 de outubro de 1937, no Sítio São Paulo da fazenda Rodeador, município de Picos Piauí, é filho de Antônio Benedito de Lima e Antônia Josefa de Sousa Lima. Assis Lima, ou Diassis como é conhecido na região, é um bom exemplo do autodidatismo no Brasil. Sem ter passado pela educação formal, descreve com humor satírico a simplicidade do menino nascido no campo, a vida de operário, mascate, vendedor de mangalhos, caminhoneiro e comerciante. Enfim, sua luta desde criança para conquistar uma vida digna, ganhar o sustento com honestidade, transparência e justiça. Contando experiências vivenciadas num país em desenvolvimento, retrata a realidade de muitos brasileiros que lutam pela fatia mal aquinhoada do “Gigante pela própria natureza” em que poucos têm muito e muitos têm pouco. Com apenas 17 rumou para São Paulo, trabalhou nas Empresas, Irmãos Gogliano, Folha da Manhã, Companhia Nitro-Química Brasileira e no trabalho informal das Feiras Livres. Em 1958 migrou para Ceres Goiás, trabalhou como mascate na cidade e circunvizinhança. Em 1960 voltou para Picos, trabalhou como empregado de Isaac Batista de Carvalho, tornando-se mais tarde, seu sócio em um caminhão. Em 1963 extinguiu a sociedade com Isaac e associou-se a Cândido Joaquim da Silva com a razão social Assis Lima e Silva, o “Armazém flor de lis”, na Travessa 15 de Novembro, no centro comercial de Picos. A empresa foi transferida em 1963 para um prédio próprio na Av. Getúlio Vargas, 402 e mantida durante 10 anos. Em 1973 voltou a Goiás e fixou residência em Porangatu, estabelecendo-se no ramo de estivas em sociedade com Raimundo Deusdará de Sousa. Um ano depois (1974), transferiu-se para Guaraí, Goiás; hoje Estado de Tocantins, ficando apenas um ano. Em 1975 transferiu-se para Belém do Pará e abriu uma firma individual também no ramo de estivas. Em 1976 mudou-se para Imperatriz, Maranhão, comprando arroz no período da safra. Voltou para Picos no final de 1976, trabalhou dois anos no comércio informal e em 1978, estabeleceu-se em prédio próprio, em Picos, onde permanece até hoje. Casou-se em 1980 com Maria Santos Rego, chamada Socorrinha ou Corrinha, e gerou duas filhas: Uiara Maria Rego e Silva e Náide Maria Rego e Silva, ambas acadêmicas de Medicina em João Pessoa, Paraíba. Diassis tem uma trajetória de mais de meio século de trabalho ininterrupto na área comercial. Em sua vida de mascate, caminhoneiro e empresário tem muitas histórias pra contar. É possível conhecer algumas delas nesta modesta obra.


Na trilha da vida


Hoje dois de março de 2007, testo a frágil memória de meus setenta anos, para descrever minha luta por um dia melhor, mais humano e mais justo. No decurso de minha vida toda construída e constituída com as mãos abertas para servir nunca me envergonhei de pô-las também em concha para receber. Reconheço minha pequenez diante da grandiosidade de meu Deus. Sei que não sou indigno de merecer tantas bênçãos do céu, mas o Senhor viu a humildade de meu coração e caminhou comigo cada palmo da estrada. Até os três anos de idade, não guardo memória de nenhum fato relevante. Porém, aos quatro, ganhei minha primeira alpercata corrulepe. Uma espécie de sandália com uma tira passando entre o dedão e seu vizinho. O solado nem sempre de sola, no compasso de cada passo, batia na planta dos pés gerando o som: corrulep, corrulep...
A corrulepe é precursora da sandália japonesa e traz consigo uma designação pejorativa de salga-bunda. Isso porque, não tendo rabicho, ao se andar, vai levantando areia e jogando no traseiro do indivíduo. Ainda assim, foi grande minha alegria ao ganhar minha primeira corrulepe confeccionado por meu pai. Naquele dia, embora com apenas quatro anos, botei o pé na estrada e fui sozinho, até a casa de meu avô Mariano, à procura de Mãe-Duca, para mostrar-lhe o presente que ganhara. Mãe-Duca era uma das tias que tinha por mim um carinho de mãe e morava ali, pertinho, a menos de 400 metros.
- Cadê Mãe-Duca? Perguntei.
- Está na roça colhendo feijão. Respondeu vovó Delfina, lançando um olhar sobre minha sandália nova. Afoitamente, lancei-me em direção ao roçado. Logo que passei da porteira, emaranhei-me numa touceira de carrapichos. Um grito inocente ecoou no silêncio incontido de minhas lágrimas de criança, como o uivo choroso de cachorro desmamado. Pela primeira vez senti na pele os espinhos de carrapicho que o inimigo semeou no meio do feijoal. Senti-me só. Sozinho e embaraçado nos espinhos de carrapicho do caminho.
Muito atenta, Mãe-Duca ouviu meus berros e veio prestar o necessário socorro.
- Meu “caçulo”, que você está fazendo no meio desse mato? Como posso agora levar um saco de feijão e ainda você na cacunda!
- Vim mostrar “asapragata” que papai fez pra mim.
Ela me abraçou e disse: “É muito bonita suas precata, mas vamos voltar pra casa, o sol tá quente demais pra você.”
Mãe-Duca não tinha boa flexão nas pernas, pois lhe faltava numa delas a rótula do joelho. Mesmo assim, jogou-me no tuntum e com a outra mão, levava quase arrastando o saco de feijão em vagem. Arrastada e penosa foi também a caminhada até a casa, e no passo descompassado da perna que não dobrava, foi vencendo pacientemente a pequena distância entre o roçado e sua morada. Então, pondo-me no batente da janela, começou a catar em mim os carrapichos, um por um e elogiar minha coragem de ter vindo sozinho.
A vida no campo, naquele tempo, não representava nenhum perigo, andava-se com liberdade por caminhos, veredas e atalhos, sem cruzar com nenhum malfazejo. Ao contrário, era comum encontrar parentes, amigos ou conhecidos mais velhos, que iam ou vinham do serviço. Nenhum menino passava por eles sem lhes pedir a bênção. O respeito e a obediência aos mais velhos eram salutares ensinamentos passados de geração a geração. Não se ousava interromper a conversa dos adultos. Adulto estava falando, menino não dava um pio. Nem ficava perto, a não ser que um protetor dissesse: “Deixe ele participar da conversa. É um menino homem”.
Em junho de 1944, com aproximadamente sete anos, minha mãe fez uma roupa nova pra mim. Era festa do padroeiro. Os freis franciscanos, Serafim e Gregório celebravam com a comunidade os festejos de Santo Antônio. Como não dispunham de palanque, fizeram de uma mesa seu púlpito e durante o sermão, postei-me ali debaixo a arremedar os gestos de Frei Serafim. Fiz-me estátua viva, gesticulava, fazia mímicas e repetia seus movimentos, abrindo e fechando a boca com a mesma cadência das palavras do Frei. Em determinado momento, o pregador viu aquele pirralho, abaixou-se e deu-me um puxão de orelhas daqueles que o sujeito fica na ponta dos pés. O pior ainda, é que minha irmã viu a cena e contou à minha mãe. Pensei que fosse levar uma surra! Mas mamãe agiu com serenidade e disse-me simplesmente: “Amanhã cedinho, você vai se confessar ou conto tudo pro seu pai!”. No dia seguinte, ensinou-me a oração do penitente e fui procurar o confessor. Meu coração sofria uma inquietação medonha!“Não vou confessar com Frei Serafim”. Fiquei de espreita. Frei Serafim estava no confessionário... E se ele me reconhecer e me der um puxão de orelhas... uma sabatina... Peguei a fila assim mesmo! A fila era grande e o Frei já estava ali há algumas horas. A contrição de meu pecado, se é que foi pecado, veio mesmo antes da confissão, só de pensar que teria de acusar-me de ser o menino que estivera arremedando o sermão do padre... Pensar nisso, já era um grande flagelo para minha pequena alma, mas estava lá para penitenciar-me. Talvez até rezando no silêncio interior para Frei Gregório chegar e assumir o lugar do outro. Por sorte, em dado momento, Frei Serafim levantou-se, deu uma espreguiçada e caminhou em direção à porta. Em seu lugar sentou-se Frei Gregório. Confessei-me. Aquele “pecado” o menino não confessou de viva voz. Fiquei com a consciência pesada por longo tempo até entender que meu pecado era público, não precisava confessar, todos viram e já tinha recebido o castigo...
Fiz minha primeira comunhão com Deus e tirei uma grande lição. Muitas vezes para nos aproximarmos de Deus, precisamos levar primeiro um puxão de orelha.





Caindo na trilha



Meu pai era comerciante. Viajava vendendo tecidos, enxada, foice e machados. Certa vez, chegou de viagem trazendo consigo um garoto negro de uns quinze anos. O crioulo havia comprado tecidos e como não pudera pagar, o avô sugeriu que papai levasse o menino para trabalhar até pagar a conta. Inicialmente, papai recusou-se, mas o garoto mostrava-se inclinado a acompanhá-lo. Sabia que seu credor era comerciante, e, por conseguinte, poderia proporcionar-lhe melhor passadio do que lhe era possível ter com seu avô. Chegou reforço para me ajudar na roça. Pensei.
Meu novo amigo atendia pelo nome de Firmino, mas logo lhe veio o adequado apelido de “Bambu”, pois tinha porte avantajado. Era aproximadamente cinco anos mais velho. Esperto, trabalhador e de boa índole, ajudava mamãe nos serviços domésticos de pilar arroz, milho e carrear água do rio para casa, além de assumir comigo a tarefa de cuidar do gado e dos outros animais. Naquele dia, mamãe disse: “Firmino, vá buscar água no rio e leve a mula para pastar na roça.” Como a roça era caminho do rio, montamos em osso na mula, levando uma lata para trazer água. Durante o percurso, a lata vazia bateu no lombo da mula e fez com que ela se assustasse e saísse numa disparada aterrorizante. O chão foi nosso colchão. Caí. Ele caiu em cima de mim. Fiquei por baixo com a cara enfiada no chão. Saí dali gemendo, sem localizar a dor, pois todo corpo parecia doer. Quando cheguei em casa, minhas irmãs viram que meu braço estava despencado, ombros desalinhados e andando atravessado, feito caminhão com parafuso de centro quebrado. Chamaram minha avó. Ela trouxe uma solução caseira: sumo de jenipapo do campo, talos de carnaúba para imobilizar o ombro e uma tipóia para apoiar o braço. Não deu certo! Era preciso soldar os ossos, mas eles estavam desencontrados. Finalmente, depois de muitos dias a capengar de dor, chega um amigo de meu pai.
- Antônio, se você quiser curar Diassis, tem que fazer um garrote. Amarre uma corda de um caibro ao ombro dele, passando por baixo do sovaco e dê uma laçada. Vá controlando na corda. Puxe até o braço voltar pro lugar. Depois, faça nova entalação. Prenda bem o ombro, daí a trinta dias o menino tá bom e você pode tirar as talas.
Meu pai laçou o caibro, amarrou meu ombro, deu uma laçada e puxou. Cada puxada provocava uma dor terrível daquelas que o cabra solta um ai sem querer. Só não fiz o serviço na roupa porque não tinha material pronto. Por fim, um estalo e um alívio, tudo estava no lugar. Após um mês, não sentia mais nada, nenhum incômodo, apenas um nó como um caroço de pitomba marcou, por algum tempo, o lugar onde Deus deu alguns pingos de solda. Esse acidente, no entanto, não abalou minha amizade nem a confiança que meus pais tinham no nego Bambu, de modo que, mesmo depois de pagar a conta, ele permaneceu conosco por muitos anos, como membro da família. Saiu já na idade adulta e voltou pra Picos. Casou-se e deu a seus primeiros filhos os mesmos nomes dos dois filhos mais velhos de meus pais: Neomísia e Francisco de Assis.
A vida no campo tem seus encantos e belezas, mas a natureza tão prodigiosa, nem sempre produz cem por um, sessenta por um e trinta por um, principalmente no seco Nordeste que, nem sempre “em se plantando, tudo dá”. Consciente desta realidade, meu pai se estabeleceu em Santo Antônio com um comércio varejista, mas decerto, não engrossou as estatísticas do êxodo rural, porque continuou agricultando em suas propriedades ribeirinhas. Aquele foi um período áureo de nossa história. Sendo meu pai comerciante, agricultor, dono de gado e bom carnaubal, vivemos anos de grande fartura. Contudo, os efeitos da crise dos anos cinqüenta, provocaram uma decadência econômica. A loja foi fechada para evitar maiores prejuízos. Não se recebeu todo fiado, mas pagamos todas as dívidas.
Apesar desse acidente de percurso na estrada da vida, não paramos de lutar. Eu que já estava mais taludo, passei a acompanhar meu pai em viagens para o Maranhão, Goiás e Pará. Sai-se montado em burros, tangendo uma tropa carregada com mercadorias. Vendia-se uma variedade enorme de produtos, como ferramentas agrícolas, alho, cebola, e outros mangalhos. A volta era feita de caminhão ou caminhão-misto, uma espécie de transporte em que parte da carroceria se transforma numa cabine dupla para o transporte de passageiros e a outra metade, mantida para carga. Ás vezes mudava-se a rotina e voltávamos de avião ou trem até Teresina no Piauí ou Carolina no Maranhão. A viagem de trem era econômica e divertida, em cada estação uma multidão esperava o trem, muitos vinham recepcionar parente ou amigos, outros, comprar mais barato alguma mercadoria antes que fosse adquirida pelos atravessadores. A saída era outra festa! Pessoas mesmo desconhecidas acenavam para os passageiros com que se estivessem despedindo de amigos. A Maria Fumaça dava o alerta da saída: zezimmmmm... vou te capar... vou te capar. Feio, deus me livre! Também com fogo no traseiro, quem é que pára! A chegada era diferente, via-se primeiro a fumaça, depois os vagões a serpentear nos trilhos como uma minhoca gigante dos parques de diversão e em seguida o grito, zezimmmmmm...
As particularidades da viagem de trem começam pela escolha da roupa. Viaja-se de avião com a melhor vestimenta e há quem ponha terno e gravata, porque se o avião cair, a vítima já está pronta pro velório... mas, de trem, nem pensar... Escolhe-se a roupa mais velha. Nem podia ser diferente, a velha Maria Fumaça vai engolindo lenha e cuspindo faíscas nas vestes dos passageiros. No final do percurso a roupa fica cheia de furinhos que nem a uma peneira e só serve para aquela viagem. Apesar disso, o custo benefício compensava porque o transporte era barato.
Numa dessas andanças, chegamos a Imperatriz e como não conseguimos vender as mercadorias, vendemos os animais de carga. Então, às sete horas da manhã, fretamos um barco e zarpamos para Marabá, no Pará. Por volta das dezoito horas, o barqueiro ancorou a embarcação.
- Seu Antônio, nós vamos dormir por aqui. A noite é traiçoeira e o rio é perigoso. Vamos jantar puxar uma prosa e dormir.
Seu Joaquim, dono do regatão, era também o timoneiro, comandante e cozinheiro. Ele mesmo preparou o jantar e serviu uma deliciosa refeição. Ficamos por longas horas ouvindo estórias de caboclo d’água, fantasmas, peixes gigantes que engolem pescadores e botos sedutores de mulheres. Depois, embrulhei-me dos pés à cabeça para me proteger dos carapanãs e dormi como um anjo sob o olhar vigilante das estrelas. No dia seguinte, mal raiou o sol da primeira aurora, retomamos via fluvial e seguimos viagem. Aproximadamente às dez da manhã, avistamos um arraial. Seu Joaquim perguntou a meu pai se podia fazer uma parada naquela aldeia. Como objetivo era vender, meu pai concordou prontamente. O barqueiro era muito conhecido naquela região e também querido, porque prestava serviços à comunidade ribeirinha trazendo suas encomendas da cidade. A beira do rio ficou cheia de gente para cumprimentar o dono do barco e seus passageiros. Foi uma recepção muito calorosa. Era aniversário de seu Joaquim do regatão. Os ribeirinhos sabiam disso porque seu Joaquim inteirava anos na mesma data em que Manuel Surubim ficava mais velho.
- Trôxe minha incumenda, seu Joaquim?
- Truxe.
A cada pergunta a resposta era sempre trouxe, na verdade, truxe, em seu linguajar.
- Seu Joaquim, esta noite caiu um pintado na rede. Você e seus convidados ‘armoça’ hoje ‘mais nois’. Adiantou-se seu Manuel, pescador experiente e respeitado que exercia certa liderança na comunidade. Seu Joaquim consultou novamente o fretador do regatão. Meu pai concordou prontamente, pois já entabulava negócio com um caboclo. Enquanto meu pai negociava, saí de fininho com os novos amigos, mais ou menos de minha idade. A garotada tinha um litro de Cinzano, fígado de porco, asa, pé de galinha e ovos de tracajá pra tira-gosto. Fizemos nossa farra e quando voltamos papai já estava chamando urubu de meu louro. Mas negócio mesmo só fazia antes de beber.
- Onde você andava meu filho! Venha aqui para contar e guardar o dinheiro dos negócios que fiz... A cada pacote que me entregava dizia: “esse aqui é de tantos objetos que vendi a fulano, confira...” Depois passava outro maço e repetia a conversa... Veio o almoço, surubi ao leite de coco, regado com conhaque Imperial e uma cachacinha... Ninguém cantou parabéns pros dois aniversariantes. A vida no campo não tem essas coisas, pelo menos não tinha naquele tempo.
Às dezessete horas, zarpamos novamente, já com pouca mercadoria. Papai estava pra lá de Bagdá e toda hora me perguntava: “Você recebeu o dinheiro da venda que fiz?” Recebi, papai. Não se preocupe está aqui em meu bolso.
Chegando a Marabá fomos recebidos por uns “simpáticos” fiscais que chiavam mais que cascavel.
- Ei, vocêiiss dôiiss... Trêiiss – chamaram também o barqueiro.
- Maiiss... Vocêiiss têm que botar a mercadoria pra vender no varejo, durante vinte e quatro “horaiis” e só “depoiis” podem vender à grosso. Cumprimos toda recomendação recebida dos fiscais. Vendemos primeiro no varejo e depois em atacado. Fizemos bom negócio, pagamos a seu Joaquim e pegamos avião para Carolina. Daí em diante, foi caminhão de carga, caminhão- misto... O transporte que viajasse na direção de Picos era boa condução para nós, porque dali em diante, dezoito quilômetros pra serem puxados no dedão nos esperavam.
A chegada foi uma festa e logo depois de descansar uns dias, planejei em surdina, minha mudança para São Paulo. Já ia fazer dezessete anos, por conseguinte, me achava dono de meu nariz. Meu pai era um bom pai, mas um tanto rígido. Planejei fugir. Entretanto, de algum modo, ele ficou sabendo e me disse: “Filho meu não precisa sair fugido de casa. Tem que sair como homem, pra se precisar voltar, voltar também como homem e encontrar sempre as portas abertas”. Ele mesmo começou a preparar minha partida. No dia 9 de dezembro de 1954, por volta das cinco horas da tarde, saí de Santo Antônio com destino a São Paulo. Chegando a Picos, tomei um caminhão de carga até Juazeiro do Norte, tendo como companheiros, José Serafim e Silva, Nemésio Cipriano Rodrigues e Raimundo Lopes da Silva. Chegando em Juazeiro, só encontramos três vagas no ônibus. Quem fica! Quem fica? Ninguém queria ficar. Chega na hora um agente de transporte dizendo ter uma solução para o caso.
- Vamos fazer um “suplimento”.
O suplemento consistia em colocar uma caixa de madeira no corredor, entre um banco e outro. Ali o desafortunado sentaria o traseiro e seguia viagem. Nem preciso dizer pra quem sobrou essa poltrona sem encosto!
O suplemento não me foi um sofrimento por muito tempo. Como bom negociante, procurei algum passageiro que estivesse bem acomodado e se interessasse numa vantagem financeira em troca de minha poltrona improvisada. Assim, com o desembolso de cinqüenta cruzeiros fizemos a permuta. Negócio fechado. Tome estrada, poeira e buraco. O sujeito só viajou alguns quilômetros e se arrependeu da negociação. Aí era tarde, não sou homem de desmanchar negócio. O camarada partiu pra briga, mas os demais passageiros levantaram a voz em minha defesa e por fim, até o motorista se manifestou em meu favor e o desarrazoado calou-se. Sentou no “suplimento” e seguimos viagem até a sonhada Paulicéia! Estávamos finalmente em Sampa.
São Paulo abriga um número muito grande de nordestinos. Muitos parentes e amigos meus já moravam lá. Inicialmente, hospedei-me na casa da prima-irmã Maria dos Remédios, cujo esposo Enéas é um parente que me trata como irmão. Não foi difícil ambientar-me convivendo com tantos amigos, inclusive os irmãos de Enéas. Assim, consegui logo um emprego numa fábrica de cofres. Mas no primeiro dia de serviço, atrasei cinco minutos e fui demitido após quatro horas de trabalho. Este foi meu primeiro emprego e minha primeira decepção como operário, pois no departamento pessoal disseram que eu não precisava de emprego. Naquele mesmo dia, tomei um ônibus em direção ao centro da cidade e depois de peregrinar por longas horas, estava outra vez empregado, agora num “Café Expresso”. Com minha chegada, a clientela foi dividida entre mim e um funcionário mais antigo, também de menor como eu. O que parecia ter sido um alívio da sobrecarga de serviço para o funcionário mais velho de casa tornou-se um pesadelo por causa das gorjetas que os clientes davam e passaram também a ser divididas. Começou o ciúme e a provocação.
- Você está tomando meus clientes!
Simplesmente atendia bem e em recompensa, recebia gorjetas. Poucos dias se passaram e a situação estava ficando fora de controle, a ponto de meu companheiro me chamar para um duelo. Nunca fugi da raia. Tive que topar o desafio. Marcamos o dia e a hora, como nos filmes de bang bang. Na hora certa, eu estava lá, e ele também. Escolhemos o intervalo de meia hora que tínhamos para lanchar. Abrimos um tampão dentro da loja que dava para um porão onde eram guardados objetos de uso esporádico, pegamos a escadaria e descemos até o piso inferior, a fim de resolver nossas divergências. Lá havia espaço suficiente para uma peleja sem interferência de ninguém, mas, por sorte nossa, o copeiro viu quando descemos. Deu a hora de voltarmos ao trabalho e não comparecemos. Então um dos donos, perguntou ao copeiro:
- Cadê os balconistas?
- Eles estão no porão.
O italiano desceu escada abaixo e nos encontrou mais suados que tampa de chaleira.
- Ei, seus galos de briga, vão tomar banho e só voltem amanhã pra receber as contas.
Sai, como me fora ordenado. Peguei a Avenida Rangel Pestana na Praça Cloves Beviláqua e ali mesmo comecei procurar emprego. Andei a Rangel Pestana até sua continuação na Av. Celso Garcia. Ao atingir o número 188, entrei na loja de eletrodomésticos Irmãos Gogliano, filhos de italianos, os quais depois de minha conversa, disseram-me: “Você já está empregado. Venha trabalhar amanhã”. Eram três italianos de boa índole. Um deles escreveu uma carta a meu pai. “Seu filho é um bom rapaz e está empregado. Não se preocupe”.
A loja abria às oito horas. Chegávamos às 7:30h para darmos uma faxina, eu, porém, chegava às sete e ficava sentado no degrau da porta. Vendo aquilo, um dos sócios que morava em frente me chamou:
- Chiquinho, você sempre chega cedo. Vou lhe passar as chaves da loja para adiantar o serviço de limpeza. Todo dia quando você chegar toque a campainha de meu apartamento, para receber as chaves.
Todo dia tocava a campainha, recebia as chaves e fazia a faxina antes de os outros empregados chegarem. O patrão estava satisfeito, porém um colega, não. Um belo dia... A loja já estava aberta e um colega me esperando lá dentro. Ele nunca chegava cedo. O camarada me esperava, segundo ele, queria tirar a forra. Chamou pra briga. Aceitei. Peguei um pé-de-cabra que era utilizado para abrir as caixas de embalagem. A discussão já estava acirrada, quase chegando à luta corporal, quando chegou outro colega e acabou com a festa. Chegou outro funcionário, depois mais outro... Um deles entendeu que deveria dar conhecimento ao patrão e não tardou muito, fomos chamados ao escritório.
- Chiquinho, conte-me o que aconteceu.
Contei tudo. Ele ouviu a outra parte, mandou que me pedisse desculpas, nos desculpamos e continuamos a convier no mesmo trabalho. Um dos sócios responsável pelos funcionários me chamou à parte e perguntou: “Chiquinho, porque seus colegas de trabalho sempre pedem permissão pra ir lanchar e você nunca pede?” Com esse salário que ganho, não dá pra merendar! Respondi. Ele bateu em meu ombro. "Venha cá" Levou-me a uma lanchonete próxima, e ordenou ao balconista.
- Forneça lanche duas vezes por dia ao Chiquinho. No final da semana mande a nota. É a firma quem vai pagar.
Mas não parou por aí. Esse patrão tornou-se meu protetor e me convidou para fazer faxina com ele em seu apartamento, nos finais de semana. Com esse dinheirinho extra pude jantar fora aos domingos, pois no domingo a pensão não servia jantar.
O tempo corria, aproximava-se o momento de me apresentar ao serviço militar. O patrão, porém me chamou: “Chiquinho, não se apresente. Estamos em outubro, deixe terminar o ano, então, você paga uma multa e tira sua carteira de reservista. Nós pagaremos a multa por você”. Não cai nessa. Desobedeci. Provavelmente queria apenas deixar passar o Natal para me demitir e não correr o risco do empregado servir o Exército e a firma ter que pagar os encargos trabalhistas, férias, décimo terceiro e ainda garantir a vaga quando acontecesse a baixa.Apresentei-me no Quartel do Exército e no mesmo dia fui ao Ministério do Trabalho tirar minha carteira profissional. No dia seguinte me perguntaram se eu estava doente, pois nunca tinha faltado ao serviço. Mostrei minha carteira profissional ao italiano e respondi que não estava doente, faltei para me apresentar no quartel. Ele respondeu: “Não gostei de sua atitude e não sei que será feito de você”. Mais tarde me chamou ao escritório.
- Chiquinho! Infelizmente, você cometeu um erro e a firma está lhe dispensando. Volte amanhã para receber seu saldo.
Fiquei pasmo. Esperava ser qualificado e ganhar o salário mínimo completo, pois atingira a maior idade e tinha documentos. Fui demitido, pedi desculpas aos colegas e ao patrão e me retirei. Cheguei triste em casa e dei conhecimento ao dono da pensão. “Não se preocupe, você é um menino bom, não vai lhe faltar emprego! “
Já era noite, quando Benedito, meu companheiro de quarto chegou. Ele trabalhava numa fábrica de cigarros e ganhava, grátis, um maço por dia. Como não fumava, passava o cigarro pra mim, que naquele tempo, fumava. Contei-lhe que estava desempregado, ele não se abalou. “Tenho um ‘bico’ na Folha da Manhã. Vou passar pra você”. O ‘bico’ era meio salário, exatamente o que eu ganhava como menor na loja dos goglianos.
Cedinho fui com Benedito até a “Folha da Manhã”, lá fui apresentado ao seu Guilherme e já deixei minha carteira de trabalho. Estava novamente empregado. Meu amigo Benedito colocou sua bicicleta à minha disposição e eu a usava no serviço, à exceção do domingo. Este dia era sua folga e ele a usava para passear. Os anjos de Deus agem através daqueles que tiram os carrapichos cravados pelo inimigo em nossa pele ou afastam as pedras do caminho. Na vida conheci muitos revezes, mas nunca perdia a esperança de vencer a batalha, porque sempre encontrei anjos disfarçados em pessoas prontos para ajudar.
Trabalhei seis meses como jornaleiro e no próprio jornal que entregava li um anúncio oferecendo emprego. O anúncio oferecia vagas na Nitro-Química Brasileira.Como trabalhava somente até meio dia, e a segunda-feira era minha folga, apresentei-me imediatamente e garanti a vaga no novo emprego.
As coisas começaram a melhorar. Agora ganhando salário mínimo, podia pensar em economizar, guardar algum dinheiro e ter futuramente meu próprio negócio. Trabalhei durante três anos sem nenhum problema, até que um dia me apareceu um gato. Um gato mesmo, desses quadrúpedes que miam e às vezes provocam como se fossem um bípede que fala. Meu serviço era pintar cones. Cada cone recebia uma cor, de acordo com o tipo de fiação que seria enrolado nele. O gato passou se esfregando em mim. Uma vez, outra, outra vez, e novamente o gato passou esfregando seu dorso peludo. Nada adiantava dizer, “sai gato...” Saía e tornava a voltar. Irritei-me com o bichano e quando voltou de novo, passei-lhe uma pincelada de tinta nas costas. Aproximou-se outra vez, tornei a passar o pincel. Cada vez que vinha, eu dava uma pincelada de cor diferente. Ficou pitado de azul, amarelo, verde e com todas as cores que dispunha para usar nos cones. Parecia um cara-pintada do impeachment de Collor de Melo. Mas como o caso de Collor não deu em pizza, do gato também não deu. O bicho amanheceu entrevado, mais duro que pão dormido. Os operários estavam em polvorosa! O chefe vai punir severamente o responsável pela malvadez contra o gato. Será mandado embora sem direito e ainda processado pelo órgão de proteção dos animais. Duas piedosas funcionárias fizeram uma limpeza no felino. Poderia ser a salvação do animal e do pintor de gatos...
Havia um funcionário de maus antecedentes que era o principal suspeito, mas negava veementemente. O assunto no refeitório era o gato pintado e o destino que aguardava o pintor. Então perguntei. Cadê o chefe da seção. Alguém respondeu. “Está no escritório assinando a suspensão do funcionário xis.”
Eu sei quem pintou o gato. Não foi o senhor xis. Vou falar com o chefe. Entrei no escritório, o homem realmente assinava alguns papéis.
- Com licença, doutor! Eu sei quem pintou o gato. Não é a pessoa que o senhor vai punir.
- Você sabe a responsabilidade que está assumindo?
- Não chefe, nem sabia que pintar gato era crime, mas o senhor não pode punir esse acusado. Não foi ele.
- O senhor sabe quem pintou o gato?
- Sei.
O homem com ar de quem estava preocupado me encaminhou ao chefe geral sem tomar meu depoimento.
- Boa-noite.
O chefe geral levantou a cabeça e respondeu serenamente. Sente-se.
Minha ficha já estava em suas mãos.
- O senhor é seu Francisco de Assis Lima?
- Sou, sim Senhor!
- O senhor sabe quem pintou o gato?
- Sei.
- O Senhor sabe a responsabilidade que está assumindo?
- Não Senhor, mas estou aqui para falar a verdade!
- Então pode falar, rapaz!
A verdade é esta. Quem pintou o gato fui eu. É certo que não pensei em mal nenhum, só quis afastar um gato que me importunava enquanto pintava os cones. Errei. O senhor pode decretar minha sentença.
- A ordem que tenho é para demitir por justa causa e encaminhar o processo à Justiça, para que tome as medidas cabíveis. Mas o senhor é um ótimo operário, fica até difícil acreditar que seja responsável por isso. Sua atitude em assumir a culpa, confirma ainda mais seu caráter. Vou fazer um relatório à direção da empresa amenizando a culpa. Você se fez merecedor de minha credibilidade. Eu o aconselho a voltar amanhã à noite e se seu cartão estiver na chapeira, marque o ponto e vá trabalhar.
Meu cartão estava no local de marcação do ponto. Marquei-o e fui assumir meu posto. Apesar de ter sido perdoado, aquela rigidez me incomodava muito e a vontade de procurar novo emprego tomou conta de mim. O dia amanheceu, completei meu horário e voltei pra casa me sentido desmoralizado por um gato. Chegando lá, encontrei um conterrâneo do Piauí que havia pedido demissão do emprego, para cuidar de seu próprio negócio. Estava se dando bem no ramo que escolheu e me convidou para fazer o mesmo. Argumentei que meu dinheiro era pouco, mas logo surgiu quem me oferecesse cinco mil cruzeiros emprestados para começar meu comércio. Ai a argumentação de meu amigo fortaleceu. Comece seu negócio. Se não der certo, volte a ser o operário de antes. Se você topar, viajaremos amanhã mesmo. Não se preocupe, sei tudo que você precisa comprar pra vender em Goiás.
No outro dia, comprei tudo conforme me orientou e viajamos para Ceres. Em Ceres, hospedei-me numa pensão de uma senhora da região de Picos e assim me senti mais à vontade na presença desta e de outros conterrâneos que já estavam lá há mais tempo. Preparei minha modesta banca que consistia apenas em dois cavaletes e quatro tábuas. O ponto, relativamente estratégico ficava entre o restaurante e uma farmácia e defronte à estação rodoviária. Ali expus minhas quinquilharias.
A experiência foi favorável, pouco tempo depois, estava de volta a São Paulo para repor o estoque. Mas nem tudo são flores. Um dia encosta um cidadão em minha banca e pergunta se tenho relógio.
- Aí cabra, você tem relógio bom?
- Tenho sim, Senhor. Tenho três marcas, o senhor pode escolher.
- Quanto custa este. Perguntou sacudindo uma das peças.
- Um mil e oitocentos cruzeiros.
- Vai vender pra quem? Essa porcaria desse preço!
- Pra quem quiser comprar. Respondi.
- Você vai aprender a respeitar autoridade, cabra! Deu às costas e saiu. Voltou em seguida, ainda à paisana, numa viatura da polícia, com um sargento e um soldado. O sargento perguntou ao então militar à paisana.
- O rapaz é esse? Apontou pra mim.
- É, é ele mesmo.
- Você está preso por desacato à autoridade.
Enquanto isso, passava um filho do dono do hotel e foi correndo avisar ao pai.
- O mascate está sendo preso.
- O sargento tal está na viatura. Perguntou o pai do rapaz..
- Está!
- Vá lá e diga a ele pra vir aqui, antes de prender o mascate. O sargento atendeu ao chamado do hoteleiro e os dois conversaram dentro do hotel por algum tempo. O Sargento voltou. “Seu padrinho é forte, mas se você der bobeira, eu te pego na virada.”
A polícia bateu em retirada e imediatamente o hoteleiro se aproximou da banca. “Arrume suas coisas e vá embora daqui. Seja lá pra onde for, mas não fique mais nenhum minuto. Você não imagina o que lhe pode acontecer”. Tentei argumentar, mas ele falou com autoridade de pai. “Vá embora ou você nunca vai puder contar essa história. Se não tiver dinheiro, eu arranjo o que você precisar, mas desapareça e só volte se lhe avisar” Chamou o menino que lhe tinha dado o recado ordenou: “Só saia daqui depois que o mascate viajar”. Diante de tanta convicção, não tive como agir diferente. Arrumei minha tralha e peguei o primeiro ônibus que saía da cidade. Foi coisa de poucos minutos, pois trabalhava de frente à rodoviária.
Os filhos do dono da Auto-Viação Ceres eram meus amigos e me ofereceram uma passagem de graça para Formoso do Araguaia, mas eu disse que tinha uns parentes em Nova Glória e só iria até lá. Viajei sem pagar nada.
A cidade de destino era pequena. Não tinha rodoviária, mas encontrei um cunhado de Zé Serafim que trabalhava vendendo jóias compradas no Juazeiro do Norte. Armamos nossas barracas lado a lado, em frente a uma agência de passagens. Íamos razoavelmente bem de negócio. Além da amizade e das caninhas que tomávamos fora de expediente, nos divertíamos muito contando piadas enquanto não tinha freguês comprando. Até que um dia...
Passava o ônibus de Quebra-Cocos caindo aos pedaços na mesma hora em que acabara de contar uma piada. Meu amigo Gaguinho rolava de rir. O ônibus parou e o motorista saiu com um revólver na mão. Cessou o riso.
- Vocês estavam rindo de meu ônibus! Eu mato. Eu esfolo...
Tomei a palavra, tentando acalmar os ânimos. Companheiro, meu amigo estava rindo de uma piada que contei...
- Ah, não! Vocês riam de mim... Foi uma luta para acalmar o Gaguinho que queria ir às vias de fato com o valentão. Naquele dia voltamos mais cedo pra casa. Não havia clima para continuar trabalhando. Lá pelas tantas da madrugada acordei. Meu amigo mascate estava sentado na cama com uma caneta e um papel na mão.
- Vai dormir, fulano!
- Não! Amanhã vou acertar contas com aquele motorista que me humilhou. Aqui está a lista de tudo que tenho e do que devo no Juazeiro. Você vai me comprar essa mercadoria, pagar o que devo e me mandar o que sobrar. Avisarei a você onde estou. Devo tanto e aqui tem tanto em mercadoria. Você só me paga quando vender.
Foi duro remover a idéia de vingança de sua cabeça. Ficara com um revólver apontado em sua direção, ouvindo o desacato: “Pra ri de mim você não é gago”.
A rotina era sempre a mesma: guardar as mercadorias, tomar um aperitivo e ir tomar banho no córrego. Um dia, estávamos no meio da pinguela – uma ponte precária, apenas algumas tábuas serviam de passagem para veículos e pedestres. O ônibus velho apontou bem perto de nós, mas conseguimos alcançar a outra margem antes que embicasse na ponte. O susto foi grande, o motorista poderia simular um acidente e nos atropelar, imaginando que estávamos fazendo uma emboscada...
Assim que atravessou a ponte o ônibus de Quebra-Cocos parou. O motorista desceu. Mandou um portador nos procurar em seu nome para nos pedir desculpas pelo incidente de dias atrás. Aceitamos as desculpas e ganhamos um freguês. O dono do ônibus velho que nunca havia nos comprado nada, sempre arranjava um motivo para comprar aos mascates presentes pra mulher ou pros filhos.
Dias depois, passava um ônibus da Viação Ceres, o cobrador desceu gritando: “mascate, mascate, pode voltar para Ceres! A barra está limpa. Aquele policial, que lhe queria prender, deu um tiro num motorista do político fulano de tal lá de Goiânia. O comandante transferiu o policial para Uruana, mas o chefe político botou capangas no encalço do sujeito e apagaram o fogo do meganha”.
- Deram sumiço no sujeito? Quer dizer que foi pro andar de cima, ou quem sabe, pro andar de baixo?
- Sim. Pode voltar para Ceres. Vamos! Na viagem te conto tudo.
- Hoje não posso, mas amanhã eu vou.
Voltei para Ceres, mas não me fixei definitivamente ali. Passei a acompanhar as desobrigas da Igreja. Onde tinha um festejo religioso estava lá vendendo meus produtos. Numa dessas andanças por aí, desembarquei em Formoso do Araguaia, mesmo sabendo que por lá rolava uma epidemia cujo sintoma apresentava uma febre maligna que matava em quarenta e oito horas. Era uma coisa terrível. O motorista que levava os passageiros não os trazia de volta, mas era trazido em quatro alças.
Naqueles dias, correu um boato que um mascate havia morrido num surto epidêmico em Formoso. Terminada a festa, tomei o ônibus de volta para Ceres e mal o carro parou na agência de Nova Glória, fui o primeiro a descer, doido para tomar um cafezinho e pitar um cigarro. Mal pus o pé no chão, senti-me envolvido por um forte abraço. Era Zé Serafim. Graças a Deus você está vivo, disse ele. Olhe aqui a passagem! Eu já ia pra Formoso buscar seus restos mortais. Agora vejo que você está são. Pegue sua bagagem! Vamos pra casa festejar e amanhã você completa sua viagem. Diante de tamanha manifestação de amizade, não tive como recusar ao convite de meu anfitrião, até porque, naquela cidade morava minha paquera.A conversa rolou noite afora e não faltaram os comes e bebes. A paquera marcou presença até tarde da noite e como meu amigo não bebia, bebi por mim e por ele.
Voltei pra Ceres, mas não me sentia mais à vontade. Ceres, a hospitaleira deusa da agricultura não era a mesma para mim. Meu desafeto já não estava mais entre os vivos, no entanto, a lembrança daquele incidente me incomodava muito. Resolvi ir a São Paulo reabastecer meu estoque e em seguida procurar melhor campo para a atividade comercial em Anápolis. Em poucos dias de experiência, percebi que a praça não atendia às minhas expectativas. Procurei um armazém de estivas com o objetivo de conseguir transporte para o Norte de Goiás. Encontrei um Alfa Romeu carregado para Porto Nacional, mas o caminhoneiro olhou para mim e disse: “Não tenho transporte coletivo nem gosto de carregar passageiros, mas sei que é difícil transporte nesta linha.. Suba, já estamos saindo”. Andamos uns trinta quilômetros, o motorista parou para tomar um café. Desci, tomamos um cafezinho e ele pagou a conta.
- Você sabe contar piada?
- Sei algumas. Respondi. Na minha mente me veio à lembrança o motorista do ônibus velho de Quebra-Cocos com um revólver apontado e gaguinho tentando explicar. “Êêêêêêêêu eu tava rin in indo da pipi, pipi piaada!” E o motorista zangado gritando: “Pra ri de mim você não é gago!”
Assim, antes de contar qualquer outra piada, contei a história do gaguinho. Foi o suficiente para que o homem risse bastante. Passado o acesso de riso, perguntou-me:
- Suas malas estão bem amarradas lá em cima?
- Estão sim.
- Então de agora em diante você viaja comigo na cabine.
Viajamos durante três dias. É pena que a frágil memória de meus setenta anos, não me permite recontar toda tagarelice saboreada no trajeto daquela viagem. O fato é que ao deixar-me no Hotel Portoense, perguntei quanto lhe devia e a resposta foi confirmação de que tinha ganhado um amigo caminhoneiro.
- Se você me devia alguma coisa, vai continuar me devendo, porque não vou aceitar nenhum tostão seu. E tem mais. Estou voltando amanhã e sua vaga está reservada... Não pude aceitar a carona de volta, precisava ficar em Porto Nacional. Fiquei por alguns dias. Depois disso, negociei em Gurupi, Cristalândia, Xixás e outras cidades das imediações, mas nunca mais me encontrei com aquele amigo caminhoneiro.
Fazia cinco anos que estava derramado nesse mundo velho de meu Deus. A saudade represada e o desejo de abraçar os meus, me levavam a pensar no retorno ao torrão natal. Precisava vender o resto do estoque e voltar ao meu Piauí. A oportunidade surgiu com um convite a uma festa em Cristalândia.
Ora, onde há festa, há gente gastando dinheiro, comprando coisas. Fui. Parecia um bom momento para conciliar negócio e lazer. O caminhão fora fretado por uma turma de rapazes e moças, o motorista além de ser também o proprietário, levava sua namorada e isso dava certa confiança de que faríamos uma viagem segura, teríamos uma boa acomodação e uma festa tranqüila. Chegamos já no horário de almoço e logo em seguida sai vendendo minha mercadoria que já não era muita. Vendi quase tudo. À noitinha estava pronto para a festa dançante no clube da cidade.
Antes de adentrar o recinto, pus-me na calçada a observar as possibilidades de perigo. Olhando em volta, vi um cidadão correndo e gritando: “Ele vai aprender a respeitar homem”
O homem entrou no clube com o revólver na mão. Aproximei-me um pouco, ouvi o tiroteio e jamais imaginei que pudesse ser com alguém da caravana de Gurupi. Protegi-me detrás de uma caminhonete. O homem voltou ainda com o revólver empunhado. “Você é de Gurupi?” Respondi que não e ele seguiu cambaleando rumo à escuridão. Logo um táxi aéreo rasgou o céu e desapareceu no infinito. Entrei no clube e encontrei meu condutor desfalecido nos braços da amada, mortinho da silva. A turma de Gurupi estava em terra estranha, sem transporte, com um defunto na mão e sob suspeita de ser gente arruaceira. A liberação do corpo se deu no dia seguinte e só então pudemos retornar a Gurupi. Dois dias depois da tragédia, peguei um teco-teco de Gurupi a Porto Nacional. Ali deveria vender o restante do estoque e pegar o caminho de casa. Em Porto Nacional encontrei um velho conhecido, um joalheiro das bandas de Missão Velha, Ceará. Tratei do assunto. Estou voltando para o Piauí. Preciso acabar com um pequeno estoque de mercadorias... Ele respondeu: “Estou mesmo precisando. Se não for muita coisa, e a gente combinar no preço, eu fico com sua mercadoria, mas primeiro vamos visitar um amigo que está hospitalizado”. Enquanto andávamos em direção ao hospital ele me contou que seu amigo joalheiro tinha enfrentado uma briga em Cristalândia e chegara baleado há poucos dias. Comecei analisar os fatos. O valentão que vi passar correndo em Cristalândia era o joalheiro amigo de meu conterrâneo. Ouvi, silenciei e entramos no hospital para visitar o enfermo. O camarada estava deitado, como se estivesse dormindo... Ficamos ali por algum tempo. Em um dado momento o moribundo respirou fundo, deu um suspiro como se estivesse buscando fôlego para lutar contra a morte. Chamamos a enfermeira, mas antes que ela chegasse o homem esticou as canelas.
Meu conterrâneo agiu como dissera. Comprou-me toda mercadoria que restava e imediatamente tomei um avião para Carolina. Chegando em Carolina, embarquei no primeiro misto para Floriano e depois num caminhão para Picos. Em Picos não foi difícil conseguir carona em um caminhão-pipa que levava água para o acampamento da BR 020. A empreiteira tinha um canteiro de obras às margens do rio Riachão, no então acampamento do Povoado Santo Antônio. Finalmente, eu estava a três quilômetros de casa, agora era pegar a estrada e encurtar a cada passo a distância que me separava dos meus.
Deixei as malas no Acampamento com um parente e segui viagem à pé. Cruzei com alguns conhecidos, mas ninguém me reconheceu. Apenas Judite de tio Pascoal disse: “Você é Diassis. Seus irmãos estão no povoado fazendo compras”.
Era verdade, José Lima e Adalberto vieram abraçar-me calorosamente.
- Recebemos sua carta avisando da chegada. Mamãe disse que se você chegasse hoje, soltássemos uns foguetes dando o aviso. Disse José Lima.
Assim foi feito e logo após, seguimos para o Sítio São Paulo onde os demais familiares me aguardavam. Foram muitos dias de festa! Muito guaraná e capão gordo. A alegria de mamãe por ter-me novamente nas sombras de suas asas contagiava toda a casa. Em minha cabeça, porém, passava a idéia de voltar pro Goiás, mas isso seria muito doído para o coração de minha querida mãezinha.
Seria melhor retomar as viagens com meu pai, como outrora. Esperei papai chegar do Maranhão. Empreguei na compra de alho e cebola todo capital que acumulei durante cinco anos e recomecei a atividade de mangalheiro. Naturalmente já tínhamos experiência com a venda de mangalhos nos estados do Maranhão e Pará, entretanto, a mercadoria que comprei apodreceu toda. Foi perda total. Meu pai continuou no ramo, pois era dessa atividade que tirava o sustento da família, depois que fechou as portas de seu estabelecimento.
Meu capital tinha voltado à estaca zero. Precisava começar tudo de novo.Sabia que em Goiás tinha deixado muitos amigos que poderiam ajudar-me a reconquistar meu espaço no comércio ambulante. Voltar pra Goiás era minha melhor alternativa. Ainda assim, tentei ganhar a vida sem sair de casa trabalhando nas terras de meu pai.
O ano de 1960 parecia promissor para a atividade agrícola. Foi um ano de muita chuva e enchentes na região de Picos. Como havia perdido meu capital, resolvi plantar feijão. Comprei sementes fiado para pagar com a safra. Com ajuda da mão-de-obra familiar, plantei dez tarefas com sementes de boa qualidade. Choveu muito. Muito além do exigido pela cultura plantada. Nem bananeira agüentaria tanta água. Por causa do excesso de chuva, o feijão cresceu como nas fábulas infantis, engrossou a folha e nada produziu. Não me restava nada a fazer senão voltar pra Goiás. Comecei a despedir-me dos parentes e preparar para partir. Minha mãe chorava pelos cantos e sua alegria de antes, transformara-se numa profunda tristeza. Despede de parente aqui, despede de parente ali e numa dessas idas e vindas, ao chegar em casa, percebi que minha mãe tinha um brilho diferente nos olhos. Que será?
- Meu filho, venha cá! Você não precisa mais ir embora. Compadre Isaac acaba de sair daqui. Ele quer que você trabalhe no Armazém com ele lá em Picos. Você vai aceitar, não vai?
Não tinha como recusar! Mesmo que a oferta não fosse vantajosa, não poderia fazer sofrer aquele coraçãozinho de mãe.
- E cadê Isaac?
- Está em Santa Rosa e disse que você fosse para lá.
Minha mãe arrumou a mala. Fui ao encontro de Isaac. Pernoitei no retiro de meu futuro patrão e só no outro dia viajamos para Picos. A tia Maria, esposa de Isaac, ficou muito feliz em ver-me chegando para trabalhar em seu comércio, pois o armazém ocupava a parte da frente da residência e ela assumia o balcão, na ausência do marido. Tendo uma pessoa de confiança trabalhando ali, a patroa poderia cuidar melhor dos filhos e dos afazeres domésticos.
No mesmo dia em que cheguei, Isaac viajou pro Recife e deixou comigo uma lista com o preço das mercadorias. Inicialmente assustei-me com o peso de tamanha responsabilidade. Tomar conta de um grande comércio de secos e molhados e o patrão viajara, antes mesmo de me inteirar sobre tudo que vendia.
As prateleiras estavam abarrotadas de mercadorias das mais diversas espécies e marcas. Sacarias empilhadas para venda no atacado contornavam as paredes e na linha do balcão, algumas abertas para venda à granel.

Logo que Isaac saiu, chegou o primeiro freguês. Uma senhora da cidade queria comprar canela em casca.
- Quanto é um quilo de canela. Perguntou.
- É trinta cruzeiros. Respondi consultando a lista.
- Pois pese meia quarta bem pesada pra mim.
A mulher queria 125 gramas. Naquele tempo não tínhamos balança de precisão como temos hoje. Rapidamente tomei um peso de quinhentos gramas e pus num dos pratos da balança. No outro prato, despejei a canela. Quando os pratos se alinharam horizontalmente e o ponteiro parou no centro da haste, peguei o meio quilo de canela pesado a “ouro e fio”, dividi em duas partes e coloquei uma metade num prato e a outra metade no outro. Aquinhoei as partes tirando daquela que tinha mais e colocando na que tinha menos, até a balança acusar que ambos os pratos tinham o mesmo peso. Teríamos, portanto, duzentos e cinqüenta gramas em cada prato. Repeti a operação até conseguir os 125 gramas solicitados pela cliente. Embrulhei a mercadoria num papel, entreguei àquela senhora e fiquei esperando o pagamento. Ela não pagou. Em vez disso, atirou o pacote sobre o balcão e berrou. “Eu pedi bem pesado e não foi isso que você fez! Depois eu volto. Você vai ver” Logo entendi o recado: ela voltaria para fazer minha caveira, quando Isaac chegasse.
No sábado seguinte a mulher voltou e fez o mesmo pedido em alta voz, decerto, queria que o patrão escutasse. Refiz todo processo de pesagem tal qual da vez anterior. Meio quilo, depois uma quarta e finalmente a meia quarta solicitada, sempre submetendo cada parte divida ao fiel da balança.
- Eu quero meia quarta bem pesada, ou você pesa bem pesado ou não levo.
Olha aqui seu Isaac, na semana passada estive aqui e esse empregado seu me atendeu do mesmo jeito. O tempo todo reparei como ele pesava a canela. Assim não quero! Protestou em alta voz. Isaac aproximou-se de mim. “Bote mais um pouco na parte dela, deixe o prato baixar” Coloquei. Ela pagou e saiu.
- Seu “Guaxi”, você está certíssimo, mas o freguês sempre tem razão.
Aquele empresário, sabiamente, me deu uma grande lição de pós-venda. Entendi perfeitamente que o grau de satisfação do cliente é muito importante para manter cativa a clientela. Nunca questionei por que me chamara de “Guaxi”, talvez visse em mim uma esperteza semelhante a do guaxinim que não se deixa surpreender e dificilmente cai em armadilhas. Aquela freguesa não conseguiu tirar meu emprego, nem mesmo me levar a sofrer uma advertência ou recriminação. O “você está certíssimo” ouvido do padrão, confirmava minha vocação ao que é justo e fiel. “Mas o freguês tem sempre razão” é tática para não perder a freguesia.
Trabalhei com Isaac durante dois anos, fui ao mesmo tempo, gerente, balconista, caixa e carregador. Fazia tudo e tudo era feito com boa vontade. Essa disposição para o trabalho despertou o interesse de outros empresários que não mediram esforços para me oferecer melhores salários. Porém, não tomaria nenhuma decisão sem consultar meu empregador.
- Isaac, uma firma de Araripina me fez uma proposta tentadora de emprego, mas prefiro arranjar um sócio e ter meu próprio negócio.
- Não tem problema, faço uma sociedade com você, mas tem uma condição: não trabalhar com o mesmo produto que trabalho.
- Com essa condição, não posso aceitar. Respondi-lhe.
Ele, porém, apresentou outra proposta.
- Podemos comprar um caminhão de sociedade. Dou uma boa entrada e financiaremos o restante. Você vai trabalhar, quando pagarmos o financiamento, venderemos o caminhão, retiro a entrada que dei, e o restante será dividido ao meio. Aceitei a proposta, compramos um caminhão novo e botei na estrada. Mas que estrada?
A Rio - Bahia era ainda praticamente carroçável e só se encontrava o primeiro palmo de asfalto quando entrava no Estado do Rio. Naqueles idos de sessenta, eu viajava do Piauí a São Paulo, com meu caminhão Chevrolet 1961, novinho em folha. Dava pena botar um carro novo numa estrada tão velha... Depois de vencer um atoleiro após outro, entrei na Bahia e parei o caminhão num desses postos de gasolina que oferecem combustível para (re) abastecer o tanque do caminhão e do motorista. Quando já estava na cabine para (re) tomar a estrada, um garoto subiu no estribo e me perguntou:
- Moço, você pode me dar um bigu até Carrapichel?
- É você sozinho, perguntei-lhe.
- É, é só eu e um boca-pio!
- Se esse boca-pio não morder, pode subir.
O garoto passou a mão num surranico de palha e subiu na carga.
Fiz outras viagens pelo Brasil afora, até pagar todas as prestações do caminhão trabalhando para quatro: pra mim, pra meu sócio, para o banco que emprestou o dinheiro e para o caminhão que bebia de gasolina o lucro quase todo. Vendemos o caminhão e me coube a quarta parte de seu valor. Esse pequeno capital era pouco para minhas pretensões, então procurei tio Cândido e propus fazer com ele uma sociedade.
- Eu tenho o dinheiro que você precisa. Respondeu ele. Mas já estou velho e cansado. Não preciso investir mais nada para garantir minha sobrevivência. Vou lhe passar o dinheiro. Faça o que for melhor pra você.
- Tio Cândido, é vontade minha oferecer algo em troca. Aceito o dinheiro, desde que sejamos sócios.
Peguei o dinheiro e a documentação necessária e registrei a firma Assis Lima e Silva, na Travessa 15 de Novembro, no centro de Picos. Tio Cândido cedeu-me uma casa desocupada que possuía na Rua Coronel Luís Santos, número 50 e então pude realizar o grande sonho de ajudar a família. Primeiro trouxe o irmão caçula, depois fui trazendo outros, e assim puderam trabalhar e estudar. Minha intenção era reunir a família sob o mesmo teto, à exceção de Socorro e Carmélia porque eram casadas.
Com muito sacrifício, consegui adquirir uma casa na Rua São Sebastião e trazer papai, mamãe e as três irmãs mais novas, Fátima Wilzenir e Vilzedir que ainda estavam com meus pais. Mais tarde, Neomísia que era professora em Santo Antônio remanejou o cargo para Picos e veio a morar também na casa, que sabiamente os meninos intitularam de casarão.


No hospital



Cavaleiro esporadicamente e cavalheiro sempre, nunca cai do cavalo por ser cavalheiro, mas por duas vezes o cavaleiro caiu. Na primeira vez ainda criança, fraturei a clavícula. Na segunda vez, já adulto, a coisa foi mais séria. Foi uma brincadeira que me custou caro! Pulei na garupa de um cavalo, ele se assustou e me jogou no chão. A dor foi grande, a ponto de não puder andar, portanto, inválido para o trabalho.
Fiquei acamado. Recebi visitas de muitas pessoas, mas a cura não veio visitar-me. Visitei um médico o qual suspeitou de uma lesão na coluna provocada pela queda e me recomendou procurar recursos médicos em um grande centro. Fui a Recife. Fiquei internado durante trinta dias, mas não melhorei. Paguei a conta hospitalar e decidi ir pra São Paulo. Tomei um ônibus leito pra São Paulo, porque minha saúde não permitia uma longa viagem em ônibus convencional. Para conter gastos fui sem nenhum acompanhante da família. Mas nunca estive só, Deus colocou anjos em meu caminho agindo através das pessoas.
A metrópole paulista é minha velha conhecida, assim, ao desembarcar na rodoviária fui de táxi a um hotel na Rua 21 de Abril, no Brás. Acomodei-me como podia e em seguida, fui ao banco descontar um cheque administrativo de emissão do próprio banco, o chamado cheque de ordem de pagamento. O cheque era de valor significativo, pois o caixa chamou o Gerente-Adjunto para autorizar o pagamento.
- O Senhor gostaria de abrir uma conta conosco. Perguntou-me.
- Talvez não! Esse dinheiro é para custear despesas hospitalares. Estou com sério problema de saúde e preciso de um bom ortopedista. O senhor conhece algum?
- Posso mandar consultar o catálogo, aguarde um pouco.
Um jovem logo apareceu com caneta, papel e um catálogo telefônico. Escreveu os nomes de cinco médicos com o número do telefone de cada um e me entregou. “Esses são os ortopedistas mais renomados de São Paulo”. Botei o indicador sobre o nome de um deles. “É para este que vou. Muito obrigado”.
Procurei o médico e apresentei-lhe o resultado dos exames que já tinha feito em Picos e Recife. O médico examinou cuidadosamente cada um deles. “Deite ali”. Apontou para uma cama hospitalar. Deitei-me e ele apalpou minha coluna a partir do cóccix até a vértebra cervical. Olhou para mim e vendo minha cara de nordestino disse:
- Cabra da peste, seu caso é grave. Requer uma cirurgia muito melindrosa. A chance de sobreviver é de um em cada cem, mas se não operar, vai ficar aleijado. Uma de suas pernas está afinando.
- Em quanto fica essa operação?
- É cara!
- Se for caro não posso pagar.
- O que você faz lá no Nordeste?
- Sou um pequeno comerciante.
- Paga INPS?
- Pago!
-Tem algum comprovante aí.
- Tenho.
Tirei do bolso uma carteirinha que trouxe comigo por orientação da chefa do INPS. Ela e o esposo eram meus amigos.
- Você está habilitado, cabra. Disse o médico. Procure-me amanhã no Posto do Tatuapé. Não enfrente fila, deve estar muito grande.
Cheguei lá cedinho. Postei-me em frente à porta de modo que pudesse ser visto, logo que ela fosse aberta. O primeiro da fila tocou em meu ombro. “Ei, a ponta da fila é do outro lado” Eu sei, mas só vou pra fila quando tiver certeza se esse que atende aí é mesmo meu médico. A porta se abriu. O médico me chamou. Fiquei pouco tempo no consultório, pois a ordem para minha internação no Hospital e Maternidade Nossa Senhora do Carmo estava prontinha. O endereço era conhecido, ficava no Brás, na mesma rua do hotel em que estava hospedado. Passei no hotel, fiz minha mala e segui a 21 de Abril até o hospital. Fui imediatamente internado. Junto comigo na enfermaria tinha um senhor de meia idade. Parado, calado, como se estivesse em fase terminal. A enfermeira apontou uma protuberância na parede. “Aquela é a sirene. Em caso de emergência, aperte o botão”. E saiu logo.
A presença moribunda do companheiro calado, inicialmente, não me perturbou o sono. Porém, às duas horas da madrugada, acordei ouvindo um barulho estranho. Acendi a luz e vi o companheiro se esticando na cama. Acionei a sirene. Vieram dois enfermeiros que logo correram para chamar o plantonista. É óbito, disse o médico. Levaram meu companheiro ao necrotério e daí em diante, não consegui mais dormir. Logo que o dia amanheceu fui me arrastando até a portaria.
- Moça, mande-me para outro quarto, naquele não fico mais!
- Não tem vaga seu Francisco, o senhor tem que ficar lá aguardando o resultado dos exames e a marcação da cirurgia.
Voltei pra enfermaria, arrumei minha matula e dirigi-me ao balcão de atendimento para pedir baixa da internação. “Sente-se seu Francisco. Vou procurar o diretor”. Disse a atendente tentando acalmar-me. Ela fez algumas ligações internas e logo chegou um cidadão alto, forte e com um gesto delicado deu um tapinha em minhas costas. “Qual é seu problema?”
- Morreu um companheiro de enfermaria e naquela dependência não fico mais nem um minuto!
- Calma rapaz, vou solucionar o caso. Siga-me.
Alguém levou mala enquanto nos dirigíamos a outra enfermaria, no mesmo pavimento. A nova sala de enfermagem dava de frente pra rua e tinha apenas dois leitos, um deles já ocupado. O hospital era recuado e sem muros, de modo que podia ver o movimento de carros e pedestres. A cama ao lado da janela estava desocupada. Apoderei-me dela. O diretor perguntou-me: “está bem acomodado agora, seu Francisco?”
- Sim, aqui parece bem melhor.
Olhei em volta fazendo um reconhecimento do espaço. Meu companheiro, aparentemente saudável, acompanhava com os olhos toda movimentação. Lá pelas tantas da madrugada, acordei com um estranho no ninho. Numa maca entre a minha e a outra, um homem todo amarrado gemia. Acionei novamente a sirene e perguntei a enfermeira. Só há espaço para duas camas, por que vocês botaram mais uma? “Não se preocupe, fizemos os primeiros socorros, quando o dia amanhecer, este paciente será transferido para o Hospital das Clínicas.” O homem estava enfaixado dos pés à cabeça. Parecia uma múmia.
O dia amanheceu. Chegou um médico todo de branco, com duas enfermeiras também de branco. Tirem as ataduras, disse ele às auxiliares. A cena me fez lembrar a ressurreição de Lázaro. Se esse homem se levantar e sair andando, eu corro. Pensei. O paciente foi finalmente desamarrado e as tiras lançadas numa lixeira próxima. Levaram o doente. Olhei aquele material. Posso fazer uma corda com ele. Comecei a trabalhar. Meu companheiro não conteve a curiosidade. “Quero saber o que você vai fazer com isso” Respondi simplesmente: Aguarde! Feita a corda, peguei uma cédula de cinco cruzeiros, escrevi um bilhetinho, amarrei tudo na corda e soltei pela janela. No bilhetinho dizia, “por favor, compre-me uma garrafa de guaraná". Feito isso, acenei a um transeunte que passava na calçada. Em poucos minutos, uma garrafa de guaraná e o troco estavam amarados na cordinha. Foi só puxar! Meu companheiro riu. “Você é cheio de artimanhas”. Tomamos o guará, lavei a garrafa na pia, amarrei-a novamente na corda com uma cédula de dez e soltei pela janela. Um viandante curioso aproximou-se. Não é comum uma garrafa pendurada por uma corda numa janela de hospital. Amigo, por favor, compre-me café, jornal e um maço de Hollywood. Ponha o café na garrafa e amarre tudo na cordinha. O homem saiu levando a garrafa vazia e o dinheiro. Demorou bastante, mas voltou trazendo a encomenda e a justificativa da demora. “Tive que andar três quarteirões, para comprar tudo que o senhor pediu”. Muito obrigado, disse-lhe.
Depois que apliquei esse expediente, não nos faltou mais revista, jornal, refrigerante, café e cigarros.
Durante treze dias de internamento fiz uma bateria de exames cujo resultado apontou para cirurgia. Fui operado. Decerto eu era um entre os cem escolhidos por Deus para sobreviver, porque horas mais tarde, já estava em convalescença na enfermaria do Hospital Nossa Senhora do Carmo – Jesus tinha me mandado para ser curado da coluna na casa de sua mãe.
A cordinha voltou a ser lançada pela janela, logo no terceiro dia do pós-operatório. A mesma enfermaria, o mesmo companheiro de quarto e a engenhosa cordinha, tudo concorria para que as coisas acontecessem como antes. Os transeuntes eram outros, mas em nenhum momento alguém se recusou a prestar tão valiosos favores. Todo dia tínhamos nosso lanche extra escalado pela janela, bem como jornal, revista e o que se pedisse.
Dezoito dias depois de operado, recebi alta e voltei ao Piauí de avião com passagem paga pela indústria de sandálias Waikii, um de meus fornecedores, cujo presidente visitou-me várias vezes no hospital.
A despedida de meu companheiro de enfermaria me fez sentir um nó na garganta. Meu amigo chorou. “Agora como vou adquirir as coisas que preciso, sem você na janela para soltar a cordinha. Quem fará por mim o que você fez”. Dizia ele esfregando os olhos.
Amigo, disse-lhe eu. Não há ninguém insubstituível, logo chegará alguém para lhe fazer companhia. Você me deu ouvidos quando precisei falar e falou quando precisei ouvir. Isso foi muito importante pra mim. Fomos cúmplices ao quebrar o regulamento do hospital, fazendo entrar alimento e outros objetos vindos de fora. Sou-lhe grato também por guardar esse segredo. A melhor coisa da vida é quando dois amigos se sentem endividados entre si, porque, nunca deixam de servir e nem se cansam de agradecer. Com essas palavras saí do hospital.
Lá fora, meu amigo Chico João esperava para carregar a bagagem e me levar até o hotel. No dia seguinte comprei duas passagens de São Paulo a Teresina. Comprei duas passagens para me acomodar melhor nas poltronas. À medida que o ônibus parava nalguma estação entrava mais gente. Naquele tempo não havia um controle rigoroso quanto ao número de passageiros, enquanto coubesse um pé lá dentro, ia entrando passageiro. Por longas horas ninguém me incomodou, porém, já no segundo dia de viagem um cidadão aproximou-se de mim exigindo que lhe cedesse uma das poltronas, pois ele estava em pé e eu usava duas. Meu senhor, estou usando duas poltronas porque estou operado e não só por isso, mas também porque comprei duas passagens. Veja! O homem afastou-se irritado, mas me deixou em paz.




Novamente garimpando a sorte


Seis meses de convalescença foram suficientes para retomar com todo vigor minhas atividades, mas comercialmente, não ia bem. As despesas com a clínica em Recife correram por minha conta e abalaram consideravelmente minha saúde financeira. Além disso, aquele ano de 1973 tinha sido de grande seca e as conseqüências da estiagem afetaram gravemente o comércio. Com o fito de restaurar minha situação econômica visivelmente debilitada, vendi o ponto comercial da Av. Getúlio Vargas, por trinta e cinco milhões de cruzeiros, comprei um Jeep Toyota e migrei para Goiás. Meu pretendido Eldorado era Porangatu, cidade do Norte. Uma escala em Guaraí foi providencial para recobrar as forças e trocar idéias com Raimundo Deusdará, meu conterrâneo e amigo de longas datas que morava ali há alguns anos.
- Diassis, você não vai viajar com esse Toyota sem freios. Mande arrumar aqui ou bote em cima de uma dessas cegonhas que retornam vazias de Belém.
Realmente, a Belém-Brasília estava praticamente pronta. O movimento de veículos na estrada era muito grande e isso aumentava o risco de viajar com o jipe sem freios. Não houve dificuldade para encontrar uma cegonha vazia, mas o Toyota era muito alto e teve que ir na última prancha de cima. Embarquei meu veículo e continuei a viagem de ônibus. Logo que cheguei em Porangatu, procurei o Banco do Brasil para abrir uma conta-corrente.
O funcionário quis saber de quanto seria o depósito inicial. Meti a mão na carteira e puxei um cheque de ordem de pagamento no valor de trinta milhões. Era quase o total da venda de um prédio na avenida de maior concentração do mercado atacadista de Picos. O funcionário me pareceu assustado. Chamou o gerente e lhe apresentou o novo cliente, fazendo questão de frisar que o depósito inicial era de trinta milhões. O homem pareceu simpático e gentil. Conversamos um pouco, falei de minhas intenções naquela cidade e ele deu ordens ao funcionário. “Abra a conta e dê a seu Francisco um limite cheque-ouro de cinco milhões. Mande confeccionar imediatamente um talonário de cheques com vinte folhas e providencie o cartão de garantia”.
Antes que o gerente se retirasse eu o agradeci e como nunca menti na vida, disse-lhe. Sou de Picos. Em minha terra natal tentei mais de uma vez conseguir um cheque especial, mas sempre me foi negado. Lá tenho casa residencial, vários pontos de aluguel e duas propriedades numa antiga zona rural que se tornou bairro da cidade. Uma delas está loteada, mas o Banco do Brasil de Picos nunca me deu crédito compatível com meu patrimônio. Todas as vezes que precisei de dinheiro, só obtive migalhas. Muito obrigado por confiar em mim. Garanto que não vou decepcioná-lo.
O homem respondeu. “Você me causou boa impressão, independente do valor de seu depósito, eu lhe daria um cheque especial sem nenhum receio. Pode contar com o Banco do Brasil”.
Saí dali reconfortado porque acabara de vencer uma batalha, finalmente, tinha uma conta-corrente com cheque garantido. Enquanto caminhava em direção à porta de saída do banco, vi lá fora o motorista da cegonha acompanhado de dois soldados. Que terá acontecido a meu Toyota?
O carreteiro disse aos policiais: “Aquele é o dono do jipe que destruiu a rede central da companhia telefônica”.
- O senhor é o dono do Toyota?
- Sou.
- Poderia nos acompanhar até a Central Telefônica.
- Pois não! Vamos lá.
Ainda bem que não estou indo pra cadeia, pois aqui não tenho o velho amigo hoteleiro para me defender. Pensei com meus botões, tentando não reviver as cenas do incidente de Ceres. Seguimos num veículo da própria companhia telefônica até a casa do empresário. Ele era dono da empresa privada que explorava o serviço de telefonia de Porangatu. Sem muito rodeio, foi direto ao assunto.
- Seu jipe provocou uma pane na rede telefônica de toda cidade, pois atingiu a fiação central. Pra onde vai o senhor conduzindo um veículo numa altura daquela.
Estou vindo do Piauí. Meu plano de viagem termina aqui. Pretendo estabelecer-me na cidade com um comércio atacadista. Gostaria de trabalhar com estivas, se encontrar um ponto adequado quero instalar-me logo. Depois de conhecer meus sonhos de tornar-me empresário em Porangatu, aquele cenho austero de antes se desfez em meio sorriso.
- Seja bem-vindo a Porangatu! A cidade está de braços abertos para receber todos aqueles que vierem engrandecer esta terra. Conte com meu apoio. A companhia telefônica tem condição de assumir sozinha os custos de restauração da linha, sem arranhar seu perfil econômico. Agora vá cuidar da instalação de seu negócio. Boa sorte!
Tudo seria mais fácil se não houvesse tanta burocracia. Finamente, com muitos gastos de dinheiro, tempo e paciência, constituímos a firma Deusdará e Silva Ltda., em Porangatu. A cidade está situada perto de Anápolis, grande centro de abastecimento, assim, os maiores produtores se abasteciam em Anápolis e minha vendagem se restringia a produtores de menor porte. Não há dúvida que fiz muitas amizades em Porangatu, mas não obtive crescimento econômico e permaneci ali por apenas um ano. Faltando oito dias para me retirar com destino a Guaraí, recebi a visita de seu Setembrino. Amigo, disse-me ele. “Não se despeça de mim. Sou muito emotivo. Só quero que saiba que você foi o melhor amigo que já tive até hoje”. Setembrino, meu amigo, seu Set, era de fato muito sensível, enquanto falava duas lágrimas escorriam em seus olhos. Não se despediu. Saiu devagarzinho... Devagarzinho... Até alcançar a rua e fugir do meu ângulo de visão.
Guaraí era pequena, mas muito promissora, por causa da Belém-Brasília que corta o centro da cidade. Embora a estrada já estivesse em fase final de construção, um dos escritórios da empreiteira estava instalado ali, com isso, corria muito dinheiro nos dias de pagamento dos operários. A movimentação de veículos e caminhões, também favorecia algum tipo de atividade comercial, principalmente de hotel, restaurante, posto de gasolina e bar. Não era esse meu ramo. Ainda de sociedade com Raimundo Deusdará, construímos o prédio e instalamos um armazém e sorveteria. Não senti segurança que o investimento viesse a me proporcionar a estabilidade econômica pretendida. Por conta disso, vendi minha parte na firma a meu sócio e mudei-me para Belém do Pará. Em Belém registrei uma firma individual de secos e molhados na Av. Pedro Miranda e comecei vida nova. Tudo ia às mil maravilhas. Não dava para avaliar as possibilidades de expansão dos negócios porque estava muito novo na praça, mas de qualquer forma, estava na Capital do Estado, portanto, as possibilidades de crescimento econômico eram maiores do que numa cidade pequena.
Cidade grande, problemas também grandes. Foi o que aconteceu depois de receber a visita de um fiscal da Saúde Pública.
- O senhor vai ter que impermeabilizar as paredes e colocar estrado em toda extensão do piso. As mercadorias não podem ficar em contato com a umidade.
Julguei a medida desnecessária, mas ordens são ordens. Procurei uma madeireira, comprei tábuas e barrotes, contratei um carpinteiro num final de semana e na segunda-feira toda mercadoria já estava sobre os estrados. Naquele mesmo dia, o fiscal voltou e me deu quarenta e oito horas para que mandasse impermeabilizar as paredes, senão, lacraria as portas de meu estabelecimento. Na terça-feira cedinho chamei minha secretária e avisei. Vou à Secretaria de Saúde Pública, se até as quatorze horas não retornar, você deve ligar para o número xis... E lhe passei o telefone de Quinel. Sai desorientado, perguntando a mim mesmo. Por que tanta barreira? Por que tanta perseguição ao homem honesto? Bem dizia Rui Barbosa: “Cresce a injustiça, agigantam-se os poderes dos maus...”
Na Secretaria de Saúde, recebi uma senha. Esperei duas longas horas até chegar a minha vez de entrar na sala do Secretário.
- Que o trouxe aqui?
- Vim tratar de uma autuação contra a firma tal...
- O senhor é o dono?
- Sou.
O Secretário abriu a gaveta do birô, puxou um pacote de documentos entre os quais se encontrava o processo contra minha empresa. Leu todas as minhas obrigações, todas as providências que deveria tomar e o parecer do agente fiscal, propondo o fechamento, caso não fossem cumpridas as exigências da fiscalização. Naquele momento, não sei que poder se apoderou de mim. Bati em meu pulso e exclamei: Dr. O sangue que corre nessas veias é de homem honesto, mas é o mesmo que corre nos assaltantes da Estrada Nova e do Cais do Porto. Pode ser que estejam lá por opção, mas prefiro acreditar que foram empurrados pela sociedade em circunstâncias semelhantes a esta que estou vivendo agora. Vim para esta cidade para trabalhar, crescer e ajudar a cidade, pago todos os impostos e sou um intermediário entre o produtor e o consumidor. Sou útil à sociedade ao exercer uma atividade comercial, mas não estou isento de amanhã ficar ao lado daqueles com quem jamais imaginei estar.
Acredito que aumentei o tom de voz, porque senti uma mão sobre meu ombro e ao olhar de soslaio percebi que se tratava de um policial pronto para agir, se fosse necessário. Eu também estava pronto, esperando alguma reação. Ficamos parados por alguns segundos. O chefe relaxou. Pegou o processo e rasgou em quatro partes.
- Volte! Vá trabalhar. Não vou lhe mandar para a Estrada Nova nem para o Cais do Porto. Garanto que ninguém mais vai lhe incomodar.
Agradeci e pedi desculpas por meu descontrole emocional. “Esqueça. Vá cuidar de seu negócio”. Foram suas últimas palavras. Retirei-me mais calmo, embora sentindo a presença incômoda do policial que me seguiu até o portão.
Fiquei no ponto comercial sem fazer nenhuma impermeabilização até mudar-me para Imperatriz onde passei a comprar arroz para vender na Bahia. Trabalhei seis meses despachando três ou quatro cargas de cada vez. Em cada comboio que despachava, seguia num dos caminhões como se fosse carro de apoio. Em determinada feita, carreguei dois caminhões e uma carreta. Segui na carreta fazendo o batedor. Nas imediações entre Valença e Inhumas do Piauí uma roda traseira se soltou. O motorista parou a carreta. Rompemos mata adentro, na batida deixada pelo pneu e o encontramos daí a uns quatrocentos metros.
Paramos em Picos. Consertamos a roda, mas atrasamos a viagem e perdemos contato com os dois caminhões do comboio. Logo que entramos em Juazeiro da Bahia, o carreteiro fez uma meia manobra para abastecer, a carreta fechou um caminhão de entregar material de construção. Não houve abalroamento, mas o motorista que fazia entrega disse um palavrão. Meu motorista desceu da carreta com um revólver 38, engatilhado. Percebi que ia atirar, coloquei-me na frente do revólver e falei com certa autoridade. Você ficou maluco! Baixe essa erma! Ele respondeu saia da frente! Saia, senão atiro! Permaneci firme. Não arredei o pé, até que o alvo desejado desapareceu no meio do trânsito, confundindo-se com outros caminhões.
Entramos na cabine. O carreteiro guardou a arma debaixo do assento do motorista e tocou pra frente. Apanhou uma estrada deserta e andou em torno de trinta quilômetros. Não falei nada. Ele também não disse uma palavra até encostar a carreta. Parou no acostamento.
- Você é doido ou tem coragem demais! Por mais de uma vez pensei em puxar o gatilho. Vamos esquecer esse episódio. Disse enfiando a mão debaixo do banco.
Achei que fosse pegar o revólver. Avaliei o provável campo de batalha. O volante atrapalharia seus movimentos... Eu levaria vantagem por ter mais espaço. Esperei que sacasse primeiro, mas me ajeitei de modo a puder sacar rápido. Acompanhei o movimento de sua mão enquanto apanhava alguma coisa debaixo do banco. Ele puxou.
Puxou uma bíblia, pediu que abrisse aleatoriamente e lesse a página aberta. Li João 16,1. “Disse-vos essas coisas para vos preservar de alguma queda. Expulsar-vos-ão das sinagogas, e virá a hora em que todo aquele que vos tirar a vida julgará prestar culto a Deus”.
Ele chorou muito e me contou sua história. “Eu fazia parte do esquadrão da morte. Meu apelido era... Durante muitos anos achei que matando bandidos estava fazendo o bem à sociedade, mas essa não é a vontade de Deus. Sou convertido, mas hoje quase ia acontecendo outra vez o que sempre fiz durante muitos anos... Não quero jamais fazer o que fazia antes. Jurei pra mim mesmo que nunca mais tiraria a vida de ninguém, por isso resolvi pegar a estrada. Pode confiar em mim... Enquanto você estiver comigo ninguém lhe fará mal algum”.
Continuamos a viagem. Em Vitória da Conquista os dois caminhoneiros aguardavam nossa chegada para descarregar os caminhões.
- Venda primeiro as cargas dos caminhões. Não se preocupe comigo, disse o carreteiro.
Vendi as duas carradas e só depois de quatro dias fui vender a carga da carreta. Despedi-me do carreteiro com o compromisso de um dia nos encontrarmos, mas esse encontro não aconteceu. Aquela foi a última viagem que fiz com carregamento de arroz, pois o risco era grande e o lucro, pequeno.



Reconstruindo a vida



Quando o risco é grande e o lucro pequeno é melhor mudar de ramo. Com esse pensamento, deixei Imperatriz e voltei definitivamente para Picos. A cidade crescera muito. Não cabendo mais dentro de si mesma, avançou para os lados. Minhas propriedades outrora consideradas zona rural, há algum tempo se tornaram zona urbana. Por sorte, aquela que fora loteada antes, estava quase toda em minha posse e domínio, portanto, poderia dispor de alguns lotes para incorporar recursos financeiros às minhas reservas e abrir um comércio varejista. O primeiro passo foi adquirir um imóvel nalguma rua apropriada para o comércio de eletrodomésticos. Surgiu então uma casa residencial na Av. Getúlio Vargas. A construção bastante recuada e pequena, não apresentava condições adequadas para o tipo de negócio pretendido. Mesmo assim, comprei a casa, mandei derrubar e construí no lote um ponto comercial.
Era ainda um quarentão solteiro. Construíra prédios, mas não havia construído ainda um ninho. “As raposas têm suas tocas e os pássaros, seus ninhos”. Cada um divide, com sua companheira, tempo, espaço e cumplicidade. Eu precisava encontrar minha outra metade que decerto esperava também completar a sua. Enquanto sonhava envolto em mil planos, indagava a meu coração. Onde está minha amada? Talvez quem sabe, guardada em anos maduros, aguardando-me chegar. Cheguei. Acheguei de mansinho uma jovem, doze anos e meses mais nova. Algo me dizia, é ela... Alguns pontos em comum nos uniam: a idade madura de ambos, o nível social e os hábitos familiares. Finalmente, dois jovens se encontram pra sonhar os mesmos sonhos. Jovem naquela idade? Porque não! Não é jovem um coração que ama? Amar é ver no semelhante aquilo que há em si mesmo. É ver o irmão através das janelas do coração, porque só o coração vê o que é invisível aos olhos. Enquanto o homem amar, será sempre jovem, porque renovado, a cada dia, pela força restauradora do amor.
Não há barreira que o amor, a fé e a esperança não possam transpor, nem sonho impossível de realizar, se sonhado acordado, com os pés bem fincados no chão. Sonhamos juntos com casa e filhos – uma família. Sonhávamos juntos e dormíamos separados, porque nos faltava o sacramento do matrimônio. Cabe a cada um decidir se edifica sua casa sobre a rocha ou na areia tocada pelo vento das paixões temporárias, descomprometidas. Nossa formação religiosa de várias gerações católicas nos levou a edificar sobre a Rocha, de sorte que, em 11 de outubro de 1980, na presença de Deus e da comunidade, nos tornamos um só corpo e uma só carne. A bênção de Deus repousou sobre nós, através das mãos sacerdotais de Dom Alfredo Schaffler. Houve festa na terra e os céus se alegraram.
Havíamos planejado nossa lua-de-mel na Serra do Estevão e assim o fizemos. Tomamos a estrada e em poucas horas estávamos desfrutando o frescor de um clima europeu, em pleno Nordeste. Bom tempo por pouco tempo. Oito dias depois retornávamos a Picos porque a companheira se queixava de dores. Foi aquela correria! Tome exame aqui, tome exame ali e não se chegava a um diagnóstico. As buscas em Fortaleza também foram infrutíferas. A alternativa mais plausível era procurar recursos médicos na grande São Paulo.
Começava nossa via crucis. Visitamos aproximadamente quinze postos médicos, aí considerados hospitais e clínicas. Foram trinta dias em São Paulo procurando encontrar uma saúde considerada perdida, mas o que se perdera mesmo foi um filho, antes que nascido.
Convém admitir que, quem anda nos caminhos do Senhor, não está isento de tempestades, precisa lutar freqüentemente com forças contrárias, a fim de que os planos de Deus se manifestem. Logo veio outra gravidez e com ela, adeus doença!
Tudo é melhor quando se tem um lar e família. Com a graça de Deus, veio a primeira filha e depois mais outra. Acabou-se o tempo ruim.. Eu que nunca tirava férias, tornei-me praiano da capital alencarina. Naturalmente, não se ia à praia todos os dias, porque nem todo dia é dia de sol. Se o sol não sai das nuvens, o banhista não sai de casa. Naquele dia, porém, não fomos à praia por causa do cansaço de viagem.
A mulher cuidava do almoço em nosso modesto apartamento em Fortaleza, as crianças brincavam no play ground do prédio e eu tomava uma cervejinha no botequim de seu Raimundo. Cervejinha merecida, depois de bater volante por mais de seis horas e subir com bagagem pela escada até o quarto andar.
Ora, para quem está de férias, todo dia é final de semana... palhoça, sol e mar. Restaurante para repor as energias perdidas e depois casa e berço. Era essa nossa programação toda vez que íamos a Fortaleza. Não foi assim desta vez. No outro dia, logo ao amanhecer, Corrinha disse-me. ”Vá comprar pão e leite”. Meti a mão nos bolsos e não encontrei um tostão.
- Estou sem dinheiro. Você tem algum aí?
- Não, não tenho!
O desjejum estava fácil de conseguir, o barzinho de seu Raimundo tinha leite e pão, poderia comprar fiado ali mesmo. Alguma outra coisa que faltasse, ficaria pra mais tarde. Deixei avançar as horas. Precisava sacar dinheiro, mas o Banco só abria às onze. Na Praça José de Alencar, um senhor de mais ou menos setenta anos, descansava num banco. Sentei-me e puxei uma prosa. Nada melhor pra passar o tempo até o banco abrir. A conversa se prolongou por mais tempo que imaginava. Olhei o relógio. Eram onze e dez. Levantei-me assustado e dei ponto de sair. Enquanto isso, aproximara-se um cidadão com idade e aparência física semelhante àquele com quem conversei na praça e que ainda permanecia ali.
- O senhor sabe onde é a LÓIDE BRASILEIRA. Perguntou-me.
Antes de ouvir minha resposta ele foi se identificando.
- Sou de Vila Velha no Espírito Santo. Estou precisando de dinheiro para continuar viagem. Estou vindo de Paramaribo na Guiana, a firma que procuro me comprava os produtos que trago, mas parece que mudou de endereço...
- Que você tem pra vender? Se tiver TV de seis polegadas, tenho um comprador pra ela. Perguntei curioso.
- Não tenho TV. Um amigo meu trouxe duas pra vender aos funcionários do Banco do Brasil, se ainda não tiver vendido, arranjo uma pro senhor. Saiu apressado.
Preocupado com o avançar das horas, não acompanhei sua trajetória, de modo que, já estava saindo quando ele retornou.
- Meu amigo vendeu as TVs, mas tenho relógios importados e vendo barato. Estou sem dinheiro para seguir viagem.
Lembrei-me da cara-metade. Vou levar-lhe um relógio de presente. Ela é rigorosa com o horário de voltarmos da praia, por causa dos riscos de insolação, principalmente na delicada pele das princesinhas
- Você tem relógio pra mulher?
- O senhor está com sorte! Tenho um relógio pra mulher.
A dupla de ancião me envolveu na conversa. Um deles, o primeiro que conheci, pediu para ver mais relógios e fez uma proposta de quatrocentos mil cruzeiros em dez ômegas suíços. Numa condição: o vendedor teria que esperar até que ele fosse buscar o dinheiro em Messejana.
- Meu ônibus sai em quarenta minutos. Não posso esperar o senhor buscar o dinheiro em Messejana e voltar para me pagar os relógios.
- Pois me venda um. Pago quarenta mil, agora. Pra comprar só um, não preciso ir a Messejana, mas se o senhor me esperar um pouco, compro dez.
O pretenso comprador pagou por um relógio Cr$40.000,00 em moeda corrente, e me chamou em particular. “O homem não me espera voltar de Messejana. Ofereça Cr$ 350.000,00 em dez relógios e me aguarde... É coisa rápida, é só o tempo de tirar o dinheiro na Caixa Econômica, quando eu voltar, pago quatrocentos mil nos dez relógios e você ganha Cr$50.000,00”.
Convém que tudo seja examinado com cautela, para não acontecer que venhamos a pisar em campo minado, mas a usura de ganhar dinheiro fácil, falou mais alto... Em questão de poucas horas ganharia um relógio para dar à mulher e mais uns trocados... Fiz a proposta de trezentos e cinqüenta mil.
- Vou aceitar sua oferta. Trabalho numa estatal. Preciso ir embora.
Fomos ao Banco, a fila estava em parafuso, então disse ao velho.
- Amigo, nosso negócio não vai dar certo. A fila está grande, não serei atendido em menos de uma hora e o senhor só dispõe de quarenta minutos até o embarque.
Ele não disse nada. Aproximou-se da bateria de caixas, conversou alguma coisa, e o caixa me mandou ficar na frente do primeiro da fila. Efetuei o saque, passei os cobres pro sujeito e recebi os relógios com bolsa e tudo. Imediatamente o velho se retirou.
Comecei a desconfiar. Pareceu que o vendedor queria se ver livre do pacote... Resolvi dar uma olhada na mercadoria e descobri que era uma boa falsificação, mas aí já era tarde.
Andei uns três quarteirões, o velho tinha exalado, decerto o outro era seu comparsa, porque também não o vi mais. Esse tipo de gente que furta ou assalta, hipnotiza suas vítimas, pois não me recordo sequer da fisionomia de nenhum deles.
Sempre tive respeito e simpatia pelos idosos, mas aqueles anciãos não me passaram uma boa imagem. Voltei pra casa decepcionado, nem tanto pelo prejuízo, mas por ter sido enganado por dois velhos.
Contei o acontecido à minha mulher. Ela, porém não levou a sério. “Não acredito que você se deixou enganar por dois caducos!”
- Pois fui. Olha aqui o produto!
- E esse relógio de mulher?
- Bom, esse era pra você, mas não vou querer que use essa mer..
- Vou vender todos sem enganar a ninguém. Quem me comprar vai saber que tá comprando um ômega falso.
- Assim você não vende nenhum!
- Vendo!
- Você mesma deveria me pagar o seu, pra diminuir o prejuízo.
- Posso até pagar, mas não vou usar essa porcaria.
- Contanto que me pague. Faça dele o que você quiser.
Estávamos ainda olhando os “coelhos comprados por lebre”, quando chegou meu cunhado Francisco José. Contei toda história, sem nenhum receio de virar alvo de chacota, ele não conteve o riso e soltou uma gaitada. Todos riram, inclusive eu.
- Maninho,você caiu no “Conto do Vigário”, mas pelo preço que você pagou, fico com dois.
Vou vender-lhe os dois relógios, mas você está consciente que são falsos. Dava pra vender os relógios falsos por verdadeiros, mas nunca enganei ninguém. Quero chegar à velhice sem me envergonhar do passado. Vendi dois.
Por mais que se procurasse conversar sobre outros assuntos, a história dos anciãos voltava à tona e o clima de riso tomava conta da casa. Entrava um assunto, depois vinha outro, mas de vez em quanto alguém perguntava. “Como que eram esses velhinhos?” Sei lá! “Algum deles usava bengala?” Aí pronto, estourava a crise de riso...
Não tenho raiva deles, embora não queira pra mim dinheiro mal ganhado. Sou um mendigo de Deus, peço tudo que gostaria de ter e Ele sabiamente me dá tudo que preciso ter. Nunca pedi riqueza, mas Deus meu deu um grande tesouro, duas princesinhas, as jóias mais preciosas que já vi em minha vida. Vivo em torno delas as vinte e quatro horas de cada dia, se não fisicamente, em espírito e oração. Agradeço ao Criador por confiar a mim a obra mais perfeita de suas mãos, a criatura humana, fruto nascido da minha carne, na verdade, através delas, parte de mim mesmo cumprirá o projeto divino de multiplicar a espécie humana.
Aqueles quinze dias na capital cearense foram os mais rápidos que vi passar em minha vida. Os dias na praia, a picanha na churrascaria, o descanso no final da tarde, tudo isso é muito mais do que merecemos a Deus.
Voltamos a Picos, durante a viagem programei a estratégia de negócios. Vou contar toda história a alguns amigos e aguardar a reação de cada um deles. Em Picos contei e recontei a história dos dois velhinhos da Praça José de Alencar. Arranquei muitas gargalhadas dos ouvintes e quando algum curioso perguntava: “E os relógios?” Estão aqui. Guardei um pra você que é meu amigo e vai me ajudar a sair desse prejuízo. Mas é falso! Aí o nego ria até cair de costas, mas comprava. Um ou outro levava na gozação, ria às minhas custas e não comprava. O certo é que vendi todos os relógios. Não ganhei, nem perdi. Minha mulher guarda o relógio dela até hoje, na certa esperando o ancião voltar de Messejana...
Não acredito que nenhum deles ainda esteja vivo, pois longos dezessete anos se passaram até então, e àquela época, eram de idade avançada. Se por acaso a irmã morte já os houver chamado para acertar contas com o Criador, não percam o horário com São Pedro por falta de relógio nem venham buscar o que ficou aqui. Olhem para o sol. É o relógio do pobre! Nasce todo dia tanto para o pobre quanto para o rico.Vejam as nuvens carregadas de lágrimas, elas derramam misericórdia tanto para o pobre quanto para o rico. Meus velhinhos, se vocês estiverem passando por tribulações por causa dos relógios que me venderam. Descansem em paz, não me deram prejuízo.
Não há barreira que o amor, a fé e a esperança não possam transpor, nem sonho impossível de realizar, desde que sonhado acordado, com os pés bem fincados no chão. “As raposas têm suas tocas e os pássaros, seu ninho”. Cada um divide com sua companheira, tempo, espaço e cumplicidade. Finalmente, dois jovens se encontram e se amaram. Agora os sonhos se multiplicaram. Somos quatro. Nossos sonhos se tornaram realidade em nossas filhas. Com elas dividimos os problemas e multiplicamos as alegrias. As princesinhas hoje são princesas, mas para nós continuam sendo crianças, princesinhas, flores delicadas que enfeitam e perfumam o jardim de nossas vidas. Vinte e sete anos de casados se passaram, aproximam-se de mim os setenta janeiros e ainda sonho com um amanhã melhor do que hoje.


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Neomísia Antonia de Sousa


Dados biográficos



Neomísia é a filha mais velha do casal Antônio Benedito de Lima e Antônia Josefa de Sousa Lima. Nasceu em 10 de fevereiro de 1936, no Sítio São Paulo da fazenda “Rodeador”, posteriormente povoado Santo Antônio do município de Picos. Cursou o primário e ginasial em Santo Antônio de Lisboa. Fez pedagogia na Escola Normal Oficial de Picos e graduou-se em Saúde pela Universidade Federal do Pará (1977). Participa com fragmentos de Genealogia e memórias de uma família, obra de sua autoria publicada em 2006. Aposentada do magistério fixou sua residência em Picos.




Genealogia e memórias de uma família: fragmentos.




Às vezes fico imaginando como seria a mamãe, uma jovem adolescente, com apenas 16 anos de idade, bonita e deslumbrante, vestida de noiva. Andar seguro, olhar sincero e firme, coração ingênuo e cheio de bondade... Imagino-a entrando na Igreja, naquele dia tão singular e festivo, a sonhar com um belo porvir. Vida nova, vida a dois que lhe parecia sorrir, mas na realidade tão difícil. Tempos difíceis aqueles!
Vestida com roupagens de festa, na verdade estava se revestindo da força Divina, para iniciar uma missão: ser mãe de uma numerosa prole composta de quatorze filhos. Seu útero íntegro favoreceu o desenvolvimento harmonioso e saudável dos fetos ali gerados, como se gerados fossem no colo de Deus. Com muito amor carregou em seu ventre, sem reclamar em momento algum, o peso da gravidez de 16 filhos, dos quais dois faleceram antes de completar um ano de idade. Todos nasceram de parto normal, com acompanhamento apenas de parteira.
Com muito carinho preparava o enxoval de cada filho como se fosse o primeiro e único. Engordava os frangos e estocava as garrafas de manteiga do sertão, para consumo durante o resguardo que durava quarenta dias. Nunca fez distinção entre os filhos, embora tivesse um cuidado especial pelos menores e pelos mais fracos. Com muita sabedoria atribuía aos filhos mais velhos a função de cuidar dos mais novos e assim criou os quatorze filhos que nasceram praticamente um em cada ano. Essa pedagogia, além de aliviar seus esforços, gerava um grande vínculo de amizade entre os irmãos. Ela viveu mais para os outros do que para si mesma e se desgastou como uma vela que se deixa consumir no altar. Conheceu a ascensão e a queda, a alegria e a tristeza, mas em tudo soube viver como boa cristã, sem de nada reclamar.
Papai, ainda muito jovem, na flor dos seus 23 anos, boa aparência, corado, simpático e trabalhador, formava com mamãe um belo casal. Não teve tempo para estudar. Órfão de pai, ele precisava trabalhar para sustentar a mãe viúva. Seu tempo de escola foi de apenas quinze dias. Isso depois de adulto, quando o professor Mariano Grande tornou-se seu padrasto. Logo que meu pai se casou, fez questão de comprar um dicionário e uma bíblia – era quase tudo que se tinha para estudar, além de alguns surrados almanaques.
Morávamos numa casa campestre de alvenaria em estilo rústico, mas muito aconchegante. Na parede da copa se via lindas estampas de treze santos diferentes dos quais conhecíamos história e milagres. O terreiro de areia branca era palco dos folguedos, das brincadeiras de roda, e do casamento chinês. No meio do pátio ficava um pé de buganvília cor de rosa pink, plantado com muito carinho por mamãe, ao lado direito, o curral de vacaria e o chiqueiro dos bodes. No quintal se criavam lindas galinhas de penas coloridas. Mamãe dizia: “Elas são lindas! Eu as criava mesmo que só servissem para enfeitar o quintal”.
Nas noites de luar a calçada de nossa casa se enchia de gente: avós, tios, primos e parentes mais distantes vinham conversar, trocar informações e saber das novidades. Naquele tempo, ainda não se tinha rádio nem televisão, as notícias chegavam por carta ou de boca a boca.
O velho relógio de parede de tio Cândido, a menos de 200 metros de nossa casa, pingava as horas pontilhando o tempo, no silêncio e quietude da vida campestre. Vivíamos como dizia Luís Gonzaga: “... sem rádio e sem notícia das terras civilizadas.” Mas éramos felizes porque respirávamos o ar puro da natureza e não se ouvia falar em violência ou droga.
Na época das chuvas o rio Riachão transbordava para, pouco tempo depois, oferecer uma água pura e cristalina. Era raso, por estar perto da nascente e logo após as primeiras enchentes, já se podia ver a areia branca do seu leito e as piabas nadando numa água transparente e sem nenhuma poluição. Não tínhamos brinquedos sofisticados, mas a mãe natureza nos oferecia o lazer. No fim das águas, os bancos de areia enchiam-se de sarça e outras plantas rasteiras. Com os ramos das sarças fazíamos cordas e amarrávamos nas galhas de oiticica para nos balançar. Vivíamos no silêncio e aconchego da paz.
Era no período das águas que meu pai parava mais um pouco em casa. Precisava cuidar da lavoura. O trabalho era árduo com descanso apenas aos domingos. Os feridos de calendário não eram cumpridos, todo dia era dia de laboro. Na parte da tarde, mamãe levava um cafezinho na roça, onde papai trabalhava com os filhos; à noitinha, já quase escuro, retornavam do serviço e, segundo Diassis, cheirando a miroró .
A família prosperava. Em maio de 1945, mudamos para o povoado Santo Antônio e papai se estabeleceu no mercado público com comércio varejista. Em curto período de dois anos nosso poder aquisitivo cresceu. Papai construiu um ponto comercial ao lado de nossa residência e transferiu a loja para lá. Ali se vendia razoavelmente bem: tecidos e seus artefatos, remédios populares, tintas para tingir roupa, óculos de grau e bebidas leves. Naquele tempo nossa família militava ao Partido Social Democrático, PSD, chefiado pelo Cel. Francisco Santos que estava com o governo. Papai não era político, no entanto, por ser casado numa família muito grande, podia arrebanhar muitos eleitores pra algum candidato. Confiando nisso, dirigiu-se a Picos, conversou com o Cel Francisco Santos e conseguiu uma escola pública para o povoado. Papai cedeu ao Estado uma sala de nossa casa, mesa do professor e banco para os alunos. Minha mãe foi a primeira professora pública contratada pelo Estado.
Em 1947 nosso partido perdeu a eleição pra Governo do Estado e mamãe foi demitida. Veio a crise econômica dos anos cinqüenta. O País estava em crise. O Nordeste agonizava. Nossa loja estava repleta de tecidos e outras mercadorias, quando foi decretada a moratória. Muitos comerciantes da região fecharam suas lojas. A nossa também não resistiu. Tivemos que nos desfazer de parte dos bens para pagar aos credores e voltamos a viver de renda das propriedades e do comércio ambulante.
Um dos credores cresceu as vistas sobre a roça de carnaubal. Papai queria entregar. Não era homem de dar prejuízo a ninguém. Mamãe protestou.
- Antônio, você pode entregar tudo, mas a roça do carnaubal não! Não vou deixar meus filhos passarem fome. Entregue a rocinha perto da cidade. Papai acolheu o conselho da esposa e mantivemos o carnaubal.
Realmente, a cera de carnaúba foi, por muito tempo, uma boa fonte de renda na região. Estávamos ainda na fase áurea da cera de carnaúba quando minha mãe tomou a decisão de garantir o sustento da família aproveitando o pouco que lhe sobrara da grande crise dos anos cinqüenta.
Os anos se passaram e aquela numerosa família conseguira sobreviver vencendo a cada dia um novo obstáculo, mas o sonho de educar os filhos numa cidade maior ainda não era possível. Assis, que estivera por longos cinco anos fora de casa, retornara ao convívio familiar cheio de coragem, força e boa vontade de ajudar. Seu sonho era oferecer aos irmãos a possibilidade de trabalhar e estudar e aos velhos pais o conforto e a tranqüilidade de uma velhice saudável.
O sonho se realizou em 26 de fevereiro de 1967. A família se mudou para uma casa na Rua São Sebastião em Picos. Foi nesse abrigo que a mamãe viveu os dias de maior conforto na vida. Ali ela pode usufruir as vantagens do bem-estar e lazer oferecidos pela tecnologia: televisão, telefone e outros aparelhos eletro-eletrônicos facilitadores do trabalho doméstico e reunir quase todos os filhos “debaixo de suas asas”. Entretanto, a felicidade na terra é passageira, assim como a vida também é passageira. Naquele mesmo ano, Deus a chamou pra morar no céu. Voou no silêncio da noite como um anjo, cujo barulho das asas não se ouve.
Meu pai sofria de surdez, seqüela deixada pela caxumba, e era portador de catarata nos dois olhos. Ficara viúvo aos 57 anos e não conseguiu contrair novas núpcias. Depois que a mamãe morreu, sua vida passou a ser uma eterna via crucis, vivia solitário, tinha saudade da vida do campo, do seu tempo de mangalheiro e ainda não se acostumara com a viuvez. Ele que se dizia um grande guerreiro, estava perdendo as forças pra lutar. Na verdade, nunca fizera guerra, a não ser contra a fome, pois como uma águia, voava longe para buscar alimento pros filhos.
Vítima de um acidente vascular cerebral em 1973, a grande águia ficou quinze anos sem poder sobrevoar as colinas do Maranhão, nem armar sua rede em bacabal, até que em outubro de 1988, voou definitivamente para a pátria celeste.


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Adalberto Antônio de Lima



Dados biográficos



Nascido no povoado Santo Antônio, desde criança Adalberto revelava senso de maturidade. Com apenas 12 anos, já conciliava trabalho e estudo, morando em Picos com seu irmão Diassis. Ainda na década de setenta, aluno de segundo grau do Colégio Estadual Marcos Parente, organizou juntamente com Gilson Chagas, Odaly Bezerra, Osmir Serafim, Amélia Lima Barros e Sônia Andréa o jornal de circulação externa O Brado Estudantil. Trabalhou na Souza Cruz e mais tarde, por concurso público, assumiu vários cargos de confiança no Banco do Brasil. Escreveu uma reflexão religiosa que ainda “descansa” nas malhas da revisão. Poeta e escritor desde a juventude, muitos de seus escritos inéditos se perderam no tempo, outros foram encontrados pelos irmãos nas gavetas de velhas escrivaninhas do antigo “Armazém flor de lis” e publicados em livro de família. Seu gosto pela literatura o levou, na idade madura, a cursar Letras. Aqui reconta as histórias de seu pai, revivendo como em sonho a meninice, uma vez que era um dos que corriam para abraçar o velho pai que chegava do Maranhão.
(Contato com o organizador: adalbertolimabrasil@hotmail.com.)




Histórias que meu pai contava


Debaixo do castanhal à sombra das castanheiras do Pará ou com a rede armada nos bacabais do Maranhão, meu velho pai arranchava nas viagens em busca de ganhar o sustento para uma numerosa família constituída de quatorze filhos. Levava uma vida quase nômade. Embora tivesse residência fixa, nem sempre se fixava ali, a não ser no período das águas, ou no verão, por poucos dias, enquanto deixava alimento na ninhada. A grande águia, como Neomísia o define, tinha por teto a abóbada celeste e por abrigo a copa de qualquer árvore. Assim é a história de meu pai, vivenciada e contada por ele mesmo.
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Eu era assim: cheguei de Imperatriz, faltavam trinta dias para meu casamento. Soube que Marcos Timóteo tava saindo de viagem com uma tropa para o Maranhão. Levantei o pensamento... Sabe de uma coisa, vou falar com Marco Timóteo vê se ele pega um frete até Teresina. Deixo meus animais descansando até o dia de meu casamento e depois viajo com eles. Procurei Marco Timóteo.
Marco você vai pro Maranhão?
- Vou.
- Vai levando muita coisa?
- Não levo nada dessa vida! Levo só a tropa pra vender no Maranhão.
- Quer pegar um frete até Teresina?
- Pego toda quantidade, vou com vinte e dois animais arreados, sem nada no lombo.
- A como você leva a arroba?
- A três mil réis.
- Tá feito o negócio.
Não pedi menos. Se pedisse ele dava, já tinha a viagem! Fizemos a viagem. Na estrada encontramos dois rapazes voltando de Teresina.
- O que vocês levam aí?
- Alho e cebola.
- Freguês, Teresina tá sem dinheiro! Principalmente pra essa mercadoria.
Não contei conversa. Chamei Marco e perguntei.
- Nós combinamos a três mil réis pra Teresina. E pra Pedreiras, você cobra quanto?
- Cinco.
Não pedi menos. Tocamos viagem. Descansamos na chapada erma. Hoje tem morada, mas, naquele tempo se viajava léguas e léguas sem encontrar uma casa. Carro, nem se falava...
Dormimos um dia, dormimos outro e descansamos no outro dia pra almoçar. Aí ele conferiu os objetos e disse: “Deixei minhas armas na primeira dormida. Pendurei num pau e ficaram lá. Você podia me emprestar sua égua. Vou voltar pra buscar. As armas não são minhas. Tô levando pra vender!”
Os animais dele eram jumentos. Se fosse a marca de muitos, tinha falado: pegue um de seus animais e volte. Mas feito besta, emprestei minha égua. Onde nos fizemos em dois dias e meio ele fez duma tarde pra uma noite. Levantei de manhã, vi a besta na solta. Não conheci não. Daí a pouco, ele levantou e trouxe a besta pelo cabresto. Tava estropiada. Fiquei trespassado de pena! Não sei se ainda montei aquele animal! Já de noite, quando nós tava arranchado noutra casa, ela veio, pariu um potro famoso, em nossa frente, como quem diz, “oi” a perversidade que fizeram comigo! Não montei mais naquele animal, quando o dia amanheceu, cacei troca, fosse em que fosse. Troquei num jumento velho, gordo, lerdo e ruim que só merda. Chegamos em Pedreiras, paguei a Marco Timóteo e fui procurar negócio. Soube que tinha um velho de Santo Antônio de Lisboa, (naquele tempo era Rodeador) não vi ele nem ele me viu. Encontrei com ele uns quatro ou cinco dias depois. Ele só vendeu até onde eu estava, mas andava com o carregamento nos animais dele mesmo... Com rapaz pago... Foi numa cidade mais pra baixo e vendeu tudo.

Telegrafei a “ti” Mariano dizendo que tava fazendo bom negócio. E era verdade, vendi tudo. Montei no jumento velho e arribei pra casa. Na estrada, encontrei dois rapazes tangendo uma grande tropa. Perguntei de onde é essa tropa?
- É de Picos. Vamos levando pra vender no Maranhão.
Troquei com eles o jumento velho por um novo, mas era franco, não agüentou a viagem e fui à pé tocando. Deixei a tropa sair primeiro, lá na frente encontrei um rapaz a pé levando quatro animais arreados. Perguntei de onde é essa tropa. É de Aparecida. Mas não perguntei quem era o dono! Sabia que Cândido Cipriano morava lá, mas quando fui morar no Santo Antonio, ele já tinha se mudado pra Aparecida. Passei adiante, quando cheguei lá na frente encontrei uma pessoa a cavalo e um rapaz montado acompanhando. Aí desconfiei e perguntei:
- Manuel ou Cândido Cipriano?
- Cândido.
Ele também não me conheceu. Perguntou, e o Senhor, quem é? Quando eu disse, ele desceu do animal e me deu um grande abraço. Ia me casar com uma cunhada dele, faltavam poucos dias.
- Onde você encontrou um rapaz tocando quatro animais com quatro jogos de mala.
- Daqui a mais de légua!
Ele disse ao rapaz. “Apeie e deixe as armas. Vá em meu animal que é mais ligeiro. Atalhe a tropa e mande voltar.”
- Não faça isso! A tropa já vai longe!
- Não tem disso. Ele respondeu.
O rapaz saiu galopando, trouxe a tropa e nós descansamos juntos. Saímos de tardinha, um pra lá outro pra cá. Cortei estrada, quando cheguei nessa cidade depois de Pedreiras, sei o nome dela, já passei lá diversas vezes, mas agora não me lembro. Vendi o jumento por pouco mais ou nada. Não apurei nem o dinheiro da sela. Toquei numa estrada desconhecida. Nunca tinha andado nela. Não tinha estrada não, era vereda. Parei pra descansar, já estava ficando de noite. Parei porque tava cansado e também temendo algum mau elemento. Era perigoso viajar naquela hora, só tinha casa cinco ou seis léguas uma da outra. Era perigoso ter ladrão esperando pra roubar ou matar, se não conseguisse roubar sem matar. Todo dia arranchava cedo da noite, mas saia de madrugada. Nesta viagem, vim dá em rancho conhecido, de Colinas pra cá. Parei num ponto conhecido.
- Seu fulano. Vou sair de madrugada.
- A hora que você quiser. Mas quando sair feche a porta!
Levantei de madrugada, peguei minhas coisas, saí e fechei a porta. No amanhecer do dia, avistei uma grande fazenda. O dono não dava hospedagem pra ninguém mas fez uma casa na beira da estrada. Quem quisesse arranjar, arranchasse lá. Tinha uma tropa parada. Encostei e perguntei de quem é essa tropa? “É de fulano te tal lá dos Picos” Não conhecia.
- E vocês?
- Fulano e Fulano.
Disse quem eu era e onde morava, e um deles respondeu.
- Nós somos do Riachão , passamos dentro do Rodeador, André Ramos falou que Mariano Grande recebeu um telegrama seu, dizendo que estava fazendo bom negócio.
Nisso, chega um rapaz à pé, com uma matula nas costas e uma garrafa de cachaça espontando.
- Bom-dia!
- Bom-dia.
Ficamos por ali. Ele ouviu a conversa toda. Assim que a tropa saiu, fiz finca pra sair. Agora com licença! Vou sair também. Ele me acompanhou.
- Para onde o senhor vai?
- Vou pra Picos
- Pois nós vamos juntos.
- Não, não dá.
- Por quê?
- Tô estropiado e me arrancho cedo!
- Nós vamos juntos. Num gosto de andar sozinho, de noite nós “banha” os pés com água de sal e cachaça...
Andamos só umas duas léguas. Ele disse.
- Vamos parar pra fazer a bóia. Um faz o almoço e o outro faz a janta.
Pensei. Vou fazer o almoço com meus mantimentos, se esse danado for embora, não fico devendo nem favor. Fiz o almoço, ele fez a janta. Arranchamos cedo. No outro dia foi do mesmo jeito, eu fiz o almoço, ele fez a janta. Todo dia encostava cedo da noite e saia de madrugada. Parava de ponto em ponto. Dizia que estava estropiado... mas, era medo de malfazejo.
Atravessamos o Parnaíba, cinco ou seis léguas acima de Floriano, e saímos beirando o rio. Lá adiante, ele disse.
- Vamos banhar os pés e os braços e fazer um descanso?
- Vamos!
Meu dinheiro de gastar na viagem tava ficando pouco. Dei as costas pra ele, fiz que tava me lavando, puxei o maço de dinheiro e separei o da viagem, sem contar. Peguei o de gastar na estrada e guardei o outro. Ele viu.
- Você troca um dinheiro pra mim?
- Troco.
Entramos em Floriano, fizemos umas compras e cortamos estrada. Lá adiante, arranchamos num ponto conhecido. No outro dia de madrugada, pegamos a rodagem de Floriano a Picos. Não passou nenhum carro por nós, nem indo nem vindo. Isso é mundo?
Andamos poucas horas.
- Vamos acender um fogo, deixar o dia amanhecer?
- Vamos. Essa estrada é perigosa.
Acendemos um fogo e quando o dia amanheceu viajamos. Adiante, lá pelas oito ou nove horas da manhã, ele tornou falar. “Vamos acender um fogo, assar uma carne, comer com rapadura e fazer um descanso?”
Dava pra puxar mais um pouco, mas concordei. Comemos carne com rapadura e farinha e sentamos na beira do fogo. Acendi um cigarro... ele acendeu outro...
- Agora conte sua história que eu conto a minha.- É rapaz! Eu moro sete léguas depois de Picos. Levei um carregamento pra Pedreiras e fiz bom negócio. Não adiantava negar. Ele tinha escutado a história do telegrama que passei pra “ti” Mariano.
- Eu sou de Cedro no Ceará. Naquele dia que lhe acompanhei tinha tirado dezoito léguas. Moro em tal cidade do Maranhão. Lá fiz um dano... Minha mulher tá lá. Eu vou pra Cedro, quando chegar, aviso a ela. Ela tem que viajar num cavalo lazão fronteiro peito e anca. Vem com um rapaz num burro cardão, com uma carga de caixão, acompanhando.
Depois disso, perdi mais o medo. Descobri que era um homem direito, tinha até sido soldado do exército. Chegamos no Rodeador, pelejei com ele pra ficar uns dias comigo. Mas ele não demorou. “Não posso. Tenho pressa”. Almoçamos juntos e à tardinha seguiu viagem.
Casei. Com quinze dias de casado viajei pro Maranhão. Quando passei em cima do rasto onde ele me acompanhou naquele dia às seis da manhã, encontrei com ela às seis da tarde. Caminhei só umas duas braças, pelos sinais que ele me deu, conheci que era ela. Voltei.
- É a mulher de Artur Patrício da Silva?
- Sou sim senhor, onde o senhor viu ele?
Eu ia puxando muito porque o rancho mais perto era daí a quatro léguas. Lá era acostumado a pousar. Mas eles não conheciam a estrada, tinham que dormir ali onde estavam. Ela voltou quase chorando. Tinha ficado preocupada com a viagem. Mas ficou sabendo por uma notícia voadeira que o marido tinha pagado um paz...
- Ele não pagou ninguém na vida. Se alguém deu essa notícia, era eu que tava junto. Ele me acompanhou em cima desse rastro. Viajamos de cima desse rasto até sete léguas depois de Picos.
Ela queria que eu ficasse para contar toda história da viagem. Deu cavaco porque não descansamos juntos. Continuei minha viagem. Cheguei em Carolina fiquei sabendo que do outro lado, tinha um comércio muito grande de um paraense que comprava no atacado tudo que se oferecesse. Atravessei o rio, vendi toda minha mercadoria, mas na travessia o barco afundou com o carregamento. Outros barqueiros recuperaram o alho todo, mas não conseguiram salvar o dono do barco que fazia o transporte.
Assim foi minha vida, perseguido na minha marca, no Brasil não tem outro. Mas Deus me protege, nessa vida e na outra. Chamei Vigário e viemos embora. Essa viagem que fiz com Vigário, eu tava com quinze dias de casado e ele também. Nós casamos no mesmo dia e na mesma igreja.
Perto de Grajaú tinha uma aguada e muito pasto pros animais.
- Vigário! Em Grajaú é mais caro e difícil de arranjar lugar pros animais. Já é meio dia, vamos arranchar aqui. Arranchamos debaixo de uns paus, na beira do caminho. Fizemos o almoço e comemos. Chegou um forasteiro endiabrado, deu bom dia, assou carne em nosso fogo e comeu. Puxou o revólver e deu um tiro nos paus. Puxei o meu e atirei também.
- Tá na hora de ir.
- Eu também já vou. Disse ele.
Arreamos os animais. Passamos em Grajaú, compramos mantimento e saímos. Só tinha rancharia daí a três léguas e depois dessa, só tinha outra seis léguas pra frente. Já era quase de noite, quando chegamos ao rancho. Vamos arranchar aqui, amanhã cedo nós “sai”.
No outro dia cedinho, levantei, ataquei o revólver e a cartucheira e fiz finca pra levantar. Olhei no rumo da estrada, avistei quatro soldados. Vou me sentar. Sentei. Depois deitei e cobri a arma com as “berada” da rede.
- Bom-dia.
- Bom-dia.
- O rapaz é esse aí?
- É.
- Aí reconheci. Era o forasteiro que tinha arranchado “mais nois”.
Tinha um soldado amigo que toda vez que eu chegava em Grajaú, me chamava pra almoçar ou jantar na casa dele. Quando me viu, ficou bem acolá. Os outros encostaram.
- Me dê sua arma.
- Pra você num dou não. Eu dou pra aquele solado ali.
Entreguei a arma, eles conferiram nossas coisas e não encontram nada que não fosse nosso.
- Vamos pra cidade. Tem uma queixa contra você.
Fomos. Eles estavam à pé. Eu podia ter chamado o soldado amigo pra montar comigo no animal, mais num ofereci não. Chegamos em Grajaú fomos pra delegacia. O delegado perguntou.
- Acharam as coisas do homem.
- Não. Eles só tinham o que era deles.
Aí eu disse seu delegado, me devolva minha arma. A viagem é grande e tem muita travessia.
- Devolvo não! Se fosse aqui na rua eu até podia devolver, mais mandei uma tropa a pé mais de seis léguas de ida e volta. Devolvo não.
- Onde é a casa do Prefeito.
- Fica ali.
Um soldado perguntou ao delegado. “Que faço com o garanjão que deu a queixa?”
- Prenda!
Sai, fui à casa do Prefeito. Ele me atendeu, mas disse que estava de viagem. Não podia ir à Delegacia comigo. Mandou o filho. O delegado disse: “desobedeço ao prefeito! Essa arma não entrego”. Fui à casa do Juiz de direito. Já era tarde da noite. Chamei, chamei. Com muita demora o juiz apareceu. Contei o caso.
- Aquele delegado é teimoso! Me aguarde aqui que vou lá.
Demorou chegar mais voltou trazendo o revólver e a cartucheira.
- Tome a arma e vá embora. Não passe nem perto da delegacia. Se você passar lá o delegado toma a arma e lhe prende.
Obedeci. Passei longe, mas de onde eu tava, vi dois soldados no meio da rua. Um entrou, pra avisar o delegado, o outro ficou me esperando passar. Passei longe.
Agradeço ao Pai Eterno por ter compaixão de mim, eu não era devedor de nada, mas por que essa perseguição? Nessa viagem quase perdi a vida por duas vezes, mas Deus me ajudou. Quando cheguei em casa, comprei a primeira propriedade.
Minha vida dá um romance. Com quinze dias de casado, fiz essa viagem com Vigário e quase perdi minha vida. Chegava de viagem descansava uns dias e tornava arribar. Naquele tempo tudo era difícil. Condução era difícil...
Numa ocasião viajei com um carregamento em meus animais, vendi tudo, fiz bom negócio. Voltei a pé para economizar dinheiro. Andei, andei... andei sozinho, só eu e Deus. Ainda faltavam muitas léguas para o primeiro ranjo quando ouvi um grito. Pensei que fosse de gente e respondi. Tornei ouvir: “uuúlll... uuúlll”. Respondi outra vez. No início parecia ser longe. Imitei e ele respondeu mais perto. O tempo fechou. Uma nuvem pesada derramou água como no dilúvio. A coisa tornou gritar ainda mais perto. Não respondi mais. Cheguei na rancharia já era de noite. Contei a história.
- Você é doido!? Aquilo é o guará. Ele sozinho é perigoso. E se estiver com fome, principalmente, quando está em bando, não respeita animal nenhum, pode ser do tamanho que for. Sua sorte foi a chuva ter apagado seu rasto.
Nunca temi a nada nesse mundo! No outro dia, saí ainda no escuro e segui viagem. Ainda faltava muito chão para chegar em casa. Lá adiante, um tamanduá bandeira tomou a estrada e abriu os braços pra mim, como quem diz aqui você não passa. Desviei dele e pequei a estrada na frente. Eu tinha arma, mas não atirei. Foi o único vivente que me fez sair da estrada. Aproximando de nossa morada, os meninos me viram e correram pra me abraçar. Foi dessa vez que comprei minha segunda grande propriedade, a roça de carnaubal.
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Estas são algumas das histórias que meu pai contava. Como ele mesmo dizia: “minha vida é um romance”. Era mesmo! Tanto que algumas de suas histórias foram publicadas, graças a José Lima que em 1976, teve a brilhante idéia de gravá-las.

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Francisco José Rodrigues





Dados biográficos



Francisco José nasceu na região de Fronteira – Piauí. Começou trabalhar aos onze anos de idade. Foi frentista de um Posto de Gasolina, jornaleiro, bedel do antigo Ginásio Estadual Marcos Parente, despachante da Varig e contabilista da firma F. Antão & Reis Ltda. Sonhou mais alto e aos 19 anos ingressou na carreira bancária. Trabalhou no Banco do Estado do Piauí e o Banco do Nordeste do Brasil. Formado em Ciências Econômicas, fez Pós-Graduação em Controladoria e Mestrado em Administração de Empresas. Professor nas Faculdades Integradas do Maranhão (FICEUMA); Universidade de Fortaleza (UNIFOR) e Faculdade Sete de Setembro em Fortaleza. Por concurso, foi professor da Universidade Federal do Ceará (UFC). Também por concurso público, atualmente é professor da Universidade Municipal de União da Vitória (UNIUV), Paraná. É co-autor de dois livros “Cultura Organizacional”, editado em 1991 e “Por uma teoria da gestão participativa”, editado no ano 2000. Aposentou-se em 1997 e oito anos depois, prestou concurso para a PETROBRÁS. Passou em primeiro lugar e tomou posse em São Mateus do Sul – Paraná. Em julho de 20007, novamente prestou concurso para a PETRROBRÁS, refinaria de Porto Alegre, sendo aprovado em boa colocação. Casado com Rosita de Antônio Benedito adotou para si os hábitos familiares de sua esposa, marcando presença em Santo Antônio, nas festas do padroeiro. É autor de poesia inédita em homenagem ao padroeiro Santo Antônio. Faz questão de apresentar sua maior riqueza, a família: Rosita, Aline, Remo e Rômulo, o Rominho. Este último, citado com lembrança e doída saudade dos lindos treze anos gozados em sua companhia na terra. O grande nordestino morando no Sul, descreve com simplicidade os caminhos percorridos por um vencedor para alcançar a coroa da vitória.




Ofício de Vida



Zezinho sempre foi um pai de muita doçura. Dona Carolina Rodrigues de Jesus, D.Iaiá, uma fortaleza. Mulher devota de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, nunca tremeu diante de um desafio. Criou a família inteira cozinhando-se à beira de um fogão a lenha, como dona de pensão. Jamais sentou num banco de escola, mas tinha verdadeira paixão pela educação escolar. Fez o impossível para educar os filhos e teve a alegria de vê-los bem encaminhados na vida. Já José Rodrigues do Rego, seu Zezinho, tinha a caligrafia mais bonita que já vi em toda minha vida, certo estudo, queda para o comércio e também sonhava dar uma boa educação aos filhos.
A pensão de beira de estrada é um importante capítulo na vida de seu Zezinho e Dona Iaiá. Em outros tempos, seu Zezinho fora um homem de muitas posses, tinha bastante gado e um grande armazém em Fronteiras. Comprava caminhão fechado de mercadorias em Juazeiro do Norte, no Ceará e vendia fiado aos pobres. Minha mãe anotava tudo, mas quando ia cobrar o bom velhinho escondia o caderno. Na grande seca dos anos cinqüenta, havia realmente muita gente passando fome, mas alguns nem tão necessitados se aproveitavam da bondade do velho e também compravam fiado e não pagavam.
Na época um surto de aftosa dizimou seu rebanho, matando um por um. Não sobrou nada! Seu Zezinho estava falido, nem gado nem mercadoria para vender. A seca terrível devorava tudo. O gado que não morreu de sede, morreu de aftosa. Muitas pessoas lastimavam a sorte e blasfemavam contra Deus, mas Zezinho apenas dizia: “Vão-se os anéis e fiquem os dedos.” Comercialmente falido, enfrentou o ramo de hotelaria, atividade que exerceu até o resto da vida.
Na estrada da vida há muitas flores e espinhos, muitas pedras e poeira no caminho. Poeira apagada com lágrimas e espinhos colhidos com sorriso por causa das flores. Não há vitória sem luta nem rosas sem espinhos. Viver é recomeçar a luta a cada dia.
Meus primeiros sinais de vida foram de morte. Nasci doente, fraco e desnutrido como a maioria dos nordestinos nascidos na pobreza. Minha avó contava que aquele menino raquítico, deitado numa esteira, estivera de vela na mão mais de uma vez. Tudo que engolia não ficava no estômago, devolvia antes da metabolização. Vomitava tudo. Todos me tinham por morto.
Seria muito cômodo cruzar os braços e deixar a criança morrer. Era uma boca a menos para dar comida, mas seu Zezinho não media esforços para fazer alguém feliz. Como olhar para sua pobre esposa, depois de perder o primeiro filho homem da casa? Não podia deixar morrer aquele filho! A menos que não pudesse fazer nada além de esperar pacientemente a misericórdia de Deus. Vendo o coração aflito de um pai bondoso, Deus lhe mandou um mensageiro. Um amigo de meu pai foi ver-me em casa.
- Zezinho, se você quiser que esse menino escape, dê a ele leite de jumenta.
Seu Josias tinha uma jumenta de carregar tijolos da olaria e o velho pai não se esqueceu disso.
- Vou alugar a jumenta de Compadre Josias, pelo tempo que for necessário para salvar Francisco.
É verdade que Deus age através das coisas mais simples e das pessoas mais humildes. Não precisou alugar, seu Josias cedeu gentilmente o animal até que o milagre aconteceu, o menino ficou curado.
Safei-me daquela e só fiquei sabendo por ouvir contar, no entanto, o fato de ter os dois braços quebrados numa mesma semana, não me esqueço jamais. Tinha nove anos de idade. Havia no terreiro do Posto Fiscal, pertinho de nossa casa, em Fronteiras, uma enorme tora usada como assento. Corríamos nas imediações dela brincando do “pega” quase todas as noites. Naquela noite quis fazer bonito. Saí correndo de costas em ziguezague, tropecei na tora e caí por cima do braço. A meninada que me “perseguia” caiu em cima de mim. O braço ficou moído, fraturado em várias partes. Seu Norberto, um farmacêutico prático do local, prestou socorro. Com os parcos recursos que dispunha, pôs uma tipóia e me mandou de volta pra casa. No dia seguinte, em menos de vinte e quatro horas do primeiro acidente, peguei uma bicicleta e pedalei na estrada que liga Fronteiras a Campos Sales - Ceará. Numa desenfreada medonha e com pouco equilíbrio por ter apenas uma mão no guidom, cruzei com um veículo vindo em alta velocidade. Quase me atropelou. Caí. Saí rolando estrada afora e o braço sadio ficou mais quebradinho que o outro. Levado para Campos Sales, seu Guimarães fez o que pôde. Imobilizou os braços com tiras de compensado e botou uma tipóia em cada ombro. Agora tinha os dois braços quebrados, restava esperar que os ossos se emendassem. Trinta dias e trinta noites mal dormidas se passaram. Tiraram as talas. O primeiro braço acidentado estava perfeito! O segundo, porém, tinha a forma de / L / e já cheirava mal. Tudo levava a crer que meus pais teriam um aleijado na família.
Lembro-me daquelas palavras de minha mãe. “Enquanto eu tiver forças pra lutar, filho meu não vai padecer de aleijado. E acresceu às suas orações uma promessa a Nossa Senhora do Perpétuo Socorro em benefício de minha cura.
Conversando com uns viajantes, mamãe ficou sabendo que em Floriano, havia um senhor conhecido por “Seu Milagre” que fazia estirar pernas e braços tortos ou entrevados. Mas meus pais não tinham dinheiro sequer para as despesas com transporte. Para realizar o sonho de obter a cura do filho, dispunham apenas da fé.
Nossa Senhora do Perpétuo Socorro tem inúmeros filhos acolhidos por adoção espiritual e muitos deles ofereceram a boléia de seus caminhões para nos levar de graça até Floriano. Começaram os preparativos da viagem, quase nada se tinha a levar, a não ser um menino aleijado e muita fé nos corações. Era tudo que se tinha, mas diante de Deus só isso basta. Em Floriano, “Seu Milagre” nos esperava com instrumentos cirúrgicos muito simples, o principal deles era um tambor de 200 litros de água fervente com um pano por cima para conter o vapor e muita gente para segurar a cobaia. Sem anestesia, três homens me pegaram, colocaram meu braço sobre o tambor. Meu braço estava sendo cozido a vapor... Foram longos minutos de sofrimento. A dor era tamanha que fiz xixi e “caguei” nas calças. Desmaiei. Quando acordei, o braço já estava engessado. Ficamos vários dias na casa do caminhoneiro José Bezerra, cuja esposa, Dono Coló, cuidou de mim como Rafael, o anjo da cura.Voltamos pra casa. Tempos depois movimentava os braços sem dificuldade. Nenhum defeito físico. Tudo perfeito, como Deus criou.
Em 1959 estava difícil manter o ramo hoteleiro em Fronteiras. O movimento estava fraco, não havia praticamente nenhum hóspede. Papai ficou sabendo de um ponto na BR 116, muito bom para colocar uma pensão. Precisamente no Km 63, seu Osmar tinha uma bomba de gasolina com uma casa de taipa desocupada. Mudamos pra lá. A casa era de chão batido e as paredes rotas. Toda noite as vacas enfiavam a cabeça pelos buracos para lamber o sal do xixi que as pessoas faziam durante o dia e quem dormisse perto das paredes também levava umas lambidas. O quilômetro sessenta e três era realmente um entroncamento de estrada muito movimentado por caminhões e ônibus. A Princesa do Agreste passava ali, exatamente na hora do almoço. Ficava olhando aquele ônibus com um chapéu de couro desenhado na pintura e uma multidão de passageiros vindos de Recife para Teresina ou São Luís do Maranhão. Muitos almoçavam na pensão de seu Zezinho.
A notícia se espalhou. Havia no quilômetro sessenta e três uma pensão que servia uma comida deliciosa. Um ou outro caminhoneiro que chegava para abastecer e também experimentava a comida de D. Iaiá, fazia a propaganda. Aí a notícia se espalhou como cinza de braseiro tocada pelo vento. Muitos caminhoneiros paravam no posto de gasolina, por causa da pensão. Até então, o movimento do posto de seu Osmar era pequeno. Pimenta, cunhado do dono, administrava os negócios. Muito trabalhador, mas não tinha carisma para vendas, era nota zero na área de atendimento. Seu Zezinho, no entanto, atendia a todos com espontaneidade e alegria, distribuía café aos caminhoneiros, mesmo que não comessem na pensão. Saia de carro em carro, com um bule de café na mão. “Esse foi feito na cara do freguês”, dizia ele. O marketing do velhinho funcionou. Não se via antes tantos caminhoneiros juntos. Como um milagre, os negócios floresceram da noite para o dia. Seu Osmar tornou-se um homem rico. Sua usura cresceu com os negócios e o caráter diminuiu na mesma proporção. Sem saber o que fazer com tanto dinheiro, construiu um prédio praticamente no mato, bem ao lado da velha casa de taipa. Mas papai sabia o que fazer com aquilo e lhe pediu a preferência para alugar.
- O ponto é seu, Zezinho! É só ficar pronto vamos a Picos fazer o contrato.
Ora, seu Zezinho é que ajudou o posto a crescer sem nada pedir em troca. Apenas isso: a preferência para alugar...
O prédio ficou pronto. Marcaram o dia de assinar o contrato de aluguel, mas, no dia marcado, seu Osmar não apareceu. Uma semana depois ele apareceu e chamou papai em particular.
- Seu Zezinho, infelizmente, não posso alugar o prédio pra você, vou passar para Pimenta, mas como prêmio, vou lhe dar três meses de aluguel de graça, até você se mudar.
Meu pai deve ter ficado pasmo diante da situação. Para onde ir agora? Os três meses de “prêmio” eram na verdade, três meses de prazo pra ele se retirar. Essa era a recompensa que recebia por ter ajudado um simples dono de uma bomba de gasolina, tornar-se empresário. Não disse nada. Apenas comunicou à mamãe que teriam de mudar dali. O prédio novo não seria alugado pra eles.
Mamãe tinha uma personalidade mais forte e extremamente franca, talvez por isso, às vezes mal compreendida. Naquele momento não se calou. Procurou seu Osmar. “Escuta aqui velho safado sem palavra..” Ele quis alterar a voz, mas ela mandou que se calasse e ouvisse o que tinha a dizer. Então ele abaixou a cabeça e ouviu tudo. Foram palavras amargas, mas muito verdadeiras que com certeza jamais se esquecerá delas.
Mudamos para o Km 71. A casa de farinha de seu Tomás passou a ser a nova pensão. Bebíamos água de um barreiro localizado na beira da estrada, misturada com a poeira deixada pelos caminhões. A água barrenta coada com um pano era um refrigério que durava pouco tempo. No verão o barreiro secava. Então, o caminhão que trazia gasolina de Araripina ia buscar água em Picos. Lá com apenas uma ligeira balançada, voltava carregado com água para o consumo humano. Bebíamos água com gosto de gasolina...
Na pensão do Km 71 tivemos uma mudinha em nosso convívio familiar por longos anos. Um caminhoneiro sem coração estava espancando uma jovem prostituta de apenas 17 anos, dessas que eles pegam na cidade, abusam sexualmente e largam na estrada. Mamãe viu a cena e não se omitiu diante do fato. A pobre moça já tinha as vestes rasgadas, o corpo esfolado de taca e continuava apanhando muito.
- Chega seu malvado! Largue a moça.
O homem assustou-se com a voz de comando, vinda com tanta autoridade de uma mulher. Deixou a mudinha, entrou em seu caminhão e foi embora.
A vida ali não foi só dor e amargura. Ganhamos algum dinheiro e nos mudamos para Picos. Nascia o Grande Hotel. O hotel tinha mesas grandes em que se acomodavam para refeição, folgadamente, vinte pessoas. Diariamente muitos comiam, mas poucos pagavam. Muitas vezes acontecia de um hóspede não ter dinheiro para pagar a conta e mamãe escondia a mala. Retinha a bagagem condicionando a devolução ao pagamento da dívida. Como ela tinha o costume de puxar uma soneca depois do almoço, papai ia de mansinho, pegava a mala e liberava o freguês sem nada receber. Nem casa de caridade mantida por instituições filantrópicas serviu tanta comida de graça como a pensão de Seu Zezinho. Só se via a cor do dinheiro quando meu irmão Rodrigues estava no caixa, e papai não estivesse por perto para dizer. “Meu filho, não receba nada de Compadre João. Não está lembrado dele? Seu pai deve muito favor a ele!” A mesma coisa acontecia quando seu Antônio e muitos outros compadres pediam a conta. Famílias inteiras hospedavam-se no Grande Hotel sem pagar nada. Era o milagre da partilha do pão. Dormia-se sem saber o que comer amanhã e no dia seguinte a mesa estava farta.
Tínhamos mensalistas bancários,uma profissão que deixava meu pai bastante encantado. Certa vez, chega em casa com uma máquina Remington. Naquele tempo uma máquina de escrever custava o equivalente ao preço de um computador hoje. “ Tome aqui, meu filho! É pra você treinar pra ser bancário”. Para ele nada era impossível. Colocou-me na escola de datilografia da família dos Martins e logo me tornei exímio datilógrafo, prestei concurso para trabalhar no Banco do Estado e fui aprovado. Sua ânsia de ter um filho bancário era grande. Não se conteve com o resultado, foi procurar Dr. Helvídio, governador do Estado, filho de Picos que passava uns dias em sua terra natal. Queria saber se o filho tomaria posse.
- Helvídio, meu filho passou no concurso do Banco do Estado. Vim aqui pra saber o que você pode fazer por ele.
Helvídio pegou o telefone e ligou imediatamente pra diretoria do Banco em Teresina. Voltou-se pra meu pai e disse: "Zezinho, você não confia no taco de seu filho? Ele tirou segundo lugar. Obteve a média de 9,4. Vai tomar posse logo".
O bom velinho voltou eufórico para casa e contou a história, repetidas vezes para os seus amigos, durante muito tempo em sua vida. Os filhos cresceram cada vez mais e venceram muitos desafios. A felicidade dos velhinhos com a educação dos filhos era total. Essa foi a nossa grande motivação.
Meu bom velhinho, sua vida foi pautada com a ética e moral do livro que mais leio. Sua voz ainda soa com a força de um trovão que anuncia a vinda das chuvas e da fartura. Tens agora um grande hotel na pátria definitiva onde podes distribuir muitas refeições de graça.
Minha doce Carolina, madeira de lei e árvore medicinal que me trouxe a cura do corpo e da alma, doce flor mamãe, coberta com o manto de Nossa Senhora, na calma colina de sua última morada, és a flor que mais encanta.
O mundo seria mais humano e as pessoas mais felizes, se todo filho ao lembrar-se da história de vida dos pais, os olhos ficassem rasos d’água, pelo valor íntimo de uma saudade revivida.


...

Não há vitória sem luta


Tivemos o cuidado de apresentar os caminhos percorridos por vencedores, para alcançar a coroa da vitória. Selecionamos apenas alguns episódios para mostrar a história, vida e ascensão de famílias humildes que com luta e sacrifício conseguiram encurtar a distância entre o sonho e a realidade, entre o imaginário e o concreto atingível, e isso nos leva a afirmar que quem luta por um objetivo pode conquistar seu espaço e escrever sua própria história.
O sangue que corre em nossas veias não é diferente daquele bombeado no coração dos assaltantes da Estrada Nova, do Cais do Porto e da sombra da noite. Todo dia somos atingidos por bombas de pensamentos e sugestões diabólicas que se não forem rejeitadas, podem nos levar à prática o mal. É preciso que estejamos revestidos com a armadura de Deus, renovados e restaurados pela fé em Jesus Cristo, “para que possamos resistir às ciladas do inimigo. ”(Ef. 6,12).
A ganância pelo acúmulo de bens materiais leva muitos ambiciosos a se tornarem escravos do dinheiro e do pecado. Traficam não só influência, mas também drogas, por acharem que a felicidade está no “ter e poder’. A verdadeira felicidade está em amar a Deus e amar ao próximo como a si mesmo.
A melhor forma de amar a Deus é amar as criaturas por Ele amadas. Não despreze uma criança e tenha carinho pelos idosos. Somos todos filhos de Deus, contados e registrados no livro da vida, “até os cabelos de nossa cabeça estão contados” (Luc. 12,7). Nunca abandone os filhos ao relento, mesmo que esses não tenham sido previamente programados ou desejados, tenham ou não figurado em seus planos, sejam normais ou deficientes, porque Deus se serve muitas vezes de serzinhos indefesos ou até mesmo inteiramente dependentes de nossos cuidados, para que através deles manifestemos nosso o amor ao Criador.
Tudo na terra é passageiro, assim, de que vale o efêmero diante daquilo que é infinitamente duradouro? Todo tesouro acumulado na terra está sujeito à traça, à ferrugem ou à pilhagem de ladrões. Nenhuma obra humana é eterna, nem dura eternamente a memória do sábio. “Morre o sábio e o insensato e ambos já não são mais lembrados” (Ecle 2, l6).
Na estrada da vida, “talvez não tenhamos conseguido fazer o melhor, mas lutamos para que o melhor fosse feito... Não somos o que deveríamos ser, não somos o que iremos ser, mas, graças a Deus, não somos o que éramos” (Martin Luther King).












































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