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Cartas-->Para você ler -- 02/10/2003 - 23:56 (João Ferreira) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos


Minha querida

Acabei de escrever o conto-crônica "Um Gajo Porreta" que é uma recomposição dos episódios acontecidos anos atrás, em Pantanares, na casa da Dona Xica, lá no Nordeste. Gostaria que você lesse e me desse sua opinião sobre a narrativa.
Beijos
João

e-mail: joaofen@uol.com.br
__________________________________

UM GAJO PORRETA
João Ferreira
2 de outubro de 2003



Eu estava ali tranqüilo no barraco de dona Xica.
Numa pequena varanda lia as Vidas Secas de Graciliano Ramos. Olhando bem no rosto de Dona Xica e nas ruinhas acanhadas de Pantanares, achei que o livro que meus olhos devoravam era uma radiografia social daquela terra. E minha admiração por Graciliano crescia na medida em que
percebia nele um escritor neo-realista que tentava dar à literatura a função de denúncia e de documento social. Ele mostrava os quadros. Construía personagens com rosto real para que todos vissem a vida crua e nua dos migrantes da seca.
Sob a pressão tórrida daquele dia, eu recordava nesta cidadezinha de Pantanares o rosto austero de outros Fabianos que vão comprar querosene à cidade e chita para as suas esposas e que depois de verificarem que os Inácios da vida estão misturando água no querosene e que a chita é muito cara, terminam por se distrair e encontrar o soldado amarelo que os leva para o jogo para torrar o pouco dinheiro destinado às compras da comida da família.
Lembrei de todos estes lances dramáticos pela voz de Graciliano Ramos e das bazófias de muitos cabos amarelos “safados e mofinos” que provocam danos e levam prejuízos às famílias.
Erudito de Castro conversava mais tarde comigo e, lembrando a história de Vidas Secas, dizia que ali em Pantanares havia também Fabianos pobres e brutos, explorados por outros cabos amarelos, havia outras Sinhás, outras cachorrinhas Baleias e muitas panelas que chiavam em trempa de pedra!!!
Lembrou que além de Sinhá Vitória, dos filhos de Fabiano simplório e bruto, da cachorrinha e da panela que chiava na trempe de pedras...havia muitas crianças que “seriam pisadas, maltratadas e machucadas” por outros soldados amarelos”... e ele escolheu Graciliano Ramos como a voz mais autorizada para estudar essa migração.
-Há tudo isso, sim, meu amigo. Mas nem tudo é cabo amarelo por aqui. Há também, graças a Deus, muitos “gajos porretas”...muito gajo porreta...mesmo...
Surpreendido com a expressão, perguntava para mim mesmo o que é que o Erudito entendia por gajo porreta? Pensava comigo.... E punha hipóteses.Mas não adiantava curtir fantasias. Tinha de saber o que era isso no contexto...real...
Iria deixar minha dúvida para Erudito de Castro explicar mais tarde. Para já, este meu amigo baiano, pelo que já tinha exposto, desenvolvia uma conversa que estava me interessando muito. E sobretudo porque também ele era leitor de Graciliano, o escritor que me dava esta pintura social do Nordeste por volta da segunda guerra mundial.
-Só para lhe dar um exemplo, disse ele. Para você entender melhor: Zé Maneta é um gajo muito porreta...
Ouvi mas fiquei entendendo o mesmo...
E porque é que seria Porreta o Zé Maneta???
Erudito de Castro, este baiano explicadíssimo, devoto de Graciliano parecia inspirar seu discurso na contemplação daqueles ascéticos e penitentes mandacurus e xiquexiques....
Quem o ouvisse falar iria concordar.
-Pela opinião geral que circulava entre o povo, ele era também um gajo porreta...
Era assim também que o via e definia um de seus mais distintos vizinhos.. Meio alto, meio seco, olhar fino, modos educados, sensibilidade social, Erudito de Castro dava todas as semanas uma ajuda de arroz e feijão a uma família de que era padrinho no bairro mais pobre de Pantanares.
Era gajo porreta este tal de Zé Maneta, um homem corajoso, pai de oito filhos, mulher doente e detentor de uma mixuruca fantasia de salário mínimo nordestino.
Sabia tudo de Zé Maneta o nosso Erudito de Castro. Desde que fora nomeado diretor da biblioteca e do arquivo público da cidade dois anos atrás, Erudito de Castro saía até à cidade com mais frequência. Era observador e preparava uma história sobre os costumes e a história da cidade.
Freqüentava a única livraria existente, ficava muito na sua biblioteca, visitava a escola e alguns amigos. Era um nordestino fiel a sua herança cultural e amava seus grandes escritores desde Raquel de Queiroz, até Lins do Rego e Graciliano.Na zona da mata, sempre que podia, ia visitar os tradicionais engenhos e conhecia a zona do cacau do sul da Bahia. Frequentava as feiras populares. Gostava de acompanhar a vida dos cantadores e comprar os folhetos de cordel. Vivia de seu magro salário de aposentado. E sua dor maior era observar o desinteresse que a população em geral tinha pela leitura. Os livros da biblioteca têm uma história e uma ficha que assinala o empréstimo, dizia. Pelas fichas se via como esta população andava arredia dos livros. O prefeito se orgulhava desta biblioteca. Gastava com ela algumas das poucas verbas que havia no município. Embora a população meio analfabeta pouco valorizasse esse patrimônio, o Prefeito apostava nas crianças e nos jovens. Pantanares poderia até um dia se transformar e passar a ter um lugar de direito em qualquer mapa do Brasil.Até ali, pouco gente se dava ao luxo de prestigiar a cidadezinha. Dona Ermelinda, a professora, fazia exceção. Vinha até à biblioteca, e algumas vezes trazia seus alunos. Era uma perfeita educadora que via futuro na terra de Pantanares. Neste dia, quando eu estava acompanhado de Erudito de Castro, Ermelinda tirava umas fotocópias para levar para a escola.
Olhando para Erudito de Castro disse:
-O Senhor está de parabéns. Está deixando esta Biblioteca cada vez mais porreta..
-Obrigado D. Ermelinda...
Comecei a pensar que nem só os gajos eram porretas...mas mais coisas eram porretas...
E então perguntei a Erudito:
-E aquele tal de Zé Maneta, aquele gajo porreta, senhor Erudito de Castro?
-Ah, sim...O Zé Maneta, Gajo Porreta???
Sim...sim...Já me esquecia...
-Olhe. O Zé é tremendamente porreta...O mais porreta de todos os gajos da terra...?Conhece a história dele? Das mais edificantes...Um gajo admirado pelo povo... Um pai de família exemplar, dos melhores...
A dona Ermelinda perguntei também o mesmo.
- Oh! Conheço sim, respondeu ela. O Zé é um gajo muito porreta mesmo. E ao dizer isto, deixou escapar.... um sorrisinho...
Eu estava ainda na ignorância mas não quis pôr malícia.
Na esquina entrei na loja de vendas do Zé Maurício. E este:
-Sim, claro. Quem não conhece o Zé Maneta? É uma das pessoas mais queridas aqui da terra. É um gajo tremendamente porreta.
Na praça, onde se vendiam frutas, legumes e alguns trecos de pouca importância, a dona Xepa, a Betumeira e a Das Dores e toda aquela rodada de mulheres me confirmaram Zé Maneta como um gajo muito porreta.
No bar da esquina alguns aposentados jogavam cartas e xadrez. Entre eles, a fama do Zé era a de um gajo bem porreta.
A criançada da escola de D. Ermelinda brincava concentrada na fantasia dos jogos. A um canto da quadra de recreio, solta, a Biluzinha chamou a amiguinha e disse:
-Aquele lá é o Zé Maneta, o gajo mais porreta de Pantanares. Sabias? Tem oito filhos e só trabalha para educar e sustentar eles. Adoro um pai assim...
-Esta opinião generalizada, agora constatada até entre as crianças, estava me deixando curioso...Me invadia uma vontade de rir..quase incontrolável...Isto parecia uma linguagem cartelizada... mais do que padronizada...Sem nenhum preconceito lingüístico, não queria saber nem de Marcos Bagno. Esqueci os dicionários...Queria rir mesmo...quando via, nos lábios de todos, bailando, a expressão de “gajo porreta”...
Apenas por orgulho não quis ainda recorrer ao saber de Erudito de Castro. Queria ouvir era o povão...
- Voltei a encostar na praça junto de vendedeiras de frutas e legumes. Peguei uma rodela gostosa de abacaxi doce e perguntei:
-Dona Xepa: porque foram chamar o Zé de gajo porreta???.
Dona Xepa riu bastante. O senhor se admira, é???
-Mais ou menos – ri também.
-O senhor não é daqui, não? Ouvi dizer ao doutor Erudito de Castro que esse negócio de “gajo porreta” já deve vir do tempo de Brasil-Colônia. Mas olhe, o senhor é que vai julgar. Lembro-me só que aqui na terra havia um português, que era dono de uma casa de vendas ali na esquina da praça. Tinha muito dinheiro e era muito conhecido e respeitado por aqui. Era também um gajo porreta. Xepa riu...
Quando eu era minina não lembro muito das pessoas falarem assim. Mas desde que eu era moça o povo já falava bastante assim, desse jeito: “gajo porreta pra qui, gajo porreta pra li”.Sabe? Deve ter sido esse português mesmo. Me lembro que ele não falava “esta pessoa... aquela pessoa... este cara... aquele cara”. Dizia sempre: “Este gajo, aquele gajo...”
-“Nós, baiano, ajuntou esse negócio aí de porreta”. E voltou a rir...
O senhor sabe, continuou D. Xepa. Porreta para nós é o que no Rio de Janeiro chamam de bacana. Gajo porreta quer dizer pessoa bacana... Já há muitos anos.
-Lembro que um dia aqui na praça ouvi as pessoas comentarem esse costume de linguagem do portuga e o povo começou a usar a palavra “gajo” para dizer “cara”, um “sujeito qualquer”. Ai o Maneta como os outros todos virou “gajo” e como é pessoa de respeito a quem todos queremos bem, virou “gajo porreta”, entendeu???. Porretas são todos os caras que são bacanas. “Gajos” são as pessoas, são todos os daqui. Terra dos gajos... Só que uns são “gajos porretas” e outros são “gajos do diabo”...
-Riu...
Este belíssimo papo com Dona Xepa fez-me lembrar o tempo de Brasil-Colônia. O tempo da mistura do idioma português lusitano com o idioma português da Brasil, da Bahia e do Nordeste. Foi aí que nasceram os Zés Manetas ... Porretas... expressão tão franca em circulação no Nordeste brasileiro.
Cheguei a casa e fui checar a curiosidade que me entretera toda aquela tarde. Busquei na estante um dicionário de prestígio, o Novo Aurélio Século XXI. Abri. Estava lá: “Porreta. Veja porreiro. Porreiro: “Lus.pop. afável, simples e prestativo. 2. muito bonito, lindo. 3. Bom, excelente.”
-Obrigado, Dona Xepa. Adorei sua explicação. Tudo claro, agora.


João Ferreira
2 de outubro de 2003
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