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Contos-->A Falsa Freirinha -- 11/07/2008 - 18:03 (flavio gimenez) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Lá vai. Santa Carola. Sempre de tornozelos movediços. Sempre com os jornais pendurados debaixo dos braços. Rotineiro este gesto. Também, sempre a vejo fazer! Desce do ônibus, segura um tempo naquele banco ali, lá vem ela, depois de rezar o terço todo junto às quengas da Consolação e suas vicissitudes, lá está seu indefectível cabelo amarrado e a horrorosa saia avermelhada, já gasta, ela nunca compra roupas novas, e olhe que eu a tento, afinal é jovem ainda, tem seus...vinte e seis anos? Puxa é só isto? Aparenta uns quarenta e cinco. Nenhum gajo vai se meter com ela. Engraçado. Ela carrega os terços de um jeito todo sensual, dir-se-ia sacrílego, tem uma cantora destas que minhas filhas hoje chamam de velhotas que sempre apela para estes símbolos sagrados, pecado mortal, diria nossa conhecida crente.

--O jornal...

A voz soa anódina. Metálica, anasalada, sôfrega (aí sou eu imaginando), santa carola. Daiane, nome de princesa, ocultos tesouros em panos de santa crença, ocultos montes de olivas a serem devoradas por pecaminosos barbudos que se insinuam à noite onde quer que ela more, a dona dos calcanhares mais sensuais destas paragens, olhares que eu percebo dela em mim e ela os percebe, o meu em lugares dela. Cora, nossa heroína. Vivo aqui, sou parte deste lugar, minhas filhas me visitam desde que me separei, minha mulher é uma carrasca, ficou com a outra banca, esta me sobrou para que eu possa ajudar as três a terem um padrão que eu jamais terei, santo remédio o Lexotan. Às vezes uma Catuaba, vou confessar que ninguém resiste a tantas noites sem sono. Mas se vive afinal. Lá vai o estranho, ele sempre pinta por aqui, magro, careca e olhudo, como olha, mas sempre tem um sorriso para oferecer, chega a ser simpático. Ele observa a tudo e a todos, deve ser uma espécie de repórter, ah os tempos do Repórter Esso!(No ar, Repórter Esso!!!), agora oferecem seguro para quem se lembra de programas antigos, gente se esmurrando em ringues antigos agora serve de catapulta- êeee palavra horrível!- para seguros de vida descontados. Mascarados, lembra, dando tesouras voadoras em rivais com barrigas pronunciadas, era o máximo do máximo, minha mulher...minha ex-mulher, nunca gostou, teve dia que apagou a tevê em minha cara, era muito abuso, mas isto nos bons tempos, no final bastava eu respirar perto que ela se eriçava feito uma gata doente, ah o amor..

--O jornal???
--Pois não, Dona Daiane.

Engraçado como a citação de um nome faz as pessoas saltarem de um obscuro torpor de esquecimento para um estado que lembra a sã consciência, li em algum lugar que a consciência é uma colcha de retalhos, despertar tem algo a ver com reviver, nós que desatam as pessoas do coma induzido de nossa existência para o que ocorre à nossa volta...Ela literalmente salta à nossa frente, a vida, e voltamos a ela como saindo de um mergulho, absortos que estamos, e deparamos com um sorriso e um jornal nas mãos... A realidade nos traz à tona.

--Pobrezinha, ela sofreu, mereceu descansar, está no céu, ao lado de nosso
Senhor.
--Quem?
--A mulher dele. Estava tão doente! Era tão abnegada em sua fé!...
--As pessoas assim vão antes, Dona Daiane.
--Deus me livre! Eu sou crente, mas não quero ainda me reunir ao Pai!
--Nossa, longe de mim sugerir isto!
--Sei disto, seu Roberto. Como vai aqui?
--Nestes dias , vende muita coisa de astrologia, incenso, búzios...
--...nada de Jesus...
--Também vende. Vende de tudo esta banca. Aliás, poderíamos vender terços
aqui!
--Não seremos nós os vendilhões do templo, seremos, seu Roberto?
--Absolutamente!

Silêncio constrangedor, ela dá aquela clássica mexida nos cabelos, um trejeito encantador, ela sabe que me agrada assim , mas resiste com um cenho fechado às suas próprias necessidades, prefere ir e vir da igreja São Luiz, carregada de votos de castidade, mas nem freira é.

--Posso perguntar uma coisa?
--Pode seu Roberto.
--Como é ser freira?
--Pergunte a elas...

Diz isto com tamanha franqueza que eu pressinto um louco olhar de esguelha , uma sugestão de pecado em uma cabeça que carrega o Cristo dentro das artérias??? Não, impressão minha, pois ela se recompõe, amarra mais o longo cabelo, puxa uma espécie de grampo, que bem poderia ser uma ameaçadora arma, agora sei porque ninguém se atreve a chegar perto, ela tem um verdadeiro sabre em seu cabelo!

--Não é uma delas?
--Quando cheguei a São Paulo, queria ser. Mas a vida muda a gente. Você
crê?
--No quê?
--Ora, no quê!
--Creio que não entendi.
--Então não crê. Precisa ir mais à Igreja, seu Roberto!
--Tem razão, a vida anda meio infernal mesmo, agora então nem se fala...
--Como assim?
--Me separei recentemente...
--Sinto muito!
--Mas estou vivo, de pé...
--Mas é doloroso. Quem sabe as palavras Dele não lhe ajudem agora?
--Prometo que dia destes irei à Igreja, posso acompanhar você?

Notei um certo tremor? Seus lábios umedeceram, apojadura de sangue que jamais vai esquecer os caminhos naturais que Deus fez? Cabelos se tornaram mais viçosos ou foi o reflexo da luz do farol do ônibus que se distancia?

--Com prazer...seu Roberto....Só precisamos ver o dia, sei que o senhor não
tem ninguém aqui...
--Peço para uma de minhas filhas conseguir alguém, com minha mulher nunca
mais falo!
--É uma vergonha, dois adultos sem se entender!
--Vergonha é a pensão que eu pago, além da banca que ela tem que foi
minha...
--Onde fica?
--Sabe o viaduto do Chá?
--Claro...
--Ao final, à direita, tem uma banca grande...
--Nossa deve vender muito!
--Bingo!!!
--É lá?
--Sim, mas deixa pra lá, precisamos combinar o dia então!
--Seu Roberto seu Roberto...quais são suas intenções?
--Quais minhas intenções? Dona Daiane, são as melhores possíveis...
--Sei, Cristo falou isto a Pedro e mesmo assim, o galo cantou e ele foi
negado...
--Foi traído pelo Judas também...Isto eu jamais faria com a senhora...
--Sim?
--Sim. Jamais imaginaria alguém com a senhora que não fosse alguém
virtuoso, honesto, cristalino...
--Cristalino?
--Transparente, sabe...assim totalmente transparente, que faz as coisas às
claras...
--Hoje em dia está difícil de achar alguém assim, deste jeito...
--Acha mesmo?
--Pode ser que sim, mas Cristo ensina que as pessoas são boas no coração e no
íntimo...
--Ele era um grande homem...
--Filho de Deus santíssimo, pai nas alturas...
--Eu acho Jesus uma figura fenomenal. Ele trouxe a muita gente da época a
libertação espiritual. Quando você libera o espírito, a carne se torna livre das
impurezas...eu entendo o que ele quis pregar tanto...Foi pouco ouvido na
época...Mas já se passam dois mil anos...

Impressão ou notava um alvoroço embaixo da blusa que mal ocultava seios que teimavam em brotar através das nuvens de roupa que dona Daiane usava, ou seria mais uma impressão que a concupiscência , raiz e seminário de todos os males humanos, me atiçava na alma? Seria só uma mirada que eu via ou seus olhos me fitavam a nuca maliciosos enquanto eu vendia um exemplar de jornal de quinta ao cliente engordurado que vinha todas as manhãs e todas as tardes bater ponto na banca, como se ali fosse um bar ou ponto de encontro...está aí uma boa idéia!

--Boa idéia!!!
--Qual, seu Roberto?
--Uma banca que fosse ponto de referência...tipo loja de conveniência. Sabe?
Para tudo é preciso um capital...
--Com certeza....sem o dízimo, não há o pão divino....
--Com certeza...
--E suas filhas?
--Uma está moça. Dezesseis anos, tem corpo de vinte dois e cabeça de onze.
Vai é me arranjar um piolho já já, se eu a conheço...
--Muito levada?
--Muito? Bota muito nisto...Totalmente piradinha, vive em Camboriú, diz que
quer se mudar para lá...
--Puxa!
--Corajosa a garota...
--E a outra?
--Vive para os estudos. Tem 14 anos, é mais bonita que a irmã, aliás, já a
sondaram para fazer sabe, um book...
--De fotos seu Roberto? Nossa deve ser linda...
--Não puxou a mãe...
--Com certeza não...

Será que aqueles olhos de carola já não confiavam mais nas letras miúdas do livro que sempre carregava??? Afinal, ela não era freira nenhuma, com certeza, isto eu podia sentir em seu andar, falsamente recatado, como o de uma moça que se sabe olhada e que se reprime para não impressionar os homens que a comem com o olhar... Dona Daiane, jovem de corpo e coração, envelhecida sabe-se lá pelo quê, o que teria acontecido?

--Afinal, Dona Daiane...posso lhe perguntar algo?
--O que seu Roberto?? Importa-se de me chamar de...Daiane?
--É que eu a vejo sempre assim, vestida deste jeito, sempre acanhada, sempre
sentada no banco compenetrada em seu livro, sempre sisuda em seus modos e
vestes...que eu não vejo outra maneira de lhe tratar...
--Tranqüilo, Seu Roberto, pode ficar, às vezes a gente aparenta uma coisa...
--E diz outra, eu sei como...

Nossos olhos se encontraram de novo e desta vez ela me fitou serena, como que conformada com algo que já lhe avassalava a alma, com algo que lhe queimava o coração...

--Então, minha pergunta...Por quê se tornou crente?
Seu olhar, antes quente e brilhante, se tornou distante e
preocupado...vejo uma lágrima pendurada em um canto de seus olhos...
--Pergunta imbecil...
--De maneira nenhuma seu Roberto...Roberto... Mas eu era uma pessoa
diferente sabe? Eu costumava freqüentar muito as praias do litoral Norte,
próximas de Bertioga, ali na Rio-
Santos sabe?
--Sei que há praias por ali que rivalizam com algumas do Nordeste...
--Conheço aquele lugar como a palma de minha mão: Maresias, Barequiçaba,
Baleia...
--Cada nome....!
--Cada praia!...
--Verdade mesmo? E o que fazia lá?
--Cedo saí de casa dos meus pais. Meu pai sempre muito violento, volta e
meia batia em nós. Nunca suportei sua grosseria, sempre fui direita mas nunca
fui santa...pelo menos nunca fui...
--Certo certo...
--Saí de casa cedo e fui morar em uma república com umas amigas da escola,
mas aquilo estava virando algo desagradável e eu decidi sair de lá também no
dia que entrei em casa e surpreendi minha melhor amiga transando com meu
namorado e mais dois caras ao mesmo tempo!!!
--Caramba!!!
--Não sem sentir uma ponta de inveja é claro...

Disse isto com uma olhada tão significativa que eu percebi ali que sua fachada se desmanchava diante de meus olhos...

--Hum hum...
--Bem, eu juntei minhas coisas, meus trapos, meus discos (a esta altura nem
ligava mais para a casa de meus pais e trabalhava em uma agência de modelos
como secretária) e aluguei um apartamentozinho aqui perto que é onde eu
moro atualmente.
--Bem...tudo bem...mas e o porque destas roupas?
--Eu gosto muito de viajar, gosto muito das praias que eu lhe contei...e foi lá
que eu conheci Ronaldo...
--Quem é este???

Sem controle algum, o ciúme brotou entre nós como uma erva daninha, já corroendo nossas entranhas, as minhas de pura emoção, as dela de puras lembranças que teimam em voltar...

--Este, Roberto, foi a pessoa que me levou perto da casa do Senhor...
--Como assim?
--Eu me entreguei a ele como jamais fiz e como jamais farei de novo, se é que
me entende...
--Então?
--Pois sim, ele ficava vagueando pelas praias de cima a baixo, óculos escuros,
físico bem formado, prancha de surf...
--Ah não! Você caiu nas graças de um destes mascadores de chiclete?
--Que posso fazer? Sozinha, na praia deserta, ele e eu, eu e ele, muito sol,
desejo, amor...mistura explosiva!
--Explodiu seu coração!
--Literalmente. Ao cabo de três dias, nunca conheci tanta paixão, ao fim de
uma semana estava completamente amarrada, ao fim de um mês voltei
decepcionada com o que ele me disse...
--Que foi que o camarada lhe falou?
--Ele me disse: --”Saca, sou muito jovem, falou? O brodi aqui não quer se
amarrar em gatas ainda não, falou? O brodi aqui quer curtir a maresia, as
ondas, o povo...acho que melou falou???”

--Puta merda!
--Palavras grosseiras Roberto!
--Desculpe.
--Mas detalhe: Eu carregava dentro de mim alguém...
--Meu Deus....! Que enrascada. Falou ao “brodi?”.
--Nunca...!
--Mas e então?
--Na pior noite de minha vida, passados trinta dias deste episódio, perdi meu
bebê...espontaneamente....
--Triste Daiane, triste!

Eu mal contive uma lágrima. Mas não posso me envolver assim com uma cliente afinal!!! Só que eu e ela olhávamos um ao outro nos olhos, eu percebia seu olhar sereno, seu olhar afável, que ela fazia ali com as roupas tão castas??Agora eu já podia entrever os motivos...

--Desde então, Roberto...
--Mas e...conheceu alguém?
--Não. Tenho meu trabalho.
--Ainda secretária de uma agência de modelos?
--Sim.
--Mas lá você não anda assim, não é?
--Ah não. Lá eu me visto como eu gosto!
--Gostaria de ver você assim passando aqui em frente a minha banca...
--Gostaria mesmo??? Eu uso isto, porque as pessoas geralmente acham que
carolas são chatos...pessoas secas...pessoas inacessíveis porque acreditam
tanto nas coisas que falam que deixam de ver tantas outras coisas...seria...
--Um disfarce?
--Exato. Matou!

Meu coração descompassado de paixão me surpreendeu. Até aquele cliente de cara azeda, que acabara de chegar e folheava mal-humorado observando nossa conversa, mal disfarçando que queria participar não me aborreceu. Levou o de sempre: Pornografia e uma revista de contabilidade bem técnica, que combinava com seu perfil mediocrezinho. Nem aceitei seu olhar de desculpas quando lhe dei um brinde por conta da casa.

--Por conta da casa!
--Generoso, Roberto???
--Tento ser.
--Mas eu aprendi muitas coisas neste livro aqui. Aprendi que a gente deve ser
compassivo, benevolente, generoso, paciente...coisas que faltam ao mundo
hoje em dia...
--Concordo...

O movimento aumentava, eu meio atarefado, dei ao boyzinho a Carla que ele tanto queria, ao velho de óculos de garrafa o Diário Oficial, ao pedinte dei um real e a ela uma declaração...paguei a taxa de proteção que o moleque sempre vinha cobrar, pedindo um adesivo do Charlie Brown, que era a deixa para a cobrança, pois a gente tem que se proteger afinal, uma vela para Deus, outra para Exu, como diz minha malsinada ex-mulher...

--Quer vir aqui mais vezes?
--Quando fecha?

Meu coração disparou, toma cuidado Roberto, aqui as coisas parecem mas não são, cuidado Roberto, e ela me olhava com um acento sensual no lábio, não chegava a ser sutil, sem deixar de ser provocante...

--Lá pelas oito.
--Bela a tua banca...
--Circuito fechado, segurança, depois do último assalto a gente toma
precauções...
--Foi assaltado???
--Quem não foi? A gente aqui convive com todo tipo de gente...
--Eu sei, eu sei como...Bem, mas agora tenho de ir...
--Mas afinal aonde vai?
--Bem, vou para minha casa, já fui à Igreja hoje, rezar, orar....pedir....
--Mas e seu trabalho?
--Trabalho bem de manhã. Das sete à uma da tarde. Vou para casa, me troco e
subo a Consolação, vou orar na Igreja da Consolação. Depois dou umas
voltas, vou ao Shopping, e volto para casa.
--Mas e os estudos?
--Até parece que dá! Salário pequeno, cabeça pequena...
--Não diga isto, você fala tão bem!....
--Impressão sua, Roberto, impressão.
--Então... Venha conversar comigo mais vezes...
--Roberto, se quiser venho sempre!
--Quer? Pode? Sua religião permite?
--Não sou crente afinal...você sabe disto!!!
--Como sabe que eu sei???
--A gente sabe quando é desejada sabia? Desenvolvemos um sexto sentido...E
eu sinto que seus olhos me secam de cima a baixo quando eu passo...
--Perdão se lhe ofendo...
--Ficaria ofendido se lhe dissesse uma coisa?
--O quê?
--Sua mulher é uma besta!

Disse assim, à queima roupa e lá se vai a garota, desnuda de seus panos, desnuda de seu casto livro, agora me parece mais solta, o sorriso encantador que me dirige quando atravessa a rua é luminoso, só tenho olhos para ela, engraçado como o mundo se contrai nestas horas, é como se tudo não passasse de momentos e nem parece mais que a gente se conhece há pouco, até ontem ela era uma carola sentada em um banco, agora é uma garota linda que sobe a rua com passos lépidos, ela também feliz de romper os lacres do luto e da razão, ela também abrindo asas ao mundo, como eu fiz quando decidimos eu e minha mulher que era hora de tentarmos vidas novas separados, uma sensação de embriaguez absurda, era o que sentíamos agora....

--Moço...

Olhar perdido, eu a vejo dar um último aceno, numa promessa do que
virá e eu nem pedi seu telefone!

--Moço!
--Sim!
--O senhor tem alguma revista de informática, desta que trazem dicas de
micros?
--Tem esta aqui, esta outra...
--Bela banca hein?
--Ah temos de tudo aqui, com certeza.
--Conversando com a carola? Este pessoal é tão estranho...
--É mesmo, é mesmo...Ela só pensa em Deus, diabo, pecado, paraíso,
inferno...meu Deus!!!
--Tio me arranja um trocado?
--Não arranjo não: Teu irmão ali disse que você cheira esmalte! Vai se matar
assim, posso lhe pagar um sanduíche...
--Tá, tio, você é legal, legal, eu aceito.
--Vai ali e pede pro camarada do carrinho preparar um sanduíche, eu pago,
pode me apontar, ele me conhece...
--Tá tio!

Lá vai o garoto imundo, minúsculo, magro e feio, como a maioria das pessoas que vivem nas ruas soltas como bichos....

--Que futuro têm estas crianças, o que o senhor acha?
--Acho que tem gente por aí que devia estar é presa, pois se entopem de
dinheiro público para deixarem que isto aconteça...

Do outro lado, meninas se esfregavam já (cedo) em futuros clientes, enquanto um outro limpava, apesar dos gestos indignados do motorista, os vidros de um carro parado no farol. Minha carola já sumira na multidão, amanhã eu consigo seu telefone, ah sim. Um pequeno bando subia a rua molemente e um deles olhava de lado como que medindo potenciais otários que passassem perto, as pessoas instintivamente se afastam, é como um bando de hienas cercando uma presa, lá se vai mais uma carteira, o carequinha parece o palhaço Arrelia correndo enquanto que sua carteira voa de um lado a outro até que cai no meio fio, uma bola mal-passada, os policiais correm atrás, carregam um bostinha pelo cangote, até eu saio para bater palmas, afinal assim não dá mesmo.O palhaço, digo, o otário recupera sua carteira não sem antes acertar um chute no saco do magrelo, que lhe dirige um olhar homicida ou de dor, sei lá...O Camburão pega o pivete, ele já entra sob tapas e pelo movimentar da carruagem, vai chegar de molho ao quartel, onde vai ficar mais de molho ainda.

--Toda hora, todo dia tem isto.
--Parece ensaiado...
--Com certeza....
--E o menino?
--Está lá, quietinho, comendo o sanduíche. Daqui a algum tempo, está igual
aos primos.
--Primos?
--Claro! Ou você pensa que ele é trouxa?
--Malandragem!
--Todo dia vem aqui e pede uma grana para alguma coisa. Mas ele vive se
cercando de gente viciada. Cheira tanta cola, tanto esmalte que seu sangue já
deve estar azulzinho!
--Deve ser assim mesmo!
--Ah com certeza deve ser. Mas está lá, olhe! Olha de lado, até o pasteleiro já
entendeu, ele faz que sim para o garoto, nestas horas a garotada deve ficar
muito nervosa...
--Ah deve mesmo...
--Moço...
--Eu acho uma balbúrdia, uma baderna isto aqui. Se eu pudesse dava o fora,
saía daqui, ia embora...
--Nada como um dia após o outro...
--Moço...
--E a gente trabalhando para sustentar estes vagabundos. Quantos anos o
senhor acha que tem o cara que foi preso?
--Dezesseis?
--Vinte e três! Tão magro que parece menos não é?
--Nossa!
--Este poderia passar por gato em grandes times, mas com o físico e a mente
arruinados, nada disto!
--Preferem ficar comendo sopa na cadeia!
--Olhe, melhor do que comer barata na rua...
--Moço!...
--Sim!...
--O senhor tem revistas...sabe...
--Mais uma para o freguês aqui!

Lá se vai mais uma capa dura. Chamo assim porque as capas são escondidas, não se pode ver o que há embaixo delas. Proibido por lei. Mas a garotada compra, para numa tarde de delícia se refrescar por horas em banheiros antes insuspeitos ali perto. Mais um dos vícios que povoam este lugar. Nesta banca tenho de tudo. Minha clientela é eclética: Desde discos de MPB a revistas esotéricas, passando pelos gibis de sacanagem aos livros de receitas que ávidas gordinhas vêm buscar, no vazio de sua existência à beira do forno infernal de suas vidas. Tem um camarada que toda semana vem pegar uma enciclopédia de luxo, que fala sobre cachimbos, luvas de alpaca, chapéus de feltro raros. Tem uma bengala com uma ponta encastoada que sempre toca no chão da banca quando me vê e eu, num reflexo pavloviano, já sei quem é e separo a famigerada leitura. Também ele deve ser o único que compra, eu mandei importar porque achei chique, mas sinceramente só mantenho a compra por causa deste fiel lorde do centro da cidade. Tem um alfaiate, carequinha mas com cara de italiano, este é muito bem apessoado, usa um chapéu à moda antiga, diz que está meio fora de moda mas mantém uma alfaiataria bem no centro, dessas que tem ternos pendurados por toda a parte, seus clientes andam rareando, mas ele faz belos ternos sob encomenda, ainda outro dia veio comprar um livro de cortes de roupas finas, tinha recebido uma encomenda de um terno de um menino do Fórum que ia casar, casamento para mais de quinhentos convidados, ele se orgulhava de ter sido lembrado, mas seus dias como alfaiate estavam cada vez mais contados, com a invasão das roupas feitas e das tecelagens estrangeiras que começava a lhe tirar o pão de cada dia, mas ele já idoso não reclamava:

--Piano piano se va lontano. Que posso fazer? Tempos duros estes, as pessoas
já não se importam como se vestem, daí , compram qualquer coisa, vestem
qualquer brim...

Comprava o jornal de manhãzinha, para ler as notícias de um dia novo, geralmente comentando sobre seu time de coração, mas sempre com um olho grudado na Itália, onde brasileiros faziam macarrão dos adversários em jogadas fenomenais...Este era, como Daiane, um que eu gostava de ver, era mais um ponto de referência, mais um ponto de aquecimento de meu dia que começava, assim eu poderia encarar os transeuntes de cara amarrada que começavam a azedar meu humor com a pressa típica dos atrasados:

--Moço!! Um jornal, rápido, pensa que eu tenho todo o tempo do mundo?
--Me vê aí um gibi.
--Passa o Dia!
--Me vê aquela ali...isto isto...qualquer coisa saco!
--Moço!...
Daiane deveria a esta hora estar acordada trabalhando vestida toda fagueira, na agência de modelos, aquelas pernilongas entrando e saindo, a olhar minha falsa carola com o desdém burro de deusas decaídas,e ela com um sorriso pensando: Tudo isto e mais um pouco, daqui a pouco vou me encontrar com aquele moço, moço...

--Moço!
--Que é?
--Me vê aquele ali...
--Qual?
--Aquele ali!
--Aquele ali tem nome! Dá para ler?
--Eu hein?

De vez em quando enche o saco, mesmo. Tem de dar uma dura, senão vira bagunça, mas raras vezes perco a paciência como agora. Sempre tenho uma sugestão, sempre tenho novidades, mas hoje com certeza a novidade é outra...

--Roberto?
--Daiane? Ué, que faz aqui a esta hora?
--Vim ajudar você um pouco...
--E o emprego?
--Hoje me deram folga, o pessoal não vai gravar nem fotografar, a agência
está de vento em popa e final de ano...você sabe, aquele ritmo...

O que eu via era digno de uma foto: Uma morena escultural, com uma calça de cetim avermelhado brilhante colada ao corpo, cabelos soltos escorridos, uma tiara combinando com a calça, uma blusa vaporosa e um colar encimando o espetáculo.

--Daiane, que faz vestida assim?
--Achei que gostaria...
--Nossa, se eu gosto!!! Você é fantástica!!!Porque você não vira modelo?
--Moço!
--Olhe, não tenho hoje. Está bem?
--Tá!
--Você acha???

Uma viradinha só serviu para me deixar mais estonteado ainda...

--Mas não é porque estou assim que vou atrapalhar, hein?
--Tem certas horas que penso só em você...como pode me atrapalhar?
--Ah, deixe de ser piegas...
--Está bem, mas você me trouxe a mais grata surpresa de meses, que eu posso
dizer?
--Sendo assim...
--Espere...
--Moço!
--Estou fechando...
--Cedo hein?
--Amanhã tem mais.

Atividade febril, fechar a banca requer cuidados, muitos cuidados, são mil cadeados, mil trancas, deixo o pessoal da redondeza orientado para receber o que vier que depois eu acerto, o jornal o pessoal da editora tem a chave do cofre, hoje fica para amanhã, afinal, fim de ano, aquele ritmo... Tudo sob um sorriso levemente excitado da deusa morena, sentada no mesmo banco em que lê o livrinho que carrega as palavras improváveis, no caso, assim como ela está agora, se é que você me entende,claro.

--Onde gostaria de ir, minha deusa?
--Para bem longe daqui, deste burburinho, desta correria...Um lugar onde só
eu e você possamos estar...

Dá para acreditar? Eu, Roberto, finalmente cativado por quem? Por uma deusa morena de uma sensualidade que eu só entrevia, que mais me atiçava do que aparecia, mas que agora reluz sob meus braços, extenuada de tanta volúpia, mas sempre querendo mais, eu a tenho aqui, minhas revistas ficam longe, meus olhos ficam enevoados, minha musa se desfaz em gozo...

--Gostou, princesa?
--Como gostei...E pensar que eu passava todos os dias ali, sem perceber o que
me aguardava...
--Nunca desconfiou???
--Bem, como disse, eu sentia seu olhar, também imaginava você. Mas nunca
imaginei...isto!...
--Bem melhor que a imaginação, não é?
--Muito...Diz-me...gritei muito???
--Bem, não a ponto de eu tapar os ouvidos...mas foi bastante...
--Delícia!
--Eu?
--Sim!
--Bem...se é você que diz...
Nova luta. Novos lances de uma escada que nunca termina. Temos o fôlego trôpego dos alucinados, da descoberta mútua, do desassossego das paixões proibidas, mas nem um nem outro sabe onde vai dar o rio que se encapela em ondas de absurdo prazer amarelo, vermelho, azul e rosa...azul, azul, sim esta é a cor do prazer. Sim, esta é a cor do prazer...

--Azul?
--Sim.
--Vai me dizer que tomou alguma coisa (risos).
--E precisa?(gargalhadas).

(Suas mãos grossas em meus seios delimitam um prazer ilimitado, as aréolas se elevam em ondas de purpúreo desejo, minhas pernas vibram ao seu contato, a intimidade de um calor esquecido que volta à tona feito um sonho recorrente de uma manhã de verão em Maresias, eu flutuo num mar onde sou náufraga e sou prisioneira de onde quero sair mas não posso me esconder, é tudo o que desejo, este nó na garganta que insiste em sair com um berro, que explode feito uma alucinação em minhas juntas, num arrebatamento comparável ao avatar de almas, eu nunca pressenti o que viria, vem tanto, em tantas ondas úmidas que penso estar enlouquecendo, preciso de uma balsa, um salva-vidas, ele me salva, estou segura, minhas orações se completam, ele me completa, sou dele e de mim mesma, relaxo agora, a respiração se acalma...)

--Caramba!!!
--Minha nossa...que foi isto?
--Não sei...mas pensei que você estava morrendo...Quer água? Alguma coisa?
--Nada, nada...só você por perto...
--Minha carola linda...
--Roberto?
--Sim, Daiane?
--A cor...
--Que cor?
--A cor querido.
--Ah, a cor?
--Não é azul. É dourado, é luz pura, é divindade eterna.
--Você fala como se fosse religiosa.
--É quase místico o que senti...
--Muitos sentem assim, confesso que nunca senti o que estou sentindo aqui
com você.
--Fica comigo?

Trêmula, Daiane dorme como um pequeno anjo. Li num livro da banca: Tu te torna eternamente responsável pelo que cativas (o livro preferido das modelos, grande ironia vir esta lembrança agora aqui, neste lugar, numa situação tão improvável como esta há duas semanas atrás...). Ela dorme, envolta na gaze diáfana do sono, o quarto recende a humores, perfumes de sexo, de nossos corpos misturados e ao indefectível cigarro, que sempre me acompanha nestas horas em que me sinto o mais solitário porque invariavelmente elas dormem. Mas esta menina dorme de um jeito diferente. Acho que é tempo de reparar uma ferida em nossos corações. Acho que é tempo de sermos felizes, apesar dos tempos opostos. Tudo é uma questão de encontros ou não. Se eu não estivesse separado, jamais ia conhecer esta princesa, ou talvez a conhecesse mas nada faria, não é de meu feitio, prefiro me entregar de corpo e alma, mas nada faria mesmo, e se não tivesse sido assim, eu naquela banca, minha ex-mulher na outra, jamais a veria descer do ônibus envolta em roupas improváveis e com tornozelos que deixavam à mostra sua escancarada sensualidade.. Jamais teria visto Daiane lendo seu livro naquele banco, nem a teria olhado com a fome que mostrei, ela não teria percebido e nem mesmo correspondido, porque assim me deixei conduzir...No final, se analisarmos, são elas que nos conduzem, você pensa que as conquista, são elas que nos abrem os portões do abismo, pensamos que nossa iniciativa é tudo, são elas que detém o poder do sim ou do não, ah sim, agora não, talvez outra hora, como foi mesmo que disse? Nestas horas eu reflito, o poder absurdo do amor, o poder absurdo da conquista, ela fragilizada depois de horas, jaz abandonada como um corpo inerte, bastaria um gesto e seu pescoço estaria quebrado,como tudo pode ser assim tão absoluto, tão falível, tão maquiavélico? Porque agora, quando ela acordar, teremos de decidir o que faremos. Eu sei o que farei, mas e ela? Será que amanhã não se dissolve o encanto, não se esboroa o sonho, não se desfaz o momento e ela, em sua fantasia de quase modelo, não vai contar às outras de sua mais recente conquista, um banqueiro rude do Centro, de mãos ásperas, de volumoso sexo, de imprecisas palavras? Será? Não posso acreditar nisto. Então é assim mesmo, olho de lado e vejo um ronronar imperceptível, a luz baça de fora batendo em suas costas, não ouso quebrar o mágico momento, é pura magia mesmo, é o tempo de segurar a ansiedade, segundos que viram horas, que viram segundos em horas, somos
todos tão sós, tão absurdamente sós nesta e noutras horas, como vacilamos em nossa absurda condição humana! O indizível sono vem, e vem com força, o cigarro chega a me queimar os dedos, mas eu passo a ponta no cinzeiro de vidro, estou pronto para o dia que se esvai, para outro que se esgarça nas nuvens, ela se abraça em mim, que posso fazer senão desaparecer nas brumas do sono? Então, que seja, assim, sem conversa nenhuma, sem poesia, sem beijos cinematográficos de paixão irrefletida, sem arroubos de juras eternas que se esvaem ao primeiro conflito. Será então assim, eu que já não sou tão moço, ela que já se sente pronta para a vida tão jovem, enfim será assim mesmo. A tevê passa um sonolento jogo de futebol, os times insistem nadefesa, ninguém ousa atacar de frente, jogam como caranguejos, e se dizemcampeões do mundo, sim... Reforço extra para meu sono.
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