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Contos-->O Caminho dse São Thiago -- 17/07/2008 - 17:11 (flavio gimenez) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
"Diz uma linda lenda árabe que dois amigos viajavam pelo deserto e em um
determinado ponto da viagem discutiram e um esbofeteou o outro. O outro,
ofendido, sem nada a dizer, escreveu na areia:
HOJE, MEU MELHOR AMIGO ME BATEU NO ROSTO.
Seguiram e chegaram a um oásis onde resolveram banhar-se. O que havia
sido esbofeteado começou a afogar-se sendo salvo pelo amigo. Ao recuperarse
pegou um estilete e escreveu numa pedra:
HOJE, MEU MELHOR AMIGO SALVOU-ME A VIDA.
Intrigado, o amigo perguntou:
--Por que depois que te bati, você escreveu na areia e agora escreveu na
pedra?
Sorrindo, o outro amigo respondeu:
--Quando um grande amigo nos ofende, deveremos escrever na areia onde o
vento do esquecimento e do perdão se encarregam de apagar; porem quando
nos faz algo grandioso, deveremos gravar na pedra da memória do coração
onde vento nenhum do mundo poderá apagar".


MALDITO COROA! Dou-lhe um tiro na bagaça. E não é que o mané não tinha nada na carteira? Só pode ser otário mesmo. Cara de otário, pinta de trouxa, é o que é. Meti a mão no bolso, mesmo. É isso mesmo. Os manos como eu se acham malandros, e somos mesmo. Somos os reis do mundo, isso aí. Não temos nada de nada mesmo, que temos a perder? Somos o lixo, a escória. Veja eu mesmo: Doze irmãos, que vou fazer naquele inferno? Os camaradas da favela já convidaram, não quis. Prefiro a rua, não quero ser mula. Não gosto de barato. Sai caro, mano. Sai caro. Lá na viela, nos becos, pelo menos quatro dos meus já se foram. Na rua, a gente pede pra morrer, mas está vivo. Conheço uns caras que se pudessem, matavam meio mundo. Mas estão vivos, então têm de comer., têm de andar, respiram que nem todos, então os manos de vez em quando andam nos faróis. Bizu é dos bons, de vez em quando faz cara de fome, faz aquele beicinho, e olha que convence, até madame já levou ele para casa, e segundo ele não foi só almoço que ganhou, não. Bizu é dos bons, olha que é. Outro dia, se enfezou com um branquelo que se negava abrir a janela. Não teve dó, não. Fuzilou. O branquelo não teve nem tempo de suspirar, Bizu ainda entrou e levou carteira relógio e um celular. Ligou para um monte de minas, depois deixou o aparelho andando sozinho. Começaram a ligar pensando que o velho ainda vivia. Pois sim! Mas ele vive na nóia. Vive chapado, na bruma. Tem gente de peso perto. Charles lhe protege. Este Charles é anjo ou demônio, depende da ocasião. Para ele, não nego serviço não, até porque paga bem e mantém o beco onde eu vivo com uns irmãozinhos. Financia uns mas eu já disse, mano, eu prefiro olhar a vida de frente, lúcido, posso? Ele me fita de cima a baixo:

--Olha olha olha, o maninho é dos meus. Poupa ele hein? Legal, maninho, mas tu vai levar o presente, isto não nega para teu Charles não é?
--Claro, meu pai.

Ele gosta que o chamem de pai. Sua noiva é um tesão. Ai de quem olhar, por muito menos um comparsa meu amanheceu pendurado pelos bagos no chafariz.Virgem! O Charles é de arrepiar. Arrepia, mano Charles!!! A carteira do velho pulsa no bolso da jaqueta. Parece viva, sei lá. Deve ter algo escondido, assim na correria não deu para ver nada nela, mas a gente depois acerta ele, ele anda no ônibus que eu sei, lá tem um monte de fregueses como ele, qualquer dia eu e ele vamos conversar, para ele aprender a levar coisa útil na carteira. Tenho de comer, tenho de ajudar os irmãozinhos, tem um lá que vive no chão, todo cagadinho, está com a doença mas não quer se internar, pegou na veia. O barato sai caro, mano. Sai caro, eu prefiro nem
olhar, a gente põe ele num quarto mais afastado que é pro cheiro sair dele e não empestear a casa, de vez em quando a gente arrasta ele para um canto e joga um esguicho, coitado, está no fim. Às vezes olha para mim e com o canto da boca melado, geme que quer morrer, eu é que não vou fazer isto não. Já fiz, tem otário que merece, mas ele não, é meu maninho de rua, é gente que nem eu, mas está um lixo. Vou conversar com Charles. Ele assusta as meninas. Eu acho ruim, mas elas acham péssimo. Pedem para ele sair, a gente deixa no quarto escuro, aí a gente desempenha em massa e quando elas vão embora, ele volta à ativa. Na moral, mano.O que rola no beco é coisa que nem a gente acredita. Mas as meninas trabalham e duro. Sobem e descem a Consolação, talvez porque eu arrume a cabeça e nunca faça sem embrulho, os caras me chamem de careta. Prefiro olhar lúcido as meninas revirarem os olhos. Porque com os clientes, elas não sentem nada. Sentem com a gente, isso aí. Na moral. Bizu apaixona, elas querem com ele, mas sempre sobra para a garotada, tem
uma Madalena que vai com todos, até o pixotinho já treinou com ela. E olha, onze anos. Me lembro que aos cinco, eu teimava de ouvir minha mãe se enrabichando com uns manos otários que iam lá em casa, enquanto meu pai se ferrava de trabalhar. Ela não prestava, sabe? Minhas narinas se enchiam do cheiro das axilas molhadas de suor dela e dos caras, ela berrava alto, não parava nunca, e ganhava uns trocos. Nhec nhec nhec. A mola denunciava, porque com o papai era comportadinha, no maior silêncio(se é que dá para guardar silêncio num moquifo) .Nunca prestou, a velha babucha. Nada nada. Era entra e sai, toda hora. Meus manos viram , eu vi, só meu pai, otário, não sentia, será que não notava nada? Os comentários, quando entrava no barraco, metade do pessoal fazia sinais de corno, outra metade ria, outras pessoas comentavam, só ele não entendia. Volta e meia saía um quebra-pau, ele moía ela de pancada, mas a gente nunca dava razão para ela, que finalmente um dia sumiu no mundo e deixou os doze e mais o velho sem panela e sem comida. O jeito foi sair para caçar, o velho se acabou na bebida, meu mano mais velho aproveitou para corrigir os defeitos dele, na moral. Batia mesmo, até o velho cair de bruços. Putz, que inferno, nunca mais voltei, ele dizem que teve derrame, anda arrastando a perna, inválido, mas vai sempre que pode naquele barzinho e tome cachaça, eu prefiro olhar de frente o mundo, não de lado, de borco, de baixo, com olhos virados. Prefiro dirigir minha raiva. Que é muita mano. Muita, porque minha vida sempre foi isto aí. Seu hálito pestilento me nauseava, de modo que aos seis já pedia dinheiro nos cantos enquanto o mais velho, aproveitando a bondade dos trouxas, metia a mão e arrancava jóia, anel, tudo. Pedras maravilhosas, ele trocava por outras mano. Umas que só ele
sabia, nunca dividia com a gente, porque queria se acabar rapidamente. Eu olhava aquilo, o olho de meu irmão querido se anuviar, ele ficava tenso e às vezes saía quebrando tudo em casa, meu mano querido e sério. Nestas horas ele ficava doido, gritava que aquela vida dele não valia nada, queria por fim a tudo, mas num instante ele retornava à Terra irmão, sim, retornava e rolava mais um pedregulho em seu pequeno cachimbo, sua mão vermelha de tantas queimaduras, meu mano velho, como eu o chamava porque depois que tudo se acabava ele, suado, destruído, chorava porque queria que seu pai o ajudasse, mas seu pai andava meio caído pelas surras que levava dele, então não contava com ninguém e todos chorávamos porque ele apesar de tudo era o único que se afirmava para colocar algo dentro de casa, foi desta época que eu peguei aversão a tudo que faz delirar, foi nesta época que jurei a mim mesmo, Nelinho, desta você escapou, nesta você não entra, jurei que nunca iria flutuar na bruma que meu irmão mais velho estava. A jura eu selei na beira do túmulo dele. Dali em diante, nada mais se ligou em mim, aí vivo esta vida, mano. Isto aí, não sei o que faço não, mas uma coisa eu sei, de mim ninguém me tira a
consiência, nem Bizu, nem o Charles, nem droga nenhuma. Sou danado de bom de pontaria, sou sim. Carrego o berro perto do joelho, fácil de sacar, viu? Cuidado. Posso lhe olhar. Peguei ódio das pessoas me olharem de nojo dos caras que nos olhavam da cama de mamãe, aquele olhar sarcástico, aquele olhar babento, aquela gritaria toda, minha irmã mais nova chorando achando que ela estava sofrendo mas que nada, estava é balançando a bunda, mano, que não parava nunca, mas que porcaria de vida. Se um cara me olhar assim de lado, daquele jeito que branquelo cara de pinguelo faz quando quer te medir com desprezo, eu cerco o cara que nem galinha cerca um verme, ah não tem tempo de reagir não, mano. O Bizu que me ensinou, a gente tem que se dar respeito. Já parei no Febem sim, inferno. Levei nos costados dois anos de pena. Lá ninguém mais tem coragem de me colocar, porque sabe que eu fujo mesmo, olha só quinze luas mas tenho veia de sessenta e sete vidas de gato (já gastei umas quatro, tem três de reserva, tem sim.)

--Nelinho!!!
--Fala, mano.
--Que cara é esta?
--Não, vacilei, cara.
--Ihhh óia! Vacilão!
--Não enche Meleca.
--Tú é vacilão mesmo hein!
--Ó já disse, cala a boca.
--Brincadeira, meu! Você não é meu mano de guerra?
--Putz, de novo este cheiro. O doentinho tomou banho?
--Nada. Está difícil, ele cada vez mais fica resistente à idéia.
--As minas?
--Uma delas entrou, olhou a cara dele e saiu em disparada.
--Também, e depois eu que sou vacilão!
--Fazer o quê mano? Matar?
--Eu é que não faço isto.
--Eu hein! Se fosse um destes metidinhos de cara engomada, tudo bem. Mas,
cara,ele está no fim!
--E eu já te disse pra parar com esta merda!
--Nelinho, faz assim não, deixa eu!
--Quer acabar como meu mano velho?
--Não...
--Pois é...depois eu que vacilo...
--Olha, daqui, tu é o único que ainda está limpo.
--Pelo jeito, sou o único que vou sobrar.
--De onde vem tanta força? Meu não sei como consegue...
--É só pensar em não fazer. Tudo que faço na vida é evitar isto. Se você entra,
não tem mais volta. Além do mais tem maneiras mais interessantes de se
gastar dinheiro e tempo...
--E aí, que traz hoje?
--Olha, relógio de pulso, duas correntes...
--Bonita esta, vai dar pra Gorete?
--Craro cróvis. Você acha que ela vai gostar?
--Vai adorar mano!!!
--E você que me diz de hoje?
--Hoje mano tive de apagar.
--Diz não...se complica...
--O cara não queria liberar, mano, tive que fazer!! Mas saí correndo!
--Tinha gente perto?
--Fazer o quê? Tinha.
--Tu que é vacilão sabia? Hora destas tu volta para o inferno.
--Meto uma bala na boca. Não vou, se tiver de ir não chego vivo.
--Fala besteira. Que mais você tem?
--O que eu tinha já gastei...com o Charles...
--Cuidado com este cara. Este é perigoso, fala manso mas é demônio, tem
corpo fechado com Exu tranca rua e tudo!
--Cacete!! É????
--Já te alertei mano. Cuidado, senão depois vai sobrar pra todo mundo...
--Olha ele já pegou todo mundo daqui, todos lhe devemos...
--...menos eu, otário.
--Mais dia menos dia...
--Temos um trato, mano.
--Quer dizer que tu já tem trato com o demônio!
--Não, cacete, não é isto. Ele respeita minha vontade, mano. Cadê Bizu?
--Foi pegar as minas.
--Mas ele é tarado hein??
--Elas gostam!!!... E esta carteira?
--Aí é que está o vacilo, entrei no ônibus, furei a fila, sentei a mão no bolso do
freguês e...tinha esta carteira vazia!
--Será mesmo?
--Não tive tempo de olhar, não. Fiquei nervoso, porque dinheiro mesmo, não
tem. O cara colocou lá só de chamariz... babento velho. Dou um jeito nele!
--Guardou a cara?
--Ah, mais ou menos. Se topar com o cara, sei mais ou menos, se pegar um
parecido, dane-se. Vai assim mesmo.
--Deixe ver. Cara, carteira grossa...tem algo aqui...que é este troço peludo?
Parece a cauda de um rato...! Ô meu, você roubou uma carteira com uma
cauda de rato dentro!! O cara deve ser pobre, pra carregar uma cauda de rato
dentro da carteira!!!
--Vê se não enche!!!!
--Espera, está se mexendo...deixa ver...aihhh!
--Que foi???
--A merda me picou mano!!!
--Puta merda!! Uma aranhona!!!!
--Mano, minha mão está doendo!!!
--Vamos ver, tenho canivete...
--Joga esta coisa fora!!!
--Tá bem ta bem mas espera eu fazer curativo...
--Olha ela, está fugindo!
--Vou matar!
--Fugiu!
--Aqui não fico não, ela pode se zangar de novo e querer mais gente...Poderia
ter sido eu!
Sempre tive medo e horror a aranhas. Bichos asquerosos, ficam em
gretas da madeira e no barraco, sempre tinha uma, as piores são as armadeiras,
te ameaçam com as patas em riste e saltam em sua cara se você deixar e
chegar perto. Meu mano velho sempre matava uma , mais quando estava em
casa, elas adoram sujeira e porcaria, sempre ficam no quentinho, bem
quietinhas, o problema é sentar em cima de uma, como minha irmãzinha fez e
foi parar no Hospital, rapidinho foi ver Jesus. Credo! Lembro de uma vez, eu
deitado no escuro, ouvi um barulho em meu ouvido, senti as patinhas dela, era
grande, fiquei morto de medo, mas não soltei um pio, meu mano velho me
ensinou a domar o medo, nem suar, nem gritar, que elas te deixam em paz,
mano!!!! A bichinha passou por meu pescoço, foi se alojar numa fenda lá
longe, dia seguinte tinha sumido.
--Aranha eu gosto mas não é deste tipo!
--Cacete, Nelinho, está doendo!!!
--Vamos para o Hospital.
--Não vou não, lá eu sou manjado.
--Prefere ver Jesus então?
--Não sei, estou com medo!
--Tu com medo? Ah, não acredito!
--Troço esquisito! Um frio aqui na barriga...
--Tião!
--Óiaaaa!
--Tião chama a ambulância!
--Pro cagadinho?
--Nada! Olha meu mano!
--Nossa, está azulzinho! Tomou pico, mano?
--Não, foi aranha!!!
--Nossa, ele é alérgico às minas?
--Seu bosta! Foi picada de aranha!
--Aqui tem aranha agora? Puta merda. Olha a mão dele!
--Mano, chama o Bizu!! Estou mal!
--Calma mano, calma, vou chamar!
--Nelinho!!! Estou esquisito!
--Teu rosto está inchando!
--Não consigo respirar!!!
--Calma! Tião! Chamou???
--Está vindo, chamaram viatura policial, tudo bem?
--Porra, tiras!!!
--Vamos!
--Quero não, quero não mano, não me deixe só!
--Que porra de aranha é esta?
--Ele deve ser alérgico, ele sempre foi meio asmático, já vi ele chiando nos
cantos!
--Mais esta agora!!!
--Chegaram!!!
--Cadê o doente? É aquele fedido? Ele está morto!
--Não, é este aqui!
--Abre abre!
--Choque anafilático, prepara a adrenalina! Material de intubação!!! Você é o
que dele?
--Irmão!
--Maninho, teu mano está mal. Que foi que ele fez?
--Dentro de minha carteira mano, tinha uma aranhona deste tamanho. Picou
ele!
--Como era? Traz aqui traz aqui, vamos perder!
--Era meio marrom, tinha pernas compridas, estava quietinha dentro e ele
mexeu!
--Ela pulava?
--Não, não era armadeira não. Dessas eu conheço, mano!
--Nelinho!!! Aiiii Nelinho!!! Mano me salva!
--Para trás para trás, material de intubação!!!
--Olha ele está perdendo a consciência!
--Sibilos em tudo que é canto, há quanto tempo foi isto pequeno?
--Faz uns cinco minutos, dez sei lá!
--Porra, vamos com isto!! Aminofilina 1 ampola lento agora...quantas
adrenalinas???
--Duas ampolas!!!
--Doutor, salva ele!
--Vamos tentar, filho, vamos tentar!!! Porra que aranha deve ser esta?
--Talvez uma marrom, engraçado, ela dá mais necrose!!!
--Mas se ele for atópico, faz esta reação. Ele é alérgico, maninho???
--Tião!
--Eu já ouvi este garoto chiando sim!!
--Deve ser asmático, alérgico. Putz, arrítmico pra burro!
--Doutor, vamos intubar?
--Inclina a cabeça...maninho, aperte aqui, no pescoço...cânula sete!
--Ele morreu doutor?
--Parou de respirar menino!! Se a gente conseguir intubar, a gente salva o
garoto!!!!
--Deus!
--Que foi?
--Olha as mãos...
--Cianótico, prepara a ambulância, deixa o HC avisado, choque anafilático!
--Entra, entra cânula!
--Entrou!
--Ventilando...ambu!!!
--Quantas adrenalinas???
--Três!
--Massageia!!!
--Arrítmico ainda!
--Vamos chocar, deve estar fibrilando!!!Tem monitor aí? Traz logo, o garoto
está morrendo!
--Traz o monitor desfibrilador!!!
--Mano, volta mano!
--Garoto, faz uma coisa, procura a tal aranha, coragem, sei que você é
corajoso!
--Estava ali naquele canto...
--Dá uma olhada, talvez a gente tenha de dar soro antiaracnídeo, mas a gente
deve tentar saber que aranha é!
--Monitor!
--Dê as pás!
--Aqui doutor!!!
--Porra fibrilando, choque 200 joules..se afastem!
--Porra que coisa!!
--Choque!!
--Monitor...sinusal doutor!!!
--Mais adrenalina...dá o soro...volume, pega na ambulância, prepara quatro
ampolas de Revivan em duzentos de soro...500 miligramas de flebocortid,
vamos....
--Doutor posso ajudar?
--Guarda vem cá, Tião, dá o ambu pra ele, você vai ventilar ta legal?? Legal,
está voltando...
--Eu posso ajudar, tenho formação em assistência avançada...
--Legal fica comigo.
--Dopa!--Põe naquela outra veia! Vê se liga logo. Avisou o HC?
--Eles estão prontos, o ICR está OK....!
--Legal..
--Veias pequenas!!!Mas ta ligado!
--Vinte microgotas. Vamos vamos...Já deu Flebo?
--Já dei!
--Porra legal....stress hein???
--Demais...sinusal doutor!
--Vamos levar!! Vamos levar!!! Pega a maca. José, pega a maca!!
--Tá bom!
--Legal, maninho achou a aranha?
--Está aqui, doutor!
--Sabia , você é dos meus!! Puta coisa feia!
--Estava prontinha, debaixo do colchão ali, quietinha feito uma onça...
--Pelo que vejo, é marrom, mas bem alimentada hein!!!
--Ele se salva?
--Olha maninho. Sei que você é corajoso. O pior já passou. Se você não
tivesse nos chamado, ele já não estaria aqui. Sorte de estarmos perto do HC,
sorte de a ambulância ter chegado rápido, sorte de não estar chovendo, sorte
de a ambulância estar preparada, ser UTI, etc...faremos o possível, mas o pior
já passou, pensei que íamos perder seu irmão...! Mas olha, sai daqui, o lugar é
sujo. Deve ter outras por aqui. Cuidado com isto, maninho. Depois a gente se
fala, vamos com isto José?
--Vamos lá doutor!!!
--Fala pro motorista abrir tudo. Quero dez minutos, quinze no máximo!!!
--Vamos voar!!! Robério, liga tudo.
--Entra entra!!! Deixa eu ligar o BIRD!
--Que mane BIRD?
--Isto vai respirar por ele maninho!
--Porra meu maninho....
--Agora vamos levar seu irmão. Se quiser maninho, vai até o HC, instituto da
criança ta bem?
--Sei onde é. Sempre passo por lá...
--Mas desta vez você vai para fazer coisa melhor. Se Deus quiser, teu irmão se
safa. Cadê seus pais?
--Não sei não, seu moço!
--Merda, merda!! Esta cidade é um inferno, imagina José? Um garoto morto,
outro quase morto, naquele beco imundo, cadê os pais deles??Ninguém sabe.
Ninguém viu!!! Vamos???

Imagina mano. O velho me paga. Vou colocar azeitona na pizza dele, ah vou sim...Eu nunca tomei pico, nunca tomei bola, nunca estourei uma bagana, nunca cheirei um talco. Mas ali, olhando a ambulância ir embora, cantando pneu, aquele monte de gente, putinhas correndo atrás do carro, cachorros latindo de medo, policiais afastando os curiosos, o cheiro de merda do mortinho, a água escorrendo da chuva fina que caía, a sirene longe longe...as luzes mais brilhantes, meu maninho lá dentro, deu um branco, sei lá, deu um branco, mano, não sei de nada, só sei que quando acordei, tinha uma baita gata me abanando, com olhos úmidos, cabelos escorridos, era Gorete, seus olhos cheios de tristeza e angústia, me chamando pelo nome, o Bizu de pé, cara preocupada, uns caras estranhos anotando nomes e tudo, um cheiro insuportável de morte no ar, eu podia ver as gotículas de chuva como fios
prateados iluminados a tecerem caminhos soltos. Eu podia ver tudo isto e mais um pouco, porque Gorete me alisava os cabelos... Me lembra da infância, um raro momento de paz com minha irmã mais velha, que fizera por algum tempo o papel de mãe até conseguir um emprego em Goiânia e ir pra lá me deixando tão só...
--Gorete...!
--Nelinho! Fiquei preocupada, você machucou feio a cabeça...
Só aí notei o calombo na testa, o sangue coagulado, só aí soube, pela
cara de Bizu que não ia ver mais meu maninho, só aí meu sangue ferveu fundo
nas veias, o velho, fosse qual fosse, daria um jeito de achar o velho, aquela
calça desbotada dele, a camisa puída, daria um jeito nele, nem que fosse por
exclusão, meu mano não ia ficar assim deste jeito.
--Bizu, quero sair daqui.
--Olhe, já demos um jeito. Charles arranjou uma casa, perto do Centro, tem
mais ar, é mais limpa, ele se disse seu pai, deu um jeito na polícia, sabe?
--Sei, ele é um demônio, Bizu.
--Agora não. Só quer nosso bem.
--Tião!! Como ele está?
--Nelinho, seja corajoso!
--Quer dizer...
--Não resistiu não mano, o médico falou que ele chegou vivo lá, chegou a
internar na UTI, mas piorou de novo da asma, sei lá...Ele estava triste e
mandou pra você isto...

Um papel. Escrito em letras de forma: ‘Aranha marrom,LOXOSCELES, veneno causa gangrena, hábitos noturnos, fica em cantos, roupas velhas, armários, botas, sítios...Aranha marrom, habita bananeiras, mansa, só ataca quando ameaçada.’

--Tinha que ser com ele? Carreguei esta merda dentro de meu bolso, podia ter
aberto antes a carteira quem sabe?
--Aí tu estava sem dedo, sem mão, sei lá.
--E o cagadinho?
--Morto. O pessoal já recolheu para o IML.
--Putz!
--Estava morto há dois dias mano! Ninguém olhou?
--Ele dormia muito, a gente pensou que ele estava dormindo!
--Bom, agora está... Vamos? Pega tuas tralhas mano. Aqui não tem mais jeito.
--E as minas?
--A Gorete sabe, mano, sabe de tudo, né gata?
--Sim Nelinho. A gente agora tem outra casa, ta?
--Está bem...Meu maninho!!!
--Olha, o médico disse que podia por exemplo ser um inseto, assim, um
mosquito grande que picasse ele, poderia dar no mesmo!
--Eu falo, ninguém me escuta. Dia destes vai todo mundo ver Jesus!
--Eu me cuido!
--A gente acha que se cuida, mas usa pó, usa pico, fica louco..!
--Sem essa de lição de moral!!!
--Eu estou avisando, Bizu, faz tempo. Se não é assim, é que nem o cagadinho,
se não é de outro jeito, é num beco escuro crivado de azeitona, se não é
também assim, é num cemitério clandestino, dentro de um saco plástico, vou
te dizer!
--Calma Bizu, ele perdeu o maninho!!!
--Está certo, está certo, mano, ele é do meu peito, carrego ele aqui mesmo.
Vamos embora, cata tuas tralhas, vai lá dentro e cata, vamos embora. Eu
prometo, vamos cuidar mais de nós?
--Eu vou é embora, Bizu. Vou me encontrar com minha irmã em Goiânia!
--Tu nem sabe onde ela mora!!
--Vou embora Bizu. Mas antes vou achar o filho da puta que fez isto para ele.
Vou sim, mano.
--Tudo bem, Nelinho, tudo bem, vai sim. Vamos embora que os tiras deram
prazo para a gente!!!
--Vamos. Deixa eu pegar minhas coisas...
--Já peguei, pus num saco...
--Aquele ali?
--É.
--Cadê os outros??
--Cada um num canto, esperando a poeira abaixar.
--E depois?
--Depois a gente vê. Charles disse: Molho pra vocês, se quiserem continuar
respirando. Então, se o Mano Charles falou, eu obedeço!
--Eu também, Nelinho!
--Eu vou é falar com ele. Quero que ele me ajude a encontra minha irmã. Não
quero ficar aqui mais não. Ser protegido por um cara que te dá a vida e a
morte pelas mãos. Que te traz dentro da palma uma flor e uma foice.
--Não fala assim dele Nélio!
--Ele sabe disto, temos um trato. Se ele quiser, me apague, mas eu quero é
ficar limpo, mano, quero sair do pedaço, não sei de nada, nunca fui mula, não
devo nada a ele, não sou otário!
--Otário é a puta da tua mãe!
--Ela era puta sim, Bizu. Mas nunca otária. Só otário mesmo pra cair nesta
merda de vida aqui! Quero mais isto não. Cadê meu berro?
--Está aqui.
--Me dá!
--Bizu!
--Está bem. Veja se não faz besteira hein!
--O mano Charles falou, molho para nós? Vamos dar um tempo?
--A polícia tem toda a ficha, só não grampeou porque ele não deixa, molha a
mão, tu sabes...
--Puta podreira irmão..
--É mesmo. Gorete, chame o táxi, vão vocês na frente. Vou depois, sei que
têm muito que conversar...sei sim...
Gorete é meio índia mesmo, me recebeu com carinho, aquela casa ali se encheu de gemidos de minha morena, para quem acabara de perder o irmão eu me dei bem, aliás nunca me dei mal com as minas, mano. Esta sempre foi especial, ela que ganha a vida nas ruas, como eu, que veio de uma tribo que nunca mais viu, que tem americano pegando no pé (para casar meu moreno, ele quer casar e tudo, quer me levar para os states, quer me levar para conhecer os lados de Nova Iorque, mas eu prefiro ficar livre aqui, ele me enche de presentes mas eu os trago para você, que é o amor de minha vida, o amor bandido que vai acabar com esta vida meia-tigela que eu levo, vamos ganhar muito dinheiro e te quero do meu lado, tudo isto ela fala com gelo nos olhos, de um ódio glacial que só se desfaz nos nós de nosso amor, ela se doa
toda, tudo o que represa e guarda ela solta em meus braços, mano...).

--Gorete...
--Sim meu moreno?...
--Vê se pára com isto...
--O cigarro??
--Sim...
--Mas até isto, meu menino? Que é isto? Você vai me dizer que nem cerveja
toma, neném?
--Olha, neném eu não sou não. Primeiro. Segundo, maninha, eu gosto de você
assim, fresca, linda, aberta para mim...Não carcomida feito uma flor viciada...
--Olha, foi você que me ensinou a evitar as drogas, você me convenceu a isto,
mas pequenos prazeres a gente tem de ter, senão enlouquece...
--Está certo...Depois não me enche com tosse, falta de ar...
--Esquece isto, esquece a paranóia pequeno... Esquece, tudo vai passar, vem
cá, se abriga em mim...
--Sinto frio!!
--Você está tremendo!! Parece febril...
--Acabei de perder mais um dos meus, eu acho que estou ótimo para o que
acabei de passar...Acho...
--Com certeza...dá de dez a zero em qualquer um que jamais tive, tenha a
certeza...
--Gorete...
--Sim?...
--Vamos para Goiânia?
Longo intervalo. Um rosto vincado, uma pintinha certamente charmosa próxima ao queixo denuncia sua dúvida atroz...parece uma dúvida cruel, enorme...que ela tem a perder mano??? Ela vacila muito...mas eu acho que...
--...vamos pensar nisto depois? Eu vejo esta idéia com muito carinho, meu
pequeno menino grande...mas o que você vai fazer lá?
--Como assim?
--Sem Charles, sem apoio, sem a gente...sem nenhuma ocupação, na rua,
começando tudo de novo, sem as dicas do pessoal onde atacar, sem nenhuma
experiência de local...que fará?
--Quero achar minha irmã, quero voltar a viver com ela, acho que foi a única que se deu bem, afinal, dos outros não sei nada, sei que sumiram, mas ela...foi trabalhar por lá...e eu..sei lá, estou cansado de viver nesta porra toda de cidade suja, quero começar do zero, não mais assim, ainda mais depois disto tudo...

--Olhe, meu moreno gostoso, olhe. Eu acho sua idéia legal, sim. Além do mais, fiquei sabendo que uma parte de minha família pode estar por lá,
também...e olhe, já pensei sair deste lugar, mas o pessoal ameaça...
--Tipo?...
--Que se eu sair do pedaço, vão cobrar a dívida...
--Que dívida?
--Você sabe, tudo é um negócio, se eu quebro um contrato, nunca mais tenho
vez por aqui....
--Está certo, você quer continuar a vender tua bunda...
--Não fale assim, meu neném!!!
--Neném o cacete. Maninha, vou falar com o Charles...
--Olhe, ele está zangado. Pode não querer te ver.
--Ele falou assim?
--Não moreno, ele falou que vocês todos estão de molho, significa que quer
um tempo para vocês, ele acha que estão manjados. Você sabe que isto pode
significar...
--Eu não sei dos negócios dele, nem tenho idéia do que ele vive tocando, eu
nunca aceitei participar..Uma vez dentro, maninha, a gente não sai mais!
--Sei...Mas eu posso saber demais, o que você acha que não sabe...Você
parece que nasceu ontem, gatinho!!! A gente não pode simplesmente fugir e
foder com os outros assim, você sabe!! Conheço um cara que se eu fizer isto,
vai atrás de mim até o inferno, porque...
--Deu para ele também???
--Antes de te conhecer, o cara me arranjou as coisas, sabe..deu guarida,
dinheiro, tirou umas vagabundas dali e me favoreceu...O Charles pôs a mão,
também, porque tem participação, você sabe...
--Porra, este cara participa até das missas da Sé????
--Cacete menino!! Você conhece a fera!!! Ë assim mesmo...se eu der adeus,
você sabe que se eu quiser voltar, vai ser uma barra...
--Maninha, tudo bem. Eu vou falar com a ..fera...e vou embora...
--Vai me deixar?
--Você me segue depois, se quiser...tenho pouco tempo, se continuar assim, eu
estou em outra, vocês todos me incomodam, maninha. Esta babaquice de
putaria, esta babaquice de ficar drogado, esta porralouquice de matar, mano, já
me torrou!!!
--Certeza, menino?
--Certeza, pai. Se quiser, acabe comigo agora. Meu coração é gelado, pai. Não
tenho medo da morte não. Olha, pega o Sultão, aí, ó, e me leva ali para o
beco...!
--Sultão???
--Sim, pai?
--Leva o menino!
--Mano, você vai acabar comigo?
--Vou, ué. Você já me torrou o saco com este papo burro. Não quer ser mula,
não quer as pedras, não quer matar, não quer..que é que você quer?? Quer ser
reizinho, ganhar dinheiro na moleza?? Quer moleza??Peida mole e senta em
cima!!!
--Quer moleza, filho de uma puta? Caga mole e desliza na reta!!!
--Quer facilidade? Compra supositório de gelatina!!!
--Ah ah ah. Você está brincando, pai.
--Vai Sultão.
--Para onde?
--Vamos levar no carro janeludo.
--O escuro?
--Eu mesmo cuido disto.
--Eu acabei de perder um irmão!
--Irmãozinho, aqui quem fala grosso sou eu, seu merdinha!!! Vai encontrar
seu irmão já já!!!
--Pode me matar aqui, seu puto!! Já que vou morrer mesmo, vou te dizer umas verdades!! Você se acha Deus, por acaso??Se eu quero viver assim, como eu quero, prefiro morrer a perder minha liberdade!! Entendeu?? Não quero colocar na goela teus truques de diversão, caralho!! Quero ficar limpo, quero ser eu mesmo, quero mudar de ares, mudar de vida!! Pensei que você, com o poder que tem, poderia me ajudar a encontrar minha irmã, cacete!! Mas tudo que pode oferecer é ver meu irmãozinho!! Bem ao teu estilo mesmo, seu demônio!! Cacete!! Me dá esta arma que eu mesmo acabo com o negócio!! Me dá esta bagaça!! Pensei que tínhamos um trato!!!!me dá esta porra Sultão!!!!

--Dá para ele, Sultão!!!Olha, põe uma toalha aqui, odeio sangue de gente
assim sujando meu tapete!
--Teu tapete está sujo, meu amigo!!!
--Fedelho de merda!! Bostinha do cacete!!!
--Posso ser. Tenho quinze anos. Melhor terminar assim!!!
--Porra, Sultão, este é dos bons!!!
--Como?? Me dá esta bagaça!!!
--Não vai dar não, Nelinho. Nélio Vieira.

Quando ele fala seu nome assim, ele ou está selando teu fim ou...o gelo já me sobe das pernas, me preparo, pois perto dele tem a famosa arma prateada, infalível, brutal e certeira... Ave Maria, quero me encontrar com meu maninho, quem sabe se vou dormir ou vou brincar lá onde ele está???

--Nelinho. Você se parece muito comigo. Assim que comecei, menino. Assim,
com esta raiva, este ódio que não temia nem pelo próprio fim!!! Eu me vejo
em você, pirralho. Magrinho, mas destruidor, quantos já matou?
--Não sei.
--Eu sei quantos, nestes quinze anos. Eu sei que você é violento. Sei de teus
passos maninho. Mas sei que você pode estar certo. Tenha certeza disto. Mas
olha, este é um caminho sem volta. Aqui, você não bota mais os pés, maninho.
Vou te avisar, se você for embora, minha proteção desaparece.
--Escuta, Charles...Digamos que eu penso mais longe...
--O que um porrinha de quinze anos pode pensar que eu não esmiucei nesta
merda de vida???
--O que um pai pode deixar de lado por seus filhos..como o meu que de certo
modo está lá, quase inválido...é hora Charles...
--Hora de quê???
--Hora de olhar longe...
--Falei que este é dos meus, Sultão. Enfim, você também odeia estas coisas,
não é?
--Você também??
--Só eu e o Sultão sabemos. Nunca usei estas merdas, isto é para os fracos,
baby. Os fortes usam outro tipo de coisa. A cabeça, primeiro. Acho que você
gosta de usar as duas...
--Bem por aí. Longe de mim querer algo mais. Quero sair desta vida de merda,
pai. Aquele cheiro, meus irmãos morrendo, quero achar minha irmã, quero me
convencer que a vida pode mudar, mas quero também...ter grana, pai. Meu
exemplo é você, cercado de mulheres lindas, cercado de coisas boas...quero ter
isto, mas nunca vou chegar lá...entende?
--Vê se pode, Sultão, o pequeno é um gênio. Como não tinha visto isto
ainda???
--Ah, não me goze!!!
--Tem de ralar muito para chegar onde estou, filho, entende?? Não é à toa que
eu posso andar de cabeça erguida, entende merdinha???

Agora estava com aquela raiva cega que mata. Deixa eu ver, agora vou é ficar quieto, mano, que em boca fechada não entra mosquito!!! Seu olho esgazeado, sua cabeça mexendo para lá e para cá, até Sultão se afasta um pouco, é hora de deixar sua raiva cega explodir, nunca se sabe onde ela ricocheteia...

--Estes porrinhas!! Pensam ser fácil assim, a coisa cai do céu!!! Tudo é fácil,
Charles, me ajuda a sair desta vida?? Quero levar Gorete, posso??? Posso
entrar na escolinha, quero freqüentar aulas de francês para peidar perfume e
defender os interesse do patronato!! Só falta perder um dedo!

Mano, foi a pior dor que eu senti, ele veio que nem doido, sacou um punhal não sei de onde, arrancou meu dedo mínimo com um golpe certeiro, Sultão teve de me segurar de tanto berreiro que aprontei, vendo esguichar o sangue que nunca saíra com tanta abundância, mano, desta vez eu senti dor, e foi foda, mano.

--Pronto, merdinha. O dedo a menos já tem. Quantos são os problemas do
Brasil?
--Ai, como dói...
--Dói né?
--Dói!!
--Neném!! Olha para minha mão!!!

Faltava um dedo. O dedo médio. O dedo médio da mão que me
arrancara um dedo. Só tinha quatro agora, ele tinha sido bondoso. Agora sua
raiva amainava. Não, talvez saísse vivo dali.

--Olha, eu vou te ajudar. Mas que fique claro aqui, tu não pode vacilar. Se der
com os dentes, sua poeirinha, te mando buscar no inferno. Quero que você vá embora. Mas tem uma dívida comigo, purulento!! Tem uma dívida de sangue!!! Agora firmamos um pacto de vida e morte!! Jura pelo teu sangue derramado que tua vida me pertence???

--Juro Charles...
--Juro pai!!!
--Juro pai!!!
--De joelhos!!! Sultão!!!

Bem, perdi a aposta. Aqui me despeço, afinal. Vocês foram bacanas em me ouvir, posso ouvir o estampido, posso ouvir o sangue escorrendo de minha cabeça, a toalha é bem apropriada, depois ele envolve meu corpo, mano, e tudo se acaba no fundo de um rio, numa lagoa ou num carro de lixo, nem vão notar meu corpo mirrado sendo triturado nas lixeiras, depois os ratos dão conta mesmo. Tudo acabado.

--Traz o treco!!!
--Posso rezar?
--Tu sabe rezar?
--Sei...
--Onde aprendeu?
--Li por aí.
--Então...Eu te batizo, em nome do pai, do filho, do espírito santo, amém. Teu
nome agora é Thiago.
--Amém. Que é isto que jogou em mim. Charles?
--Água benta, santa ignorância!! Porra, Sultão, o cara diz que sabe rezar e nem
sabe da água benta! Bom, mas como disse, agora você pode ir. Vou dar um
jeito de achar sua irmã.
--Jura?
--Juro. Você é dos meus, Thiago. Não posso, não devo acabar com você. Você talvez tenha a chance de que eu precisava, quando tinha tua idade. Você tem consciência, tem noção. Como minha gata. Ela estuda lá onde estuda porque quer ter um futuro. Vou lá acabar com ela?? Acabo com quem dá em cima dela. Tem gente por aí que anda meio saidinha para o lado dela, que vai acabar sem pinto, depois é claro de tomar umas porradas...mas eu sou lá o quê para mudar o destino de uma pessoa? Acho, sim, maninho, que você tem algo que vai me superar, ah vai. Já tem tanta gente no costado, só com quinze aninhos!!!

-Tenho orgulho de mim, sou pouca coisa não, mano. Acho que posso ser
melhor do que sou.
--Está certo. Veja lá o que precisa, Thiago. Fiquei sentido pelo teu irmão.
Fiquei triste mesmo. Ele era tão fraquinho, eu pedia para o pessoal não vender
para ele, mas você sabe, a carne é fraca...ele estava sempre procurando...Engraçado como as coisas são, não é? Outro dia mesmo estive aqui conversando com um camarada dos nossos, ele tem lá seu valor. Mas tem quase o dobro de tua idade, maninho, e não chega aos pés de você. Acho que a Gorete merece gente assim. Engraçado né Sultão?? Viu a coincidência? Ele e o branquinho gostam da mesma mina. A diferença é que este aqui tem quinze anos, o outro gasta horas e horas sem saber o que quer da vida. O que você quer da vida afinal?

--Charles, mano velho, meu pai. Nunca mais quero perder pessoas que gosto
como perdi ontem. Perdi uma parte de mim, gostava muito dele.
--Está certo. Certo mesmo. Então vai. Mas olha, é para ir para longe, para
esquecer o que passou aqui, é mesmo.
--Nunca soube de nada, tu sabes disto.9
--Sei. Sei que você me impressionou desde que o vi. Vi um sósia, vi um igual.
Diferente do branquinho, diferente de tudo que eu já vi aqui. Olhe, pouca
gente sai daqui, desta sala, com vida. Eu posso dizer e o Sultão é testemunha,
muito cara entra aqui para pedir favor, para perdoar uma dívida, para pedir
proteção.Sai presuntão, cara. Menino, você sinceramente me impressionou.
Não vou tocar num só fio deste cabelo ruim. Vê se cuida dele, pois ele está em
sua cabeça ainda, debaixo dele tem massa, tem substância, usa isto melhor do
que eu usei, está bem?
--Não vai me matar, nem nunca nem agora?
--Não! Já te falei!! Ou quer desfazer isto?
--Se é verdade mesmo, posso ir??
--Pode maninho!! Pode sair por aquela porta ali, ninguém vai te pegar, ninguém vai te encurralar num beco, você está saindo, mas é para não olhar para trás, é dívida de batismo, você jurou pelo seu sangue, está ouvindo?
--Ouvi meu pai.
--Então vai. Cuidado nas quebradas, neste mundo tem muitas quebradas, no
mundo de meu pai há muitas quebradas.

Mano, a sensação de sair dali é como a de nascer de novo. Ninguém me perguntou o que era o curativo. Nem precisei me explicar muito para a Gorete. Mas ela não quis ir. Ia perder clientela, mano. Sou jovem , ela diz. Ela diz, hora destas te encontro lá. Também, que tenho a perder mano? Já perdi tudo nesta vida, mais uma merda não me faz mal nenhum! De forma que dei um beijo, e pá e tal. Dei o beijo na putinha, ela nem chorou, nem eu, somos duros e frios, eu peguei o ônibus, lá vou eu para Goiânia, tem um destino, tem alguém que conheceu minha irmã, talvez possa ajudar um pouco. Começarei por aí. Mas Charles me arranjou uma casa para ficar. Parentes de longe dele, nem imaginam o poder que ele tem aqui. Lá, sabem apenas que sou seu sobrinho de criação. Escola, e pá e tal. Mano, para quem levou Febem no costado, para quem colecionou esqueleto, para quem tem medo de aranha, para quem teve dó de puta, para quem passou pelo que eu passei, nada mau. Só não gosto do olhar daquele cara estranho que fica no banco bem atrás do meu.Tem um sorriso meio matusquela. No mais é só mordomia, mano. Sou Thiago agora, e terei tudo que sempre quis. Sou batizado, mano.
Graças a Deus. E a Charles.
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