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Contos-->O Amante Furtivo -- 21/07/2008 - 00:32 (flavio gimenez) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Lidando com as mãos, ela se desvencilhou de um incômodo. Conseguiu ao mesmo tempo, afastar o pensamento que a invadia e soltar os cabelos que se espalharam ao vento mostrando o alvoroço que lhe ia à alma. Pois que se avizinha o indefinível, ela o sente, mal sabe o que ele tem a lhe oferecer, embora já admita agora que pode ser muito mais do que jamais supusera. Ela bem que tentou convencê-lo, demove-lo da idéia macabra. Mas ele, irredutível, aliás, como sempre fora, entre uma baforada e outra de seu charuto perfumado (ela adorava o perfume de baunilha), ele a convencera afinal. Agora, não era sem uma ponta de frio na barriga que ia se encontrar com ele. Ela sempre passava ali, sempre ia desalmada com sua juventude e viço, em meio a velhas árvores que a seguiam com olhares tortos, ah se eu pudesse seguir esta moça, ela bem o sabia, o que não dizer então dos olhares dos moços e rapazes que se voltavam para fitar os tornozelos daquela beleza que irradiava agora frescor e alegria, mas uma ponta de medo e quem sabe, com olhos de corça, até susto? Dobrou a esquina. O jornaleiro, ah, este a seguia sempre com os olhos, sempre procurava seguir seus passos, ela sentia o calor de seu olhar em suas costas, mas amavelmente o cumprimentava sempre serena, pois ali se sentia à vontade, mesmo sendo devorada por olhos mais do que explícitos, ali ela podia relaxar, num tempo em que misturava olhos de velhos e de moços, árvores tortas de ventos e rumores de vozes ocultas que ela sempre soubera esconder e ouvir, mas nunca o dissera; somente para ele, aquele com quem iria se encontrar agora.
--Olá!
--Como vai?
--Vai-se indo.
--Deste jeito a gente pode imaginar de tudo...
--Bem, vou bem hoje e você?
--Do jeito que a vida quer. Vai levar algo hoje?
--Aquela revista...
--... Ainda não vi. Realmente é rara. Mas um colega meu já providenciou, acho que semana que vem a senhorita terá a mesma em mãos.
--Legal. Você é gentil.
--Pena que não à sua altura!
--Como se eu fosse assim. Você me conhece! Nunca fui nada disto que me diz.
--Bom, mas eu sei que se pudesse...
--Este terreno é minado... Já abriu o Café?
--Vi o Juvenal limpando as mesas... Juvenal?...
--Diga!
--Olha lá, não disse? Terreno livre para você saciar a sede de café. Por que toma tanto?
--Não tenho tempo de dormir.
--Por quê?
--Já pensou em quanto tempo dormimos?
--Bom pensar não. Eu durmo mesmo!
--Há ha! Pensa!
--Bom, oito horas por dia...
--Pois são sete dias vezes quatro...
--Mãe do céu!
--Isso aí! Caiu a ficha. Sei lá, preciso viver. Tenho vinte e quatro. Quero viver!
--Mas... Espera um pouco, vai apressada hoje, vai assistir à morte da bezerra?
--Antes fosse...
--Que houve?
--Nada... Mas então, fica me devendo hein?
--Pode acreditar. Semana que vem, a revista está em mãos!

Bem que charmoso ele era. Ela, se o quisesse, ao estalar os dedos, o teria a seus pés. Olha que ele não era de desprezar não! Queixo largo, 28 anos, fortes mãos e uma enorme vontade. Já tinha duas bancas de jornal, desde que perdera o pai em um acidente, pegara o que tinha dele e multiplicara! Mas nãoera isto que a preocupava agora. Era o que o outro lhe iria oferecer. Sabe-se lá, um encontro marcado assim, há tanto tempo... Vivemos na melhor cidade da América do Sul, ela pensa. Isto a preocupava agora, o que ela iria fazer depois de tomar o café tão esperado. Como era bonita a música que ouvira ontem, enquanto... Bem, enquanto. Lá está a padaria. Um cheiro invade o ar, são croissants fresquinhos que ela sabe que pertencerão ao seu estômago; Bem que ela queria ter menos voracidade, as moças de sua idade como ela, se perdem em contas quilométricas de anorexia e bulimia. Ela não. Come o que lhe dá na telha, bebe moderadamente, mas não fuma. Sabe que há gente que odeia, ela também, mas não policia. Teve até um namorado que ela policiava, queria se suicidar afinal de tanto cigarro, mas parece que o que ele fazia era para pentelhar mesmo. Baforadas na cara! Ah faz favor. Dá um tempo. Não sabe mais do cara. Ele sumiu depois que ela lhe deu um pé. De vez em quando dava o ar de sua graça na academia. O professor, de longe, lá vinha. Coitado do rapaz. Falava mal, trocava R por L, era uma graça de menino, mas meio grudento, dava em cima, ela nem. Fazia o suficiente para cumprir tabela. Não sem antes chamar atenção com seus olhos castanhos e um corpo que ela sabia ser belo... Aí sentia a consciência menos pesada. Queria saber o que podia fazer, ele vinha. Explicava, não sem antes insinuar que tudo era divino maravilhoso nela. Aí ela dava um tempo, vinha mais tarde. Mas a gente conhece o que pode dar e receber, na aula seguinte ele ficava lá magoado. Que culpa? Ela nunca dera nenhum sinal. Apenas tentava ser gentil. Homem não pode chegar perto de mulher que não seja para ser algo mais e ela sabia do poder de sedução. Cansada de levar cantadas!
--Juvenal!
--Diz, princesa!
--Aquela média, pode ser?
--Pode, deve, vai sair! Uma média pra gatinha!
Que será que haverá? Por que ele estava tão sinistro? Que será que tinha
a oferecer? Será que o que ele tinha em mãos era muito... Comprometedor? Bem notara em seu olhar. Olhar que estremecia qualquer uma. Ela sabia. Vinha de seus olhos. Olhos de um profundo poder. Olhos de uma alma poderosa. Olhos de quem sabe o que tem nas mãos. Nenhuma vez ela duvidara deste poder, desde que cruzara com ele eventualmente em uma biblioteca, à procura de um livro que usaria em um trabalho de sua pós-graduação. Ela estremecera quando notara seu olhar pousado em suas coxas. Ela sentira algo semelhante há muito tempo, acho que aos dezesseis anos. Agora, este camarada! Nada fez nem insinuou! Puxou um charuto, sentado num banco da biblioteca, tranqüilamente exercendo seu direito de ser forte, e a convidou com um gesto a sentar-se junto a ele. Quando viu, já estava em sua cama. Nunca mais se desvencilhou do prazer que ele lhe causou! Nunca mais ela poderá saber quem poderá ser melhor que ele foi. Jamais. Quem sabe? O que ele terá em mãos para convocá-la assim com voz tão urgente, tão feroz, para um encontro? Ela sabe, ele é casado. E daí? Ela não quer que lhe encham o saco. Melhor, porque ela estava com alguma dificuldade, conciliar estudo e trabalho é e sempre foi difícil, desde que saiu de sua casa, em Campinas. Mas ela é forte. Só que ele lhe ajuda um pouco! Não me venha com cobranças, pensa ela. Não sou escrava não! Nem prostituta, como uma amiga sua lhe disse:
--Mas isto! Você está com um cara casado, que lhe financia a vida em parte! Que você acha que é?
--Ele quer.
--Ora, você também quer!
--Não, é ele que se oferece!
--Ah vai! Senta no mole que assim até eu!
--Bom, se você acha isto...
--Desculpe, não acho. Mas isto tem outro nome.
--Ah, vá à merda. Estou pouco me cagando para o que você pensa. Não devia ter contado, afinal. Achei que você era madura. Enganei-me.
--Isto não é questão de maturidade. É de responsabilidade. Como diz...
--Sei, sei. Tu te tornas eternamente...
--... Responsável pelo que cativas. Meio ridículo, mas verdadeiro!
--Olha, achei que você era confiável.
--Nunca confie em ninguém além de si mesma. Foi você quem me disse isto!
--Está bem. Desculpe.
--Tudo bem. Mas olhe. Estes caras casados são um problema, você sabe.
Quando resolvem assumir algo, cobram mesmo. Veja bem o que faz de tua vida, tem aquele menino...
--... Está bem, ele é bacana. Mas não me atrai, sinceramente!
--Quase todo mundo da escola já tentou sair com ele e você nem dá bola?
--Além de puta, agora você está insinuando que sou lésbica?
--Não! Estou achando que você precisa de um oculista, oftalmologista, sei lá!
--Olha. Perto de meu... Você sabe... Perto dele, todos ficam pálidos. Apagados. Você não imagina o que ele consegue comigo!
--Imagino pelas suas olheiras. Cuidado viu! Gosto muito de você.
--Eu também, desculpe ter sido grossa.
--Tudo bem, fui eu que comecei.
--Mas você tem razão. Ele é meio estranho... Às vezes.
--Como assim?
--Misterioso. Na cama... Não dá para acreditar. Se eu te contar!
--Pára! Deste jeito...
--Mas no resto, ele é fugidio, misterioso. Sabe que até hoje não sei o que ele faz nem onde trabalha?
--Ué! E você queria? Que encrenca!
--Olha: pelo menos um telefone. Mas nada. Ele me deu um BIP, aí eu ligo e ele responde, mas ele liga sempre para mim. Eu nunca ligo para ele. E tem mais. Ele às vezes, quando está comigo, recebe uns chamados estranhos... Tem de se vestir, etc. e sair correndo! Anda meio tenso ultimamente. Ele é estranho. Se der muito problema, eu me afasto!
--Há há há... pelo jeito que você fala dele, você não se afasta tão cedo!
--Bem, se eu quiser, e eu já disse a ele, eu me afasto. Não sou nenhuma escrava.
--Cômodo para ele. Acaba sua mordomia!
--Vai começar de novo?
--Não, não. Para ele é fácil.
--Para mim não é!
--Bem, cada cabeça uma sentença.

Ela lhe incomodava. Mas tinha razão. Quantas vezes ela o quisera longe e ele lhe procurara, assim meio de supetão e ela querendo se afastar e ele lhe cobrindo de rosas e elogios e ela cedendo á força descomunal de seu apetite insaciável, que a deixava obcecada, quantas vezes ela não quisera fugir e ele a achara mesmo escondida? E agora, o que ele estaria querendo? Sempre tinha medo. Ele sempre inventava... Posições, maneiras, comportamentos apimentados... Uma vez, cedera a ele dentro de um elevador, minutos de intensa agonia e prazer, mas ele providencialmente desligara a porta (ela não sabia como) de tal forma que nada aconteceu... E agora? Quem sabe? Vejamos, aqui está. Croissant, café com creme, mel...
--A gosto, princesa?
--Como sempre, Juvenal!
--Hoje está mais bonita que nunca... E o tiozinho?
--Hoje ele não veio!
--Tiozinho, maneira de falar viu!
--E que tiozinho... Pra falar a verdade, eu prefiro assim.
--Não me diga! Ele tem o quê?
--Quarenta e oito... Quarenta e nove...
--Mas é muito salafrário mesmo!
--Juvenal!
--Desculpe senhorita. Desculpa. Manuel, uma média para o freguês ali! Mas que é um safado é.

Perfeito o dia. Agora... O encontro... Sentiu as vísceras se mexerem. Um perfeito mistério. Tinha que se encontrar com ele numa casa da rua Espanha, um casarão que pertencia segundo ele às pessoas que o contrataram para um trabalho difícil. Que coisa macabra! Que haveria de ser este trabalho difícil? Seria um... Crime? Só de pensar, teve sensação de tonturas e quis fugir, mas ele sempre lhe convencia a voltar para ele, com sua poderosa força e sedução. Dir-se-ia mágico, ela pensara, seria ele uma espécie de feiticeiro? Um mago que a deixara marcada para sempre com sua energia, de tal forma que a única saída seria talvez a última saída de todos? Nossa, que mistério. Ela deveria ir de carro, ele lhe disse. Pegou seu carro, que ele ajudara a pagar, claro, mas que ela realmente pouco usava (era econômica e discreta, nunca deixava de mandar algum dinheiro para os pais, eles nunca souberam quem é que depositava algum em suas contas) e partiu, não sem uma ponta de medo. Mil pensamentos em sua cabeça. O perfume que ele gostava inundava o carro e ela sentia por baixo de seu vestido o aperto da cinta-liga que ela sempre punha antes destes encontros. Nunca se pode saber. Quem sabe?

Estranha casa. Parou na frente. Estacionou o carro. Não sem antes olhar para os lados. Já fora assaltada duas vezes. Uma amiga sua fora ferida em um assalto por um bostinha que lhe deu uma canivetada. Agora, todo cuidado é pouco, ela sempre soube disto. Ainda mais agora, o carro é novinho, simples, mas novinho. Ele lhe dera o carro assim, num dia em que comemoraram até de manhã, ela nunca fora tão amada por ele como naquele dia, ela se entregara até mais do que queria, mas ele merecera...
--Tia, um trocado!
--Já te dou. Toma!
--Pô mana, cinquentinha?
--Tá bom?
--Nossa se está. Vou é comprar comida pros mano, tia. Obrigado.
--Vê lá menino, compra comida mesmo. Se cuida!
--Pô tia, hoje ganhei o dia; Obrigado!

Comovente. Há poucos segundos pensava no assalto, agora se enternece com a figurinha frágil que corre para a esquina e mostra a nota aos outros lhe apontando. Só espera que eles também não venham lhe pedir. Mas não, eles acenam e assobiam. Gostaram afinal. Acha que ganhou amigos. Quem saberá? Olha para a casa. Está vazia, tem placa de vende-se. Ela vai tocar a campainha. Ele é muito misterioso ás vezes, mas ela gosta no fundo. Sempre que pode, ele lhe faz surpresas. Ela lhe pergunta: --Mas e sua mulher?
--Não fale dela. Por favor.
--Faz mimos assim?
--Também.
--Não quer falar?
--Não. Somos só eu e você. Está bem assim?
--Tudo bem. Espero não ter enchido você!
--Nem imagine. Você é a coisinha mais linda do mundo, como poderia me encher?
--Pensei que...
--... Combinamos isto, gata.
--Sei. Sem ressentimentos, sem perguntas. Só a gente!
Sentia as vezes que não passava de migalhas. Por isso talvez sentisse que havia algo de verdade no que sua amiga lhe dissera. Também por causa disto,sentia que ansiava por liberdade, e ele lhe tolhia os passos. Ele não falava, mas não gostava que ela saísse com outros caras. Ela nem dava bola. Saía sim, a vida era dela. Ela tinha seus... Casos afinal, a gente não é de ferro, vou ficar esperando pela disponibilidade do cara? Vou nada. Aí ela saía com a turma e sempre tinha... Um rolo... Ela era safadinha, ela sabia de sua fama e os caras gostavam... E daí? Foda-se. Ele sabia que ela não lhe dava sinais. Também tinham combinado isto. Ele não se importaria (ou pelo menos se forçaria a isto) até que algo maior acontecesse... Mas hoje ela sentia algo ao olhar para os estranhos arabescos que apareciam nas janelas iluminadas por uma luz baça, vinda de dentro da casa. Devia ter sido morada de alguém importante. Ela que não queria saber. Só pensava no que ele lhe propusera. Se isto se concretizasse, poderia ser a solução definitiva de seus problemas. Ela mal podia esperar para encontrar aquele que poderia afinal mudar seu destino. Porque desde a livraria, desde que olhara para suas coxas abertamente, despudoradamente, ela sabia que sua vida passava pelo meio das mãos do misterioso amante, que tinha fogo e paixão e tinha mistério e uma provocante sensatez eterna, que lhe causava espanto, tal era a lucidez que o movia. Nos meandros onde ele se encontrava, seria muito fácil perder a tão bendita lucidez. Facilmente poderia eliminar provas, facilmente poderia colecionar cadáveres, tal era o alcance de sua teia. Mas ele preferia... Negociar e era assim que eles se relacionavam, eles negociavam sempre, mas ela, sempre, sem exceção, ia às nuvens, apesar de ousadas propostas dele lhe soarem absurdas. Ela sabia de seu potencial. Imaginara isto na livraria, quando o encarara e sentira intumescerem os mamilos, quase automaticamente-e ele percebera, é claro. Sempre se lembrava dele assim, às vezes na calada da noite, sozinha em seu quarto, seus mamilos duros como duas línguas de fogo a denunciarem a excitação que ele lhe provocara e a noite alucinante que se seguira ao encontro, quase furtivo, dos dois no barzinho da Consolação, ela vestida como ele lhe pedira, quase como uma garota de programa. Ah como fazia exigências. Que ia querer agora? Chegara à casa. Olhava para o portão agora, ferro maciço. Arabescos também aqui, ali na campainha um botão dourado. Era velha e vetusta a casa, mas como uma dama antiga, ela sabia se cuidar. Todos os detalhes demonstravam zelo, cuidados, preservação. Era como que um castelo na rua mal ajambrada, um oásis na rua poeirenta e suja de papéis de lixo, veja os mendigos ali perto, tem uma que se mistura ao lixo, que coisa... Na casa podia entrever manchas de luz. Painéis solares? Que seriam aquelas estruturas no telhado? Estranho. Ela pensou ver uma sombra se movendo dentro da casa. Sentiu arrepios. Mas tocou a campainha.
Ninguém atendeu.

Forçou o portão. Seu estranho companheiro às vezes lhe pregava peças.
Tudo para apimentar o que ele chamava de relação colorida. Amizade colorida. Mas que ele era bom no que fazia isto era. O portão se abre com um rangido. Lá vai a moça. Seu curto vestido roça no ferro e quase sai, mostra um pouco mais de duas coxas bem torneadas em aulas de academia de ginástica, ela sabia disto. Afinal, estudar só não lhe traz tudo. Ela sempre soube disto. Abre a porta, que estava só encostada. Agora sente medo. Um silêncio pesado invade a sala. Ela olha; à sua direita, móveis cobertos por lençóis. Um quadro retratando uma bela mulher de vestido vermelho a olha, severo. Tem moldura negra, um tipo de madeira, pois ela percebe as nervuras, ou seria um tipo de pátina? Lareira! Nossa, mas só sinais e fogo antigo, nem sombra de carvão ou outra coisa.
Fecha a porta atrás de si.
(Ela entrou)
Pensa ouvir algo. Será? A brincadeira hoje parece ir um pouco longe demais. Ela já começa a pensar em algo maior, mas só tem uma pálida idéia.

(O muro. Por que este muro não sai de minha frente? Maldito, preciso escalar o muro.)

--Olá! Há alguém em casa?Você está aí? Cheguei como pode ver!
Nenhuma resposta.

Ela se move. Um tapete redondo em um átrio. De cima, um foco de luz escorre por uma clarabóia, um dos vidros coloridos ceifado por uma pedrada dá lugar ao vento. Ouve arrulhos de pombo. A pele se eriça. Que é isto afinal? Seus mamilos estão eriçados, ela sabe que desta vez não é por desejo.Ela sente frio.
--Você está aí?
(Ela está no átrio. Sim, podemos vê-la. Não. Vestida, claro. Sei. Traz uma bolsa, trajando uma saia bem curta, as pernas à mostra. Sei. Aguardo).
--Eiiii!! Isto aqui por acaso é uma brincadeira ou o quê? Já chega, passou dos limites.

Silêncio.

Caminhando, passa pelo átrio. Ao fundo da sala com chão de mármore de Carrara (lindo) ela divisa a escada em caracol. Nas bases a escada, colunatas retorcidas. Há duas cabeças de leão feroz. Nunca tinha visto aquilo. Que é afinal isto? Ela se irrita.
--Vou embora. Nunca aconteceu isto comigo. Isto é desleal. Onde você está?
(Ameaça ir embora. Como ela reagirá? Está bem. Aguardo.)

Ela sobe a escada. Não sem antes olhar as faces de leão, de cobre esverdeado pelo tempo. Poeira cobrindo os cantos da escada. Há sinais de presença humana. Sim, há. Definitivamente há sim. Quem estaria ali com ela? Sente talvez que caiu em uma armadilha. Novamente ele lhe pregou uma peça. Sim. É isto, afinal. Já, já ele aparece, agarra-a pela cintura, despe sua saia e consuma o ato que ela espera com as vísceras agora, excitada pelo mistério, tomada de terror pelo silêncio sepulcral abafado, desta casa abandonada. Subindo a escada, ela pisa em um degrau que range. Madeira velha, ela pensa. Por que ele não aparece?
No alto da escada ela pode ver lá embaixo o átrio iluminado pelo sol da tarde. Ela pode divisar ao longe um piano velho, mas conservado. Quem vivera ali? Por que a casa, tão bela, está à venda? Que mistério cerca esta casa? Quem são os donos, que parecem se importar com ela e a mantém pelo menos apresentável? Onde está este maldito?
--Você pensa que me assusta? Pensa que é um vampiro? Que mau gosto!
Apareça, meu bem! Vamos!
Nada de movimentos. Nada de nada. Nem um pio.Só silêncio.
--Eita mundão sô. Nonada. Nenhuma preocupação, nem resposta. Onde está você?
De um dos quartos uma luz baça. Escorregam sombras na parede. Seu coração está aos pulos. Pensa ouvir uma respiração entrecortada. Pensa ouvir ou é algo raspando, parece algo arrastando um peso. Um saco sendo arrastado. Que será isto? Ela tem ímpetos de correr.
(Ela está apavorada. Sim. Bonita. Uma beleza. Aguardo ainda? Certo.
Não. Como o combinado. Sim. Já está feito. Ela? Bem, espero.)
--Por que faz isto comigo? Por que se acha um Deus? Que tipo de gente é você que me traz a uma casa abandonada, cheia de amor e desejo, e desaparece no ar, assim, deste jeito, sem me dar sequer a chance de ver você? Olhe, eu ainda faço uma loucura, te fotografo, te filmo, te deixo na maior roubada, me vingo de você... Onde está você? Estou com medo!

Silêncio. Seu coração agora bate sem controle. O medo permeia o ar, ela pode agora aguçar as narinas e sentir o frio cheiro da morte que lhe chega às narinas. Pensa no pior. Começa a se conscientizar do que pode acontecer a ela, do que pode ter acontecido a ele. Tão cheio de segredos, tantos mistérios, tantas dúvidas, os telefonemas na calada da noite, suas retiradas espetaculares, sem vestígios, ela pensa que encontrou talvez um fantasma, ou pior do que isto. Quem é ou era este homem que a seduziu e a fez chegar a este ponto limite? Que haveria de fazer agora? Indecisa, sentia os poros abrirem de medo. Ela agora sem querer tremia e seu queixo batia, pensando no passo seguinte. Pois queria saber o que haveria no quarto de luz baça. Ela apenas desconfia do que seja. Mas não quer acreditar. Avança. Passos hesitantes, leves, como os de uma corça. Uma corça assustada, pronta a bater em retirada. Olha balançando o sinuoso quadril a escada, a clarabóia, a luz que desce pelo aposento inferior. Quer ir embora, mas seu instinto lhe diz para seguir em frente. Se ela ficar parada, não conseguirá saber, no entanto se for embora, nunca mais se envolverá com um homem misterioso. Nunca mais, ela jura. Ah, então é isto. Ela acordou hoje e nem imaginava, ainda está lá, na cama quente, quer acordar, mas os farrapos de sono insistem em continuar, ela vai acordar... Mas o coração descompassado confirma: Ela ainda está viva e bem, mas bem acordada. É real, sim, poderia ser um pesadelo, que saudade da mãe longínqua agora, a acordá-la do sobressalto e trazer-lhe um copo de água...
(Ela hesita. Parada. Sim, está de pé. Posso ver, está chorando agora. Mexe os quadris, como é bonita! Sim. Compreendo. Nada disto! Sem dúvida, positivo. Aguardando.)

Anda mais três passos, está a um metro da porta de onde sai a luz amarelada e baça. Nada se mexe, ouve um farfalhar de cortinas ou seria o Manto da Indesejada de todos que lhe roçou os ouvidos?

--Tome cuidado, menina, a cidade é grande...
--Não mamãe, não chore, você e o papai vão ter orgulho de mim, vocês vão ver...
--Tome cuidado. Mulher sozinha fica mal-falada, se cuida...
--Onde está o Pai?
--Você sabe, ele odeia estes momentos, desde que seu irmão sumiu no mundo sem nunca dar notícias que ele...você sabe...
--Entendo. Mas eu pego ele na curva, você vai ver e quando vocês olharem, serei famosa, estarei por aí, serei uma moça moderna, independente e famosa...
(Maldito muro, como é alto. Difícil se escalar esta coisa. Branco! Alto...)

Passo a passo ela se aproxima. Divisa os pés da cama, arabescos também neles. Pátina dourada? Ou seriam de cobre? Olha lentamente para o que há sobre a cama.
(Sim. No quarto. Acho que já. Espero? Sim, está bem. Está bem! Já entendi. Certo. Farei como manda. Certo.)
--Querido?

Silêncio do outro lado. Olhos que já não vêem nada deste mundo. Braços espalhados como os de um espantalho. Nada denuncia violência. Nenhuma marca. Seu terno, o azul que ela conhece e em soluços vê amarrotado onde se aproxima dos lençóis da cama. Nem tirou o terno. Caiu como se fosse uma fruta da árvore. O que poderia ser? Ela, tomada de uma estranha frieza, se aproxima de seu rosto e toca a superfície fria, ele parece feito de mármore, ela soluça agora, incrédula, aquele homem que ela adorava e temia e que lhe fizera chegar tão próximo de Deus, agora jazia emborcado ali, indefeso, sem nenhuma arma aparentemente à vista, frio e marmóreo, um corpo inerte como sempre teremos a maior parte de nossas existências (como ele mesmo gostava de dizer) e ela ali, sem saber o que dizer...
--Que foi que fez? Não me prometeu... Hoje... Não disse que ia... Bem, que íamos... Como pôde fazer isto? Tinha prometido! Íamos fugir, íamos casar em um ilha do Pacífico, íamos tal tal tal... Sempre as promessas... mas isto? Meu Deus... Há alguém aqui?
(O muro...como é difícil e para onde quer que eu vá ele se mistura à terra, é como se fosse infindável, eterno e infinito, dir-se-ia uma muralha intransponível. Quem será o dono dele?)
--Há alguém aqui? Que fizeram com ele? Por quê? Ele era um homem misterioso, mas era de bem...apenas me amava demais, talvez nunca devesse ter cedido na biblioteca, talvez devesse me manter afastada, vocês homens são complicados, sempre me seguindo, sempre me assediando, sempre querendo mais do que posso dar...ele me levava a lugares que eu nunca sonhara em ir!
Por quê?
--Porque chegou a hora dele.
--Quem é você?
--Não importa.
--Como assim? Não importa? Vou é chamar a polícia.
--Eu não tentaria se fosse você.
--Por quê?
--Ainda não entendeu?
--Quero ver seu rosto!
--Não vou mostrar! NÃO GRITE COMIGO!
--Está bem. Vou sair por aquela porta, sem nada mais. As coisas que ele pediu estão neste pacote, sabe. Ele pensava que eu não conseguiria, mas estão aí.
--Passaporte, documentos, o disquete?
--Como sabe disto?
--Não importa.
--Mas espere...
--Espere você. Desde quando?
--Há um ano. Conhecemos-nos na biblioteca.
--Você gosta delas não?
--Como sabe?
--Sei de muitas coisas.
--Sei. (este cara é louco...)
--Pare de pensar em loucuras...
--Como sabe?
--... De muitas coisas...
--Vou embora.
--Seu carro está lá fora?
--Sim.
--Deixou bem trancado?
--Por quê? Levaram?
--Sonha muito com carros?
--Sim. Na mosca de novo...
--Seu carro foi ele que comprou. Carros nos levam de um lugar a outro. Se te roubarem o carro...
--Não poderei mais ir de um lugar a outro...
--A simbologia moderna liga muito o carro ao corpo do homem. Diga-me com que carro andas e te direi quem és... Se te roubarem o corpo...
--Não poderei ir mais a lugar algum! Sonho muito que meu carro é roubado!
--Tem muitos pesadelos, querida. Desde que é criança!
--Você fala como minha mãe!
--Calma. De onde eu venho tudo se sabe um pouco, e quase um pouco de tudo.
--Saia da sombra e se mostre! Vou denunciar você à polícia! Matou meu namorado e vai ficar aí dando de adivinho? Pensa que vai ficar impune?
--Já leu Lewis Carroll?
--Já, mas nem eu sou Alice e nem você é o gato de Alice. Vejo seu sorriso, ele nem isto podia mostrar.
--O sorriso que você vê não é o meu.
--Vou embora! Vou chamar a polícia!
--Pode ir, princesa. A porta está aberta. Literalmente.
--Está bem!
--Você pode imaginar o que aconteceu?
--Não tenho a mínima idéia. Foi overdose?
--Pode... Ser... Pode isto, bem pode ser isto. Digamos que foi. E se chegou a hora dele?
--Vocês são frios! Dispõem assim da vida das pessoas... Ele e eu sonhávamos! Sonhávamos muito! Ele ia deixar a mulher! Ele me prometeu!
--Tantas coisas se dizem nesta vida querida, e depois... Quando chega a hora, tudo se esquece, o que mais se quer é viver, é estar presente neste mundo, duro é ver o quanto a gente pode querer se agarrar nestes últimos momentos de lucidez e pensar em tudo o que não fizemos ou deixamos de fazer!
--Que está dizendo? Ele está morto!
--Quem está vivo? Você acha que está viva? Vive lendo, estudando, malhando, ralando as coxas em outras, nas dele, nos camaradas que você quer...Seduzindo, sendo seduzida, dando e recebendo...Mas será que isto basta? A música da vida é mais que isto, você não acha?
--Deixe-me em paz! Que fizeram com ele?
--JÁ FALEI, NÃO GRITE COMIGO!!! NÃO GRITE COMIGO!
--Está bem! Está bem!
--Não chore princesa. Posso lhe ajudar? Quer um lenço? Ah, vi que já achou um. Acho que assustei você.
--Vou embora!
--Fique!
--Como assim? Não vai me impedir de sair?
--Se você assim o quer...
--Quem é você? O que ele fazia afinal? Ele vivia como se fossem realmente os últimos momentos, ele era fantástico sabe? Nunca tive alguém assim... Nem sei se terei...nunca tive...
--Talvez tenha razão...
--Sobre ele?
--Não. Sobre ter alguém como ele, talvez nunca mais mesmo...
--Você tem sempre estas evasivas... Mostre-se, vamos!
--Não agora. Em breve.
--Posso ir?
--Pode.
--E ele?
--Providências estão sendo tomadas.
--A esposa sabe?
--Deverá saber em breve. Temos de fazê-lo, alguém tem, você entende.
--Se quiser eu mesma ligo...
--... Não precisa. Estão vindo.
--E você? Por que não sai daí?
--Sei esperar o momento certo... Todos devemos saber, é algo que
esquecemos...
--Você é enigmático!
--Suponho que sim, princesa.
Soluçando ela se afasta do quarto. Olha para trás. Vê um vulto. É muito alto! Não pode ser, é assustador, tem algo errado ali, ela precisa ir embora. Desce as escadas correndo, quebra um salto, quase torce o pé. Passa pelo átrio e olha para cima. O vulto está lá, ela divisa seu sorriso... Mas será mesmo? Parece alto demais! Não consegue divisar suas feições. Que será isto? Terá ela enlouquecido? A porta da casa está lá, aberta e encostada. Ela não acredita. Abre a porta, encosta-a de volta e sai andando trêmula. Lá está seu carro. Os meninos estão lá. Um deles nota que ela não está bem.
--Ih, olha lá, mano. A gatinha dos cinqüenta mangos. Ela está pálida!
--A senhora está bem?
--Senhora, mano? Isto é um baita peixão!
--Bizu, calado. Se botar a mão te passo o fio.
--Nos trinque.
--Vamos, vai ali, pega água. Você está bem?
--Meu Deus!
--Que foi?
--Tem um cara morto lá dentro! Um cara que marcou um encontro comigo, lá dentro!
--É um tiozinho de terno azul, alto?
--É vocês viram?
--Ele chegou acompanhado de um cara enorme, alto feito um varapau, só de olhar dava medo. Tinha uma cara estranha...
--Quem, o de terno azul?
--Não, o tiozinho estava tranqüilo, o outro, tinha um sorriso meio matusquela.
--Vou chamar a polícia!
--Porra mana, quer nos prejudicar?
--Cala a boca, Bizu!
--Não... É que tem um homem morto lá dentro!
--Quem vai querer dar uma olhada?
--Eu hein? Posso ser moleque, mas trouxa mesmo é que eu não sou.
--Acho melhor vocês não entrarem lá. Muito estranho. Se quiserem ir embora vão. Vou chamar a polícia.
--Vou entrar. Bizu, tu não é macho? Vem me acompanhar vem!
--Vou também!(mostra a arma na cintura), quero ver se tem merda lá dentro que resista a uma destas!(gaba-se)
--Pelo amor de Deus!
--Sai fora maninha, agora vamos ver quem foi que apagou o tiozinho, a gente apaga ele também e tudo nos trinque... Nos conforme mana...
--Bizu!
--... Tou indo.

Ela trêmula, os cinco meninos entrando pela porta, fechando a porta, ela entra no carro, procura o celular, liga para a polícia.
(o muro caiado continua lá. Por que tão alto? Quero sair daqui! Quero ir embora! Não quero mais ficar aqui neste labirinto!)
--Polícia? Rua Espanha, um casarão amarelo. Ouvi dizer que tem uma pessoa morta lá dentro. Sim. Sim isto mesmo.

Ela olhava o casarão quando divisou os meninos subindo a escadaria e a luz se apagou: primeiro o casarão por dentro, depois a luz do poste, a luz do painel de seu carro, a luz do dia, a luz do sol, tudo se apagou e ela queria saber por que, mas não conseguia se desvencilhar de uma indescritível sensação de sono. Ela queria apenas dormir, estava muito cansada e seus membros pesavam muito, ela sentia que os sentidos se iam, ela que até agora se mantivera ligada, agora finalmente deixava suas energias fluírem para outro campo, ela simplesmente se desligava. (Sim. Mantida. Sim, eles também. Entendo, tem um armado. Bom, até aí isto é novidade, o resto gente já conhece, é sempre a mesma história. Sei. Todos eles? Tão novinhos? Bem, você que manda. Entendo. Entendo. Sei: o menorzinho. Os outros... Sei. Vou providenciar. Cambio e desligo.)

Sonhos são sempre assim, vão e voltam, não é mesmo? Que maldito muro, branco e caiado, liso e extraterrestre, onde nos inspiramos para ter tais visões? Onde achamos tais elementos? Freud dizia que somos uma pequena ilha de consciência cercados pelo mar do Inconsciente, o mar de todas as coisas, o Tonal e o Nagual, a pedra e o lago. Você apalpa o muro, ele é liso, em alguns lugares tem a textura lisa e em outros tem aspecto rugoso. Mas sempre alto, lá em cima você pode ver o azul de um céu sem nuvens, um céu que bem poderia ser o de nossa cidade, cercada de prédios e habitada por formigas humanas alheias à enorme beleza do céu e da terra que pisam, preocupadas com o passar de seus tempos sem divisarem os planos de uma estrutura maior, mais densa, além de seus corpos e cheiros e aparências, todos temos o péssimo hábito de nos compararmos ao alheio quando já bastaria uma pequena olhada para nós e dizermos que milagre é a vida, então levantaríamos da cama e...

--Que estou dizendo? Estive sonhando?

Lá está o móvel com suas fotos. O pequeno relógio marca seis horas da manhã. O retrato dele ainda rebrilha no escuro (ela e suas manias de criança).

--Não é possível!
Olha a roupa. Está de camisola. Aquela que ele lhe deu. Mais um pesadelo?

--Não é possível! Estou louca?

O telefone toca.

--Alô? Oi... Sim, ela mesma. Sei... Sei... Ele o quê? Não acredito! Mas eu o vi... Ah espere, eu sonhei... Meu Deus... Desliga o telefone. Arrasada, pega o retrato dele. Muda, olha suas feições. Como as coisas podem ser assim?
Hoje ela levantou pesada. Lá foi e passando pela banca, lá estava o rosto dele estampado nos jornais. Alto Escalão, ele nunca dissera. Overdose.
Ligações estranhas. Segredos, mutismos, encontros escondidos, enorme vontade de viver, uma vida secreta.

--O de sempre princesa?
--Juvenal, hoje só um suco de laranja.
--Abatida hoje... Baladas?
--Ah desculpe Juvenal. Não estou a fim de falar.
--Triste? Posso ajudar?
--Depois falo contigo, Juvenal.
Quase não acreditava. Estava gostando dele, ela agora sentia sua falta.
Sentia sua falta. Agora pelo menos sabia seu nome, estava estampado os
jornais. Ela achou que o seu ia sair. Quem o fizera soubera apagar seus rastros, e ele era sempre cuidadoso. Alto Escalão. Rede de drogas. Charles (uma lenda ali) parecia estar sempre por perto. Mas um do Alto Escalão?

--Não vai tomar o suco?
--Ah, sim...

Que sonho fora aquele? Sonho vívido, ela tinha certeza que passar por ali antes, mas todos agora estavam meio dissimulados ou era impressão sua? Olhou meio de lado e Juvenal disfarçou, como se a observar algo nela que nem ela própria conseguia ver. Ela ajeitou nervosamente o cabelo e pagou a conta, partindo. Sentiu, como sempre, olhos às suas costas, ardendo de desejo. Tudo igual, menos ela mesma. Tudo em dia, menos sua alma, que se fora um pouco. Tudo em cima, menos seu coração, abalado com a perda e com o sonho inquietante. Um aviso? O sorriso? Um sorriso que nunca divisara e uma voz cava, uma luz baça, fora tudo que conseguira guardar em sua mente. Quem seria o misterioso ser que a visitara nas entranhas de um sonho vívido e lhe trouxera a imagem marmórea de seu amante em uma casa que ela sabia onde era?

O endereço lá estava.

Estacionou no local onde deveria ser a casa. No sonho, havia uma casa antiga, amarelada. Agora, lá estava. A casa, os meninos pedindo dinheiro, o portão com arabescos, a porta de entrada recostada, a luz no átrio antigo e um piano escuro que fazia contraponto a uma janela de vidro quebrado. Subiu as escadas, não sem antes olhar para trás.

O que viu certamente não foi um sorriso de gato.
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