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Contos-->O Último Domingo -- 23/08/2008 - 16:45 (flavio gimenez) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
O medo bateu à sua porta, bordejou sua consciência como um avião sem teto rodeia o aeroporto antes de despencar das nuvens. Ele, suado, gotas grossas lhe escorrendo pela testa, porejando num indefinido ritmo, arquejava agora depois da corrida que o salvara por pouco. Ele parou, arfando. Revisou a situação. Era domingo, era de manhã e o sol batia nas árvores silencioso como sempre, ele resolvera fazer uma caminhada pois seu médico lhe alertara sobre os perigos do sedentarismo. Justo ele tinha de ouvir isto, ele que sempre pregara as vantagens da vida sempre ativa mas que, munido de uma preguiça monumental, sempre fugira do que sempre apregoara aos quatro ventos.

Bem, então ele desceu pelo elevador e notou a primeira coisa estranha. Pelo adiantado da hora—deviam ser dez e meia—Certamente deveriam haver mais pessoas descendo e congestionando o maldito elevador de seu prédio de meia idade, meio velho como ele, muito moço ainda para perder as esperanças. Entrou no elevador e ninguém subiu, ninguém desceu. Ninguém com aquelas caras enfarruscadas de vizinho chato e lhe desejar:

--Bom dia!

Ninguém de sorriso forçado, ou disfarçando, olhando o molho de chaves, o chão ou passeando os olhos pelo teclado do celular último tipo. Nenhuma pessoazinha sequer e nem as clássicas velhinhas a comentar sobre o tempo:

--Hoje finalmente temos sol não?
--Verdade!
--Tempo esquisito em São Paulo. Também, agredimos o meio ambiente, ele nos agride de volta! Esses jovens sempre arruinando tudo...

...E você fica com cara de quiabo porque não sabe se você é um dos jovens arruinando tudo ou já é velho para concordar com esta pataquada.

Caminhou após abrir a porta e nada de ruído nenhum na portaria. Olhou para o vidro fumê aonde estaria o porteiro mas não viu ninguém, só o estalido do portão que denunciava que ele havia sido aberto. Entrou na gaiola e fechou o primeiro portão. O segundo demorou um pouco mas abriu repentinamente e ele, aliviado, finalmente estava na rua.

Nada.

Não havia ninguém na rua. Nenhuma pessoa andando, nenhuma senhorazinha com carrinho de feira, nenhum ambulante vendendo bugigangas. Absolutamente ninguém. Ele pensou em ir à padaria, que ninguém é de ferro, comprar um pão, um leite B. Fechada. Fechada a padaria! Começou a ficar preocupado. Não havia ninguém lá, nem no estacionamento nem em lugar algum. Ninguém na rua, ele era único, dir-se-ia que era a única forma de vida em quilômetros. Ele se enganara quanto a isto e veria mais tarde o porquê. Ele se sentiu estranho porque não só não havia ninguém como nenhum carro andava nas ruas e o mais impressionante era o silêncio, o silêncio que ele ouvira certa vez que viajara à selva amazônica, na borda do Rio Amazonas, onde ouvira o rumor das águas, mas pelo menos lá havia o rumor das águas! Aqui, nenhum som. Notou o silêncio, os pássaros calaram, cães não ladravam, nada se mexia! Bom, as árvores estavam ali, certamente um pássaro haveria. Tudo bem, a agressão não podia ter chegado tão longe! Haveriam sinais de alarme, sinais de que tudo haveria de estar se acabando mas assim, de repente...ninguém! Como assim?

Resolveu caminhar um pouco mais, portões semi abertos, casas de janelas escancaradas. Lojas fechadas, faróis piscando amarelo. Justo ele resolvia caminhar e justo naquele domingo de sol, o mundo decidira acabar! É muito azar. Bom, nada difícil, em sendo eu e em sendo o mundo este que eu conheço. Nada impossível. Lembrou do que sua mulher lhe dissera sempre:
--Nunca ví pessoa mais pessimista que você!
--Só porque sou realista?

Óbvio que ela o,largou falando sozinho, mas pelo menos hoje ele gostaria de ouvir uma voz, quem sabe a dela, para dizer que tudo não passava de engano, um ledo engano. Passou pela sua cabeça uma maquinação terrível, aquilo era coisa de seus amigos que resolveram lhe pregar uma peça, ficaram todos combinados de despovoar as ruas, mas aonde eles teriam metido tanta gente escondida? Não, simplesmente ridículo.

Caminhou a passos largos e de coração cada vez mais apertado, os sinais de abandono lhe enchendo os olhos. Janelas batiam ao vento, varais com roupas penduradas e recém-postas a secar, o sol batendo nos muros e sacadas dos apartamentos vazios e estranhos como ninhos vazios. Não, não podia ser verdade!

Mas era: Ele olhou boquiaberto a avenida movimentadíssima outrora, carros esvaziados à força ou pelo menos ele assim imaginava pelas portas abertas, como se todos houvessem fugido do encontro inevitável, como se espavoridos houvessem abandonado todas as suas coisas em meio às calçadas. Ele viu algo brilhando no chão e olhou para os lados, nunca se sabe, de repente uma motocicleta o atropelava...Bah! Que estava dizendo? Nem as motocicletas zumbiam mais como vespas entre os carros em fila indiana. Era um caos de abandono e o objeto que rebrilhava era um telefone celular que ele pegou na mão: Ainda quente, como se seu dono o houvesse jogado ali e corresse de...quê?

--Que domingo!

Que domingo. Dia de descanso, dia de caminhada. Dia de todos os santos dormirem, Dia de namoro, de amizade, de visita a pais esquecidos, dia de festa na casa da nona, dia de risoto na casa da mãezona, dia dos amantes acordarem satisfeitos depois da esbórnia e num dia destes, como este era, glorioso em sua luminosidade, dia de cumprimentos, encontros, troca de receitas, reencontros e lembranças...

Mas nesse dia ele estava só como nunca estivera. Ou pensava que estava. O telefone tocou e ele atendeu:

--Olá! Alô!
--Saia daí..Saia daí! Rápido!

A voz era urgente, o tom o alertou para algo fugidio que notou com o canto dos olhos, como uma mancha parda progredindo em seu campo periférico de visão. Resolveu atender a voz, não sem antes perguntar:

--Que aconteceu???
--Corra sem parar! Agora! Vá!

Ele sentiu um arrepio na espinha e todos os hormônios do perigo lhe acenderam a luz e ele se viu em disparada procurando abrigo em alguma das casas abandonadas à beira da avenida esvaziada, em corrida desabalada com a enorme sensação de algo lhe perseguindo nos calcanhares. Voltou-se e viu algo que o apavorou, uma fera, uma forma alongada, um animal de olhos enormes, uma mancha horrorosa a lhe correr atrás e ele acelerou o passo, certo de que seria pego, nunca correra tanto como agora, entre os carros para despistar o que o perseguia, ganhando tempo, segundos que iriam se tornar em sua sobrevida, até que viu um portão aberto e se atirou por ele, correndo até dentro da sala da casa aberta e fechou com estrépito a porta da sala abandonada.

--Meu Deus, o que é isto? Com mil diabos!

Sentiu o telefone no bolso do moleton. Ele vibrava.

--Alô!!
--Está vivo! Graças a Deus!
--Quem é você? O que aconteceu?
--Um amigo. Feche as janelas e as portas. Tranque tudo. Ligue as luzes e não durma!

Ele estava apavorado, até porque repentinamente ouviu um grito vindo do telefone e a voz que o interpelava subitamente emudeceu. Como se arrancado por força espectral.

--Alô?

Silêncio. Nada. Seu amigo certamente morrera. Seu salvador certamente deixara este mundo, e ele só ouvia ruídos estranhos do outro lado, como um arrastar de móveis, um ruído que lhe lembrava a serra de um açougue, uma lavadora de pratos ligada de porta aberta ou coisa assim.

--Que porra é esta?

Ele obedeceu cegamente a voz que o aconselhara a fechar tudo e fechou as janelas abertas, as portas batidas nas paredes, trancou os portões de ferro da pequena casa desabitada e ligou a televisão: Sem imagens, sem comerciais, sem anúncios. Silêncio e estática cinzenta.

--Que domingo!

Óbvio que estava faminto, sentia nas veias ainda o fluxo dos hormônios viscerais que o tinham salvo na rua, sabe-se lá do quê. Procurou na casa, sem traço de viva alma. Foi à cozinha e comeu um frango dessossado que havia dentro da geladeira. Bebeu muita água, a sede era enorme. Sentia-se irritadiço, algo lhe fazia tremerem as mãos. Era impressão sua ou suas mãos...Não, era impressão. Toca o telefone, desta vez o da pequena casa. Ele vai atender e se surpreende com sua voz enrouquecida.

--Alô!
--Alô, como vai?
--Quem? Você de novo? Pode me explicar o que acontece aqui?
--Aqui, aonde?
--Em todo lugar!
--Pergunta ampla demais não? Eu também ia lhe perguntar!
--Como vou saber? Apenas saí para passear, aí todos desaparecem e você me liga no celular!
--Eu não liguei para você no celular?
--Quem ligou então?
--Aonde?
--Hoje, na rua, quando peguei o celular!
--Não fui eu. Absolutamente!
--Então quem foi?
--Vou lá saber? Que papo de louco!
--Que quer de mim afinal?
--Só queria saber se...Estava bem. Estamos em uma enrascada e acho que não saio desta vivo!
--Como sabe disso?
--Não consigo mais correr. Tenho asma, vou morrer!
--Calma!

Caiu a linha. Ele desorientado agora saboreava o último pedaço de frango quando olhou sua perna e havia uma mancha de sangue discreta. Notou um corte, talvez adquirido quando correra do estranho ser que o perseguira nas ruas. Ele se ferira assim, ele tinha certeza. Ligou a televisão, nada, só a estática de merda.

--Estática de merda! Porquê?

Furioso atingiu a televisão com o primeiro objeto que conseguiu e partiu em mil pedaços a tela de vidro verde. Pronto, agora não tinha nem estática nem chiado, só o silêncio das nuvens baixas...
"Feche tudo. Não durma!". Ele tentava se manter à tona mas seu corpo lhe enganava...Ele suava agora, às vezes dormia um pouco e acordava sobressaltado com os ruídos das folhas caindo nas ruas e o silêncio ensurdecedor do Nada.

Ele não sabia, mas aquele foi seu último domingo de sol.
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