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Contos-->A Repartição -- 16/08/2009 - 18:27 (flavio gimenez) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A sensação de opressão o despertava, inapelavelmente, às cinco da manhã. Fizesse chuva ou sol, estivesse o tempo fechado ou seco, estivesse ele alegre ou triste, realizado ou incompleto, houvesse tido um dia anterior glorioso ou de toda a maneira e sob todos os pontos de vista odioso, lá estava ela, a sensação permanente de que algo de incompleto havia, um vazio a ser preenchido que não cansava em anunciar o seu tropel junto com as batidas aceleradas de seu coração já cansado de ser banhado em ondas de adrenalina que chegavam na surdina, ocultas pelo véu ainda incompleto da madrugada.

Natural que ficasse esgotado nos dias em que era obrigado a suportar impávido tudo o que oferecia o dia em cobranças, trabalho ou sob os aspectos mais variados que um bom dia de trabalho pode oferecer: Um leque de opções no mais das vezes indesejável, estranho à sua alma que desejava algo mais que apenas e tão somente o ganha-pão. A sensação vinha quando ele menos se policiava, entre um café e outro, sob a pilha de papéis que atulhavam a sua mesa de documentos às vezes nunca lidos, livros de registro com marcas por fazer, marcadores de páginas ensebados de tanto uso e manipulação. Ele sentia que sua vida se esvaía exatamente neste ponto, no foco sob a luz baça da repartição, entre os documentos e processos volumosos, entre as cartas e pilhas de telegramas que nunca diminuía.

O melhor dos momentos de seus dias que se assemelhavam a um trem contínuo de luzes passantes sob o ruído estranho e impessoal do prédio onde tinha de ganhar seu sustento era o café com os amigos, os raros que ainda se atrevia a manter até porque os tinha poucos, frutos de anos de cinzelamento e burilamento—porque as amizades verdadeiras se burilam como pedras brutas e se tornam em diamantes de fina raridade, inquebrantáveis e permanentes. Era sorvendo a bebida forte e aromática que se revelava aos que ainda o ouviam ou que fingiam ouvir porque nestes momentos de rara extroversão ele se revelava um feroz crítico da rotina que os abastardava a todos.

--Imagine se eu não leio aquela procuração! O juiz e seus comparsas iam ficar perdidos, nem saberiam por onde começar!

A fumaça dos cigarros preenchia o ambiente com uma turva nuvem azulada e irritava os olhos dos que não haviam caído ainda nas malhas do vício maldito nublando a visão das mesas ao fundo, razão e finalidade daquelas vidas opacas que aqueles homens vestidos de cinza e preto levavam. Mesquinhas vidas, eram como baratas se arrastando no meio da papelada, ratos a roerem a corda de seus superiores, insetos de gravata e óculos engordurados misturados ao que havia de mais sórdido porque sabiam mais que quaisquer outros funcionários daquela imensa repartição que algo não ia bem nas engrenagens da vida alheia.

--O procurador geral deu uma de peru, quase morre em coma alcoólico!

Risadas gerais, baforadas de cigarros, olhos astutos procurando um no outro os sinais de proximidade que só a cumplicidade pode gerar, um sorriso puxando o outro, a comunicação não verbal que perpassa os mais espertos colocando o outro que por alguma razão não prestou atenção à beira do desprezo ou da desimportância.

--Como assim?
--Vê-se que não lê os jornais.
--Não, realmente não houve tempo, estou cheio de trabalho.
--Insinua que não trabalhamos?

Os queixos se crispam e vêm à tona os sentimentos submersos, a ira mais profunda e seus segredos bem guardados, aqueles que só se sacam nas horas mais improváveis para que sejam usados como aríetes contra os muros da psique alheia. Várias chamas se avivam, todos sorvem com impaciência seu quinhão de nicotina barata, mal lavrada em campos do Oriente Médio. Os olhares, antes em permanente comunhão agora se tornam faíscas em conflito mal dissimulado. Mãos antes soltas se contraem, cenhos se franzem e só quem tem a certeza de que tudo passa mantém a serenidade.

--Não me digam que vão brigar por causa de um procurador! Só faltava esta aqui!
--Se fosse pela mulher dele...

A moça tinha fama de beleza e sensualidade; dir-se-ia que quando chegava para visitar o tal procurador, uma flor entrava pelo prédio e muitos olhos se desviavam dos tais documentos para visar outro tipo de predicados que ela certamente os tinha de sobra.

--Talvez por isto que ele beba.
--Não dá conta. Ah, com certeza, ela deve ser um vulcão.
--Ou talvez dê conta, mas mesmo assim ela não se satisfaça e daí os olhares compridos que ela dá.
--Boa imaginação: Uma princesa destas se enrabichando por um de nós, metidos em papéis alheios!

Voltou a sensação de opressão no peito, o calor que subia pelo plexo solar e acelerava seu coração, a discreta sudorese, o olhar um pouco perdido pela desorientação. Teve de admitir a si mesmo: Sua vida era uma gosma e, no entanto, quando a vira pela primeira vez, algumas de suas dúvidas logo se dissiparam. Tivera a certeza disto quando a encontrara no estacionamento, pintando a boca em movimentos tão sutis que sua mão parecia flutuar acima de uma nuvem rosa e era a luz halógena que estampava sua sombra luminosa que realçava toda a fascinação. Ah, o nome da opressão era Valquíria e não tinha jeito, nem remédio, era fatal que se destinassem um ao outro e tudo era a mais pura imaginação. Ele só sabia disto quando chafurdava no labirinto de palavras, de certidões que sufocavam sua vida mequetrefe e se lembrava da suave silhueta rosa e dos lábios vermelhos carnudos que apenas entrevira.

--Esse aí (o queixo do gordo apontando para ele) acha que só porque a viu de relance, pode chegar perto.
--Eu jamais disse isso. Você mais do que ninguém sabe disto. Apenas a vi...

...Passando o batom na boca carnuda, distraída de pé ao lado do carro que só um procurador poderia dar a uma belezinha daquelas. Ele sabia disto, a consciência deste fato era o que mais lhe oprimia, a sensação de nunca poder quiçá chegar perto do objeto de seus desejos era o que mais lhe desesperava, daí pela manhã o coração a lhe sair pela boca e o cigarro que fazia o ar de sua casa se assemelhar aos miasmas da repartição onde seus últimos raios de sol se faziam sentir, os raios de sua miserável existência maquinizada. Mais de uma vez a vira subindo o elevador rabugento e velho com a ascensorista que estava ali há mais tempo que ele nem se lembrava de quando a conhecera ( talvez desde sempre, talvez fazendo parte do corpo daquele edifício imenso e velho que seus pais já conheciam antes de morrer e o coloccarem lá por influência de tais ou quais parentes que conheciam um ou outro influente juiz...). O fato era que os olhos de todos se voltavam para ele, uns inquiridores, outros irônicos, alguns incrédulos e outros mais ainda, censurando-o.

--Quando você poderia sequer achar que há a mínima chance de chegar perto de alguém assim?
--Nosso destino, filhinho, é fazer parte da papelada. Nosso cruel destino é preparar os processos, analisar as prerrogativas, anotar e passar adiante para que os de cima façam o que têm de fazer, que é executar os julgamentos ou dar a palavra final sobre quem deverá mofar na cadeia ou sair ileso de mais um golpe contra o erário público, isso se não for parar boa parte do que foi roubado em bolsos nada inocentes.
--Sinceramente jamais imaginei que o fato de olhar a mulher do procurador fosse criar tal celeuma, meus caros. Sei de minha posição e jamais poderei chegar perto daquela beleza. Apenas olhar não faz mal a ninguém e duvido que daqui e dos que estão aqui comigo não haja um que não a tenha olhado. Portanto, acho melhor voltarmos ao trabalho antes que “os de cima” resolvam que os de baixo, isto é, nós, passemos a uma condição bem pior que a que estamos. A quem interessar, vou voltar ao meu posto.
--Calma, meu velho, calma. Os de cima jamais se interessarão por nós e se você quer saber, quanto mais moroso é o processo aqui embaixo, mais tempo tem o procurador de ficar com sua mulher no seu escritório fazendo sabe-se lá o quê, movido sabe-se lá por quais bebidas (risos).
--Você adora provocar. Mas que eu a vi no estacionamento e ela parou e ficou me olhando, só eu sei e nenhum de vocês ainda teve a honra. Isto eu guardo para mim, para minhas noites em casa.
--Aposto que está escrevendo um livro.
--Não, eu nunca tive o talento de meu pai. Ele sim sabia escrever e acabou como um miserável professor de escola secundária. Eu pelo menos sei de minha limitação e ganho meu dinheirinho.

Um silêncio constrangedor habitou a pequena sala do café onde se comprimiam aqueles homens, cada qual com sua história, cada um com suas pretensões, cada um ruminando os tesouros ocultos ou os mais profundos segredos que fazem da vida essa permanente ebulição para uns e um degredo para outros presos a uma rotina árida. Cada qual pôs sua xicara sobre o pequeno móvel onde a copeira faria sua colheita em breve, sorvendo as últimas tragadas dos últimos cigarros como se fossem todos ao patíbulo se pendurar em cordas que eles não sabiam que os esperavam sempre lá, perto das enevoadas mesas com as luzes baças onde eles viviam suas vidas cheias de palavrório empolado, difícil e às vezes enigmático, nos empoeirados arquivos onde se levantavam os processos que iam e vinham dos de lá de cima para mais uma inútil revisão, como se isto fosse possível, isso se não viessem acrescidos de mais tantas páginas que teriam de ser reorganizadas, em ordem de chegada, para que voltassem para nova verificação. O peso da xícara em sua mão tornou-se insuportável como se hovesse chumbo em seu interior quando ele pensou que devia voltar ao seu trabalho. Pelo menos seu melhor amigo o entendia, olhando do outro lado da sala, compreendendo sua angústia e sua apreensão.

--Entendo você. Já passei por isto e digo: Nada pode ser tão terrível como amar alguém e não ser correspondido.

Não, ele não poderia entender o que se passava com ele, jamais entenderia o que era acordar de manhã com o coração aos pulos, a boca seca e a horrível sensação de estar incompleto, um vazio a ser preenchido por uma boca carmim e mãos que flutuavam em nuvens rosas, pernas de absurda rebeldia e olhos de fogo fátuo. Jamais poderia compreender porque era um homem puro demais, santo demais, honesto demais e de tal forma que sua figura destoava daquele ambiente infecto e escuro, como as almas dos homens que habitavam aquele andar da repartição, como ele que ousara se embevecer com a mais bela escultura que já vira e que habitava seus sonhos agora. Apenas os sonhos! Jamais se aventuraria a tanto, pois sabia dos riscos, não poderia jamais por em risco o parco dinheiro que recebia por conta dos arranjos que o pai fizera para urdir sua nomeação. Nem para isto ele servira, fora nomeado e o receberam de braços abertos. Tinha boa reputação pelo domínio da linguagem forense, pela minúcia de suas revisões e ganhara um bom par de promoções sem jamais sair do andar debaixo.

Cabisbaixo, assumiu a sua mesa lotada de papéis, relatórios e calhamaços de processos. Seria uma longa jornada até o próximo cafezinho. Pensou que alguém o olhava, talvez um efeito colateral de tanto trabalho de artesão, deu para olhar para cima onde vislumbrou um lampejo rosa e deu com as mãos dela no ar imersas em nuvens, tal como as vira no estacionamento e pensou ter visto seu olhar de uma vidraça que dava para o andar deles, uma espécie de vigia dos de cima. Queria acreditar no que vira e nos próximos passos que viriam daí decorrentes, mas não teve tempo porque as mãos dela o agarraram e ele se viu nas nuvens rosa, imerso em sua boca quente, abrasado pelo calor que vinha da pelve e a terrível sensação de vazio o dominou de todo e desta vez vinha acompanhada de náuseas, uma opressão no peito que devorava todos os seus sentidos, um brilho que deveria ser o da lâmpada sem ser qualquer luz e ele se arrastou até a escrivaninha onde se sentou e agarrou o processo que acabara de chegar trazido pelo menino que acabara de começar ali e que o vira pálido, quase caindo de borco e que chamara os seus amigos que acorriam a socorrê-lo.

--Isso sempre acaba assim.
--Deus me livre, ele se urinou todo.
--Vamos chamar um médico.
--Aqui na repartição? Só tem médico nos andares de cima.
--Chamem alguém, chamem alguém.

A moça olhava da janela a movimentação; jamais poderia supor que ela era a causa daquilo que se passava lá embaixo. Via os colegas do rapaz que havia caído se movimentando, como numa peça de teatro, uns com as mãos estendidas, outro a olhar para o céu numa prece e os mais práticos abanando o pobre coitado com toalhas molhadas e mais outro lhe trazendo água. Ela olhava para a janela e intercalava a essa visão com a de seu marido, entretido com um calhamaço que devia pesar uns cinco quilos só de papel e capa.

--O que está acontecendo lá?
--Lá, aonde?
--Embaixo. Lá onde existem as mil mesas, onde aqueles homens todos trabalham.
--Que homens?

Isso a irritava profundamente. Primeiro, que ele não lhe prestava atenção, segundo que não ouvia o que dizia e sempre lhe respondia com evasivas e terceiro que pouco se importava com algo mais que seu trabalho e os processos que ela não entendia, palavrório estéril que não combinava com sua suavidade e sensibilidade, meio artista que era, meio atriz que fora.

--Não conhece os homens que trabalham para você?
--Impossível conhecê-los todos. São muitos. Não tenho tempo, apenas tenho tempo de olhar isto aqui (apontando para o calhamaço) e mal de sair desta mesa.
--Mas devia vir aqui ver o que acontece vez em quando. Parece ser importante.

Enfarado, ele se levantou e foi ver o que se passava. O rapaz já se levantara, a pequena multidão já se desfazia, enfim o que houvera já se dissipara. Ela apontou para baixo:

--Devia se importar mais com o que acontece; afinal, não são eles que separam os processos, que preparam estas coisas imensas que vêm e vão de sua mesa?
--De certa forma, são sim.
--Então...

Ela adorava tripudiar sobre ele nestes pequenos momentos. Eram pequenas vitórias que repercutiam em seu monólito e ela um dia esperava romper as resistências dele. Em compensação ele bebia às vezes demais porque aquele trabalho era enfadonho e ele queria sair daquilo o quanto antes, mas ainda não sabia como nem quando, de modo que se perdia nos meandros da lei e mandava os prontuários cada vez mais grossos de volta para seus revisores que sofriam toda a pressão da tarefa. Assim se passavam os dias, assim os anos haviam passado e ele percebia que havia saída. Ainda havia.

Lá embaixo, na repartição já voltava tudo ao normal. Fora apenas um mal-estar, o rapaz já voltara à sua mesa e a rotina se restabelecera. Ele olhou para cima e viu o rosto dela olhando preocupada para o lugar onde ele estava. Talvez o tivesse reconhecido, talvez soubesse quem ele era, nenhum olhar daquela intensidade podia ficar esquecido, perdido no espaço e no tempo e ele sabia que mais cedo ou mais tarde cruzaria com a deusa novamente. Ela, de onde o olhava, sabia que seu marido pouco se importava com aqueles homens e sentia pena deles, sabia de sua pequenez porque ela própria fora um deles, uma reles atriz de cenas fortes que ele achara numa festa, por acaso e se apaixonaram um pelo outro. Ele fizera uma exigência: Ficariam juntos, mas não queria filhos, pensava meio machadianamente e não queria que seu filho seguisse a carreira que ele abraçara; ela concordara, mas por pouco tempo, ele sabia que haveria a pressão e daí bebia para esquecer também disto e daí exagerava e chegava meio tocado ao escritório onde mais de uma vez foi atendido pelos médicos solícitos; afinal, ele era um procurador!

Ela olhou para ele, viu seus olhos fixos na janela e suspirou. Ele, lá embaixo, dirigiu os olhos à mesa e suspirou.

A repartição e seus miasmas, o suave respirar dela, o torpor dele, os prontuários imensos: Tudo voltou à rotina.

Como sempre.


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