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Roteiro_de_Filme_ou_Novela-->Colcha -- 04/06/2016 - 18:05 (João Rios Mendes) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

“Matriculei hoje no EJA daquele colégio que fica no caminho do Hotel“

“O que é EJA, Amélia?”

“Educação para jovens e adultos, vou voltar a estudar!”

“Depois de velha?”

“Não sou velha, sou semi-nova e pouco usada...”

Minha irmã e eu rimos bastante. Ela adora me chamar de velha. Palhaça... Ela é só um ano mais nova que eu. Nunca dou bola para essa chacota que ela faz. Mas desta vez fiquei pensando, será que estou mesmo velha? Será que a vida tem só um tempo para as coisas acontecerem? Só um lugar para estarmos? Ou se é camareira ou se é hóspede?

Maioria das meninas que estudaram comigo deixaram os estudos antes de completar o segundo grau. Agora que voltei a Pazamor encontro-as com a vida mais ou menos igual a minha. Dinheiro pouco para as necessidades da vida, trabalhos que quase ninguém valoriza, o sentimento de que valemos menos porque estudamos menos, sabemos menos... Mas será que sabemos menos? De jeito nenhum, sabemos coisas diferentes.

Outro dia ouvi uma hóspede do hotel falando ao telefone quanto estavam pagando para ela dar uma palestra em uma empresa. Para falar uma hora ela ia ganhar mais do eu ganhava num mês inteiro. Ela havia pedido ajuda para limpar uma mancha de café da roupa que queria usar. Uma camisa linda, amarela. Quando devolvi a camisa ela agradeceu toda feliz e perguntou como tinha conseguido tirar a mancha.

“Gelo”

Ela me olhou com respeito e disse que dava Graças a Deus por ter por perto alguém que tinha o conhecimento que salvou uma de suas peças de roupa favorita. Foi a primeira vez que chamaram as coisas que eu sei fazer de conhecimento. Qual a diferença entre o conhecimento da mulher da palestra e o meu para justificar a diferença gigantesca no quanto nos pagam? Primeiro pensei que as coisas que ela sabe devem ser mais importantes, mas a alegria dela ao ver a roupa limpinha me fazia desconfiar que o que eu sei é muito importante também.

Por que as horas de trabalho de uma mulher que faz a limpeza de um hospital são menos valiosas que as de um médico se o trabalho dos dois são igualmente importantes para a saúde dos doentes? Por que exigem com uma lei que crianças andem de carro em cadeirinhas especiais para dar proteção em caso de acidente enquanto crianças andam espremidas em ônibus lotados, agarradas as suas mães, sem proteção alguma? Não dizem nas leis que somos todos iguais? Fica parecendo que quem tem dinheiro vale mais do que quem não tem.

Desde aquele encontro com a palestrante minha cabeça estava perguntadeira. Um turbilhão de coisas que não faziam sentido e todo mundo parecia aceitar sem nem enxergar que estavam tortas gritando dentro de mim.

A professora nos deu as boas vindas, falou umas palavras bonitas sobre entusiasmo, vencer as dificuldades recuperar o tempo perdido.
Ela disse que aquele era um mundo novo. Pediu que não desistíssemos mais. Que as dificuldades são para todos, mas os filhos dos pobres pagam em dobro.

“As dificuldades são enormes. Se fosse fácil todo mundo seria doutor”.

Ela perguntou se alguém queria falar alguma coisa, mais parecendo um convite do que uma pergunta. De repente sumiu a sensação de estar fora de lugar que sentia quando passei pelo portão de ferro da escola. O jeito que a professora tinha de falar com a gente, olhando diretamente por uns instantes para cada um de nós, a fala calma, o rosto por vezes adornado com sorriso, me fizeram aceitar o convite e ver se aquela mulher com conhecimento diferente do meu dava conta de sossegar a pergunta que me incomodava por dentro já fazia uns dias:

"Professora, explique esse negócio de a lei dizer que somos todos iguais se na verdade uns ganham mais que outros".

“Amélia, a lei não fala em igualdade econômica nem igualdade de oportunidades. Ela diz que somos todos cidadãos iguais apenas na hora do voto. O conceito de igualdade não é uma coisa absoluta, depende do que jeito você olha, igualdade pode ser boa ou ruim”.

Ninguém disse nada, a professora soube ler no silêncio e nos olhares a necessidade de continuar.

“Cada um tem um jeito de ser, são muitas histórias, muitas culturas... Vocês já viram uma colcha de retalhos? Imaginem uma colcha de retalhos, colorida, maravilhosa, feita com tempo e afeto por mãos que amam... Nenhum pedacinho de tecido que compõem a colcha é exatamente igual, mas todos tem a igual importância para fazer com que a colcha seja bela, todos são lavados e perfumados da mesma maneira, a costura que os une precisa ser feita com a mesma atenção. Se alguém elegesse que um retalho é mais bonito que todos os outros e fizesse uma colcha só com aquele tecido, não teríamos mais uma colcha colorida, com a mesma beleza. Com a gente acontece assim também, a humanidade é essa colcha, linda... Mas na história por tantas vezes disseram e ainda dizem que um retalho é melhor que o outro. As costuras não são feitas com a mesma atenção e tem retalhos que arrebentam e ficam pendurados, a margem. Não recebemos todos os mesmos cuidados nem o mesmo perfume”.

Fiquei pensando que todos naquela sala, estudando fora do tempo, eram retalhos pendurados. Foi uma noite agradável. A sala apinhada de gente madura, com olhar desconfiado e muita vontade no peito de reescrever suas histórias, costurar-se na colcha, mostrar que sua estampa é bonita e importante.

Cheguei em casa de corpo pesado, me joguei na cama. Nem jantei. Ainda assim, quando fechei os olhos e comecei a relaxar tive a sensação que eu era um retalho que havia encontrado sua colcha.




Desenho e colaboração: Ângela Fakir
http://riscoserabiscosangelafakir.blogspot.com.br/

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