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Roteiro_de_Filme_ou_Novela-->Anarquistas. Graças a Deus! -- 06/08/2016 - 15:09 (João Rios Mendes) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

“O Livro dos Abraços? Voltou a amar, Amélia?”

“Oxi, nunca deixei de amar não. Pelo contrário, quando deixo de amar um só passo a amar muitos...”

Camélia fez sua cara de escândalo fingido e balançou a cabeça como quem reprovava meu amor a muitos. Continuou em direção ao banheiro pra escovar os dentes e a longa cabeleira vermelha antes de vir deitar-se como fazia todos os dias num ritual que a punha a dormir com os cabelos bonitos feito a princesa adormecida no caixão de vidro. Sei que em seus sonhos ela espera um príncipe noturno como um morcego.

Fiquei ali na cama com o livro nas mãos pensando que a gente devia mesmo era amar a muitos, amar a todos, amar cada um que cruza nosso caminho... Muito melhor do que o jeito de amar somente a nós mesmos, no máximo estender esse amor aos nossos, aos que nos são próximos, aos que nos fazem bem.

A professora mandou a gente escolher um livro na biblioteca pra ler e depois apresentar o livro aos colegas, contando o que achamos da leitura, e falando um pouco sobre o livro. Peguei O livro dos abraços. Escolhi-o pelo nome e pela capa que trazia uma criança rosada tocando um tambor, os olhos voltados para trás, um sorriso limpo de criança desenhado. Parecia que a menina da capa me convidava para dança. O nome me fez pensar que se tratasse de poemas de amor, ou vai ver o tal do Eduardo Galeano era um grande abraçador e estava ensinando os segredos para um bom abraço. Mas a escolha do livro se firmou quando o folheei e vi que se tratava de textos pequenos. Como era razoável minha preguiça para textos longos, o tamanho me levou a escolher O livro dos abraços.

Interessante é que o livro era diferente de tudo que imaginei que seria. Tinha sonhos de uma mulher, lembranças de infância, confissões de uma assassina, pequenas histórias, frases copiadas de pichações de paredes e muros, pensamentos... Um deles mexeu comigo. Era como se o tal Eduardo tivesse conseguido explicar algo que eu pensava ou sentia sobre o mundo e as pessoas sem conseguir explicar aos outros. Meia dúzia de frases certeiras, que pareciam ecos da minha alma.

“A fome/2
Um sistema de desvínculo: Boi sozinho se lambe melhor...
O próximo, o outro, não é seu irmão, nem seu amante. O outro é um competidor, um inimigo, um obstáculo a ser vencido ou uma coisa a ser usada. O sistema, que não dá de comer, tampouco dá de amar: condena muitos a fome de pão e muitos mais a fome de abraços.”
“Os índios são bobos, vagabundos, bêbados. Mas o sistema que os despreza, despreza o que ignora, porque ignora o que teme. Por trás da máscara do desprezo, aparece o pânico: estas vozes antigas, teimosamente vivas, o que dizem? O que dizem quando falam?
O que dizem quando calam?”
“A televisão mostra o que acontece? Em nossos países, a televisão mostra o que ela quer que aconteça; e nada acontece se a televisão não mostrar.
A televisão, essa última luz que te salva da solidão e da noite, é a realidade. Porque a vida é um espetáculo: para os que se comportam bem, o sistema promete uma boa poltrona.”

De repente, feito encanto, as palavras escritas começaram a me interessar. No caminho pro hotel comecei a reparar nas frases escritas em outdoors e pichações. As frases das propagandas todas mais ou menos com o mesmo jeito, pareciam coisa feita com moldes, todas na essência nos dizendo que de alguma maneira estávamos errados - feios, insuficientes, infelizes - e pra resolver esse erro que podia facilmente ser confundido com quem somos deveríamos comprar ou fazer algo que a propaganda vendia. Das pichações gostava mais.

O moço que escreveu O livro dos abraços considerou alguns desses escritos clandestinos pintados em muros importantes para estarem registrados no seu livro. Eu entendia isso. Diferente da publicidade essas frases eram divertidas ou tristes, e as vezes não faziam sentido. Apenas brincavam com o pensamento. Comecei a anotar essas frases no final do meu caderno. Pareceu algo importante a fazer já que era comum que muitas delas desaparecessem, silenciadas por tintas, a uniformidade calando o livre, as vozes da rua. Falei com Marcos sobre isso, ele me chamou de doida.

“Amélia, rua não fala e pichação não é importante, é coisa de vadio, e deixa tudo feio, aquele montuado de coisa escrita...”

“Amontoado de coisa escrita tem nos outdoors e ninguém diz que é coisa de vadio, é trabalho. Pra mim podiam é apagar todos os outdoors. Todos me chamando de feia...”

“Te chamando de feia? Nunca li um outdoor que dissesse ‘Amélia, sua feia, compra isso daqui ó...”

“Não assim diretamente, mas dizem que bonita é a mulher que está lá, magra, alta, loira. Eu não sou magra, nem alta, nem loira, nem sei fazer cara de superior, que parece dizer com o olhar distante ‘não vou olhar pra esse fotógrafo na minha frente, sou melhor que ele e que todo mundo’... Bota reparo, Marcos.”

“Eu te acho muito melhor que qualquer magricela gigante de papel...”
Desviei o olhar e esquivei a prosa pro lado das frases anotadas no caderno. Coloquei o caderno na mão dele e pedi pra ele ler.

“Todos prometem, ninguém cumpre. Vote em ninguém”
“Pensar diferente não é um delito”
“Se existe um estado, existe dominação, portanto existe escravidão. Bakunin”
“As coisas mais terríveis que os homens já fizeram, nasceram da obediência as leis, não obedeça ao que não é justo”
“Com autoridade não se educa, se adestra”

“Amélia, isso é bagunça... Vê essa letra A escrita dentro do círculo?”

“Sim, ela é como uma assinatura das frases, tem em muitas delas, você sabe o que é isso?”

“Isso é Anarquia, baderna, ausência de regra, de mando... um perigo!”

Marcos falou das coisas que ele ouviu sobre anarquia. Que era um bando de gente doida querendo um mundo sem governo, sem ninguém pra mandar, confiando no bom senso das pessoas. Quanto mais ele falava mais parecia que um mundo assim anarquista fazia muito mais sentido que o nosso. Porque a ordem que ele defendia como bem a ser defendido dos perigosos doidos anarquistas, não era um trem lá muito ordenado. Muita gente sofria. Tanta coisa que não fazia sentido pra mim parecia se envolver com essa “ordem” que feito os políticos prometia um monte de coisa boa pra todos, mas nunca cumpria.

Mostrei as anotações das frases pra minha professora, ela sorriu satisfeita e disse pra procurar um livro chamado Desobediência civil. Procurei-o como quem procura o amor ou qualquer outro tesouro valioso, achei-o num sebo perto do terminal de ônibus. As folhas amareladas, finas e frágeis. Paguei, guardei dentro da bolsa com cuidado e fiquei esperando a hora de ler, feito quem espera encontro com novo namorado. Amei-o do começo ao fim. Como o leviano que prova o fruto da traição, fui volúvel e não me dediquei só a ele. Procurei outros amores. Conheci outras paixões.

Marcos sempre olhando com desconfiança minhas leituras quando vinha me trazer lanche e prosa no intervalo das aulas. Outro dia junto com um doce trouxe um livro embrulhado num papel de presente alaranjado e azul. Tinha uma dedicatória: “Pra você que resolveu ficar rebelde e perigosa depois de velha...”

Depois disso, não teve jeito, novamente me apaixonei... Estou enamorada por Zélia Gattai e seu ‘Anarquistas, Graças a Deus’.

"Amélia, me empresta esse livro aí na mesinha de cabeceira?"

"Mas pra que Camélia, você não gosta destes assuntos."

"Sabe o que é, fiquei pensando na vida vendo esses títulos na sua cabeceira..."

Abraços, desobediência, anarquismo...

Pensei no livro da vida, no qual somos o autor que rabisca, vivencia a personagem, abraça seu destino, desobedece a suposta ordem natural das coisas... Se rebela contra a monotonia, a subserviência, a ausência de paixão.

Não li nenhum desses, mas vi o filme sobre Gandhi. Se entendi bem, foi um grande anarquista que pregava a "busca da verdade", fosse do indivíduo ou de uma nação. Acreditava que insistir na verdade através de uma luta pacífica propicia equilíbrio e felicidade as criaturas.

Pensar, escolher, agir... Sermos livres na busca da felicidade é o que nos torna essencialmente anarquistas. Graças a Deus!





















Colaboração: Ângela Fakir e Jeanne Martins
Desenho: Ângela Fakir
http://riscoserabiscosangelafakir.blogspot.com.br/
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