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Contos-->As Cataratas -- 08/10/2010 - 21:23 (flavio gimenez) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Manuel Quesada cofiou a barba, olhando intensamente o espelho quebrado há minutos atrás pela coronhada de seu revólver: o que viu foi um homem envelhecido, com rugas cada vez mais espalhadas pelo pescoço, descendo como fissuras pelo seu rosto. Da última vez em que se olhou assim, fora mais condescendente consigo mesmo. Agora não havia piedade em seu olhar, nada o fazia lembrar-se de si mesmo como fora há vinte anos atrás. Fora nesta época, quando ainda não era entrado em anos que ele conhecera um anjo.

Ela se chamava Juana. Ele só a conhecera assim, numa passada de olhos, perto da casa colorida do pastor do povoado em que ela vivia e que ele fora visitar a pedido de um amigo que desejava que ele conhecesse melhor o lugar e desse um jeito de se aproximar do pastor, homem reverenciado na região por sua bondade e odiado por muitos pela sinceridade com que proferia as divinas palavras de sua cólera contra os opressores no púlpito.

Viu a moça passando, carregando uma cesta de frutas para serem vendidas na feira que sempre se realizava na terceira quarta-feira do mês. Lá se vendia de tudo, desde os peixes tenros que faziam a delícia de homens como ele, sempre dispostos a saborear novos quitutes até as miçangas com que se faziam os feitiços e filhotes de cabritos ressecados para as mandingas de amor e separação. Também havia as especiarias e da barraca iluminada sob o sol seco que se filtrava entre as folhas da figueira brava brotava um aroma inconfundível de cravo, canela, coentro, erva cidreira, sumos de essências usadas como filtros de amor e o indefectível cheiro de sovaco dos vendedores suados do trabalho sem trégua.

Juana—ou Juanita, como lhe chamavam, teria pouco mais de 15 anos quando ele a conheceu e foi como uma faísca que se desprendeu de seus olhos que o hipnotizaram naquele momento que jamais esqueceria porque era único, um momento em que uma flor se abre à gota de orvalho ou as mãos se abrem ao calor do último raio de sol antes da noite. Ela era muito festejada no povoado, porque tinha lindos olhos e a pele amorenada escondia mais tesouros do que podia supor a frouxa população masculina que a cortejava. Ela brejeira olhava os sacos de especiarias, certamente escolhendo alguma que lhe havia sido confiada pela sua mãe, célebre cozinheira que fazia magistrais paellas... No escolher entre um ramo de coentro e cheirar uma essência de baunilha foi que ele realmente a viu, como ninguém a havia visto, exposta, os braços num gesto de reverência à natureza... Ele, Manuel Quesada, apaixonado? Ainda não havia mulher capaz... Que nada, ele a viu erguendo as mãos para pentear os lindos cachos e se enterneceu, os outros que o acompanhavam sentiram isto e foi motivo de chacota por toda uma noite. Longe de se importar com isto, Manuel interpretou, com maestria, a atitude de chacota como de inveja.

--Manuel vai se casar. Ouviram isso?
--Esse barulho? Foi o feijão.
--Não! É o coração de Manuel!

Foi ela passar e aquele aroma de ervas inconfundíveis em seus cabelos cacheados deixou todo o ar ä sua volta imerso em espécie de magia e todos os olhos se voltaram para a graciosa figura que caminhava, agora carregada de especiarias e sem as frutas, devidamente vendidas a preço de ouro...

--Gente... Ela é linda. Sou homem de princípios; Sou casado.
--E daí? Por essa me perdia.
--Mas ela é uma criança!

Lá ia a moça perdida em devaneios; lá ia a fonte de juventude, a promessa de amor, a chuva da madrugada... Olhos perdidos de amor a acompanharam e eram os dele, enfeitiçados. Vinte anos depois ele olhava o espelho quebrado pela coronhada e ainda via a imagem daqueles cabelos encaracolados e cheirosos...
--Você está diferente, Manuel.
--Como assim???
--Diferente. Sei lá. Não é mais o romântico incorrigível que conheci.
--Quando a conheci era mais novo. Agora, fora a dor nas costas, tenho essa hérnia...
--Ai, lá vem você de novo com essas histórias.

Era sempre assim. Não que não gostasse dela, de sua mulher. Absolutamente, o problema é que quando conhecera Juana, já havia casado com Cândida. Cândida era uma pessoa dirigida, forte, decidida, porém pouco afeita às coisas do amor; não gostava de carícias prolongadas e isso o inibira pouco a pouco. O relacionamento deles se tornou pragmático, embora houvesse ternura e compreensão entre os dois. De vez em quando, faziam amor e era bom. Isto até que ele conheceu Juana. Ele não via a hora de voltar a vê-la, nem que fosse de longe, nem que só fosse para sentir seu perfume de especiarias acariciando suas narinas. Isso há vinte anos!

--Você me conhece. Até demais.
--Sempre conheci, sei dos seus vícios, sei dos seus lados todos.

Ele dava uma pigarreada, ressumava um pouco e a indefectível cusparada atingia em cheio a escarradeira, fazendo um som cavo que a enojava profundamente. Dane-se, ele pensava, ainda tenho minhas lembranças...

--Juana?
--Sim?
--Prazer, Manuel Quesada.
--Prazer. Conheço você?
--Quem te conhece sou eu; eu a conheci na feira, quando carregava uma cesta cheia de frutas e as trocou por especiarias.
--Realmente, estava!

Fluía a conversa, os sons saíam cristalinos de sua boca, Manuel sentia o doce hálito dela cercando-o de carinho. Ele, na época, ainda não tinha filhos. No entanto ele não a via como uma menina; Juanita para ele era mulher e isto o escandalizava um pouco porque ele já era maduro, tinha sua esposa... Que fazer? Como ele sentia a necessidade premente de lhe falar isto! Porém, não se permitia nenhum sinal de fraqueza porque ela o notaria e certamente fugiria como uma corça se soubesse que ele era comprometido. De modo que optou por não lhe contar e deixou seu coração transparecer a verdadeira emoção que era estar ao lado dela. Estar ao lado dela! Só isto já lhe fazia um bem enorme. Só de estar ao seu lado conversando, ao longe vendo passarem as pessoas em lento caminhar, as árvores densas em suas copas e os pássaros por testemunha, sim, era o caminho da felicidade. Ela ainda o estudava, ele era um homem charmoso, ela pensava, o quereria de mim tão nova? Só de imaginar ela sentia vertigem. Será?

--Você vem sempre por aqui?
--Sempre venho. Tenho negócios na ilha. Vendo produtos aqui, café, soja, grãos...
--Papai tem um pomar em casa. Nós plantamos frutas diversas...
--Quais?
--Manga. Bananas. Papaya. Maçãs, peras d´água...
--Eu a vi vendendo. Compraria todas...
--Como assim?
--.Só pelo prazer de ver você satisfeita.

Juanita corou e isso o deixou apaixonado; ah, a doce emoção feminina, a doce revelação da paixão comovente, o suave deslizar das mãos do desejo, o calor das ondas de fogo... Seu coração disparou quando ela, de súbito, tomou sua mão e puxou-o para um caminho diferente, entre os arbustos coloridos e que o conduzia pela mata num crescente rumor de águas de fundo. Súbito, abre-se uma clareira, ao fundo se vê uma queda d´água, e ela o olha com olhos imensos, de corça assustada mas ao mesmo tempo, decidida a conquistar o que já era seu por direito.

Ainda hoje, vinte anos depois, Manuel se lembra do banho de cachoeira com ela, a luxúria da floresta, os pássaros aos milhares, o zumbido da abelha e o corpo de Juanita brilhando salpicado de gotículas iluminadas, diversos prismas de luz multicor. Eles não desperdiçaram um minuto sequer e saciaram os desejos mútuos; ele aprendeu que Juanita tinha mais caminhos em seu corpo que as trilhas da floresta que os levavam a esconderijos diversos. Se havia alguém maravilhoso, esse alguém era ela...

--Manoel vai se casar!
--Parem com isto: Já sou casado.
--E olhem que a mulher dele, Cândida, é uma moça linda...

Esse era Roberto, seu rival antigo e que praticamente entregara Cândida a ele, depois de uma briga séria com ela. Não teve dúvidas: Na semana seguinte já namorava Manuel, dentro de dois meses noivaram, casou-se sem nenhum arrependimento e no fundo ele sabia, Roberto se moera de ciúmes. Ela não teve nenhum escrúpulo. As mulheres não têm escrúpulos, ele pensava. Apenas amam.

--Manuel!
--Sim?
--Já contou as estrelas do céu?
--Não.
--São tantas, são muitas, veja...
--Uma estrela cadente...

Ele desejou que aqueles momentos não passassem nunca. O ruído das águas na cachoeira, o céu cravejado de diamantes, os olhos imensos a perscrutar sua alma, as mãos dela a percorrerem seus braços e costas...Juanita era encantadoramente feminina, era uma mulher maravilhosa e só tinha dezessete anos; eram dois anos que ele ia à sua ilha, seu povoado e se encontrava com ela às escondidas, sempre com um agrado, um mimo...Ele desejou que as forças do horizonte nunca se pusessem e com devastadora certeza ele sabia que um dia deixaria aquilo tudo.

--Que foi, Manuel?
--Porque tem de ser assim?
--Porque tem de ser meu amor.
--Mas, assim?
--Sim, meu anjo. Sim, agora durma.

Os dedos dela deslizavam em seus cabelos, o sono vinha rápido, ela exalava um perfume indescritível, seu corpo brilhava no escuro e quando ele se virava, ela se aninhava a ele em perfeita comunhão e seu calor era maravilhoso. Ela tinha o dom de acalmá-lo e ele segundo Juanita também a fazia sentir plena e completa.

--Manuel!
--Sim!
--Onde está o Ramon?
--No quintal.
--Vai ver se ele já tomou seu banho. O moleque é danado, se enfia na banheira e abre o chuveiro. Porquinho! Não toma banho é nada.
--Vou dar uns esculachos!

Quando fez vinte anos Juanita ganhou dele um lindo amuleto que ele havia comprado na capital, uma jóia que era uma borboleta de ouro com duas esmeraldas encravadas no dorso. Ela o exibiu para todos, dizendo que ganhara de seu noivo. Que noivo era esse que ninguém sabia? Pois é, era seu noivo. Passava os dias na cachoeira, olhando os brilhos do sol nas esmeraldas, refletindo em sua grandeza todo o momento especial que ela vivia. Que noivo era esse que jamais a pedia em casamento? Que estava fora de sua vida, mas estava dentro, quem era esse homem que de mistérios estava cheio? Ela era uma beleza: Ganhara mais corpo, tinha o olhar seguro das mulheres saciadas, soubera esperar até então, mas as promessas dele enfraqueciam na distância e ela queria mais, muito mais que simples amuletos ou diademas. Ela queria um mundo! Germinou nela a vontade de se eternizar, um compasso que todas elas têm, brotou nela a vontade de estar serena, à beira de uma mesa, cerzindo as camisas dele, fazendo toalhas ou passadiços, cresceu nela a vontade de superar a distância com a permanência dele na ilha.

--Não posso!
--Porque não? Amo você.
--Também te amo.
--Mas você é cheio de mistérios!
--Minha querida!
--Uma ova! Se tem outra entre nós...Acabou!

E ele teve de confessar que era casado; que tinha filhos, dois. Um havia morrido pequenininho, de tétano. Teve de confessar que Candida nada sabia deles e que ele voltava sempre para ela mas que Juanita era sua verdadeira paixão. Teve de confessar a ela que passava as noites de lua cheia olhando através das janelas esperando o momento de partir para encontrá-la.

--Vá!
--Para onde?
--Volte para sua capital. Me deixe em paz. Nunca mais me venha visitar.
--Juanita!

Lá se foi seu sonho de vida. Ela se foi como as águas das quedas que visitava agora em sonho; ela se foi como uma força da Natureza e o deixou só com seus filhos, sua esposa até por demais compreensiva e seu dinheiro duramente conquistado. Juanita o deixou e ele ainda voltou ao povoado três vezes, sem encontrar jamais a bela moça. Segundo contam, ela virou uma estrela. Outros contam que em noites de lua cheia, dois belos diamantes surgem no céu ao lado da lua, como gigantescos olhos de corça, à procura do inútil noivo secreto que nunca mais veio. A realidade é que Juanita se foi para a capital, deixando seus pais desesperados, para voltar anos depois casada com um belo negociante de frutas; Tanto assim que pegou seus pais e os levou do povoado para a cidade grande, onde os dois acabaram ficando até o final de seus dias, orgulhosos dos netos que cresciam como se houvessem tomado fermento. Um deles se chamava Manuel, outro se chamava Ramon mas a menininha era Juanita quando pequena, uma réplica linda de uma certa moça que aos quinze anos encantou Manuel Quesada e que agora, ao virar a rua, dera com ele andando alquebrado indo para sua casa e ele parou ensimesmado com aquela moça de doze anos com um perfume delicioso em seus cabelos.

--Perdoe-me; como é seu nome?
--Juanita!
--Você está indo para a escola?
--Sim.
--Posso levar você?
--Muito obrigado. Minha mãe me espera logo ali.

A visão de Juanita e sua filha o fizeram sorrir. O tempo passara mas ele afinal se deu o direito de apenas olhar e ver que certas coisas são mesmo feitas por Deus nesta terra. Ninguém pode discutir isso.
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