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Cartas-->O TER E O SER -UM PAPO NECESSÁRIO -- 02/11/2000 - 23:07 (João Ferreira) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos


TER E SER - UM PAPO NECESSÁRIO


João Ferreira
2 de novembro de 2000



Meu amor querido


Estamos caminhando corajosamente em direção à vida e nosso relacionamento profundo nos obriga a discutir as coisas importantes que poderão valorizar mais nosso futuro...Falamos ainda outro dia, se bem te lembras, citando um destacado autor polonês, de nome Erich Przywara, sobre a supressão de intermediários para atingirmos com mais intensidade o mundo e as coisas. Falava esse autor da natureza e da necessidade que há de retirar o ornamental para voltarmos à realidade desnuda...e da tendência que a gente sente, após a saturação sofrida durante anos e anos, de voltar ao original, ao primitivo, à voz mítica da primeira idade do homem.
Me lembro que ficaste entusiasmada quando discutimos isso. Pois bem, parece que há uma questão que ainda não discutimos e que toca frontalmente a questão do ter e do ser... Para muita gente, esta é questão de lana caprina. Ou seja, uma questão com a qual não vale a pena perder tempo. Mas quando a gente vê a corrida ansiosa e desesperada que os humanos fazem em direção à conquista de bens materiais, ficamos aterrorizados. As pessoas se corrompem, se rebaixam, mentem, se alienam, deixam de ser autênticas. Só para ter mais...E o mais grave é que muitas vezes é apenas para terem uma pequena vantagem. Na nossa educação social, a criança não recebe estímulos para se contentar com o necessário à vida. Educada numa sociedade essencialmente consumista, a criança se apercebe desde cedo que quem acumula bens tem vantagem social. Ter carro importado, ter mansões em zonas nobres, ter apartamento de cobertura, ter iate ou barco de recreio, avião particular, heliporto, ter ou ser sócio de grandes empresas, ter uma alta conta bancária, ter nome de família endinheirada ou brasonada, estar nas bocas dos interesses políticos, são alguns títulos que impulsionam os homens comuns para uma luta feroz pela posse e acúmulo de bens. Os jovens não sabem ainda que os bens em quantidade atrapalham e não ajudam.
Conheci, na década de setenta, um imigrante português que tinha 365 apartamentos no Rio de Janeiro. Quando me disse isso, me contou que setenta desses 365 inquilinas não pagavam ou tinham o aluguel atrasado. Ele tinha para isso um grupo de advogados só para cuidar do assunto e fazer as cobranças. E na administração dos imóveis ele se preocupava muito em manter o ritmo do lucro. Verifiquei que este homem vivia em tremenda ansiedade e que não era feliz...Vivia preocupado em vez de viver satisfeito com a fortuna que tinha...
Sempre que discuto com alguém a relação do ter e do ser, me lembro de um livro profundo escrito pelo escritor e pensador francês Gabriel Marcel, intitulado Être et avoir (Ser e Ter), publicado em Paris pelas Éditions Montaigne em 1935. É um livro com reflexões que ainda hoje valem muito. Com a profundidade que este filósofo tratava as coisas, aprendemos com ele que as aparências refletem aspectos ilusórios sobre o ser e que o ter é uma situação meramente transitória. Também aprendemos, na esteira dos pensadores alemães do existencialismo, que a formação do ser humano passa por uma situação de ser em crescimento ou de estar sendo em direção ao ser mais completo e mais absoluto (Sein und seiende). A grande dinâmica da vida humana portanto consiste num certo jogo das pessoas que desejam ser mas que passam apenas pelas ilusórias situações do ter...e que só depois de esgotados os fracassos e as situações ilusórias, as próprias pessoas se dão conta do tempo que perderam.
Minha querida, os gregos já admitiam a existência de um elemento indeterminado na direção do qual os homens caminhavam. Chamavam a esse elemento o ápeiron. Na verdade, todos nós formulamos um desejo, uma ansiedade e até um projeto e caminhamos em direção a algo no sentido de tentarmos atingir uma posição social, uma forma estandardizada de viver, o acesso aos bens essenciais de dinheiro, de casa, de emprego, de amor, de família, de vida em sociedade, de cidadania...
Mas quando a experiência bate à nossa porta, moderamos nossos projetos de ambição e tanto as posições sociais quanto as formas de acúmulo de bens podem passar a significar menos, quando nos apercebemos que esse simples caminhar nos pode trazer desvantagem...
Nossa vida transforma-se a partir de certa idade numa escolha de caminhos...Caminhar e saber caminhar é saber viver. Por razões meramente psicológicas podemos experimenta situações que são exatamente o contrário que convém à nossa vida e à natureza. Mesmo em situações de amor, a relação de ter e ser é fundamental. Pode acontecer que alguém imaturo pense em ter uma mulher bonita ou que uma mulher bonita pense apenas em ter um homem bonito para sua companhia. Isso poderá ter seu valor momentâneo e relativo para um prazer desejado, mas só com o tempo, esse homem ou essa mulher descobrirão que o próprio prazer surgirá mais do ser do que do ter. Descobrirão um dia que para o amor, ter um corpo bonito é importante e agradável, mas não é tudo numa convivência. Os amantes exigirão a partir de certa altura que seus companheiros sejam algo assim como, serem solidários, amigos, amantes, companheiros, lutadores de uma causa comum, resistentes aos vícios destruidores como o álcool, etc. Um dia descobrirão que a maturidade se construirá através de uma noção de vida onde o ter é completado pelo ser. Na verdade o que se tem são coisas. E no fundo, a alma humana deseja algo mais. Ela deseja crescer, desenvolver as formas superiores de vida para uma boa consciência cívica, para o exercício de cidadania, para sua inserção no mundo social e cósmico, para ser feliz.
Partindo destes princípios, meu amor, construiremos também nós um futuro mais harmonioso, menos egoísta, mais solidário, e mais transcendente.

João Ferreira/Jan Muá
2 de novembro de 2000
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