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Contos-->A Casa do Alto -- 07/01/2011 - 00:18 (flavio gimenez) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
João Moura, este eterno viajante. Ele está assim desde que caiu, sendo que ao cair, bateu com a cabeça na quina de um móvel mal colocado e instantaneamente perdeu a consciência. Ele dançava como um bailarino, bem o disse dona Quitéria, seu par de folia naquela noite fatídica, no asilo que o abrigava já há alguns anos, desde que Fernanda, sua segunda esposa, alegando dificuldades, o havia internado lá para que recuperasse pelo menos uma parte de seu juízo. João, disse dona Quitéria, era o mais alegre dos seus velhos companheiros, apesar de ser um dos mais novos dali. Ele era brincalhão, quase um menino e em certos momentos, até um pouco saliente, ela recordava.

--Certa feita, João acordou muito cedo, pegou todos os copos de água com dentaduras dentro e trocou todos, na calada da noite. Foi um tal de gente estranhando, de uns e outros confusos...Uns choravam porque finalmente lhes servia a prótese. Outros, mudos, não se conformavam com a pequenez de sua nova arcada. Alguns outros, no mutismo de seu silêncio triste, nada fizeram... Deu muito trabalho achar o dono de cada uma delas. Ele levou uma bronca tremenda, o malandro. Tinha de ver como ele ficava de cabeça baixa, os cabelos brancos batidos pelo vento e de esguelha olhando para mim e dando piscadelas.

Onde João está agora? Onde ele esteve todo este tempo? Ele agora tem o olhar fixo no teto e nem a visita de sua companheira de dança o desperta do torpor a que foi conduzido. Ele acompanha os movimentos do quarto onde está internado; seus olhos tudo captam, mas sua mente não lhe dá as respostas. Ele é um eterno viajante, deixa-se levar para o banho em marcha automática.

--Vigil. Ele está em coma, porém de olhos abertos. Percebe o ambiente e, no entanto não interage quase nada. Suas pupilas bóiam, percebe? Os globos oculares...

...Se perdem no tempo. Tempos de Aveiro, onde ele viveu há muito. Nascido em Portugal, João cedo começou a trabalhar, antes mesmo de aprender a escrever seu nome. Lá em Aveiro, numa cidade pobre que ele mal se lembrava do nome, seus pais acordavam cedo e o levavam ainda com os farrapos de sono a lhe travarem os passos para a colheita do trigo, que eles usavam para fazer o pão nosso de cada dia. Ele se lembra da figura do pai, um homem sanguíneo, nariz rubro, alegre nas festas da família e rude no trato com os filhos e esposa, sempre tocado de vinho e sua mãe, mulher de braços fortes e dentes ruins, lenço na cabeça, sempre a trabalhar pela casa de pedras que nos dias frios deixava sempre aquecida com uma lenha que o pai sempre deixava à mão. O machado pendia acima da lareira como para lembrar que na nossa vida há cortes e trabalhos a serem realizados. João, como era o mais velho, fora logo escolhido para fazer as vezes de carregador de lenha e não fora só uma vez que ajudara a manter a casa quente pelos seus dotes físicos desde pequeno.

--Este menino vai ser o orgulho da mãe, ah se vai!

Cresceu João, alfabetizou-se, ficou forte e espadaúdo como o pai na juventude e Maria, sua mãe, olhava com orgulho o rebento que saía à cara do pai, para sua tristeza, porque aquele filho de uma égua dera para beber demais e trabalhar de menos. Tanto que João o substituía na lavoura mais e mais. Até que conheceu certa moça, por quem seus olhos foram atraídos irresistivelmente. A moça tinha olhos escuros, cabelos fartos e negros, um nariz de bolinha que lhe realçava o charme, lindas pernas e o perfume mais intenso que ele já havia sentido... Não é sem razão que a paixão fora fulminante e sob os olhos bondosos da mãe e o olhar enviesado do pai (já que faltariam braços à lavoura) João partiu com a noiva para seu destino.

“Ele construiu sua casa em Aveiro com as próprias mãos, enquanto ganhava dinheiro com sua força física, arrematando umas obras aqui, levando madeiras acolá. Esta casa, no alto deste morro, com estes ventos todos, assim como a vê, foi ele quem projetou, sem engenheiro ser. Nada disto, ele a tirou de sua cabeça, mas na verdade, a cabeça era dela, minha mãe extremosa. Viemos a descobrir isto quando ele já nos tinha aos três, espalhados pelos cantos da casa do alto do morro, gritando quando ele chegava com seu machado que herdara do pai dele morto há cinco anos; éramos três filhos, uma menina e dois garotos. O outro que deveria estar no meio morrera no inverno mais terrível que passamos”.

João, seus três filhos (Júlia, cabelos louros como os de um anjo e olhos de cor de mel; Rafael, menino esperto de tez amorenada beirando a um mouro e Joaquim, o miudinho da turma, pequeno para a idade e inteligente demais) e sua mãe moravam na casa do alto, como a chamavam todos. Ele chegava todo alegre e vinha com pão e vinho, ou o jornal do dia, ou um presente para o menor que gostava de estudar os bichos e insetos (uma lupa, uma lente, um livro de insetos, um besouro duro de morto).

--Ai que nojo, João! Quantas vezes já não lhe disse para não trazer estas coisas?
--Mas Joaquim gosta...

De rabo de olho, ele levava a bronca de sua pequena mulher, mas de esguelha ria com os olhos para seu favorito, o que certamente trazia ciúmes à filha mais velha que já puxava os traços belos da mãe e o humor duro de sua avó. Certamente já algum enrabichado lhe dirigia olhares suplicantes... Ela adorava o pai; certamente numa complexa relação de ciúmes que disputava com sua jovem mãe. O do meio era o mais crítico em relação ao seu caráter; admoestava seus excessos, mas crescia solto e forte, como que livre para se desenvolver.

Onde está João agora? Onde esteve todo este tempo? Onde bóiam essas pupilas que já viram o por do sol do alto de sua casa construída pedra a pedra? Como esquecer o que João fazia se o que ele fez foi inesquecível? Ah, a beleza da existência, a intensidade dos sentimentos. A terra batida cheirando forte depois da chuva e as cigarras tangendo as cordas de um novo verão, prometendo mais água para os campos rosados da manhã do dia seguinte; os passos de João na terra dura dos invernos ressequidos. O olhar de João vendo a filha tomar formas, de belas ancas e a ponta de ciúme misturada aos cabelos brancos que pontilhavam o tempo se esgarçando, o tempo de João. O cheiro do leite no fogão a lenha, os cachorros latindo no quintal, a risada de Joaquim correndo atrás do cabrito. Sempre as lembranças!

--...Ele não interage, entende? Os olhos não vêem, ele não registra mais nada, ele não tem noção do espaço que lhe cerca. Vigil. V-I-G-I-L. Não, J não. Também não, vigio do verbo vigiar não é certo. L no final... Certo?

Errado. Foi assim que ele se sentiu quando entrou na biblioteca, para ler algo que ouvira falar de direitos do campônio de um autor que lhe tinham recomendado por ser um advogado famoso de Lisboa. A biblioteca da cidade crescera com as doações de fazendeiros da região e era de certa forma uma referência aos estudantes de lá. Pois foi assim que, sentado em sua cadeira, no silêncio respeitoso de um corredor de livros que ele a viu, assim de relance. Ela tinha cabelos fartos, espalhados no colo de maneira encantadora, mechados de cor avermelhada. Ele a viu e seus olhares se cruzaram instantaneamente. Como descrever o que sentiram? Ela o olhou e notou os fortes braços, os ombros de homem forte e o sorriso que delineava uma boca bem formada. Ele viu os cabelos adornando seios volumosos, o olhar penetrante e a cintura de abelha. Em pouco tempo, já começavam um diálogo... Em poucas horas, ele ficou sabendo que ela era brasileira, que havia dias estava lá para pesquisar fatos de sua antiga família em Aveiro... Em poucos dias ele entrava em sua casa e numa hora de loucura íntima, possuíra a mais voraz mulher que já conhecera...

--João,você está diferente!

Sua mulher que fazia tempo não o olhava e nem sequer o procurava, ele que justamente era um braseiro adormecido, agora o fitava francamente, notando os sumiços de João, os repentinos suspiros, os olhos que viam sem ver o por de sol, o café que ficava em sua mão esfriando... Joaquim só via seus besouros, sua filha se emperiquitava toda para sair e seu filho do meio não via a hora de cair fora dali. Natural que ele se desesperasse com a pergunta, mais natural ainda que a brasileira o enfeitiçasse...

Foi numa tarde fria que ele desapareceu de Portugal, sem olhar para trás, sem arrependimento, sob a promessa dela que o sustentaria enquanto não conseguisse trabalho. Desapareceu sem deixar vestígios, sem levar nada além da roupa no corpo. Como ela fez isso, não se sabe; só que era juíza e se sabe que eles têm imunidade, assim foi a verdade e ele virou um cidadão brasileiro sob outro nome em pouco tempo. Eram tempos em que sumia gente, um que aparecesse assim do nada não seria tão assustador. O português e a juíza se atracaram na casa que era da família dela por dias, semanas, meses, anos e nem uma carta, nem uma lembrança João mandou aos filhos que surpresos num primeiro momento, se uniram à família como nunca e cerraram fileiras em torno da mãe ferida e tristonha. Joaquim cresceu e fazia sucesso desde a escola com sua inteligência sagaz. Júlia virara uma linda mulher de cabelos encaracolados, a pele fina e branca (odiava o sol demasiado) e Rafael era o mais forte de todos, tanto que cedo trabalhou para dar guarida à família já que o abandono do pai o magoara imensamente. Ele jurou que ia suplantá-lo e à sua mãe ofereceu o ombro amigo que ela precisava. Mas não, a família de João indignada se ofereceu a ajudar. Enfim, se superaram e quando Júlia casou-se, metade de Aveiro foi à sua festa e, no entanto quem ela mais procurou, não sem uma enorme tristeza, fora ele que sumira assim, tão rapidamente quanto ela crescera.

Onde está João agora? E o tempo, este vasto caminho que trilhamos sem esperança de retorno, este barco largo que singra um mar profundo, cheio de artífices e mandingas? O tempo passou para ele e para todos os seres da Terra e ele se viu um dia aqui, de olhos ao teto, sem poder ver, ouvindo sem compreender, respirando sem falar...

--... Boiando. Flutua sua consciência, ela beira as sensações mais estranhas. Ele pode sonhar? Pode. Tudo se pode nesse vasto universo. A consciência é um mistério ainda não resolvido pela ciência. Quem sabe um dia possamos simular a consciência em uma máquina; teremos então a singularidade e a coexistência de duas espécies...Qual das duas sobreviverá?

Os olhos da mãe marejaram quando ele terminou de falar. Joaquim era o mais talentoso deles todos. Talvez com seu talento quisesse como que rastrear os destinos de seu pai, de quem, ele sempre soubera que fora o predileto. Ele sempre se perguntava: Onde, Deus meu, onde terá se escondido meu amado pai? Sua mãe pedia que ele parasse de investigar seu paradeiro—Não, um dia eu o acho, nem que for a última coisa que eu faça!

Nos últimos dias de sua vida, aquela que fizera prosperar a estirpe da casa do alto, onde ainda vivia cercada de carinho deu de falar com seu amado distante e João compreendeu, de uma vez por todas, lá onde se encontrava, boiando entre um estado de ser e outro de vir a ser, que sua espera havia chegado ao final.
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