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Contos-->Reconciliação -- 18/08/2011 - 20:10 (flavio gimenez) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Nuvens escuras se adensavam no horizonte, cada vez mais próximas ao solo. Os ventos prenunciavam talvez a primeira tempestade da primavera e as folhas secas formavam um tapete ruidoso e mutável no chão, enrodilhando nos pés dos passantes. Ele olhava o céu entre o claro do sol e o nimbo dos cristais de gelo. “Pitots”. Não, por que se lembrar disto? Não estava ali à toa e nem era para isso que estava sentado naquela mesa, pelo menos agora.

Pedira um drinque que lhe foi servido por um garçom suarento porém extremamente dedicado e prestativo. A bebida amarelada enchia o copo de luz e o gelo dali era mais denso que o do ar que ameaçava o solo com suas goteiras.

--Mais alguma coisa?

Como se desperto de um sonho, ele desviou os olhos do céu, o vento já açoitando as árvores ressecadas.

--Não, muito obrigado.

O garçom afastou-se, preocupado com os enxames de jovens falastrões que começavam a chegar em bandos, todos menores; sempre haveria um deles que se diria maior e liberaria bebida para todos. Já sabia o que ouviria deles e de seu chefe, que já recebera uma multa por vender bebida a menores. Sem problemas, ele diria, sem problemas... Ele voltara ao seu sonho original. Recordava-se de um céu igual, anos atrás, quando ainda eram felizes, num parque afastado perto da cidade onde ela vivia. Fora numa tarde assim que ele se despedira dela, numa separação que já durava quase cinco anos, sempre pontilhada de reencontros, de fugas de ambas as partes, de desassossego mútuo e arrependimentos. Ele aprendera a viver nesse mundo estranho da solidão, num acanhado apartamento perto do centro da cidade poluída. Ela não se afastara jamais de sua moradia e ele havia dito que talvez ela não quisesse mesmo se arriscar. Um ponto de atrito comum entre os dois, porque se ele achava que ela era acomodada, ela o acusava de ser cosmopolita demais, ser citadino demais. Ele não se conformava e agora, retrospectivamente, via, com os olhos da crítica, o quanto os dois eram turrões, ele à sua maneira cosmopolita, ela à sua maneira provinciana.

Um grande grupo de pássaros passou espavorido com os ventos que açulavam as copas das árvores, fazendo milhares de folhas secas se agitarem no mundo dos ares e levantando um pó que iria sujar mais ainda os carros, os móveis das casas e as mesinhas já empoeiradas do bar em que se encontrava. Ele pode ouvir as asas lutando contra o vento (talvez a única diversão de aves da cidade, já que as do campo, como as que viviam na cidade dela, tinham rios, árvores, lagoas e bosques a habitar...).

Será que ela viria? Conseguiria enfrentar o trânsito, esse terrível monstro que nos impele ao inferno de Dante? Haveriam anjos dispostos a guiar a nossa Beatriz ao Olimpo onde ele vivia, ali mesmo onde ele se sentara tantas vezes com ela para discutir as obras de Beethoven, os quadros que admiravam, os livros que ainda não haviam lido? A esperar notícias dela, bebericava do copo que tinha um sabor agradável, o odor forte do uísque bem destilado, que esperou anos adormecido em grandes tonéis para despertar em sua boca já entrada em anos.

Os jovens às vezes incomodavam em sua algaravia; em certo sentido lhe lembravam os pássaros em sua revoada louca, uma menina aqui se fazendo de palhaça, outro menino lá gesticulando absurdamente (como se com isso supusesse que seria entendido, numa pantomima que se destinava a impressionar os próximos que o olhavam incrédulos, entre sorrisos sarcásticos e movimentos de cabeças...). Seus tempos de Colégio iam longe, agora o que lhe preocupava era se ela conseguiria chegar pelo menos antes da hora do Grande Congestionamento... Ela viria, como sempre, de trem. Fazia tempo que ela aderira a este meio de transporte, para dizer que ela sim economizava árvores e combustível e ele, ele sim gastava sua vida em meio ao caos do absurdo dia a dia naquele poço de concreto (ela lhe dizia assim firmando os lábios numa expressão dramática: “Poço de Concreto...”). Não havia como negar, ela não deixava de ter sua razão.

Olhou o seu pulso, o relógio metódico batia suas horas incansável, vibrava seu diapasão crítico e ferino, em cada segundo lhe tirava um segundo de vida e ele, para amainar o sofrimento, lhe segredava o sumo do sabor do malte escocês, sentindo o ardor amortecendo partes de sua língua; era um dos raros prazeres que se reservava, degustar um bom uísque ou saborear um bom vinho de safra rara, coisa que seu amigo “citadino” lhe ensinava, pouco a pouco, mandando-lhe folhetos, folders, jornais de Enologia e revistas de restaurantes finos onde inseria a carta de vinhos que havia em cada um deles, para que ele pudesse formar uma massa crítica de conhecimentos e finalmente, entre risadas de seu amigo enólogo, inaugurasse a pequena adega climatizada que comprara para seu apartamento pequeno mas confortável. Ela, com certeza, aprovaria o pequeno refrigerador zumbindo na cozinha de móveis de fórmica branca, cheio de vinhos escolhidos a dedo.

--Acho que vai chover!
--Também acho! Respondeu ele, despertado novamente pelo garçom solícito de suas reflexões etílicas.
--O senhor se incomodaria se eu lhe recomendasse que se sentasse mais para dentro? Tenho receio de que o vento lhe traga algum galho suspeito. Em tempos de vento forte....

Ele acatou sua sugestão, não sem antes olhar o relógio no pulso; será que ela chegaria a tempo de evitar o caos da chuva? Notou que algumas gotas tamborilavam na cobertura azul do bar e também ouviu os gritos das meninas que corriam a se amontoar num canto mais abrigado da chuva, com direito a mochilas voando e mais de um par de sapatos correndo entre as mãos de espertos gozadores.

Mais um gole, mais um segundo, já sentado na nova mesa, mais abrigada do vento e da chuva que se desenhava. Lembrava-se de que lá, na casa dela, o vento se anunciava antes e o chiado da chuva nas árvores os fazia correr para um abrigo e o vento em grandes lufadas refrescava os campos ressequidos nessa altura do ano e ele respirava aliviado, pois o ar lhe traria bons augúrios, decerto. Lá, onde os pássaros conversavam com as plantas, lá, onde a água corria nas telhas embalando seu sono e sua vertigem. Lá, onde o galo de manhã o acordava e ao mundo dizia que já era a hora de renunciar ao sono...

--Melhor aqui. Obrigado!
--Pois não, senhor.

No umbral da porta do bar ele imaginou avistar sua Beatriz, que saída de que nuvens ele não soubera dizer, se acompanhada por anjos nem imaginava, mas seu coração se aqueceu e não era a bebida, nem o abrigo das águas que conheciam o caminho do alto, nem o alívio que sentiu ao ver que ela evitara a tortura da prisão do engarrafamento.

Apenas sorriu porque, a esta altura, ela já lhe falara, dias antes, em reconciliação...
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