Terminada a labuta no curral, o dia é todo amanhecido. O vaqueiro, feliz, leva leite bom para a casa do patrão. No pico da serra, acauã solta seu canto gargalhado. Agourando, agourento... Apinajé geme em dores de parto. Gêmeos prematuros, disse a parteira: não é bom sinal para a mãe nem para as crias. Índio gêmeo também não é bom sinal, emendou Onofre, coçando a cabeça: ‘um tira a sorte do outro. ’ Generoso Batista sugeriu os nomes Caim e Abel. Corina protestou. — Está louco, Batista! Esses nomes têm sombra de maldição. Abel é assassinado por seu irmão Caim. E Caim, condenado por Deus a ser fugitivo e errante sobre a terra. — Conflito entre gêmeos sempre existiu. Será que você não entende que toda nação indígena é descendente de Caim? Quando Caim foi expulso e obrigado a ocultar-se da face de Deus; Caim ocultou-se na mata. — Esse barco em que navegas, não te leva à terra firme. Arrenego! Esaú e Jacó, teria mais sentido, pois um dos filhos da índia é muito cabeludo e o outro tem uma lesão no músculo da coxa. Vai puxar da perna quando crescer... Nhá Santa passava flanela úmida no móvel do quarto. Sempre está limpando as coisas onde tinha gente conversando.... Ninguém se incomoda com sua presença muda, até que ela dá uma ‘vassourada’ na conversa. — Cosme e Damião! — Sê besta, Nhá! Cosme e Damião não eram gêmeos. A sabedoria popular os trata como gêmeos, porque tiveram mortes semelhantes, passaram por igual martírio. — Isso é polêmico — disse Corina — já ouvi um padre falar na pregação que Cosme e Damião eram gêmeos. Generoso entendeu que deveria dar nomes a seus bezerros. Às crias dos outros, seus donos o fizessem. Onofre não opinou. Não escolheu nomes. Se Apinajé ainda morasse na aldeia, provavelmente, os meninos seriam sacrificados. A própria mãe teria que matá-los pela dupla ‘culpa’ de serem gêmeos, e pelo menos um deles ter defeito físico. Para seu povo, um só desses motivos é suficiente para levar à morte um recém-nascido indígena. Se já fosse nascida, Ravenala teria dito: ‘O sertanista quando catalogou etnias indígenas que praticam infanticídio no Brasil, não arrolou os maxacalis’. Nhá levou os meninos para mamar na mãe. Apinajé olhava os filhos, cheia de compaixão. ‘Não sobreviverão. O pai não guardou resguardo de três meses, e por certo, comeu carne vermelha por onde andou. Pai branco não apanha costume de índio... Até fura as orelhas, come cuscuz, e gosta de aipim. Mas crença, não!... Homem branco não agrada espírito da selva. Quando homem branco fuma diamba, não conversa com seus ancestrais. Mata seu semelhante. Ser índio é bom! Acauã é má. Acauã vai levar meus filhos...’
*** Adalberto Lima - Estrada sem fim...