Sozinho, na mata, com a arma atravessada no arção da sela, José Lino deparou-se com a fera. Dona Euzébia que preparara a matula chorava a sina do filho, que em mata fechada, em luta travada entregara seu espírito de vaqueiro ao Criador. ‘Será que meu filho, pelo menos comeu da paçoca?’ E olhava as mãos calejadas na soca do pilão. Ela nunca se acostumara com a morte. Tinha vontade de perguntar a Deus: Que dívida é essa? Não poderia o Senhor ter poupado meu filho? E enxugou as lágrimas que escorriam como soro de coalhada no varal.
— Tome dona Euzébia — disse Nhá Santa, entregando-lhe uma caneca de louça com chá de jasmim.
Euzébia descansou os cotovelos na balaustrada da varanda, e viu no meio da pastagem um vulto cavalgando o trote da vitória. ‘É ‘seu’ José Lino!’ — gritou um menino. — E traz um couro de bicho na lua da sela, pintado, bonito, estampado em preto e amarelo-ouro como chita, disse Euzébia.
Houve alvoroço e gritos de alegria. Apareceu uma cabeça na janela. Depois, cada janela tinha duas ou três cabeças curiosas. Dúzia e meia de pernas chegaram no alpendre. Nove traseiros se assentaram no parapeito. Generoso apareceu fumando um cigarro de palha.
— Onofre, faça o combinado!
— O boi, patrão?
— Sim! O boi da matutagem. Vamos fazer uma festa! Primeiro, toque o berrante. Prenda no curral os mais gordos. Eu mesmo quero fazer a escolha. Mande chamar os homens do tijupá, que estão na muda do arroz. Quero todo mundo aqui.
— Chamar o povo do tijupá? Na hora de pegar a onça, nenhum deles se manifestou!
— E eu sou doido de mandar lavrador atrás de onça? Vaqueiro é diferenciado. Nasceu pronto pra enfrentar bicho brabo.
— Sim, sinhô! E Zé Coco? Ainda está trabalhando...
— Claro, claro! Mas não foi só Zé Coco que trabalhou muito hoje. Tenho reparado. Me agrada muito contar com seu serviço na fazenda, Onofre. Agora, confira se a índia está bem amarrada. Não quero acidentes.
— Vai ter missa?
-- A festa começa agora. Não dá tempo chamar o padre. Mande uma embaixada para Zé Coco guardar as ferramentas. Carro de boi a gente faz depois. Quero ouvir ‘Saudade de Mirabela’, ver a alma de Corina saltar nos olhos. Aquela mulher nunca se esqueceu da terra em que nascida.
— Com licença seu Generoso. Se é uma coisa que faço com gosto é a vontade do patrão. A hora tá correndo desembestada. Tenho que tomar providências.
— Espere! Passe na cozinha. Mande Nhá Santa chegar até aqui.
O patrão não era acostumado a dar uma ordem em cima da outra. Fazer tudo de uma vez, o juízo de Onofre ferveu: ‘Passar na cozinha, ver se Nhá Santa tá bem amarrada...Não, não! Mandar Zé Coco tocar viola pro carro de boi....Começa tudo de novo, Onofre’.
Quando era pequeno, desamarrava a camisa e abotoava os botões nas casas erradas, pra se lembrar que tinha uma coisa a fazer. Mas dessa vez era coisa demais. Catou seis pedrinhas e pôs na algibeira. Cada uma representava uma obrigação. À medida que fosse cumprido, retirava uma pedrinha e jogava fora. No fim se sobrasse pedra, faltava cumprir alguma obrigação.
***
Adalberto Lima, trecho de Estrada sem fim...(ficção)
Imagem: Internet
|