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Contos-->Suor da alma(microconto) -- 08/11/2017 - 13:01 (Adalberto Antonio de Lima) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos


A mata, mesmo rala, esconde bicho pequeno. Mas Vintém não tinha interesse por nenhuma caça. Estava triste, como que padecendo trauma de infância e juventude. Era um cão velho, desprezado desde novo. João vasculhou outra vez os bolsos e alforjes, procurando munição. Nada! Sua vida estava por um fio. Orou. Poucas palavras saíam de sua boca, porque ficavam prezas na garganta. Jurara vingança contra a onça que matara o vaqueiro. E o vaqueiro morto era seu filho. Sentiu que suas forças se esvaiam com as horas que escorriam no final da tarde. Por sorte, num lampejo de inspiração divina, lembrou-se do bolso velhaco, aquele saco de pano cozido internamente, bem escondido por dentro, entre a calça e a pele, ao nível da cintura. Meteu o dedo indicador na abertura do pequeno bolso que mais  parecia a cicatriz deixada pelo corte numa cirurgia de apendicite. Por sorte. Encontrou dois projéteis. Era a reserva de munição da caçada anterior, um dia antes, quando José Lino ainda era vivo.
Vintém  levantou-se, de supetão, João entendeu que o burro ia fugir outra vez. Apoiou o cano da carabina no “V” da forquilha e municiou a arma. ‘Vou matar esse burro desgraçado! Fico a pé, mas mato esse burro covarde.’   O cão olhou com tristeza, e sentiu-se como Baleia, na mira de Fabiano. O alvo era Xerém, mas em seguida, seria a vez de Vintém encontrar-se com seus antepassados no paraíso canino. Baixou as vistas e cruzou as patas dianteiras, em postura de humildade e  submissão. Sabia que o dono municiara a arma com duas balas, provavelmente, uma para abater o burro, outra para ele, Vintém, o cão desqualificado. Pobre cão! Nem carne tinha para alimentar os urubus. Tranquilizou-se por um momento. Examinando o cheiro hormonal do dono, Vintém percebeu que ele  não era o alvo. Nem Xerém...  A onça estava perto, arrastando a barriga no chão, abanando o rabo, calculando tudo, pra não errar bote. Rosnou com o intento de baixar   o moral da presa. João Velho entendeu a inquietação de Xerém. Olhou o despenhadeiro e pensou: a onça está voltando para fazer o repasto do cabrito e matar  o bode. Mas onde escondeu a carcaça? Não via pedaço de roupa de José Lino, nem pelo menos uma botina descalçada na luta. Seu filho não morreria sem lutar. Isso João tinha certeza. Encorajou-se. ‘É hora da vingança!’ Puxou duas vezes o gatilho. O  primeiro tiro acertou o meio da testa da onça e quando ela  virou tombada, recebeu  o segundo impacto debaixo das costelas. Vintém avançou com o pelo ouriçado, e  com os dentes abertos, feito hiena. A onça já estava morta. Xerém trocou de pé e apontou as orelhas para baixo. Há pouco João Velho  tivera  vontade de matar o burrinho. Mas agora... Agora Xerém merecia um descanso, uma aposentadoria, até sua partida definitiva para céu dos muares.
Ocupado com suas divagações. Não viu um vaqueiro que se aproximava montado num burro velho.
— Tarde!
— Tarde!
— Que ocorre?
— O burro me jogou no chão e quebrei a cantareira.
— É caçador de onça?
— Não! Sou vaqueiro da fazenda Campo Grande, distante, mais ou menos, duas horas de jornada a cavalo.
— Que mal pergunta! E o senhor?
— Sou Alexandre Ribeiro Guedes, vaqueiro de outra querência. Vou pedir pousada na primeira fazenda que entrar. Estou sete dias viajado, e o mantimento ficou pouco. Se o fazendeiro se agradar de meu serviço. Fico por lá. Acertei conta com o patrão e recebi  o burro como paga.  Vale muito.  Salvou minha vida.
— Quer um gole d’água seu Alexandre?
— Carece não! Pode me chamar de Xandão. Fico mais à vontade.
— A travessia é longa. A fazenda mais próxima é do meu patrão.
— Chego até lá.
— Chega, se Deus quiser. Eu é que não sei se chego vivo com essa dor no ombro.
— Podemos ir juntos seu...
Alexandre fez uma pausa tentando dizer o nome do vaqueiro matador de onça. João Velho percebeu e se antecipou:
— O Senhor pode me chamar de Nhô Velho, ou João Velho. Diante de Deus o nome é um só. É o nome de batismo que vale. Mas o povo bota apelido. Deve ser para ficar engraçado, mas tem apelido que ofende.
— Eu ia dizendo: podemos ir juntos João Velho. Não se acanhe se precisar de ajuda.
— Sim, podemos ir juntos. Desconfio que esse braço vai me dar trabalho. Quero dizer o ombro. Parece que a clavícula quebrou.
—Também acho que quebrou. O braço está descompensado. O amigo vai tirar o couro da onça?
— Não! Só cortar as orelhas pra levar de lembrança.
— Eu corto.
— Fico agradecido.
— Quer ajuda pra montar?
— Faço sozinho. Ponha as orelhas dela nos  alforjes. Aperte a cilha de meu burro, e vamos. O sol já pendeu muito.
O mar virou sertão, no coração do norte-mineiro. Voando ligeiro, passa uma nuvem se escondendo do sol. Cavaleiros confabulam e  fazem a leitura da nova estação:
— Seco por aqui, não é mesmo?
— Caiu, ontem, uma chuva  miúda chorada em  peneira fina.
— Deu em mim. Peguei no lombo. Foi só  um orvalho.
— Será o orvalho pranto da  noite ou uma bênção de Deus?
— Tanto faz. Lágrima é suor da alma...a  natureza lacrimeja chorosa. Não aguenta mais tanta agressão.
Desceram a serra que guarda as águas das Sete Passagens. Venceram um morro alto. Adiante, um serrote, mais morro, outro serrote... E foram rompendo estrada, a caminho de casa. João Velho ia pra casa, mas a casa de Xandão  é o  chapéu. Sem família, sem emprego, a vida era  tudo que tinha de seu. Cansou de emendar ferro nas fábricas. Ganhou dinheiro em  Taubaté: soldando turbina, torre de navio... Até a represa de Itaipu conhece seus feitos. Mas ele se cansou de trabalhar com maçarico. Trocou o bico de fogo por um berrante. A mulher o desprezou, e Xandão se tornou vaqueiro errante. Onde encontra sombra, desarreia a montaria. Faz da relva travesseiro, se deita e dorme. E vive feliz com a vida que leva, bestando atrás de boi dos outros ou  dizendo reza em romaria e procissão.
— Meu patrão carece de merecer força nova na fazenda. Pururuca é trapaceiro. Corrido no mundo. Não presta para vaqueiro. Dinotério, também  não tem dom, nasceu para bate-pau. Crescido nos morros do Rio de Janeiro saiu de lá fugido, depois de uma tentativa de assalto frustrada em que morreu seu parceiro. Tem cabeça oca. Vive falando em criar peixe-leiteiro.
— Preciso de trabalho e um lugar para descansar. Mostro serviço. Se o patrão agradar me contrata.
— Dino  era zelado em academia, quando morava no Rio, aqui não quer saber do pesado. É letrado. Diz que trabalhou no comércio muitos anos, vendendo peça de computador, na Rio Branco.
— Seu patrão tem muitos vaqueiros.
— Tem. Mas o Dino é o mesmo Dinotério, que é o mesmo Amarildo, que é o mesmo Dinotério da Silva Cavalo. Prefere ser tratado por Dino. Dizem que furou um bêbedo em Juramento que chamou Dino de Dinossauro.
— Cruz credo! Sou da paz.
— Se quiser comprar briga, chame Turíbio de soberbo. Mas Turíbio Soberbo Medonho é o nome que carrega arrastado em sua  certidão de nascimento. Isso é nome de gente? Outro sem valia é o Pururuca. Na fazenda tem serviço pra ele não!  Ganha a vida sem trabalhar, pois sim! Mesmo  trabalhando, não trabalha. Em campeio, para nada serve. Nunca laçou um boi. Toca boiada sem tocar, e a vaca que ele ordenha a cria engorda, porque ele deixa muito leite pro bezerro.

***

Adalberto Lima, fragmento de "Estrela que o vento soprou."
Imagem: Internet.

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