Era Natal.
O Rio já não era mais a capital do Brasil. Há pouco, Brasília ressurgia do sonho de Dom Bosco, aportado no coração de Juscelino. Mas não era este o gosto de Corina, cuja dor da perda do marido, afastara-lhe do rosto o sorriso. Era preciso educar as filhas e Brasília não servia, porque ainda estava nos cueiros. Por isso, a viúva escolheu morar no Rio de Janeiro. Ali ela quis dar o mesmo aspecto do casarão da fazenda, mandando cavar um oratório na parede, e quando entrava no quarto, podia ver a imagem do Crucificado, entalhada em bronze. No alto da parede, com a face voltada para os pés da cama, também estava o retrato do finado, quando jovem. Já na moldura menor, sob o olhar de ontem do pai, a pequena Dulcineia descansava no colo da mãe.
Mas...
Nem tudo que Corina viu e aprendeu, veio das cercanias da fazenda Campo Grande, ou dos almanaques que lia. Tinha impressões de viagem do Rio de Janeiro à Bahia, fuxicando com a neta também o Norte de Minas, para recontar sua história. Aprendera muito com o marido, que trouxera do Nordeste uma bagagem de cultura regional, sabedoria popular, e um baú de lendas e fatos com o matiz das cores do Brasil. A carimbamba, por exemplo, Corina achava que era invenção de Generoso Batista. Ele contava que ninguém do sertão ou do mar, jamais viu a carimbamba. Só à noite se ouvia seu lamento triste, semelhante ao clangor da acauã, canglorando, canglorando, agourando morte na aldeia. Dizem que a carimbamba que há três mil anos canta, tem cabeça de gente e asas que não voam. E é igual em malvadeza ao Cabeça de Cuia que ‘Sete Marias precisava tragar. Sete virgens comer pro encanto acabar...' Já estava escuro, quando Maryula ouviu a carimbamba cantar: “amanhã eu vou... amanhã eu vou...amanhã eu vou... amanhã eu vou.” Curiosa, a menina adentrou a mata, e ao pisar o junco, na beira do brejo, a vegetação se abriu e a lagoa encantada apareceu. Maryula não voltou para casa. E até hoje, corre o boato, que uma velha encurvada, grasna, em noites de lua cheia, na lagoa que não é mais encantada.
— A menina se transformou numa velhinha mesmo, vovó?
— A velhinha faz parte da técnica utilizada pelo autor. Nas lendas e histórias infantis, as personagens não crescem, não envelhecem e não morrem. Até saem dos livros de ficção, e vão morar no mundo real.
Personagens saem dos livros como as esculturas de protagonistas do cristianismo, que vó retirava do oratório e levava para o presépio. As imagens iam adorar o Menino santo, em uma gruta improvisada no canto da sala. Era tão real. A vida, enfim, é uma representação da realidade desconhecida. Certamente, muitas vidas se perderam, outras enveredaram atalhos à procura do tesouro perdido. Mas, nunca encontraram a Ilha do Tesouro. Nunca encontraram.
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Adalberto Lima, trecho de "Sete Faces Congeladas." Título anteriormente cogitado para "Estrada sem fim..."
Adalberto Lima. Foto do Monumento em homenagem à lenda do Piauí: Cabeça de Cuia.