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Contos-->Caçada em vésperas de finados -- 27/06/2018 - 19:26 (Adalberto Antonio de Lima) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos








A vaca leiteira  não tem mais pasto na manga fronteira ao curral. Lambe o sal, sacode a cauda e muge chamando a cria.  Novo dia se levanta no vaivém do nascer e pôr do sol. Meio baiano, meio mineiro, Manuel Justino Batista  Generoso  não espera que o  galo  cante e levante outro galo o canto noutro terreiro. O fazendeiro levantou cedo. Volteou o curral antes do sol;  mandou Onofre afrouxar a mão nas tetas da vaca e ser mais pródigo com a cria. Mimosa estava fraca, carecia de suplemento. Foi minguando o leite, minguando... Até que apareceu no pátio sem o bezerro. Era o sinal que  o coronel Batista Generoso esperava, então,  mandou rastrear qualquer sinal felino de grande porte, uma pegada, uma carcaça de presa, o que fosse. Levasse os dias que levasse. Varresse tudo, do grotão de Campo Grande, até o cerrado de Sete Passagens. Assuntasse qualquer rabeira ou vestígio de animal selvagem por ali. E se encontrasse onça, trouxesse a lembrança do couro amarrado na sela. 

 Onofre zumbiu destemido feito  abelha-branca.
— Onça aqui não bebe água!
— Cuidado! O bicho é astucioso. Anda sem fazer barulho e quando se revela, está perto demais...
A mando do fazendeiro,  Euzébia de João Velho preparou víveres suficientes para sete pessoas, em incursão na mata, durante três dias. Nhá Santa ajudou a socar carne seca no pilão e a encher quatro pares de alforjes com paçoca, rapadura, e água à vontade nas bilhas. À tardinha, a peonada se reuniu no alpendre. Onofre do Borá  manobrou a cravina: culatra... culatra...  A arma respondeu de prontidão. José Lino conferiu a mira da parabélum e uma pomba caiu no terreiro. João Velho afinou a ponta da zagaia com que abatera, quando ele era jovem, uma suçuarana na Furna da Onça. Calmamente, Japuaçu torcia as pontas do bigode, enquanto conferia se a malha de caroá era capaz de suster animal do porte de uma onça. Coube a Pururuca levar o mosquete e a respectiva forquilha de suporte. Levaria também toda a tralha: água, mantimentos e a rede de caçador. Júnior de doutor  Adilson também foi, mas este não conta. Não era empregado da fazenda. Estava guardando férias em Campo Grande e quis entrar na infunca da onça, só por folia. O entusiasmo   era  dele, mas a carabina e a coragem eram do pai. 
 — Pai Luís fica para tomar conta da plantação — disse Onofre.  Capistrano também não vai. Corre notícias de cigano andando nas redondezas. É  preciso botar sentido na fazenda. Cigano rouba o sol antes de nascer.
— Antes de nascer o sol  ou o cigano? — Interrompe Robert atento a qualquer dúbia interpretação na fala dos vaqueiros.
— Foi desse modo que disse o vaqueiro. Não podemos enxugar o passado. Tudo está escrito ou  gravado  numa pedra — disse Ravenala.
— Como não enxugar o passado? O que foi escrito, pode ser apagado. 
— A palavra uma vez proferida. Não há como apagar. 
— Apaga.
— Não apaga. É como o pecado, mesmo apagado, deixa vinco.
Robert   apoiou o cotovelo na mesa, escorou o queixo com a mão direita e olhou para Ravenala.
— Aonde queres chegar com esta prosa?  Não consigo arredondar o pensamento. De que mesmo  falávamos antes?
— Dos vaqueiros reunidos no alpendre da fazenda.
— Sim...sim...Enquanto a cozinha preparava víveres para a incursão na mata à procura da onça pintada que rondava Campo Grande, os vaqueiros conferiram as armas. Tudo acertado: a investida teria início nas primeiras horas do dia seguinte. J
Já em casa, Onofre gastou pedaço de noite planejado a incursão  na mata. Pensou no risco de serem surpreendidos por animal feroz: ‘ Onça é  bicho é astucioso. Anda sem fazer barulho e ataca de surpresa. No meio da mata, a onça é quase invisível. A parda, quietinha sobre as patas traseiras, parece um cupinzeiro... E a pintada... a malha da onça pintada, se confunde com o capim seco.’
O galo cantou três vezes. E três vezes Pururuca se mexeu na rede e não se levantou. Onofre perguntou ao patrão se podia dar um tiro pra cima.
— Atire! A próxima compra na cidade vai ser um sino, um sino para acordar vaqueiro na fazenda.
Corina aproximou-se trazendo café em um bule azul com bolinhas brancas. Nhá Santa chegou com um tabuleiro de biscoito frito  ainda quente. 
— Parece assombração, disse Onofre — Passou um vulto  correndo e se escondeu atrás do forno de fazer farinha.
— Mande dois averiguarem o vulto  atrás do forno — disse Generoso, com ar de riso — se não for assombração, é Pururuca do Curral de Dentro.
— Tá na hora da onça  — disse Onofre.
Meeiros e enxadeiros não se apresentaram.
 — Cadê os roceiros? Perguntou o patrão.         
—Nem sinal de vida!
— Melhor assim.
—Inté a volta!
—Até...
Corina enclausurou-se no quarto de casal. Abriu o oratório encavado na parede; tomou nos braços  uma réplica em bronze do Crucificado e pediu proteção para os homens investidos da missão de combater a onça. “ Meu Deus, meu Deus! Para que matar os bichinhos,  Generoso?  Os leõezinhos rugem por sua presa, e pedem a Deus o seu sustento.”
— Conversando com seus amigos invisíveis, minha Flor?
— Estava pedindo proteção divina para os caçadores de onça.
— Então direcionou com atraso sua oração! Acabo de ouvir leõezinhos pedirem a Deus uma presa.
— Você não deixou o filho do Dr. Adilson  embarcar nessa aventura, deixou?
— Ele foi.
— Cruz, credo! Tu és louco? Mandar esses homens se embrenharem na mata atrás de onça em vésperas de finados?
— Dia bom, minha santa! Dia de todos os santos. Não vai faltar nenhum santo na companhia dos vaqueiros. 
 Vaqueiro Onofre saiu na frente, seguindo uma vereda de gado. Teve vontade de amarrar o cabresto da montaria do Júnior de doutor Adilson, na cabeceira de Xerém. Mas não atrelou. Preferiu passar severas recomendações ao cavaleiro afoito, chegado da cidade:
—Fique no meio dos outros, doutor. A onça se mostra ao da frente, mas ataca é o derradeiro.
— Vamos parar pra verter água. Disse João Velho.
— Faça da cabeça da sela. Tá escuro ainda. E d’agora em diante, ninguém desce dos arreios sem eu mandar.
A intenção de Onofre era surpreender bicho grande na furna da onça. Chegaram ainda escuro. Acenderam fogo na entrada da gruta e ficaram de tocaia.
— Vem  coisa aí, disse João Velho, quase em sussurro.
— É uma raposa! Ninguém se manifeste.
Fizeram absoluto silêncio, mas nada ouviam, senão o crepitar de galhos verdes ardendo ao fogo, e pequenos roedores que saiam da toca, correndo desembestados.
Arribaram.
Cachorro Graudez latiu longe encomendando tatu. Onofre ralhou e seguiram marcha. Mais adiante, o vaqueiro parou. Tirou o chapéu, beijou o escapulário de Nossa Senhora do Carmo e se benzeu. 
Os cachorros acuaram bicho no mato. 
Agora se espalhem de dois em dois — disse Onofre — O rapaz da cidade fica comigo. João Velho pode seguir sozinho ou fazer uma trempe com mais dois. Todo mundo amontado. É preciso varrer esse sovaco de serra, pisando miúdo, passando pente fino!
Pururuca não conseguia acompanhar os passos da montaria de José Lino. E atrasou-se. O companheiro  perdeu a paciência. Tinha diminuído a batida para o outro alcançar a marcha... ‘Atraso de vida, esse sujeito!’ 
— Chegue a espora no vazio do animal, vaso ordinário!  Nesse passo, não vou alcançar  nem o  rastro da onça.
— Cavalo fi’duma égua...
 —O cavalo é bom. O cavaleiro não presta. Só mesmo Pururuca pra reclamar de Torresmo. Na batida, não tem cavalo melhor.
— Nasci pra vaqueiro não!
— Se não acertar o passo, largo você pra onça comer...
Largar pra onça comer foi o mesmo que dar de pau na cabeça de Pururuca do Curral de Dentro e lhe fez lembrar, quando procurou serviços nas carvoeiras de Tremedal. Tinha conseguido uma vaga como formiga, naquele formigueiro de fumaça e fogo. Mesmo de dia só se enxergava o branco dos olhos. Aquilo não era gente. Era tição apagado que andava... Os mortos, matados por qualquer desavença, iam para o forno. Não deixavam rastro, nem cinzas. O patrão pagava só  com mantimento, a conta comprar o de comer. Fora isso, dinheiro, ninguém via. O jeito de sair dali com alguns trocados   era pegar araponga na mata e vender em Salinas. Mas os bichos se afastaram por causa do eucalipto. Precisava ir longe para encontrar uma araponga, um veado, ou qualquer caça do mato. Nem passarinho, de porte nenhum, se vê em mata de eucalipto. Pois foi naquele segundo domingo de novembro, que Pururuca apanhou sua gaiola com uma fêmea de araponga  e vazou o eucalipto. Muitas léguas depois da carvoeira, armou o alçapão e ficou de tocai, reparado,  pra ver se a chama atraia algum macho. Esperar por uma oportunidade de captura, é como pescar: não se sabe a hora que o peixe vai morder a isca. Distraiu-se vagando, pensando na mulher que deixara em Montes Claros, de favor, na casa do pai dele. 
Depois de horas de espera, a chama  mostrou-se  agitada. Pulava desesperadamente, de um para outro lado da gaiola. E quando ele reparou direito. Sentada sobre as patas traseira, uma onça preta, de cócoras, humilde,  feito cachorro pidão, espiava  a araponga pular. Também de cócoras, ele  estava. Levantou-se. Deu três pulos de tiziu: Subia e gritava. Descia. Subia e  gritava... No último grito, a onça abanou o rabo e saiu devagar, como se dissesse: ‘Tive medo não! Tô de barriga cheia.’   Enquanto divagava em suas lembranças, Pururuca atrasou o passo mais ainda, e ficou distante do parceiro. José Lino gritou:
— Roseta o animal, cabra mole!
—Tenho coragem de furar o bichinho, não! 
— Cadê a arma?
— Caiu na voçoroca.
— Por que não pegou?
— Dava não!
— Caiu em qual delas?
— Na voçoroca do  meio, no grande vale  que fica entre duas serras. Tem tudo que é bicho lá dentro.
— Vamos voltar. A onça deve ter sentido os cachorros e se escondeu lá.
— Volto não! Lá, volto não! Já vi onça olhando pra mim. Quero ver mais não!  Os mais antigos contam que já morreu muito animal lá dentro. Mas animal não conta. Gente conta. Três vaqueiros sumiram. Devem estar lá. Tem osso de tudo quanto é vivente. Se escapar da queda com vida. Não sai. Sai não! Fundo demais! Se cair na voçoroca, morre lá. Sai mais não. 
— Sê besta, Pururuca! Caindo com vida,  morro não! Tem água e caça. É só fazer fogo.
—Vai viver lá o resto da vida? Sai não! Morre de saudade. Não nem querendo... Se cair uma onça e escapar, tem que negociar espaço com ela. E se a onça  parir  tem que deixar a cria vingar. Pode comprar briga não!
 — Para de pensar besteira! Como a onça vai apanhar cria sozinha na voçoroca! 
—Sei não, pode cair prenhe. Mexo com onça não  seu Jose Lino!
—  Eta homem frouxo. Sai de minha frente, estrupício. 
***
Adalberto Lima, fragmento de Estrela que o vento soprou.
 






Adalberto Lima




Enviado por Adalberto Lima em 27/06/2018

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