Conto preocupante
Meu marido escreve. Mas isso não lhe basta. Ele quer ser lido, é
óbvio, quer ser reconhecido. Eu até acho que ele escreve bem. O último conto
dele, por exemplo, Carta encontrada no
bolso de um suicida, é muito bom. Tão bom que até fiquei com medo. Medo de
que pudesse ter um fundo de verdade.
Nesse conto, Carlos escreve sobre uma
carta ao escritor Josué Palácios (ficção), onde relata todas as suas tentativas
de contato com os escritores, sempre infrutíferas ou insatisfatórias (realidade).
Acontece que, valendo-se dessas negativas, ele escreve sobre sua frustração e
que não vê motivos para continuar vivo. Para comprovar isso, a carta é
encontrada no seu bolso, depois de pular do 10° andar de um prédio de
escritórios em Brasília (ficção).
Após ler o conto, o alarme soou na
minha cabeça. Se eu entendesse que os argumentos levantados para o suicídio
fossem fracos, o conto seria classificado como ruim. Como achei o conto bom,
será que os argumentos, que achei igualmente bons, e que, no caso, são
verdadeiros, não levariam também a um desfecho verdadeiro? Isto é, o suicídio,
relatado como ficção, não poderia estar sendo pensado por ele como uma hipótese
real?
Apreensiva, resolvi ficar atenta.
Carlos não dava demonstração nenhuma de que alguma coisa estivesse anormal. Ele
dava continuidade à sua rotina, como sempre. Lia, escrevia, ia ao cinema,
levava e trazia nosso filho das suas várias atividades. Isso, em vez de me
tranqüilizar, aumentou minha desconfiança. Pensei que ele poderia estar agindo
assim para não dar a conhecer suas verdadeiras intenções. É claro que, se eu
manifestasse diretamente a ele minhas preocupações, sua resposta de nada me
valeria. Ele riria e diria: realmente eu escrevo bem, já que minha ficção lhe
parece tão real. Ele jamais diria: Sim, meu amor, estou pensando em me
suicidar. Portanto, falar com ele sobre o assunto está descartado.
Que posso fazer, então? Resolvi que
deveria envolvê-lo com outras coisas. Se ele estivesse pensando em suicídio,
talvez isso o demovesse da idéia. Se não, mal não faria. Eu teria que fazer
algo que estivesse ao meu alcance e incentivá-lo a fazer outras atividades de
que ele gosta além de escrever.
Primeiramente, resolvi ir ao salão de
beleza e deixar-me mais bonita aos seus olhos. Sei que ele é bastante sensível
a isso. Acho que é mais difícil um homem se suicidar tendo uma mulher bonita,
disponível e carinhosa ao seu lado. Além disso, eu o estimularia a viajar, a ir
a exposições de arte, a participar de feiras de livros. Eu ainda estou
trabalhando, tenho minhas restrições. Mas ele, que está aposentado, pode dar-se
ao luxo de viajar a qualquer época do ano. Claro que eu vou ficar em casa
morrendo de inveja. Mas, como é por uma boa causa...
Depois de fazer algumas pesquisas na
internet, onde encontrei ótimas opções, que, com certeza, iriam agradá-lo,
comentei com ele:
– Carlos, fiquei sabendo de duas
belíssimas exposições de arte que estão sendo apresentadas na Europa: uma, em
Paris, no Museu de Luxemburgo, O
Renascimento e o sonho, em que serão exibidas obras de grandes pintores,
como Bosch, Veronese e El Greco; outra, em Madri, no Museu do Prado, As fúrias, da qual fará parte o quadro Prometeu Acorrentado, trabalho de Rubens
e Snyders, vindo do Museu de Arte da Filadélfia. Você não gostaria de ir?
Ele respondeu:
– É claro que eu gostaria. Mas não
estou entendendo. Sempre sou eu que fico procurando exposições para visitar.
Quando vejo que posso programar para irmos juntos, em suas férias ou licenças,
normalmente você aceita e lá vamos nós. Quando sei que você não poderá ir a
alguma exposição que eu gostaria muito de ver, eu, muito humilde, carente e
necessitado, quase um pedinte mesmo, me apresento a você com a sugestão de ir,
ainda que sozinho e você normalmente diz sim (talvez sob o impacto implorante
dos meus olhos), ainda que no seu íntimo você gostaria de ir junto ou que eu
ficasse em casa. Agora, você está me oferecendo para ir? Você poderá
ausentar-se do seu trabalho?
– Não, Carlos, nesta época, não
posso faltar ao trabalho. Estou sugerindo que você aproveite seu tempo livre de
aposentado e vá. Será muito bom para você. Aliás, ainda tenho outra sugestão.
Aproveite também e vá à Feira do Livro em Guadalajara. Você já foi outras vezes
e gostou muito.
– Oba, oba, oba! É incrível, meu
amor. Não precisa repetir a oferta. Vou logo procurar as melhores opções de passagens
e hospedagem. Eu estava um pouco desanimado mesmo. Confesso que escrever aquele
conto Carta encontrada no bolso de um
suicida me deprimiu um pouco, embora eu tenha procurado não demonstrar. Mas
agora estou animado: Paris, Madri, Guadalajara, me aguardem. E, para comemorar,
que tal tomarmos aquela garrafa de champanhe especial que você me deu de
aniversário, a Dom Pérignon?
Bem, acho que a situação está sob
controle. Talvez ele não tenha efetivamente pensado em suicídio, mas apenas
ficado chateado ao lembrar-se de tantas esperanças frustradas. Em
contraposição, mostrei-lhe que a vida continua bela. Diante disso, que importa
se os outros não lêem o que ele escreve? Azar dos outros. |