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Roteiro_de_Filme_ou_Novela-->11. O ALMOÇO -- 03/06/2002 - 05:27 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Na hora combinada, todos se encontravam ao derredor da mesa. Ao centro, Padre Timóteo, esguio, óculos de grossas lentes, aros de tartaruga, projetando dois olhos sempre arregalados. Gestos pausados. Voz doce de confessionário, sempre à disposição de um bom conselho, de sábia palavra de prudência. Figura de sábio antigo, em fato moderno, cinza-escuro, impecável, deixando à mostra camisa branca de colarinho reto, fechado no pescoço. Abria os braços devagar, como se quisesse abraçar a todos de uma só vez. Paternal, não fechava jamais o sorriso gentil de quem compreende, de quem perdoa, de quem incentiva.

Fernando, na cabeceira, olhava para ele de soslaio. Se o deixassem mais à vontade, iria propor ao bispo sua beatificação. Mais ainda. Sua santificação. Santo de pau oco. O que desejava era comer do bom e do melhor, em todas as casas ricas da paróquia. Diziam que dera muita propina e bajulara muita gente, para receber a investidura naquela localidade.

Ia prosseguir nesses torpes pensamentos, quando deu com Jeremias esforçando-se por ser agradável. Como iam os projetos de construção da nova casa paroquial? Soubera que o coadjutor enviado pela Cúria estivera arrecadando donativos. O que seria da Igreja, se fosse adotada a Doutrina da Libertação?

— Teologia da Libertação...

— Isso!

Fernando não queria ouvir a conversa. Observou que Jeremias ficou colocado do outro lado da mesa, do mesmo lado que Timóteo, sendo impossível que trocassem olhares sem que fossem observados por Maria, postada na frente do padre, ladeada pelos filhos. Dolores estava na outra cabeceira. Ao lado de Fernando, uma cadeira vazia, onde Timóteo tinha repousado o breviário.

A um toque de campainha, apareceram os criados com a grande terrina de prata. Era a sopa.

— De frango, esclareceu, Dolores, como a dizer a Jeremias que não havia motivo para recusar.

De fato, Jeremias deixou que depositassem em seu prato duas conchas bem cheias. Fernando espicaçou sua curiosidade na direção do amigo. Imperturbável. Enquanto todos não estivessem servidos, ninguém iniciaria. Haveria um momento de tensão, certamente.

Estranhamente, Jeremias pegou a colher e imergiu no suculento caldo.

— Padre Timóteo, poderia dizer-nos se, no tempo de Jesus, se servia sopa de galinha?

A colher permanecia imersa, aguardando a resposta.

— Por que não? As aves são apreciadas desde há milênios e toda boa cozinha tem seus pratos especiais, conforme o clima da região. Aliás, é sabido que os europeus sempre consideraram o caldo de frango ou de galinha excelente tônico revigorador para os convalescentes.

Maria aproveitou a deixa do marido, para colocar a sua pergunta:

— Será que Jesus aprovaria quem é vegetariano?

— Jesus os abençoaria, com certeza. Iria sobrar mais para ele e os discípulos...

A facécia extrapolava os limites da cortesia.

Maria censurou o filho com severo olhar de desaprovação.

Mas o jovem não estava nem aí, mergulhando seguidamente a colher no prato, até não ver outra saída senão entorná-lo, para raspar as últimas gotas.

Fernando tomou algumas colheradas. Os criados vieram recolher os pratos fundos. O de Jeremias voltou intocado. Não experimentara nem desafiara. Preferia ficar em jejum, a transgredir o princípio que elegera. Quem poderia recriminá-lo por não desejar comer?

— Jesus, retomou Timóteo, teria razões próprias para comer ou deixar de comer carne. Quem somos nós para julgar o Senhor? Da mesma forma que nos deu os animais para nossa serventia, deu-nos também o discernimento para agir consoante a consciência. Reparei que Jeremias não tocou na sopa. Sei que está evitando o consumo da carne. Se ele julga que é assim que Deus vai obrigar a todos no Paraíso, que continue o regime vegetariano. Só deve tomar cuidado para não ficar doente. Vejo que está bem mais magro e isso pode ser perigoso para a saúde. Que o povo mais miserável morra de inanição, até se compreende, pela ganância e perversidade dos homens. Mas quem é esclarecido e promove, inconscientemente, a própria morte, poderá ser considerado suicida. Enganará, às vezes, os sacerdotes, que rezarão por sua alma. Mas Deus, que está no Céu, saberá quais pecados todos nós cometemos.

O sermão se interrompeu com a chegada do assado. Gentilmente, Dolores havia providenciado travessa especial de legumes cozidos para Jeremias. Batatas, cenouras, brócolos, vagens, chuchus, pimentões, cebolas inteiras cercavam esplêndida pescada branca, aberta em duas postas grandes, sobre as quais finas rodelas de limão descansavam, ostentando pequeninos galhos de salsa.

— Eis que o nosso vegetariano poderá divertir-se.

— É muito para mim. Se mais alguém quiser partilhar, está às ordens.

Fernando reparou que Jeremias colocou em seu prato metade do peixe, tomando o cuidado de deixá-lo perto da borda. Completou com legumes variados e afastou a travessa, como que determinando-se a comer apenas aquele tanto.

— Se Jeremias me permitir, interveio Fernando, vou “partilhar” de sua refeição.

Quando a travessa voltou para o outro lado da mesa, a segunda posta de peixe permanecia intacta. Fernando colocara no prato só as verduras.

— Vejo que o amigo quer “partilhar” das idéias do compadre. Pois o assado está maravilhoso. Aliás, estas batatas estão divinas. Sirva-se um pouco.

Timóteo queria forçar Fernando a se definir. Explorava o campo das ousadias. Mas o exemplo de Jeremias frutificava. Colocou um pedaço de carne no prato, disposto a não tocar nele. Para que contrariar? Será que iriam vigiar tão de perto as suas preocupações gastronômicas?

O restante do almoço passou-se com assuntos diversos, leves como pede o bom-tom das conveniências. Timóteo tomou pródigo copo de capitoso vinho português. Jeremias e Fernando provaram apenas. Dolores também não quis perturbar-se com os eflúvios alcoólicos, na intenção de levar os temas programados a termo. Maria acompanhou o padre e os filhos, de modo que se criou clima de descontração apenas parcial.

Ao se recolher a baixela, o peixe voltou inteiro.

Exatamente ao meio-dia e meio, o criado veio buscar Jeremias. Chamavam ao telefone.

— A fiscalização está na fábrica e o contador pede minha presença. Desculpem, mas não posso ficar para a sobremesa. Padre Timóteo, espero o Senhor na próxima terça, para almoçar lá em casa. Fique descansado que Maria não irá oferecer-lhe comida vegetariana.

E sem dar atenção aos protestos e recriminações da mulher, desapareceu, levando os filhos a tiracolo, satisfeitos de se verem livres.

Fernando não podia compreender como é que João se deixara envolver... E se tudo não passasse de inteligente manobra do amigo? É isso mesmo. Não queria brigas com a mulher e se escafedera, em ocasião muito oportuna. Deixava-o só, mas era o que Fernando mais queria. Poderia iniciar a rebelião filosófica.

O café seria servido na sala de estar.

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