Fernando não estava com vontade de discutir. Queria informar o que pretendia fazer doravante, sem contraditas:
— É bom que saibam que estou deixando a Igreja Católica, temporariamente. Espero ser aceito na comunidade cristã dos espíritas, sem aparatos e sem riquezas. Como os dos primeiros tempos do Cristianismo. Reuniam-se nas catacumbas, com medo do poderio romano. Atualmente, esses abnegados benfeitores da espiritualidade, humildemente, quase se escondem da sociedade, praticando o bem na calada da noite. Pretendo unir-me a eles, estudando e praticando o bem espiritual. Façam o que quiserem, mas não vão dissuadir-me deste intento. Aqui ninguém é mais criança para ficar nesse jogo de esconde-esconde.
Suava frio. Tinha de demonstrar a verdade, a qual, conforme declarara Timóteo, não estava velada.
Dolores, sentada na poltrona do canto, espantava-se com o surpreendente arrojo. Maria fazia caretas de desagrado, como se estivesse a ouvir o marido. Os olhos de Timóteo nunca pareceram tão grandes. Ou pelo efeito do vinho ou por misteriosas circunvoluções emocionais, a vermelhidão do rosto acentuara-se. Tendia a pimentão maduro.
— Desconfio por que Joaquim foi mandado embora da firma por Jeremias. Era um delator. Um espia. Um mequetrefe sem-vergonha. Não pensem que farei o mesmo. Não. Não vou perder o excelente funcionário. Mas vai ter de se restringir à freguesia. Não vai ganhar mais nada por fora de ninguém.
Jogava o verde. Dolores, de lenço na mão, escondia os olhos. Não chorava, mas não queria que o marido a encarasse.
Vendo que acertara em cheio, voltou-se contra o padre.
— E o Senhor, Reverendo, vê se fica na sua! Reze as suas missas e faça os seus sermões. Se forem a expressão da verdade, do evangelho, dos ensinamentos de Jesus, se contiverem a palavra do Pai, o seu ministério será de amor. Mas controlar a vida das pessoas. Confabular com as mulheres, para gerenciar os maridos. Utilizar o confessionário para sutis pressões psicológicas. Tenha dó! Isso não é papel de nenhum orientador espiritual!
Timóteo não se dava por achado. Mas não queria interromper o rebelado paroquiano. Sabia que a oratória uma hora cessa e aí a ponderação haveria de prevalecer. Conhecia o coração generoso de Fernando (e o de Jeremias) e via, na sua manifestação apaixonada, a loucura adolescente dos quinze anos. Mais ainda, percebia o crescimento da maturidade do homem que se decide. Esperava que tudo se desse por amor. Não temia perder aquela alma para a salvação eterna. Admitia apenas a crise de quem, de repente, percebe vazia a existência. Controlar o Jeremias é que era! Uma enguia lisa, difícil de pegar. Fernando, ao contrário, estava oferecendo todos os argumentos para o contra-ataque. Aguardaria pacientemente o desfecho da alocução.
— Quanto à Senhora, Dona Maria (a formalização do tratamento era extremamente agressiva), queira parar de fermentar os maus sentimentos, os péssimos pensamentos, para fazer Dolores se voltar contra mim.
— Calma lá!
— Estou muitíssimo calmo e, se quiser se defender, explique antes como é que o padre ficou sabendo que não estive no Jóquei Clube, ontem à noite. Tire esse ar de inocência. Pensa que eu não sei que está seguindo o Jeremias, através de outros espiões? Com relação à minha mulher, vamos entender-nos depois, que a roupa suja vai ser lavada em casa, daqui por diante. Para não dizerem que sou incompreensível e irresponsável, por respeito à investidura sacerdotal do Padre Timóteo, permito que falem contra mim, ou contra o Espiritismo o que bem quiserem, mas vou prevenindo-os de que não os ouvirei. Quero ter as minhas experiências sobrenaturais. Esse direito ninguém vai tirar-me.
Fernando mesmo se admirava do discurso. Não planejara nem a metade do que vinha dizendo. Achava justo dar a palavra aos demais, mas antevia que não teriam muito que dizer.
Timóteo arriscou:
— Está você psiquicamente equilibrado para ouvir a voz da razão?
— Não sei se essa voz poderá ser a sua, já que o seu interesse é bem conhecido...
— Queira esclarecer, por gentileza.
— Ora, o Senhor está atrás do dinheiro. E de passar bem...
— Estou aceitando a hospitalidade de sua casa.
— Por pouco tempo...
— Pois, então, me retiro, na expectativa de revê-lo, em breve, na missa. Não queira perder a alma por um momento de rancor. Deus é pai de infinita misericórdia e perdoará os algozes de seus ministros.
Fernando calara-se, esperando ver o padre pelas costas. Mas este aboletara-se no sofá e, contrastantemente com o que dizia, não dava idéia de que iria mover-se.
Maria se mordia de vontade de dizer algumas poucas e boas, mas a categoria da expressão do sacerdote lhe inspirava confiança.
Dolores daria alguns anos da vida para não ter chegado àquele confronto. Sentia-se culpada por solicitar do padre que fizesse Fernando volver ao aprisco eclesiástico (como se recordava de ter ouvido o confessor dizer). Aprisco coisa nenhuma! Fernando parecia estar abandonando o lar. Começava a entender que corria risco muito superior ao que imaginara. Apertava-lhe a garganta terrível nó emocional. Estava prestes a desequilibrar-se. Temia pelo futuro. Temia pela solidão. Temia pelas noitadas sem as amigas, todas hermeticamente encerradas nas jaulas de matrimônios de conveniência.
Fernando voltava à carga:
— O Padre me desculpe o desabafo, mas vai ter o que contar ao seu confessor. Eu sei que os padres também confessam. Pois eu lhe daria vários terços como penitência...
— Não vou aceitar o desafio. Deus o abençoe, meu filho, e o ilumine na hora do arrependimento. Saiba que a Igreja sempre recebe de braços abertos os filhos pródigos. Essa é história muito antiga, mas que se repete todos os dias. Quantos espíritas voltam para o Catolicismo, decepcionados! O que eles não fazem é brigar com tanta franqueza com o sacerdócio, com os representantes de Jesus na Terra. Isso só eleva você aos meus olhos, pois vejo que está tendo bastante coragem para enfrentar as acusações conscienciais, que já lhe pesam. Mas não tem importância. Continuarei a minha missão junto a esta casa, orando pelo perdão de Deus, em nome de Jesus Cristo. Um dia sorriremos desta situação, lá no Reino do Senhor, nas Terras da Promissão.
— Se Deus quiser, Padre, que outro não será o destino dos filhos de Deus!
Mediante a frase de efeito espiritual, Fernando acentuou o atraso em que estava para a volta à loja e encerrou sua participação:
— Fiquem na paz do Senhor! E meditem sobre o que lhes disse, pois não pretendo abrir mão de minha liberdade espiritual. Dolores, pode esperar-me para o jantar e prepare-se para longa conversa a respeito de nosso relacionamento. Acho bom marcar uma hora com o analista, que nem tudo você deve ter contado ao padre...
Era o derradeiro salpico de mordacidade contra a trama que a esposa lhe arquitetara e de que agora tinha a certeza. Só não quis ser mais específico, porque achava que ser indelicado com Dolores seria comprometer-se muito mais seriamente com a separação. Jesus não viera para unir...
Quando estava para abrir a porta da garagem, ouviu claramente que alguém lhe dizia:
