Usina de Letras
Usina de Letras
243 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62152 )

Cartas ( 21334)

Contos (13260)

Cordel (10448)

Cronicas (22529)

Discursos (3238)

Ensaios - (10339)

Erótico (13567)

Frases (50554)

Humor (20023)

Infantil (5418)

Infanto Juvenil (4750)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140787)

Redação (3301)

Roteiro de Filme ou Novela (1062)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1958)

Textos Religiosos/Sermões (6177)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Roteiro_de_Filme_ou_Novela-->24. ACERTANDO CONTAS -- 16/06/2002 - 06:09 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Recuperado da pressão psicológica de saber o amigo tão próximo do inferno moral, pois julgava, com espírito católico, que não teria salvação, à vista dos pecados mortais, tanto que fora castigado por terrível carma, sendo retirado da vida quando esta lhe poderia oferecer muito mais, Fernando começou a considerar a hipótese de não contar logo a Dolores qual a doença que o levara. E se ela desconfiasse de que ele também se tivesse dedicado às mesmas distrações? Era preciso cautela. Ainda bem que se emocionara tanto, a ponto de chegar a tão copiosas lágrimas. Teria sido o extravasamento do estresse dos últimos dias?

— Precisamos providenciar a documentação o quanto antes. Você vem comigo? Ou prefere ficar para contar aos demais a conversa com os médicos?

Era Leonel, que descia as escadas.

— Você não pretende contar tudo agora?!...

— Claro que não. Acho que você é mais... (ia dizer político; me perdoe) mais religioso. Saberá dizer as palavras certas da consolação.

— Prefiro ir com você. Mas vou transmitir a notícia a Maria e aos irmãos.

No grande saguão, Fernando reuniu os familiares mais íntimos. Maria não quis aproximar-se. Não estava curiosa a respeito da doença. Envolvia-se na crise da morte.

Em rápidas palavras, Fernando fez referência aos temores do corpo médico e resumiu, lendo o laudo. Deixou de citar a AIDS. Precisava sair para providenciar o atestado de óbito. Estava quase na hora de fechar o tabelionato. Alguns parentes não se sentiram seguros quanto ao teor da apreciação oficial, mas os dois se descartaram logo. Conversariam mais tarde. Aliás, precisariam dar muitas explicações. Confiassem. Havia descontentes, por terem sido preteridos para a reunião. Esses insistiriam, com certeza.

Dolores quis saber o que se passara.

— Em casa, em casa..., disse Fernando, em tom de cumplicidade, como se devesse guardar segredo.

Queria livrar-se da triste condição de portador de más novas. Palavras de consolação? Nenhuma.

As providências junto ao tabelionato foram rápidas. Entretanto, a liberação do corpo ainda não se dera, de sorte que simples telefonema resolveu quanto às necessárias informações aos familiares.

Leonel buscou a administração do cemitério, para o aprestamento do enterro, enquanto Fernando voltava à loja, para se inteirar dos últimos acontecimentos.

Encontrou Joaquim cheio de mesuras. Queria saber do enterro, da doença, das emoções da viúva. Enviava recomendações. Daria os pêsames pessoalmente. Não atinava com o mal-estar que provocava no patrão.

Fernando respondeu o mais breve que lhe foi possível. Quis conversar com o gerente, com quem se dirigiu ao escritório envidraçado.

— Você irá ficar encarregado de tudo, pois não pretendo passar por aqui amanhã. Creio que não terei sossego. Talvez fique no hospital durante a noite. Só escapo se houver alguém mais descansado. Vai ser uma longa noite.

O gerente estava à disposição.

— O pessoal da escrituração ainda está no almoxarifado?

— Umas seis pessoas, comandadas por um tal de João.

— Agüente as pontas, que eu vou até o depósito.

Ao passar pelo salão de vendas, recebeu um sorriso do Joaquim. Criatura enigmática. Dava a impressão de falsidade. Mas fazia trejeitos de amigo velho, confidente, íntimo. Estaria contabilizando as informações não passadas a Dolores?...

— João, meu caro, ainda aqui?

— Quais são as novas do hospital?

O relato foi curto. Só o essencial. Vigiava-se, para não acusar que havia segredo a ser mantido.

— E, então, como anda o levantamento? Muitas dificuldades?

— Poucas. Mas o volume das faturas é muito alto e muitas não se encontram nos balancetes. A sonegação foi grande. Mas o trabalho de fiscalização é coerente. Se a firma fosse menor, não se diria jamais que não estava tudo certo. Os fiscais fizeram um bom trabalho. Do ponto de vista deles, podem até dizer que foi “honestíssimo”. Não pretendo ocultar nada. Se quisesse, poderia fazê-lo, sem susto de ser surpreendido. Veremos depois o que nos falam os fornecedores.

— Faça o melhor possível. Agora que existe ameaça de receber a visita dos procuradores...

Fernando não dizia, mas suspeitava de que as economias não dessem para cobrir as multas. Pensava que teria de desfazer-se de propriedades. Que fazer? Eram imóveis que não tinham herdeiros. A aposentadoria estava garantida. E que aposentadoria! Só o rendimento da loja era suficiente para viagem anual ao exterior.

— Espero vê-lo no velório ou no cemitério...

João quis apresentar Eduardo:

— Este é meu filho. Contabilista formado. Novo ainda, mas prestimoso. É craque com os computadores.

Fernando viu o pai no filho. Cumprimentou-os e buscou refúgio no escritório. Se ninguém o perturbasse, iria ler mais um pouco. Interessava-se pela leitura. Mas tinha pouco tempo.

Às nove da noite, foi chamado ao telefone. Esquecera-se da vida. Era Dolores. Queria que a fosse buscar no hospital. Maria iria para casa. O corpo de Jeremias estava de “quarentena” na geladeira, por causa da infecção. Só amanhã de manhã. Por que não voltara ainda?

Fernando não tinha como esconder que imergira na leitura:

— Fiquei lendo. Depois eu conto tudo. Já chego aí.

De fato, encontrou Dolores à porta principal. Estava desassossegada. E nervosa:

— Já não tem mais ninguém aqui. Se não tivéssemos combinado, você não me acharia.

Fernando notou o tom falso da reprimenda.

— Desculpe-me, querida. Estou lendo um livro de Kardec...

— Não quero saber! Você tem de ter responsabilidade. Sempre teve. Agora está degenerando. Foi só procurar essa seita dos demônios...

Fernando notou que a verdade seria considerada pura fraqueza. Calou-se o restante do trajeto. Deixou que a mulher se aproveitasse de sua falha. Afinal de contas, ela também estava estressada...

A refeição foi ligeira.

Dolores observou que o marido não se preocupou com o fato de estar a comer carne. Ficou mais tranqüila. Imaginava que a influência do Jeremias (que Deus o tenha em sua santa glória!) se anulara pela morte. Fernando deveria estar com medo.

— Querida, nós temos de restabelecer os nossos laços afetivos. Se continuarmos com estas desavenças dos últimos tempos, acabaremos separados. Isso eu não quero e penso que você também não. Se, algumas vezes, fui a locais diferentes do que lhe disse, peço que me perdoe. Reconheço-me culpado. Pode estar ciente, entretanto, de que nunca a traí.

Dolores tinha certeza disso.

— Conversei com o Joaquim. Ele me revelou que me espionava para você. E para a Maria, por causa das saídas misteriosas do marido. Estou ciente de tudo. É verdade que ele não lhe disse que me viu entrando em boates?

Falava com o coração na mão. Tocava em ponto muito delicado. Dolores se sentiu envolvida no clima das revelações importantes. Entendeu que o marido estava buscando solidariedade. E perdão. Dava notícia de que não estava bravo com a suspicácia dela.

— Estou sabendo, dia a dia, de todas as idas a todos os lugares escusos. Devo dizer que sei até o nome da rua e o número da casa em que Jeremias tinha as aventuras extraconjugais. Eu e Maria. Ela não se importava. Eu lhe teria jogado tudo na cara. Mas em você eu acredito, quando diz que não me traiu. Quem está mentindo é o Joaquim.

Fernando percebeu a manobra do fâmulo. Jamais teria conjeturado que teria esse tipo de acerto de contas com a mulher.

Escondeu a cabeça entre os braços, para não demonstrar as lágrimas.

Dolores o enlaçou amoravelmente. Afagava-lhe os cabelos. Os ralos cabelos. Também chorava. Vinham-lhe suaves lembranças de outros tempos. A perda de Maria, recusava-se a admitir para si. Vislumbrou outro futuro com o marido. Se se restabelecessem os vínculos matrimoniais, com base no discurso do coração, aberto, franco e leal, não haveria por que deixar Fernando ir embora. Num relance, perpassou-lhe pela mente que deveria sacrificar a vida social noturna. Adeus jogatinas. Era a resposta às escapadas dele. Agora, que se confessara tão humilde, não voltaria às corridas ou ao pôquer. Afinal, perdera o companheiro de diversões noturnas. Com a ajuda de Timóteo, iria conservá-lo junto a si, até nos dias de centro espírita...

— Preciso contar-lhe um segredo. Pelo menos, por algum tempo. É relativo ao Jeremias...

Atiçava a curiosidade da mulher.

— Você me garante que não vai dizer nada a ninguém? Preciso de sua palavra de honra, porque disso depende a tranqüilidade de outras pessoas. Com o tempo, tudo se revelará, mas o que tenho a lhe dizer é importante para nós dois. Para a nossa vida juntos. Para a confiança mútua.

— Se você julga que não sei guardar segredo...

— Não é isso. É que, às vezes, a gente dá com a língua nos dentes sem querer. Você tem de me prometer que não vai dizer nada a ninguém...

— Está certo.

— O Jeremias estava com AIDS...

Dolores emudeceu. Lembrou-se de que Maria havia levantado a suspeita. Mas fora inconseqüentemente... Assaltou-lhe a idéia de que poderia estar contaminada. Viu o sofrimento da amiga. Compreendeu as razões de Fernando.

— Estou pondo tudo em pratos limpos, porque não quero que pense que eu também possa estar contaminado. O que lhe disse é a mais pura verdade. Eu nunca traí você. Minha consciência está um mar sereno, quanto a isso.

Faltava cair de joelhos e jurar por Deus.

— Querido, amigo!

Dolores estava impressionada com a sinceridade do esposo. Via a grandeza moral de quem afronta todos os riscos em nome da benquerença, do companheirismo, do matrimônio, do amor... Sentiu que o amava de novo... Que nunca o deixara de amar... Confundia os pensamentos. Abraçou-o com muita ternura. Reconciliava-se.

Fernando tremia um pouco. Tinha mais alguma coisa que deveria revelar.

— Querida, você não sabe a causa de ter ido em busca do centro espírita. (Falava depressa para não perder o empuxo das confissões íntimas.) É que estava vendo espíritos. Se Joaquim lhe disse qualquer coisa nesse sentido, devo dizer que ele percebeu lá na loja que eu estava vendo seres de outra dimensão. Mas não foi apenas isso. Também acionava os aparelhos elétricos a distância. E sabia os nomes de pessoas estranhas. Aliás, tenho sido visitado constantemente por Tia Ana e pelo Roque...

Dolores não dizia nada. Deixara-se envolver pelo halo amoroso e agora começava a temer pela sanidade mental dele. Mas não conseguia formular pensamentos lúcidos. A emotividade do dia e o banho da sensibilidade pela inesperada atuação do marido desconcertavam-na.

— Pretendo, Fernando ousou concluir, aprender a trabalhar com esses fenômenos. Essa é a fé que terá de depositar em minhas intenções. Não vou arrastá-la comigo. Porém, lhe peço que me permita explorar esse campo maravilhoso de minha constituição mental. Se não encontrar verdade nesse caminho, voltarei submisso à Igreja Católica. Por enquanto, não me sinto disposto a ficar nas mãos dos sacerdotes.

Evitava citar Timóteo, para que ela não dissesse que havia emulação pessoal. Admirava-se da clarividência com que expusera tudo. Seu inconsciente trabalhara direitinho. Ou fora influenciação dos espíritos protetores?

Dolores não sabia o que dizer. Não podia brigar com alguém que fora tão amável, tão espontâneo, tão natural. Imaginou o que poderia dizer o Padre Timóteo. Lembrou-se da conversa do dia anterior. De nada adiantara. Era preciso dar tempo ao tempo.

— Querido, vamos deixar para tomar as decisões depois do enterro. Maria vai ter de contar conosco. Agora é que devemos comprovar a solidariedade de quem lhe conduziu uma das crianças à pia batismal. (Achou bom ter evidenciado a antiga religiosidade.) É tarde. Vamos deitar. Amanhã, às cinco, deveremos estar de pé. Vai ser um dia cheio.

A conversa morreu aí. Cada qual levaria suas impressões para a cama. Concordavam tacitamente em que os travesseiros lhes forneceriam seguras indicações de caminho para os pensamentos. Dolores estava mais certa de si e do marido. Fernando regozijava-se pelo desfecho pacífico.

Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui