Os dias seguintes foram de dúvida
e apreensão. De manhã cedo, Rafael vai para a escola e, ao passar pelo parque,
procura pelo estranho bizarro que há poucos dias, descobriu ser seu pai. Sua
mente ainda balançava um pouco quando pensava no quanto parecia ser
poeticamente justo que ele houvesse nascido de tal maneira, concebido durante
uma despedida de solteira que se revelou ser, ao mesmo tempo, a realização de
uma fantasia do homem que seria seu pai. Não se lembrou sequer de perguntar à
mãe se ele seria estéril e se por isso não teriam tido outros filhos. Seja como
for, admite que não conseguia mais ver o pai adotivo da mesma maneira, chega a
parecer patético estar lado a lado com ele na mesa como o chefe da família
depois da cena que sua mãe descreveu. Um homem que sente prazer vendo outro,
superior fisicamente a ele, possuir sua mulher. Parece piada.
- Realmente, uma piada. Pelo menos
diante daquilo que mortais acreditam ser certo ou errado, embora não existam
ambos. Mas é como acontece, devido à sua preferência por códigos de ética que
não conseguem seguir e que são necessários pra que não devorem a si mesmos.
- Você? – Rafael reconhece a voz
de imediato. O estranho surge do nada, do lado do rapaz, acompanhando-o na
caminhada em direção ao colégio.
- O próprio. E, pelo jeito, sua
mãe já te contou exatamente como eu sei tanto sobre você e o mais importante de
tudo... como você foi concebido.
- É, ela me disse. Eu ainda tô com
uma certa dificuldade pra entender, cheguei até a me perguntar se não foi um
castigo pelo fato de eu levar a vida que eu levo, comendo tudo quanto é mulher
de outros caras e, mais recentemente, até as mães delas...
- Castigo? E o que te faz pensar
que algo como o castigo divino existe? Mesmo porque o que você descobriu
aconteceu antes que você se tornasse o que se tornou, não depois. Lembra? Mas
eu não estranho o fato de você pensar assim, considerando o nicho moral e até
religioso em que foi criado. Claro que isso tudo é coisa que se passa a evitar
tão logo se ache coisa mais interessante pra fazer, mas, enfim, é como as
coisas são.
- Mas quem é você? E como pode ser
tão forte assim? Isso é o que a minha mãe não explicou. Ela disse que você ia
me explicar tudo quando fosse a hora certa, como se fosse soar estranho demais
se eu ouvisse da boca dela.
- Realmente ia. Seja como for,
vamos conversar em outro lugar, eu prefiro debater certos assuntos de estômago
cheio. E tem uma lanchonete na Castelo Branco que eu adoro visitar de vez em
quando.
- Mas a Castelo é longe pra
caralho e eu tenho que ir pra escola. Não é melhor a gente simplesmente... –
Antes que Rafael possa dizer qualquer coisa ele, simplesmente, se vê sentado à
mesa de um restaurante em um posto de gasolina, em frente ao homem que há
poucos minutos descobriu ser seu pai.
- Mas que caralho...?
- Se comporta, odeio gente que faz
escândalo. E isso não foi por mal, eu sabia que ia te pôr em choque, mas me
pareceu ser uma forma boa de aquecer sua mente pra o que eu estou próximo de te
contar.
- Mas... você transportou a gente
pra esse restaurante e, há pouco tempo, a gente tava lá no meu bairro...
- Eu já tava aqui, na verdade.
Passei no bairro porque sabia que você tava indo pro colégio e eu tinha que te
buscar pra gente ter essa conversa. Achei que já era hora de você saber quem
você é... e também quem é seu pai verdadeiro.
- Na verdade, eu fiquei sem chão
quando minha mãe me contou da despedida de solteira. Nunca pensei que ela e o meu
pai, marido dela, sei lá... não consigo nem falar direito com ele de uns dias
pra cá, depois que soube os detalhes...
- É, acho que sua mãe perdeu um
pouco os parâmetros depois que eu contei algumas coisas pra ela... É difícil no
começo, quando se descobre que tudo aquilo que se acreditava ser sagrado e
certo acaba se revelando uma farsa mas, como eu já disse antes... É como as
coisas são.
- Já é a segunda vez que você fala
em coisas sagradas... por que tá tocando tanto no assunto?
- Ah, tá chegando, café e pão de
queijo fresquinho. Perfeito. Muito simples, guri... você soube que eu comi sua
mãe de uma forma que só um exército inteiro poderia fazer e deve saber que fiz
isso muitas vezes depois, algumas sem seu pai sequer saber, e viu que eu
consegui te arremessar como um saco de bosta, mesmo você tendo todo esse
tamanho. Mas deixa eu te dizer que eu não sou um super-homem ou o resultado de
alguma experiência científica bem-sucedida, eu já nasci assim e, no que diz
respeito a quem você conhece como Deus, bom... Eu sou a primeira criação Dele.
- Primeira...? Mas o que isso quer
dizer?
- Quero dizer que, antes Dele ter
criado os céus, a terra, os anjos e o que quer que seja, Ele criou a mim. Eu
sou o filho mais velho, o que comanda e treina Suas legiões e que alguns, querendo
me transformar em algo que seria um exemplo do que não deveria ser feito,
disseram ter sido expulso do céu, juntamente a uma legião de anjos, que se
tornariam o que existe de pior e cujo propósito seria a destruição da criação
de Deus. Pura balela usada pra se manter no cabresto gente que precisa de algum
conceito abstrato pra se consolar quando tudo está perdido pra eles e que, no
seu egoísmo e no seu desespero, não percebem que a espinha dorsal da crença que
conhecem por Cristianismo é sua própria maldade.
Quando Rafael pensa que já havia
ouvido tudo, percebe que ainda estava longe de se surpreender totalmente ou, ao
menos, se surpreender como agora. Seja como for, as palavras do homem só servem
para aumentar mais ainda sua curiosidade sobre ele.
- Você tá me dizendo que é o
diabo?
- “Diabo” é uma forma como os
mortais, mais precisamente a igreja, quiseram que eu fosse chamado. Uma espécie
de bicho papão para assustar as criancinhas. Acharam que era necessário que
houvesse um lado bom e um lado mau ou ao menos que as pessoas acreditassem que
existe um não para que deixassem de ser más, pois o desígnio humano é a
maldade, mas para que conseguissem reduzir essa malignidade inata a um nível o
mais baixo possível oferecendo, assim, uma troca: retidão de caráter por
salvação da alma. Mas a grande verdade é que não há pecado, salvação ou mesmo
inferno pra onde você vá depois de morto, mesmo porque, se eu sou o príncipe
deste mundo, onde mais seria o inferno, senão aqui?
- Então, você é Lúcifer?
- Outro nome que foi inventado,
tanto que é em latim e não em hebraico ou grego. Não que os outros não fossem,
afinal eu tinha que ser chamado de alguma coisa. Seja como for, você já leu a
Bíblia, ainda que sem o discernimento necessário e talvez sem todo
aprofundamento que deveria, mas com certeza notou que o nome “Lúcifer” não
aparece nela uma única vez. E, como se isso não bastasse, o que se chega mais
próximo de um anjo rebelde que teria sido expulso dos céus é uma parábola,
sobre um personagem que não é sequer descrito com precisão, ao passo que todos
os personagens que aparecem têm nome e estória própria. Então, se eu sou quem
dizem, por que somente eu não teria?
Uma garçonete se aproxima da mesa
e deixa os cafés e os pães de queijo. Rafael praticamente não nota a chegada da
mulher, interessado como está no assunto comentado pelo pai desconhecido.
- Você tá me contando umas coisas
que eu nunca soube antes, mas, tenho que admitir... Baseado em tudo que eu li,
faz sentido, sim... Mas eu não entendo bem como a coisa funciona.
- Logo você vai passar a entender
tudo. Um mortal teria maior dificuldade, pois estão apegados demais a essa
baboseira religiosa pra ver as coisas como elas são. E, por que não dizer, se
soubessem de toda a verdade, não conseguiriam aceita-la, já que a única coisa
que mantém seres humanos com a cabeça no lugar é o medo da punição ou a
esperança da redenção. Se soubessem que não existe mais nada além disso aqui e
que já estão no inferno, teriam que sair nas ruas de fuzil. Seja como for,
matariam uns aos outros, mesmo que estivessem de mãos nuas, pois isso, no seu
íntimo, é tudo que pensam em fazer.
- O inferno é aqui? É isso que
você tá dizendo?
- É apenas uma questão de pensar
pra que se veja que não pode ser de outra forma; tudo que é bom tem de ser
ensinado, enquanto o que seria considerado ruim segundo os códigos de ética
humanos, já nasce no instinto, como se sua própria natureza fosse a
autodestruição. Isso falando resumidamente e sem dividir por escalas que
evoluem de acordo com a idade, poder aquisitivo e quociente intelectual de cada
indivíduo ou grupo de indivíduos. Os exemplos seriam tantos que não teria como
falar de cada um deles. E não bastasse isso, os problemas criados por eles
mesmos são tamanhos que precisam se apegar a esperanças vãs de salvação por
saberem, no fundo, que seu pior inimigo são eles mesmos. E sua necessidade de
salvação é tamanha que seu grande conceito de bondade é sacrificarem alguém que
nada deve em nome de suas faltas, lavando com o sangue alheio aquilo que é
feito por eles.
- Tipo... O próprio sacrifício de
Jesus Cristo já seria uma forma de mostrar que a crença toda é baseada no
egoísmo e na busca da própria salvação e mais nada?
- Óbvio... Até porque o próprio
Jesus só pensava na própria salvação quando aceitou a crucificação, já que
sabia que seria castigado se desobedecesse nosso Pai. Mas o que são doze horas
de aflição pra, depois, passar a eternidade desfrutando de tudo que existe de
melhor no universo? Nada com um bom investimento... O que seria dele se não
tivesse aceitado? Se bobear, teria sido condenado a nascer aqui...
- E vocês se conhecem? Digo, você
já viu Jesus Cristo?
- Claro, diz o demônio, tomando um
gole de seu café. Ele saiu ganhando, óbvio, eu sempre tive que fazer o trabalho
sujo, mas também tenho meu lugar garantido lá em cima. É só lembrar de Jó, que
Ele me entregou o infeliz pra fazer o que eu quisesse com ele, só pra depois
dizer “tá vendo, trouxa, ele continua fiel a Mim, e eu fodi com a vida dele de
verde e amarelo entregando ele pra você”. Se fosse um amigo meu, eu ia ter
perdido a aposta e tido que pagar a cerveja, diz ele, rindo. O foda de ser o
mais velho é que Ele sempre me põe pra fazer o que tem de pior e ficar com fama
de ruim. Mas quem tá preocupado com o que os erros pensam...
- Erros?
- Humanos. Graças a eles pode-se
saber que Deus não é perfeito. Até porque Ele se arrependeu da criação e mijou
água em cima de todos num momento de raiva. E, depois disso, eles passaram a
acreditar que eu havia trocado o sacrifício de Cristo pela humanidade, como se,
caso eu fosse realmente o que pensam que eu sou, eu precisasse devolver algo
que já seria voluntariamente meu.
- E aqueles que vendem a alma pra
você? Satanistas? – Ele ri novamente.
- Não lembro de ter comprado
nada... Muitas vezes chegava o que eles queriam, mas, a grande verdade é que
não tem diferença entre quem vende a alma pro diabo e quem declara amor a Deus,
salvo o fato de que os cristãos se acham alguma coisa só pelo fato de
acreditarem que o Deus deles é quem vai ganhar no final. Tem que rir pra não
chorar, falam em humildade mas são a soberba em pessoa. E dizem que quem caiu
do céu por causa da soberba sou eu. Mas, no final, tudo é quase como na
política, em que o candidato perdedor ganha um ministério e paga a cerveja pro
vencedor. Exceto pelo fato de que, aqui, tá todo mundo em família.
- E todas as teorias sobre
apocalipse, fim do mundo e tudo o mais? Conversa fiada?
- O apocalipse acontece desde que
o mundo existe, mas um bando de idiotas adora fantasiar coisas sobre a minha
volta, sobre eu ser desacorrentado e fazer tudo que tem de pior nesse mundo.
Desacorrentado como, se eu sempre andei solto por aqui e fiz tudo o que queria,
além de ser o síndico de tudo isso? Esperança? Alguns têm, mas se esquecem que ela
caminha com o desespero e só é necessária quando ele já tomou conta de tudo. É
aí que entra o sacrifício na cruz, a esperança nada mais é que alguém pagando
por tudo o que aconteceu de ruim, suas dívidas sendo pagas por quem não deve
nada, por um laranja. O Cristianismo não é mais que o que mortais chamariam de
malandragem, só que santificada.
- E a minha mãe, como se
conheceram?
- Ah, ao longo da história eu me
envolvi com várias mortais. Sua família foi circunstancial, mas eu já vinha
observando os dois há muito tempo. Despertaram meu interesse e pareceu ser uma
boa farra. Então, por que não aproveitar a deixa? E agora, aí está você.
- É, aqui estou eu... E o que vai
ser de mim agora? O que eu vou fazer da vida, se já não me encaixo mais na
minha casa, depois de saber tudo o que sei e perceber que tudo que você me diz
é verdade?
- Esse assunto é pro nosso próximo
encontro... Por ora, você assimila o que eu te disse. Espero que tenha gostado
do café.
E, num piscar de olhos, Rafael
está, de repente, em frente à escola e em meio aos outros colegas, que não
notam sua súbita aparição. O diabo desapareceu, deixando evidente que, em
breve, os dois se encontrarão de novo.