Usina de Letras
Usina de Letras
274 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62073 )

Cartas ( 21333)

Contos (13257)

Cordel (10446)

Cronicas (22535)

Discursos (3237)

Ensaios - (10301)

Erótico (13562)

Frases (50480)

Humor (20016)

Infantil (5407)

Infanto Juvenil (4744)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140761)

Redação (3296)

Roteiro de Filme ou Novela (1062)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1958)

Textos Religiosos/Sermões (6163)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Roteiro_de_Filme_ou_Novela-->30. DOLORES -- 22/06/2002 - 06:33 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Assim que Fernando saiu para o Centro, Dolores quedara sozinha com os pensamentos embaralhados. Queria e não queria tomar decisão definitiva. Com o marido fazendo o que bem entendesse, mesmo sem a companhia perniciosa de Jeremias, as coisas não decorreriam de forma controlada.

Quando ia ele às corridas ou ao pôquer, arrumava motivos de sobejo para freqüentar as amigas. Sabia que, aos domingos ou em ocasiões festivas, iriam ambos à missa e às demais liturgias. Não era difícil de convencê-lo às festas. Nunca perderam uma só cerimônia de casamento, de batizado ou mesmo os enterros cuja notícia chegasse a tempo. Dolores tinha intensa vida social, sempre motivada por fatores religiosos. Até as atividades beneficentes podiam contar com sua participação e apoio financeiro. E lá ia Fernando a tiracolo, preso pela coleira da consciência.

Lembrava-se de tê-lo visto confessar-se com muita fé em que o perdão de Deus lhe estipulava razões para o arrependimento. Nesses tempos, ficava mais em casa e permitia as reuniões, recepções e rodadas de carteado. Era gostoso brilhar perante as amigas.

Essa guinada para outra religião (tinha visões, sabia nomes de gente desconhecida, movia objetos a distância — obras do diabo, isso sim!) estava indicando para vida recatada, diferente.

Lembrava-se de Maria, dos filhos, do trabalho que sempre deram, da sadia ocupação de mãe. Dolores fora infrutífera. Nem adotar nunca lhe passara seriamente pela cabeça, sempre com a esperança de engravidar. Chegada a menopausa, foram-se as esperanças. Com a idade, a adoção lhe daria apenas o título de avó. O afilhado estava homem feito.

Será que Timóteo teria alguma sugestão? O sacerdote estivera tão distante o tempo todo, durante o enterro. Falara ao pé do ouvido da viúva. Palavras de consolação, de conforto, por certo. Não se preocuparia com aquela ovelha marruá que se desgarrava.

Ligou para a casa paroquial. Timóteo não estava. Teria ido para a casa de Maria? Era bem possível, já que toda a família se encontrava.

— Alô, residência de Dona Maria? Ela está? Em reunião? Eu ligo mais tarde. É a amiga Dolores.

— As empregadas estão cada vez mais burras. Isso é maneira de atender ao telefone?

Volveu a pensar no marido. Que estaria fazendo? Não conseguia imaginar. Tinha idéias de batuques. De danças desenfreadas. De negras volteando as grandes saias brancas rodadas.

Resolveu ligar a televisão. Horário das novelas. Não tinha paciência com os delíquios das mulheres sem sangue, sem força. Surpreendeu-se com a primeira cena, em que a personagem feminina despede o amante com três palavras fortes e dois tapas. Sem emoções. O coitado é que não suportava a pressão sentimental e chorava.

E se deixasse Fernando? O pensamento cresceu-lhe na mente. Repassou todos os momentos de felicidade que viveram juntos. Foram realmente muito poucos. Compenetrou-se de que perderam a vida juntos. Caso se separassem, não poderiam divorciar-se. “O que Deus uniu o homem não separa.” Recordou-se do casamento. Do noivado. Do namoro. Do primeiro encontro. A felicidade perdida comoveu-a. Começou a chorar por uma união que não se estabelecera totalmente.

Lembrou-se daquele sonho terrível. Estivera em companhia dos filhos. Que filhos? Seriam os de Maria? Seu pai estava ali retratado como quem não quer nada com a vida. A mãe chorava, de costas.

Volveu a memória para as sessões com o analista. Não dizia nada de importante. Nem ele lhe perguntava. Tempo perdido. Dissera que não se dera bem na noite de núpcias. Dissera que era frígida. Escondera que se masturbava. Escondera também outras coisas...

Refugiou-se no confessionário. Ali, sim, contara tudo. Sempre. E fora compreendida e perdoada. Desde o tempo da primeira comunhão. Recebera penitência desproporcional, pelos pecados. Três terços. Agora não tinha muita noção do que dissera de tão grave. Lembrava-se de que dissera que mexia entre as pernas. Seria tão grave? Com o tempo, foi percebendo que isso não podia ser pecado. Quando confessou pela primeira vez com Timóteo, jovenzinha ainda, por iniciativa dele, teve de narrar o que fazia na intimidade. Dissera-lhe que comungara muitas vezes sem ter delatado ao confessor tais atividades. Timóteo foi condescendente. Não a repreendeu. Pediu-lhe que não deixasse de contar nas próximas vezes, para poder receber o perdão. Sempre estivera curiosa para saber por que não lhe pedira para se arrepender. Nem lhe proibira de repetir. Isso se comprovou nas confissões seguintes. Sempre três ave-marias e um padre-nosso. Invariavelmente. Mais dois terços pelas almas do Purgatório.

De repente, recordou-se de algo muito antigo. De uma discussão entre os pais. Ela fora a causa. Será que o sonho é que lhe despertara a memória? Lembrava-se de que sofrera muito naquele dia. Que apanhara da mãe. Era muito nova. Quatro ou cinco anos. O pai (que Deus o tenha!) a havia tirado das mãos dela. E ficou sentado na cozinha, indiferente às recriminações da mulher.

Insistentemente, vinha-lhe à lembrança a noite de núpcias. A agressão que sofrera. A dolorida penetração daquele homem insensível. Como a penetração...

Havia forte bloqueio emocional. Que recordação poderia haver mais dolorosa? Copioso pranto, insopitável, corria-lhe pelas faces. Seu problema era mais antigo. Fora o pai... Ou teria sido outra pessoa? Não poderia acusá-lo, se não tinha clara recordação dos fatos.

De que desconfiaria Fernando, mandando-a voltar ao psicanalista? Intrigara-lhe a observação. Pensara, de início, que estava menosprezando o confessionário. Que agredia o padre. Agora despertava: poderia estar evidente a sugestão da necessidade da regressão à infância. Não. Fernando não poderia saber de nada.

Pensou no marido como alguém muito distante. Manipulara-o a vida toda. Era trabalhador, honesto e esforçado. Jeremias que o arrastara àquela vida boêmia. Mas isso esvaziara o relacionamento conjugal. Também, não lhe dera filhos. Nem com inseminação artificial. A Igreja não permitira. Nem tivera coragem de adotar ninguém. Agora estava muito velha. Avó.

Nesse ponto das cogitações, chegou Fernando.

No quarto, resolveu testar o interesse do marido. Os olhos congestionados e a face murcha dariam o clima da emoção. Estudou o que diria. Não poderia ofendê-lo. E se não a impedisse de ir? Iria passar a noite com a irmã. Morava sozinha. Teria satisfação em lhe dar agasalho. Era outra que detestava os homens.

Quando bateu a porta da garagem, tinha a certeza de que não seria obstada. Sua luta não terminaria tão cedo.

Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui