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Artigos-->ESPIRITISMO EM TEMPOS DE INTERNET -- 03/03/2005 - 04:44 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
WLADIMIR OLIVIER



























ESPIRITISMO

EM TEMPOS DE INTERNET

























Grupo dos Felizes Folgazões



Professor Honório











































ÍNDICE





Jogando a rede ......................................

1. A visão desejada ....................................

2. O segundo pecado ....................................

3. Elpídio .............................................

4. O anel ..............................................

5. O cego ..............................................

6. O homem sem memória .................................

7. O homem sem imaginação ..............................

8. Folguedos adultos ...................................

9. Ouvindo perfeitamente ...............................

10. Desconfiança sanada .................................

11. A morte do médium ...................................

12. O aviador ...........................................

13. O cativeiro .........................................

14. A serpente encantada ................................









JOGANDO A REDE



Não tínhamos intenção de trazer tão cedo os recados que vimos preparando durante as aulas, nesta Escolinha de Evangelização. Intimados, porém, por nosso querido Professor Honório, que nos denominou de Grupo dos Felizes Folgazões, vimo-nos perante simpática e irrecusável oportunidade de progredir nos mistérios da arte de escrever.

É com muita alegria, portanto, que nos apresentamos, desejosos de orientar nossa tendência principal, descrita habilmente na nomenclatura que nos foi atribuída, no sentido de tornar as manifestações sumamente agradáveis e profundamente proveitosas.

Está claro que o faremos através de textos bastante lúdicos, no campo narrativo, esperando pela compreensão do médium e dos leitores, já que nem sempre iremos definir com precisão e clareza os pontos doutrinários, senão que os deixaremos submersos nos acontecimentos em que se envolverão as personagens.

Oramos ao Pai, para que nos socorram os espíritos que exerceram o sagrado mister de escritores. Assim seja!







1. A VISÃO DESEJADA



Largos anos de espiritismo deram a Edmundo o conhecimento dos fenômenos e a explicação deles. Mas ele mesmo não transcendia os limites da matéria, invejando os médiuns que afirmavam ver este ou aquele ser iluminado ou resplandecente, cheios todos de felicidade.

No íntimo, Edmundo sabia que exigir dos amigos da espiritualidade poderia ser contraproducente, porque a visão acabaria frustrando-o, dado ser bem capaz de suceder que se deparasse diante de algum fantasma abominável das profundezas das trevas, como tantas vezes lera nas obras psicografadas.

Contudo, sempre lhe ficavam as esperanças da abertura de um desvão existencial para a esfera das entidades superiores, chamamento irrecusável do protetor Augusto, cujas palavras de conforto e de orientação jamais lhe foram negadas, durante as alegres sessões de estudos, nas oportunidades abertas ao contato com os guias pessoais e da casa.

Na manhã daquele dia, Edmundo levantou-se alegre e bem-disposto, cheio de esperança de obter sucesso em todos os empreendimentos materiais e espirituais: algo lhe dava a certeza de que todos os objetivos de vida estavam prestes a serem realizados.

No trabalho, em sua querida oficina de alfaiate, registrou mais três encomendas, todas para a cerimônia religiosa da mesma festa de casamento. Não se sentia constrangido por suas roupas desfilarem em templo bastante diferente do que freqüentava. Julgava-se importante profissional, bem conceituado na cidade, sempre pronto para o corte fácil, a costura ligeira, o acabamento perfeito.

Cantarolava como de hábito, quando percebeu que mui gentil cavalheiro o observava, curioso e atento, enquanto escolhia os aviamentos de que necessitava para a próxima peça. Reparou no fino corte do antigo fraque em que se metia o visitante, surpreendendo-se com que alguém pudesse assomar-lhe à porta em trajo tão digno e formal.

— Perdão, senhor, em que posso ajudá-lo?

— Venho eu em seu auxílio.

— Por Deus, como um pobre alfaiate reúne merecimento para abalar tão ilustre criatura?

— Todos somos filhos de Deus.

— É verdade. Também é verdade que o corte de seu trajo é soberbo. No entanto, levo vida estável e alegre, na companhia da cara esposa, dos filhos e dos amigos. Que me falta com que não atino?

— Falta-lhe ver a realidade espiritual, conforme tem constantemente solicitado a seu protetor Augusto, aliás, este amigo que lhe fala.

Edmundo sentiu faltar-lhe o chão. Sentou-se meio aturdido. Não acreditava que estivesse perante um espírito desencarnado tão cheio de saúde, cor e encanto. Mesmo assim, arriscou uma observação:

— Este servidor espírita demoveu, afinal, uma entidade de grande poder e sabedoria. De que me servirá, contudo, a sua presença em meu atelier de trabalho, se não existe mais ninguém que possa comprovar o fenômeno da aparição nem tenho história que se ilustre com feito tão extraordinário?

— Era para o amigo ufanar-se que desejava observar a presença do campo energético espiritual? Ou, coisa pior, era para obter a certeza da vida após a morte tal como descrita nos códices espíritas? Não precisa inventar ardilosamente nenhuma desculpa, como a de que as minhas perguntas são cediças, uma vez que, na qualidade de protetor seu, tenho por obrigação conhecer suas verdadeiras intenções.

Edmundo não esperava ser acuado de forma tão categórica. Realmente se atrapalhou e buscava explicar a colocação tão bem rechaçada pelos tremendos argumentos do Augusto, quando este prosseguiu:

— Suas atividades mediúnicas não nos deixam dúvida quanto à sua poderosa crença na teoria doutrinária, como ainda nos informam que os fenômenos psíquicos a que dá vazão, como os que acompanha nas sessões no centro, lhe parecem sinceros e naturais. Isto nos dá a certeza de que você se sente diminuído perante os colegas videntes, invejoso mesmo, muito embora venha lutando para desfazer essa pequena nódoa moral, através do sacrifício de várias noites e dos finais de semana.

Eram tão penetrantes as observações do mentor que passou pela mente de Edmundo que o melhor para ele era manter-se calado, alertando-se a tempo de que tais pensamentos ou intuições bem poderiam estar sendo inspirados pelo espírito ali presente. Com certeza, caso assim não fosse, o preceptor estaria lendo em sua alma todas as sutis emanações das mais íntimas ações mentais.

Desejou, então, obter uma resposta direta, pensando objetivamente na questão que intuíra:

“Prezado mentor, faça-me entender que a nossa conversa pode ser de mente a mente, deixando de externar os seus raciocínios por via oral.”

De imediato, sentiu as vibrações do interlocutor, como se fosse o próprio cérebro a desenvolver idéias, sem se haver detido nelas:

“Para mim é o mesmo. Aliás, poderia dizer que para você também, já que estamos falando através dos fluidos da espiritualidade, como se você estivesse tão desencarnado quanto eu.”

Edmundo fez questão de apalpar-se para sentir as impressões de seu corpo material: temeu que houvesse morrido. Tendo sido capaz de perceber pelo tato que estava dentro de seu aparato físico, buscou o clássico indício da luminosidade sobrenatural que indicaria que seu espírito, estando preso ao corpo, mantinha-se apartado dele.

Augusto imprimiu à feição certo trejeito de descontentamento e pronunciou audivelmente as palavras:

— Não encare a minha presença como o anúncio de sua morte. Naquela hora, muito provavelmente, haverá uma transição bem mais contundente do que estas ondas intelectuais que estou emitindo. Você sentirá medo, ao menos quanto ao destino imediato de sua alma, caso supere as emoções inerentes a todo homem que abandona as vestes carnais. Quanto a eu responder-lhe às perguntas da hora, vai acabar ficando deveras aborrecido, já que você está deixando-se tomar pela curiosidade, quando todos os conhecimentos desta espécie já lhe foram ministrados durante a vida junto aos companheiros espíritas. Exponha a sua preocupação mais profunda, fazendo-o com as expressões que lhe traduzirão lingüisticamente as idéias. Transforme a sua intuição em reflexão.

— Prezado protetor, diga-me se você tem recebido reprimendas de seu anjo guardião. Em caso positivo, dê um exemplo, ao menos. Pergunto isso porque, dentro das teses doutrinárias, se encontra a orientação geral de que não são espíritos perfeitos, que muitos chamam de espíritos de luz, que comparecem junto aos encarnados para as tarefas socorristas.

— Preclaro pupilo, agora você está tomando rumo bem mais inteligente e proveitoso. Está claro para você que não sou o modelo a ser seguido?

— Não, não está claro, uma vez que não tenho suficiente discernimento para reconhecer qualquer deslize de sua parte. Falei o que disse por me ver coagido a transformar o sentimento em ação intelectual.

— Antes de atendê-lo, esclareça-me mais um ponto: esta forma de exprimir seus pensamentos é aquela de que você lança mão habitualmente?

Edmundo não respondeu de pronto. Refez as frases conforme sua memória desenrolava todas as lembranças desde que começaram a conversar, admirando-se de que tudo estava bem nítido. Pensou, num átimo de segundo, que a causa dessa forma mais elaborada poderia repousar em experiências de vidas passadas, imaginou que seu magnetismo se expandia com força suficiente para que o amigo lhe decifrasse os pensamentos e retorquiu laconicamente:

— Não.

— Então, vou pô-lo a par das falhas de meu caráter e de minha formação espiritual. Acrescentarei três exemplos sugestivos. Entretanto, devo avisá-lo de que você, primeiro, não irá compreender nada do que lhe disser e, segundo, irá esquecer tudo tão logo eu termine de falar.

Edmundo segurou o impulso de dizer que, dessa forma, seria melhor que nada contasse e se pôs muito atento.







2. O SEGUNDO PECADO



Sabe-se que o primeiro pecado foi a desobediência; o que se desconhece é que o segundo pecado foi a arrogância. Ou o contrário, que a ordem dos fatores não influenciou no resultado.

Aplicamo-nos aos estudos gerais da doutrina espírita, mesmo na erraticidade, porque pretendemos eliminar o segundo pecado. Como não temos a certeza de qual seja, vamos estabelecendo uma ordem de defeitos intelectuais e de falhas morais, sempre buscando o aperfeiçoamento das qualidades que nos parecem titubeantes.

Quer dizer que o primeiro pecado vai sendo deixado para trás? Em absoluto, sempre vamos colocando os vícios mais recentemente descobertos como os primeiros, de forma que aquele que lá se consignava passa a segundo plano e logo se torna o foco do interesse.

É como neste desenvolvimento: as virtudes vão justificando-se, idéia a idéia, conforme dispomos as frases no papel. Logo verificamos que causamos maior estranheza (inclusive a nós mesmos — ou principalmente a nós mesmos) e priorizamos a novidade, buscando examinar com atenção o que acima registramos, numa tentativa lógica de suprimir as falsas interpretações.

Não ficou claro, evidentemente. Então, que tal contarmos um caso verídico ocorrido com um dos colegas de grupo?



José jamais considerou perigoso desafiar as forças do mal. Dizia serem balelas dos espíritas as influências dos infelizes habitantes das trevas sobre os encarnados. Já que não havia inferno nem demônios, que poder poderiam possuir os que vagavam pela erraticidade levados pelo desforço da vingança ou pela atitude de rebeldia contra o Criador?

Perguntava e respondia de forma a consignar a mais completa possibilidade de sempre ser defendido pelos guias e protetores, já que se manifestava favorável à benemerência, nunca se esquecendo de contribuir com tempo, trabalho e dinheiro para o alívio das penas dos miseráveis.

Um belo dia...

Sempre haverá um dia em que a verdade se apresentará de forma irretorquível.

José não pretendia sair de casa, havendo já vestido o pijama e tomado uma boa dose de vodca. Dizia ele que a bebida servia para relaxar das ânsias geradas pelas turbulências sociais do emprego, da rua e do noticiário.

Aí toca o telefone:

— Zé, venha já para cá que seu irmão está passando mal.

— Santo Deus! Que foi que aconteceu?

— Um ataque do coração.

Não atinava o pobre com a melhor solução. A cunhada, coitada, não tinha a faculdade apropriada para resolver os problemas relativos à assistência médica de urgência.

Quando percebeu que estava perante premente necessidade de agir sem hesitação e com total clareza, viu-se com a mente enevoada pelos eflúvios alcoólicos.

“Vou ligar para um hospital pedindo uma ambulância.”

Atrapalhou-se com o livro de endereços e terminou ligando para o telefone da delegacia, solicitando socorro para o irmão, passando o endereço que por pouco ficava sem se lembrar.

Desligou e correu para a garagem, meio trôpego.

Algo lhe disse no fundo da consciência que seria temeroso dirigir naquela circunstância.

Voltou para dentro, buscou o banheiro, levantou a tampa da privada, enfiou dois dedos na garganta e forçou o vômito. Queria desfazer-se do que restava do álcool que tinha no estômago. Não conseguiu senão colocar para fora uma porção de saliva, arranhando a garganta, percebendo que estava ficando rouco.

Nesse ponto, lembrou-se de que poderia valer-se dos espíritos que se diziam seus protetores e orou com bastante fé, rogando pela ajuda deles.

Como por encanto, desanuviou-se-lhe a cabeça, terminando a tontura que o punha desarvorado. Desejou inteirar-se da situação do irmão e ligou para a casa dele. Foi o próprio quem o atendeu:

— Pronto!

— Quem fala?

— Arnaldo.

— É o Zé. Você não estava...

— Tive uns tremores mas já passaram.

— Não foram aí uns policiais...

— Chegou uma ambulância. Foi você que mandou?

— Eu só liguei para a polícia.

— Não entendi.

— Mas a Maria me disse que você tinha sofrido um ataque do coração...

— O médico que me consultou disse que eu estava bem.

— Agora quem não entendeu fui eu...

— Quando você ligou, eu estava me preparando para ligar para você, se é isso que o está preocupando.

— Isto está parecendo conversa de surdos.

— Zé, vou colocar as coisas no lugar...

— Não precisa. Eu acho que resolvi o meu problema.

— Como assim?

— Quando a gente se encontrar, conto-lhe tudo. Tchau!

Não deu tempo para o Arnaldo responder: José já havia desligado.



No dia seguinte, consultava os guias de plantão na reunião mediúnica, fazendo-o em voz clara e precisa:

— Quero saber o que, na verdade, se passou comigo ontem à noite. Desconfio de que recebi uma lição prática, quer dizer, algo me diz que não devo confiar...

Foi interrompido pelo médium que recebia a incorporação espiritual:

— Se você aprendeu alguma lição, não fomos nós que lhe demos. Nós apenas nos achamos afastados de seu círculo magnético, para o qual você atraiu seres de vibrações mais densas, cujo intento era o de prejudicá-lo. Poderíamos, sim, empregar a nossa força moral para debandá-los, no entanto, preferimos ver até onde as coisas iam. Só interferimos quando você ameaçava correr o risco de dirigir embriagado. Mais lúcido, você rogou pela nossa ajuda e lhe prestamos um bom serviço, qual seja, o de eterizar os eflúvios alcoólicos, pondo-o em condições de raciocinar.

E mais não disseram nem lhes foi perguntado.







3. ELPÍDIO



Navegava pela Internet o nosso amigo, em busca de encontrar com quem falar. Não tinha pensamento fixo em determinados assuntos. O que viesse podia contentá-lo satisfatoriamente, porque o objetivo era mesmo o de não permanecer em tratativas com o próprio espírito.

Achou um site promissor, quando penetrou na área dos temas religiosos. Iria, talvez, precisar perdoar a petulância de alguém que se dissesse dono da verdade, entretanto, com certeza, evitaria a “chateação” de ter de aturar a ignorância lingüística dos jovens que pululam nos chats destinados aos namoricos sem compromisso.

Não demorou para ser recepcionado por um interlocutor:

Rogério: Bem-vindo, companheiro. É sua primeira vez no sítio?

Elpídio: É.

Quando ia digitar uma pergunta a respeito da seriedade da conversa que se estabeleceria, recebeu outra comunicação:

Rogério: Quer ter tempo para responder ou posso ir desenvolvendo os meus pontos de vista?

Dessa feita, teve tempo para redigir:

Elpídio: É. Sim. Posso saber com quem estou conversando?

Rogério: Contente-se com a autenticidade de minhas informações e com a integridade de meu caráter.

Elpídio: O que eu queria saber, mesmo, é se você se rotula religioso e se pertence a alguma fé.

Rogério: Sobre qualquer coisa que conversarmos, o meu pensamento lhe dará claros indícios do que acredito e do que deixo de acreditar. Quer falar a respeito da existência de Deus?

Elpídio: Falo sobre o que você estiver interessado.

Rogério: Você acredita que Deus existe?

Elpídio: Naturalmente, pois sou espírita.

Rogério: Pois eu não acho importante a existência de Deus.

Elpídio: Nem como Criador do Universo?

Rogério: Que diferença faz se existe ou não quem tenha criado o universo?

Elpídio: Faz toda a diferença, porque determina o procedimento das pessoas. Uma pessoa que não crê em Deus age segundo os próprios instintos e pode causar imensos prejuízos à humanidade.

Rogério: Cite um só dos principais causadores de prejuízos que tenha sido declaradamente materialista.

Elpídio: Todos os chefes do comunismo soviético, por exemplo.

Rogério: Agora diga só um que se tenha designado crente.

Elpídio: Aonde você quer chegar?

Rogério: Quero reafirmar que, indiferentemente à crença em Deus, as pessoas praticam ou deixam de praticar o bem. Mais ainda: asseguro-lhe que a existência de Deus não interferiu jamais na consecução dos crimes.

Elpídio: Aposto que você não vai me pedir nenhum exemplo disso, porque, uma vez que o crime não foi cometido, não há como, historicamente, achar algum documento, a não ser nos anais das instituições secretas.

Rogério: Não puxe um novo assunto. Pessoas de nossas relações poderão oferecer preciosos exemplos de contenção dos instintos bárbaros. Meu pai, por exemplo, por mais que tenha sido um homem maligno, gerou esta criatura que lhe fala. Não é um bom exemplo de ação cujo resultado seja o mais previsível possível mas cujos corolários são impossíveis de determinar?

Elpídio hesitou em responder. Não estava muito interessado no exame dialético que se seguiria. Contudo, não suportou a excessiva demonstração de orgulho do oponente. Respondeu:

Elpídio: Fico satisfeito em saber que você se tem em alta consideração.

Rogério: Sua ironia aponta para uma postura intelectual superior. Isso me ofende. Parece-me que você não me entendeu. Vou explicar: o exemplo que dei de meu pai pode ser trocado pelo de seu próprio pai. Foi apenas uma observação sem parti pris. Você se diz espírita. Responda, então: que importância tem para os espíritos que Deus exista? Não continuarão eles a sua vidinha no etéreo do mesmo jeito?

Elpídio se perdeu em lucubrações. Diante da tela, as derradeiras palavras do desconhecido. Finalmente, por influência da palavra pai, resolveu dar um golpe de mestre, a ver, pensava, até onde o camarada ali poderia enrolar-se nos próprios conceitos. Bem devagar, corrigindo as falhas vocabulares, sem deixar passar nenhum erro datilográfico ou gramatical, redigiu:

Elpídio: Por falar em pai, como Jesus se referia a Deus através dessa palavra respeitosa, lembrei-me de perguntar-lhe se o Nazareno estava errado ao considerar o Criador sempre presente, a ponto de ofertar aos contemporâneos a lição da prece dominical, prece que herdamos transcrita nos Evangelhos.

Não demorou para ver-se perante a resposta à sua indagação:

Rogério: Sabendo que você é espírita, tenho de admitir a sua crença em que Jesus seja o modelo de perfeição para os homens, segundo se registra nas obras de Kardec. Por isso mesmo, não passa ele de um ser humano de carne e osso, como nós, embora de inteligência e sensibilidade extraordinárias. Mas eu não tenho como dizer que Jesus estivesse errado, uma vez que tratava com pessoas menos evoluídas, conforme Kardec repete constantemente, da mesma forma que os espíritos superiores da chamada Terceira Revelação nos demonstram que estamos num planeta de provações e expiação, ou de regeneração, como querem alguns. Ora, falando a seres cuja compreensão era muito limitada, utilizava de parábolas, ou seja, de palavras simples e exemplificativas, ministrando em separado aos apóstolos lições mais aprofundadas. Isto tudo se admitirmos que as Novas Escrituras constituam a reprodução fiel da verdade histórica. Assim sendo, não poderia estimular a descrença, porque o materialismo dialético ainda não existia. Preferiu ele melhorar a qualidade moral dos contemporâneos, explicando que, perante a força criadora do ser supremo, era preciso postar-se com humildade, orando em secreto. Terei respondido à sua questão?

Elpídio: Sendo Jesus o modelo para os homens, como você mesmo está dizendo, ele nos ensinou a louvar o Senhor e a pedir-lhe as graças de que estamos necessitados. Assim sendo, quem somos nós para nos definirmos perante a Divindade como criaturas ignorantes e mal agradecidas?

Rogério: Vejo que você se agastou comigo. Então, para encerrar, vou dizer-lhe que Kardec foi quem acrescentou às qualidades superiores das preces o agradecimento a que você se refere, modificando, de certa forma, a colocação de Jesus, que mandava louvar e rogar, como você mesmo lembrou. Quem foi Kardec para tanto atrevimento? Apenas um ser humano em busca da verdade, como todos nós devemos ser. Se você quiser disputar comigo por causa de uma simples observação, não estarei ao seu dispor, porque você está orientado para acatar uma diretriz definida de pensamento religioso, enquanto eu estou apenas especulando filosoficamente. Sem nenhum ressentimento, passar bem!

Elpídio desejou acrescentar algumas observações mas entendeu que o interlocutor não só possuía muita leitura, como ainda era capaz de argutas considerações, concluindo com seus botões:

“Preciso agradecer aos espíritos amigos a inspiração deste site: agora vou poder apreciar de novo as obras que tenho deixado esquecidas na estante. E vou poder renovar as experiências intelectuais que o trato diário com os irmãozinhos carentes do centro espírita tem sufocado nas cinzas de suas necessidades.”







4. O ANEL



Lino era matreiro como quê. Vivido, não apresentava outra falha no caráter, se é que a matreirice possa assim considerar-se. Por isso mesmo, causava inveja através das proezas cujas descrições tornavam seus feitos admiráveis. No entanto, ninguém, ao ser-lhe apresentado, mantinha a prevenção. Ao contrário, até para quem os relatos provocavam boas reações, ele se impunha pessoalmente como mui superior a qualquer enaltecimento fantasioso.

O caso do anel provavelmente irá descrever-lhe a personalidade na inteira grandeza de sua envergadura moral.



Freqüentava Lino as sessões públicas do centro espírita que distava duas quadras de sua casa. Ouvia atentamente as palestras e orava intimamente para que os horrores das trevas não se reservassem para si, sem se empenhar, contudo, em participar das atividades do grupo. Assimilava as lições mas não as punha em prática, a não ser materialmente, pois reservava dez por cento de todos os ganhos para os cofres da entidade.

Não fazia alarde das doações, solicitando que fossem sigilosas, sendo anotadas como de anônimos. Também não eram muito significativas, mero professor secundário aposentado no serviço público. Enquanto era viva a esposa, não dava nada, porque os três filhos do casal exigiam naturalmente uma educação esmerada, tanto que se graduaram na universidade. Viúvo, desfez-se das alianças, mandou fundi-las, e recebeu em troca um modesto anel em que se representava um coração, anel que levava no dedo magro da mão esquerda, no mesmo anular em que trouxera a aliança.

Regressava ele, certa noite, do centro espírita, quando, dentro da escuridão da rua deserta, gritaram:

— “Seu” Lino, passe a carteira, o relógio e as jóias.

Enquanto punha para fora do bolso os poucos trocados que portava, fazia funcionar a memória para reconhecer aquela voz dentre seus inumeráveis alunos. Levantou o braço esquerdo, puxando o agasalho de lã para baixo, para demonstrar que não tinha relógio.

Foi quando lhe agarraram a mão erguida com forte repelão, ficando com ela presa na mão pesada do assaltante.

“É o Honorato, com certeza”, pensou, hesitando em revelar ao bandido que sabia quem era ele.

— Se eu não conseguir tirar este anel, corto o dedo fora.

— Você não pode fazer isso, meu filho, porque, como já lhe ensinei um dia, a expressão popular reza que os dedos devem ficar e os anéis é que se vão. Desse jeito, você vai mudar o ditado para: Vão-se os anéis e também os dedos. Assim não vale!

Dava às frases as mesmas entonações das aulas, aspirando promover no outro uma reação de simpatia e comiseração.

— Cala a boca, professor, senão o senhor não vai perder somente o dedo.

De fato, o anel passou para a mão calosa do bandido, que liberou o braço. Tendo intuído que o homem fosse um trabalhador desesperado, Lino arriscou:

— Eu acho que essas mãos estão acostumadas a erguer paredes e a calçar o chão. Não são as mãos de um assassino.

— Você está falando demais. Tire o paletó.

Lino atendeu e logo o jaquetão estava sendo examinado pelos olhos que reluziam dentro da máscara que surgiu iluminada pelo facho de luz de uma lanterna.

Atreveu-se a vítima mais uma vez:

— Esse anel que você tirou de mim vai ser vendido para comprar leite para o seu filho doente? Não precisa responder: cheguei a isso porque estou achando que ele não vai servir no seu dedo.

— Tire as calças.

Rapidamente Lino abriu a fivela, desceu o zíper e passou pelos pés os canos da calça, apertando-os de encontro aos sapatos. Em seguida observou:

— Honorato, pelo amor de Deus, deixe-me ajudá-lo para o seu bem e de sua família.

— Você acaba de lavrar a sua sentença de morte.

— Quem aprendeu a utilizar tão corretamente as palavras não pode desperdiçar a vida praticando crimes.

Não obtendo resposta, Lino prosseguiu:

— Vamos fazer o seguinte: eu lhe dou de presente o anel. Ele já é seu. E também todo o pouco de dinheiro da carteira. Agora você me devolve as calças e o paletó e eu lhe faço um cheque, como se fosse um negócio de compra e venda.

Rapidamente, o professor preencheu o cheque e, passando-o ao facínora, completou:

— Amanhã, você vai cedo buscar o dinheiro no banco. Eu lhe prometo que não vou sustar o cheque nem vou avisar a polícia. Mas você vai ter de me fazer um favor: vai entregar o anel, que agora já é meu, à sua mulher, para ela ir devolver-me lá no centro espírita. Talvez eu lhe arrume emprego ou um serviço e a ela condições de se alimentar e de se vestir, porque nós temos um departamento de assistência social. Vá com Deus!

Desalentado, o pobre assaltante retirou a máscara, evidenciando que não era o Honorato. Ainda teve força moral para um breve “até logo” e um sofrido “muito obrigado”.

Lino fez questão de dar-lhe um aperto de mão e um derradeiro aviso:

— Você não sabe o bem que praticou ao mostrar sua identidade, bem para você mesmo e para o Honorato.



A esposa do fracassado bandido, depois de uma semana, já entrosada com a turma do centro, foi quem deu a conhecer a todos a história do anel, claro, com alguns acréscimos vigorosos que amorteciam a culpa do marido e elevavam a obra do benfeitor.







5. O CEGO



Laurindo nasceu cego. Naturalmente, filho de família rica, teve os melhores especialistas a observar-lhe os órgãos da visão, todos unanimemente declarando que nada pôde ser constatado que justificasse a trágica condição.

— Defeito congênito, arriscou um deles, cuja causa deve repousar nos cromossomas, no que respeita ao jogo de correspondências entre os fatores paternos e maternos. Quero crer que, em havendo maior contato entre os neurônios no cérebro, o que só o crescimento da criança irá determinar, possa dar-se reação orgânica capaz de permitir-lhe enxergar.

Tal vaticínio não se realizou mas se constituiu para os pais num ponto de extremada fé. No decorrer de toda a infância de Laurindo, repetiram eles, cada qual a seu modo, as expressões do médico, que se transformaram em ansiedade, em angustiosa espera e, finalmente, em desalentada aferição da impossibilidade de cura.

Mas Laurindo era muito bem dotado de inteligência e melhor ainda de memória, de sorte que os esforços dos preceptores em fazê-lo entender as ciências e as artes se coroaram de êxito.

Aos vinte e um anos, formava-se o rapaz na Faculdade de Direito, laureando-se com louvor.

Não demorou para que surgissem empecilhos para o exercício da advocacia, precisando contar com o poder econômico paterno para abrir escritório próprio, ainda assim em sociedade com três colegas de turma, todos brilhantes em seus resultados acadêmicos.

Mercê de seu notável pendor intelectual, trazia Laurindo embutidas na memória todas as leis e decretos, cuja leitura lhe vinha sendo feita por secretária paga especialmente para isso. Mercedes era uma jovem recentemente aprovada no concurso de habilitação da mesma faculdade.

Eis que o inevitável acontece. Dadas as largas horas empregadas diariamente na forçada convivência, logo se afeiçoou o rapaz pela mocinha, que se via cortejada pelos quatro latagões togados.

Era de esperar-se que Mercedes cedesse ao assédio de um deles, no entanto, esquivava-se de todos, não aceitando convite algum para passeios, festas ou reuniões de estudo e de trabalho, nem mesmo deixando-se acompanhar após o expediente, quando voltava a casa.

Laurindo é que não tomou conhecimento jamais de nenhum galanteio dos colegas, que, finórios, nada diziam ao alcance da audição do cego, limitando-se aos trejeitos sugestivos e aos bilhetes sentimentais.

Dois anos se passaram nesse labirinto de perseguições infrutíferas, até que a moça, argumentando que necessitava dedicar-se mais aos estudos, que se tornaram bem mais sérios no quinto semestre letivo, deixou o escritório, visitado nos últimos tempos pelas noivas e namoradas dos três videntes.

Foi um choque para Laurindo a perda da companhia diária. Tinha tanta certeza de que seu interesse estava sendo correspondido que, ingenuamente, ia deixando o tempo passar sem declarações de amor, adiando para um futuro mais distante a proposta de consórcio comercial e matrimonial.

Três meses depois, caiu doente, debilitado pela falta de apetite que o fazia deixar a comida no prato, por mais que insistissem os pais. Foi preciso consultar um médico, cujas receitas tiveram o condão de restabelecer-lhe, ao menos, o vigor físico, já que o moral permaneceu baixíssimo. Trabalhava com muito pouco entusiasmo.

Os parceiros logo desconfiaram da verdade e correram com o substituto de Mercedes, um rapaz meio efeminado que não tinha outra aspiração na vida senão a de se tornar imprescindível para o patrão.

Os três combinaram reaproximar os dois, oferecendo o escritório para Mercedes cumprir estágio, remunerando-a com salário fixo mais comissões, nos casos em que atuasse.

Era oferta tentadora, bem melhor que as que os colegas de turma não cansavam de elogiar. Entretanto, Mercedes pôs a pulga atrás da orelha, desconfiando muitíssimo das intenções dos bacharéis. Por isso, estipulou uma condição:

— Não quero receber ordens do Dr. Laurindo, porque ultimamente ele não vinha mais assimilando as leituras, preocupado em saber se eu estava bem, como ia na faculdade, se estava namorando e coisas assim.

Antes que lhe perguntassem por que não admitia os bons sentimentos do cego, ela adiantou:

— Estou noiva, ou quase, faltando apenas pôr a aliança no dedo. E meu namorado ficou muito enciumado com a intimidade que exigia a função de leitora. Por outro lado, como a cegueira de nascença é prova de deficiência genética, não vou arriscar-me a ter filhos cegos.

A franqueza da estudante deixou os rapazes espantados, tanto que, antes que a reaproveitassem, julgaram por bem levar ao conhecimento de Laurindo a idéia de trazer de volta Mercedes.

Quem possui amigos como os de Laurindo não precisa de inimigos. Realmente se açodaram tanto para contar o que lhes dissera a moça que, enquanto um iniciava, já vinha o outro desenvolver a idéia, não deixando o terceiro de encerrar. Ao chegarem à parte em que ela lhes falou a respeito da geração de filhos, não hesitaram e despejaram em coro que ela não queria ter filhos cegos.

Laurindo não teve tempo para refletir a respeito da atitude precipitada dos sócios ao irem atrás da secretária. Mal ouviu as explicações e logo se abateu com a crueza do fato genético. Abaixou a cabeça e chorou convulsivamente.

Os apalermados companheiros, sem saber o que fazer, ofereceram a um tempo três lenços para ele enxugar as lágrimas, lenços que lhe foram postos nas mãos que seguravam o rosto.

Aí os panos tiveram uma segunda utilidade inesperada: mascararam a luz que inundava as retinas e dava ao mundo o milagre de mais um que passava a ver pela vez primeira. De fato, Laurindo obteve a visão através do impacto emocional que o desesperançava da vida.

Está claro que passou a enxergar como qualquer que nasce com tal propriedade, ou seja, de maneira confusa, não se capacitando a reconhecer as coisas em sua profundidade. Precisava aprender a ver. E foi assim que o conduziram para o médico da famosa sentença e que o acompanhara até aquela data sempre esperançoso de ver sua previsão vingada.



Dez anos depois dos acontecimentos acima narrados, ainda Laurindo não havia assumido total controle da visão, necessitando de lentes corretivas. Mas enxergava e reconhecia pessoas e objetos. Casado com jovem que conheceu no primeiro baile a que compareceu vidente, tinha três filhos sem qualquer anomalia visual.

Quanto aos colegas, cada qual se instalou em escritório próprio, reunindo-se regularmente para rega-bofes comemorativos. Mercedes jamais aceitou os convites que lhe chegavam sem falta, sempre impedida pelo ciumento marido.

O advogado que fora cego não aceitou a explicação do milagre nem as justificativas científicas. Dizia que seu caso deveria ser estudado em suas raízes espirituais, mas não acatava nenhuma sugestão para investigar as vidas passadas.

Quando lhe pediam um comentário a respeito, dizia, entre sério e jocoso:

— O melhor cego é aquele que não quer ver, ou melhor, o pior cego é aquele que deseja enxergar.

E ficava gozando a regalia única de ter sido deficiente visual por tanto tempo.







6. O HOMEM SEM MEMÓRIA



Era a conta de se passarem uns poucos dias e logo a história se apagava completamente na cabeça do infeliz Rosalvo.

“Que terei feito em minhas vidas anteriores para merecer tão duro castigo?”, perguntava aflito e logo lhe vinha a resposta novidadeira porque esquecida: “Como é que vou relembrar algo tão distante se os fatos atuais...”

Nem terminava o pensamento, interessado em resolver o drama do almoço ou do jantar, pois quase sempre se distraía e deixava passar a hora, esquecido de que aquela sensação de falta se constituía simplesmente no chamado natural da fome.

Tão perversa era a sua doença que necessitava da ajuda da dedicadíssima irmã para cumprir os compromissos mais importantes, como buscar a mínima quantia que o governo lhe destinava mensalmente, para acompanhar as palestras no centro espírita, para realizar as obrigações do voto e das declarações de renda, possuidor que era de um imóvel que herdou dos pais, e para outras inadiáveis providências sociais.

Um dia lhe faltou a irmã, levada desta vida por um desses azares modernos de atropelamento na via pública.

Para Rosalvo, além do alvoroço de dois dias desarvorado e perdido, tudo se encaixou às maravilhas, quando a família lhe destinou verba para receber em casa a ajuda de honesta empregadinha, indicada pela própria presidente da casa espírita.

Afora o fato de que Roberta não dormia no emprego, o mais daria ensejo para que a vizinhança ousasse lançar sobre o rapagão de trinta e cinco anos os olhos ávidos das novidades de estrondo. Mais do que isso, como não se pudesse comprovar nada de odioso, a malícia criou cenas imaginárias e a voz do povo ecoou pelas esquinas brumosas da luxúria contumaz e imprópria.

Dois meses foram suficientes para manchar a reputação que se mantivera ilibada tantos anos pela presença incorruptível da irmã. A pobre necessitada, ainda que de cor parda, ou por isso mesmo, se viu o alvo da maledicência, porque nem todos partilhavam da mesma fé espírita, sentindo-se como que no direito de julgar que os espíritos que fervilhavam nos terreiros tivessem ido habitar a casa de Rosalvo.

Roberta era bastante esperta para compreender que aquele emprego seria para muitos anos, tanto que a lista de tarefas que a falecida havia deixado copiada e xerocada pelas gavetas e bolsos do esquecidão lhe vinha servindo de guia para não se perder na orientação de cada jornada.

Antes que os ouvidos do centro espírita tivessem a infelicidade de escutar as mentiras, correu Roberta a contar à própria presidente o que se passava, relatando-lhe tudo quanto pensara a respeito de não perder aquela boca rica. Não foi essa a expressão que utilizou, mas foi assim que entendeu a sagaz senhora.

— Vamos fazer o seguinte, propôs ela. — A gente vai revezar durante um bom tempo todos os membros da diretoria em visitas ao amigo. Iremos sempre aos pares e aos trios. Assim, eu acho que vamos calar a boca maldita dos que tiram proveito da ingenuidade dos pobres.

Por mais de seis meses, a procissão não teve fim. Aquietaram-se os rumores e Rosalvo, que não manteve nenhuma recordação dos eventos funestos, não atinava mais com a razão da leva dos compatrícios que lhe traziam as melhores palavras de agradecimento por antigos e esquecidos feitos e conselhos.

Quando as línguas serenavam, apareceu Roberta de barriga, já com cerca de cinco meses de gravidez. Aí não houve mais motivo para a corrente amiga e se concluiu que estavam acobertando o que todos desconfiavam.

A mocinha, menor de idade, já se sabe, protestou inocência e acusou o padrasto. Este sofreu o maior vexame e teve de se retirar de casa, que os irmãos da esposa estavam dispostos a lavar a honra da sobrinha, ainda mais porque o homem era folgado e não contribuía em nada para as despesas.

A senhora presidente do centro não conseguiu outra confissão da protegida, muito embora desconfiasse de que o verdadeiro pai da criança fosse o próprio Rosalvo, cujas palavras compunham frases tão vazias como a sua memória. Mas o pobre desmiolado tomou uma deliberação surpreendente:

— Vou casar-me com Roberta, se ela me quiser para marido. Assim a criança irá ter um nome.

O coitado não tinha certeza de nada e pretendia desfazer o malfeito, caso houvesse realmente um.

Mas, como a pessoa que lhe ouviu a idéia era aquela mesma presidente do centro espírita, logo os familiares ficaram sabendo que havia um risco de permanente assunção de duvidosa responsabilidade. Sugeriu ela que se fizesse um exame de sangue do feto, entretanto não foi atendida, tendo sido mais prático encaminhar Rosalvo para clínica mais ou menos especializada, espécie de depósito de doentes mentais.

Por contaminação irreprimível, foi o nosso herói devidamente esquecido, não tendo mais recebido a visita de ninguém.

Nós mesmos o perdemos de vista e ficamos sem saber o que lhe aconteceu nestes derradeiros vinte anos. O que de melhor nos ficou da melodramática experiência foi a conclusão de que, se a memória nos provoca recordações felizes de épocas que não voltam mais ou lembranças muito tristes de acontecimentos infaustos, é verdadeiramente ruim para os que se dão ao desplante de viver de saudade. De qualquer modo, bem pior é ficar completamente desmemoriado.







7. O HOMEM SEM IMAGINAÇÃO



Lourenço não se deixava cativar pelas obras espíritas, muito menos se viessem categorizadas como mediúnicas ou psicografadas.

Em conversa com os amigos do centro, sempre apoiava os descrentes, afirmando que os autores de carne e osso possuíam estilo muito mais vivaz e consentâneo com a realidade da mente humana, conforme o desenvolvimento social em que viviam.

— Os amigos da espiritualidade, concluía, perdem muito de sua originalidade e poder evocativo, ainda que assinem as obras com nomes respeitáveis e famosos.

Se insistissem em opor-se a tais idéias, vinha com muitos exemplos elucidativos, demonstrando conhecimentos de superior procedência. A verdade é que era estudioso, além de ser professor de literatura no curso colegial.

Tantas vezes retornou ao tema que, em certa oportunidade, recebeu um repto de um dos admiradores das obras psicografadas pelo Chico Xavier:

— Se você acha que os vivos podem mais que os mortos na escrita de caráter literário, tome um tema qualquer que se encontra nos textos atribuídos a Emanuel ou ao Irmão X ou a André Luís, deixando de lado os poetas, e redija, pelo menos, uma página com maior brilho e inteligência. Vale até parafrasear.

Lourenço não disse nem que sim nem que não. Saiu resmungando que nunca fizera referência a si mesmo como escritor e desapareceu do centro por mais de três meses.

É a história do que lhe aconteceu nesse tempo que constitui o núcleo de nosso comentário psíquico.



Lourenço aceitou o desafio em termos. Buscou dentre as obras sugeridas aquela que lhe parecia a mais bem acabada, ou seja, de Emanuel, Paulo e Estêvão.

Observou as inúmeras referências históricas e concluiu que o autor espiritual não fizera trabalho de pesquisa, simplesmente, mas mergulhou no passado, nos tempos em que fora contemporâneo das personagens, reproduzindo, às vezes de forma sentimental, outras vezes bastante realista, as cenas, os discursos e os diálogos.

Pretendia bem caracterizar o nível artístico, sem ser tendencioso, entretanto sua conclusão abonava a tese que defendera junto aos amigos. Sendo assim, escolheu o início do romance histórico para refazer, satisfazendo os pruridos estéticos, conforme a riqueza de seu próprio manancial fraseológico e estilístico.

Logo se deparou com o primeiro problema: o da época literária que deveria merecer sua preferência, já que a transformação textual exigia coerência quanto aos subsídios idiomáticos. Sentiu que o texto primitivo estava eivado de tendências românticas, proporcionando ao coração preponderância sobre a razão.

Estabeleceu que seu momento deveria nortear a nova redação e fincou pé na diretriz da contemporaneidade.

Logo, porém, lhe surgiu uma dificuldade intransponível: a substituição vocabular. Se desse nomes atuais aos objetos, não faria corresponder àqueles que eram tão naturalmente colocados na paisagem. Passou para a descrição psíquica, dentro do mesmo contexto, e quedou embasbacado: as personagens só possuíam vida dentro das perspectivas históricas em que foram dimensionadas.

Definitivamente, deveria contentar-se com o cotejo entre as obras dos vivos e dos mortos, podendo eleger estas ou aquelas como as que melhor lhe caíam no gosto.

Ficou várias noites insone, a decifrar a razão de optar pelas obras dos encarnados, já que partira do princípio de que eram melhor escritas. Chegou mesmo a reler parte dos romances estudados na faculdade, os quais comentava para os alunos, acabando por notar que sempre existia certo ar de mofa, sutil humor, leve tendência à crítica, quando não se desacatava, pelo assunto, pela ação e através dos diálogos, as personagens que simbolizavam a prepotência social, política, moral, filosófica ou religiosa, em destaque.

“Quer dizer”, concluiu, “que os textos psicografados estão comprometidos com a verdade doutrinária, impedindo-se os autores de caçoar dos títeres criados por sua fantasia.”

Percorreu, então, outras obras de sua estante, até encontrar uma em que o médium apanhou ditados de jovens recentemente falecidos, cartas escritas do além, compendiadas e explicadas pelos parentes.

Reparou de cara que não eram escritores profissionais: eram pessoas comuns que utilizavam os recursos lingüísticos de que dispunham em vida. Alguns manejavam suas linguagens particulares com rara habilidade, preenchendo as idéias com comparações e outras figuras de estilo, sempre abonando os termos do jargão de seu grupo social.

Diante de um texto mais caracteristicamente representativo da tendência ao pessoal e ao episódico, comentou:

“Eu poderia apreciar esta redação como obra paralela à que se configuraria para efeito da divulgação entre o público em geral. Só vou admitir esta excrescente manifestação como a reprodução fidedigna do pensamento embutido nos modismos de uma juventude inculta.”

Esqueceu os “modismos” e se concentrou na expressão “juventude inculta”. Digo mal: passou a refletir a respeito da cultura, relacionando-a às vidas anteriores dos autores espirituais:

“Se esse cara teve o desplante de elaborar um texto em condições de ser entendido apenas pelos parceiros de correrias motoqueiras, não se deu ao trabalho, portanto, de uma obra que varasse as épocas, para tornar-se um patrimônio cultural da humanidade.”

Achou descabidas as críticas, já que não dera o mesmo valor a umas e outras obras:

“Falou o que disse como quem chupa um sorvete. Lambido o palito ou a colher, não se poderá extrair novo prazer, havendo o gajo de procurar outro manancial.”

A única conclusão a que foi levado pela imagem gelada deixou-o aborrecido:

“Ponho-me em profundas considerações a respeito da veracidade do valor dos textos psicografados e não sou capaz sequer de uma só metáfora expressiva. Como sou canhestro!”

Buscou “canhestro” no dicionário e aceitou como próprias de seu estilo todas as acepções ali consignadas. Acrescentou um número maior de sinônimos e injetou o veneno de sua bolsa nas próprias carnes.



Dois dias depois, resolveu que deveria orar contritamente pela presença dos protetores e, de lápis em punho, perante uma folha em branco, dispôs-se a psicografar o que quer que fosse, para, pensava ele, proporcionar aos amigos da espiritualidade mais uma oportunidade de manifestação proveitosa para os seres humanos.

Rapidamente escreveu:

“Qual é o papel dos médiuns na confecção das obras?”

A pergunta pegou-o de surpresa. Queria respostas, por isso, desenleou-se da pretendida confraternização etérea, concentrando-se nos objetivos da perquirição.

Ao cabo de meia hora, estava absolutamente lúcido, incapaz de distinguir qualquer forma de pensamento que não fosse sua.

Derivou os raciocínios para a admiração que lhe causava o trabalho do médium mineiro, aquele mesmo cujas obras havia tentado parafrasear. Achou que o papel de tão humilde seareiro espírita fosse, verdadeiramente, de um escrevente de superiores qualidades, além das demais formas de captação das informações promanadas dos guias espirituais.

Foi quando teve uma intuição:

“Os problemas que venho enfrentando se devem à inconsciência do Chico, ou seja, ao fator primordial da melhor fórmula de participação do encarnado no ato mediúnico. Aposto que o exercício da vigilância do valor dos escritos se atribuiu aos companheiros de mesa, aos amigos da federação ou aos próprios editores, sob cujo controle as peças devem ter merecido correções doutrinárias para se ajustarem às diretrizes estabelecidas pelos espíritos superiores ao Codificador. Se eu pegar um volume de outro mediador, um volume daqueles que julgo detestáveis pela fraqueza da composição literária e pela fragilidade lingüística, provavelmente serei capaz de notar as falhas acentuadas e as escorregadelas fatais.”

Disse e fez. Foi à estante e buscou uma das obras mais vendidas no meio espírita, sucesso absoluto entre as leitoras: um romance que Lourenço não recomendaria aos alunos nem por decreto federal.

Mergulhou na leitura conhecida, só repondo o livro na estante após terminar. Refletiu:

“Não posso afirmar que tenha sido o médium quem, animicamente, escreveu a obra. Tanto quanto atribuí ao espírito nomeado a redação das obras do Chico, também neste caso devo admitir a procedência espiritual do texto, caso contrário, teria de aceitar que os encarnados fossem marionetes nas mãos sagazes de espíritos malfeitores...”

Suspendeu a linha de pensamentos. Achou que estava sendo, no mínimo, ingênuo, uma vez que tudo quanto estivera cogitando também poderia ter origem estranha, quer por força de seu próprio espírito ignorante, quer pelo desempenho sutil de obsessor desencarnado.

Enlevado, permaneceu alheio à realidade durante mais de duas horas. Não dormiu, havendo descoberto que mantivera um braço erguido e apoiado na estante. Este, sim, estava adormecido, necessitado de enérgica massagem para restabelecer a corrente sangüínea.



No dia seguinte estava de volta ao centro. Logo o do repto estava a interrogá-lo:

— Como é, querido confrade, teve tempo de realizar a obra?...

— Vamos abreviar o papo. Eu mudei de opinião quanto aos textos mediúnicos. Eles são tão importantes quanto os de origem carnal. Perdoem-me a minha falta de palavras mais adequadas. Simplesmente, eu devo dizer que me vi perante minhas limitações e aceitei o fato de que sou um sujeito completamente sem imaginação. Explico. Fui incapaz de imitar as páginas que tentei atualizar. Outras nem tentei, as que não me dizem nada quanto ao estilo ou à tendência específica da divulgação doutrinária. Mantenho a preferência pelas obras humanas, mas devo confessar admiração por muitos autores do além, e por seus médiuns, enquanto outros, autores e médiuns, não me atraem pela pouca profundidade temática. Não estranhem este discurso. Eu o preparei cuidadosamente, tanto que vou prevenir a próxima questão, qual seja, a razão de haver afirmado que não sou dotado de imaginação. Acontece que busquei realizar comparações e metáforas através das quais iria confeccionar as páginas sugeridas. Fui incapaz, o que significa que não tenho veia artística para construir imagens, figuras, tropos. O que me deixou entusiasmado e pronto para esta manifestação foi haver descoberto duas coisas essenciais para mim. A primeira foi o iniludível acompanhamento de meus raciocínios pelo meu protetor e guia espiritual. Sem ele, não teria chegado a nenhuma conclusão positiva. A segunda reside no fato de que, preocupado com estarmos sendo obsidiados, os médiuns e eu, não abria os olhos para o fenômeno psíquico do negativismo transformado em preconceito, ou seja, estava exercendo o ofício de obsessor de forma gratuita, inconsciente e tola. Que todos possam ler de tudo, desde que adultos e vacinados. Sempre haverão de encontrar livros que preencherão suas necessidades, elegendo aqueles autores que melhor correspondam a seus anseios, literários ou não. Na qualidade de professor, irei instruir os jovens a que se adestrem no uso da língua padronizada pela norma culta, lendo os autores consagrados. Quanto aos amiguinhos da mocidade espírita, vou incentivá-los a ler as obras de nossa pequena biblioteca especializada e a levantar idéias e conceitos positivos. Se discordarem de algum ponto de vista ali consignado, iremos discutir até esclarecer a dificuldade. Vocês não acham que foi exatamente assim que procedi?







8. FOLGUEDOS ADULTOS



Reconheço que o meu tema temerariamente se volta para o campo existencial do planeta. No entanto, se considerarmos como folguedos tudo quanto nos distraia das preocupações diárias, também podemos atribuir ao prazer da leitura o condão do descanso, do divertimento.

“Quer dizer”, irá pensar o leitor, “que estes textos que nos estão sendo apresentados visam a produzir em nós uma folgança dos terríveis momentos em que recebemos informações da realidade cruel desta sociedade injusta?”

Por que não?!... Muito embora a sisudez seja uma das principais características dos mentores e dos comunicadores, não há negar que buscamos sensibilizar os encarnados, apresentando-lhes, de forma lúdica, a programação que elaboramos para despertar o sentido da uniformidade existencial, a vida terrestre como continuidade do planejamento anterior à encarnação; a vida na espiritualidade como reflexo da personalidade construída durante a jornada na Terra, pelo menos enquanto persistirem os vezos ou hábitos arraigados na alma.



Aguardou Eduardo que o autor do ditado acima apusesse o nome mas largou o lápis sobre a mesa, após alguns minutos, porque sentiu que a influência espiritual se diluíra. Havia promessa de texto narrativo, todavia, o caráter de dissertação, apesar da fala atribuída a um virtual leitor, deixou-o um tanto frustrado, animado que estava para mensagem de maior fôlego e complexidade.

Recordou-se, enquanto as luzes da sala não se acendiam, dos seus trinta e dois anos de mediunato, dedicados quase todos às missivas dos que partiram aos parentes e amigos, jamais deixando de encontrar o destinatário entre as pessoas presentes. Achou que essa era superior maneira de folgar nas horas de descanso, encarando o trabalho psicográfico inconsciente como verdadeiro folguedo adulto, tantas vezes obtivera prazer e satisfação com a alegria das pessoas aquinhoadas com as comunicações.

“Se me enviassem um romance, poderia acontecer de abranger um público mais extenso do que este acanhado círculo que me observa com admiração e respeito.”

Logo estava às voltas com as dificuldades de editoração, lembrando-se das leituras em que os médiuns descreviam as lutas para imprimir os textos mais longos, muitos deles fazendo-o a expensas próprias, a grande maioria desiludindo-se com o encalhe dos volumes, vendidos a peso, no final das contas.

Achou que tais idéias lhe estavam sendo passadas por algum amigo da espiritualidade, voltou a pegar o lápis e aprestou-se para reproduzir o que lhe ficara na memória.

— Eduardo!

Era o diretor da sessão

— Podemos encerrar?

Não deu tempo para que desenhasse nenhuma letra.

— Podemos, sim. Graças a Deus!

Chegada a hora de ler as comunicações do dia, o nosso médium apresentou apenas aquele trecho truncado, explicando que não entendera direito o significado de simples intróito sem continuação. Avisou que lhe vieram certos pensamentos no sentido da advertência para as dificuldades de consecução de uma obra de ficção extensa e se pôs à vontade para ouvir a opinião dos companheiros.

Mas o pessoal estava mais entretido com as informações a respeito de parentes e amigos. Somente o diretor elogiou a clareza do texto, fazendo breve comentário a respeito de se dar tempo ao tempo, aguardando-se para a próxima reunião possível continuação.



Nunca mais Eduardo voltaria ao centro espírito, tendo deixado a vida em paz, consciente do dever cumprido.

Chamado pelo orientador, no etéreo, foi cumprimentado pelo desempenho da mediunidade, ocasião em que solicitou esclarecimento a respeito da derradeira escrita, que não fora conclusiva e que ficaria sem completar-se.

— É justo. Está lembrado de que no texto se dizia que a existência era una, ou seja, que a vida na Terra dava continuidade à daqui e esta àquela? Pois bem. Você está sendo convidado a acompanhar o autor até junto a médium escrevente, para tomar conhecimento de como se realiza a sessão mediúnica do nosso ponto de vista. Caso perceba que se trata de folguedo adulto, aplique-se com a mesma responsabilidade do centro espírita, porque o que desejávamos passar-lhe era a idéia exata que lhe ficou. Quanto a se perder a intuição, calcule a importância de suas reflexões, aquelas que não conseguiu escrever, e veja se lhe será útil reproduzi-las como informação aos encarnados.

A bem da verdade, Eduardo não entendeu patavina do que lhe fora explicado, restando-lhe a modéstia de aceitar continuar sendo simples intermediário entre os planos existenciais, dando sustentação aos mensageiros.



Passava das duas da tarde quando ressurgiu na Terra, para nova jornada. Isto, vinte e cinco anos depois. Aspirava por encontrar-se forte e sadio, agasalhado pela ternura materna e protegido pelo desvelo paterno. Queria repetir os folguedos infantis com o mesmo júbilo com que sempre agira na vida anterior.







9. OUVINDO PERFEITAMENTE



Não se convencera jamais o nosso irmãozinho Edgar de que o fenômeno da tiptologia, a comunicação dos espíritos por meio de ruídos ou pancadas, fosse tão disseminado quanto os historiadores afirmavam ter sido durante os meados do século dezenove.

Independentemente do fato de ser espírita convicto, de freqüentar as atividades do centro religiosamente quatro vezes por semana, de ouvir as confissões dos sofredores arrependidos nas sessões de desobsessão, de escrever mensagens comoventes de saudosas criaturas do etéreo, Edgar, sempre que se via diante do tema, lançava seu desafio:

— Vocês sabem que admito muitas formas intelectuais de ocorrências mediúnicas, porém, as correspondentes aos efeitos físicos ou materiais vão ficar de quarentena para minha crença metafísica.

Queriam saber a que vinha a expressão crença metafísica, mas a sua costumeira resposta vinha na ponta da língua, parecendo até que o provocavam de propósito:

— Vocês entenderam. Não queiram complicar. Se eu acreditasse nessas descrições, teria uma crença física. Como não acredito, a minha crença deve ser metafísica.

E manifestava, sorrindo, inteiro agrado pelo interesse dos parceiros.



Certa noite, um palestrante convidado trouxe a novidade das demonstrações mediúnicas. Chegou bem cedo e abriu as dependências todas, na companhia da zeladora, que contaria mais tarde que o homem parara alguns minutos, imóvel, em cada sala, como que rezasse. Disse mais: que levara umas folhas compridas de espadas-de-são-jorge e que ficara batendo com elas sobre cadeiras e mesas.

Quando Edgar chegou, logo foi chamado à sala da diretoria onde se reuniam alguns membros e foi posto a par do estranho procedimento. Os dirigentes estavam meio atônitos, com medo de que a exibição puxasse para o candomblé ou, no mínimo, para a umbanda.

Edgar foi taxativo:

— Deixem comigo. Não sou eu quem tem afirmado que os tais efeitos materiais jamais existiram? Pois, se houver fraude, estarei preparado para contra-atacar. Quero ver se chegou a hora da minha conversão para a crença física...

Não pôde prosseguir porque apareceu o homem, solicitando permissão para ocupar uma das salas: precisava concentrar-se para o desforço mediúnico.

— Os senhores devem ter reparado que reservei a primeira fileira de cadeiras no auditório. Normalmente, seriam ocupadas pelas pessoas que desejam ser as primeiras a tomar os passes dos médiuns. Essas vão arranjar-se a partir da segunda fila. O que eu vou pedir é que me coloquem, nos lugares reservados, jovenzinhos de dez, onze, no máximo, de quatorze anos. Para quem leu Kardec, não estou pedindo nada de excepcional, pois é sabido que, nessa idade, há maior cessão de fluidos e energias para a realização dos fenômenos físicos.

De seu lado, Edgar bem que se lembrou de várias leituras em que tal assertiva se fizera. De qualquer modo, quando pôs sentido nos acontecimentos, o homem desaparecera da sala, levado pelo próprio presidente do centro.

Faltava ainda meia hora para se dar início à palestra, de sorte que foi fácil atender ao pedido do palestrante.

Devido ao tema inusitado, o salão estava com os seus cento e poucos lugares ocupados dez minutos antes da abertura dos trabalhos, de modo que foi preciso improvisar assentos para a acomodação de todos, com as cadeiras e bancos das salas de estudo e do pátio.

Precisamente às vinte horas, o palestrante, todo vestido de branco com um cinto prateado a prender-lhe a longa bata, adentrou no salão, causando admiração e surpresa por tão inusitada presença.

Com um gesto, pediu a palavra, enquanto o contra-regra fazia desaparecer os sons da Primavera de Vivaldi.

Edgar mexeu-se na cadeira, atrás da longa mesa colocada sobre o palco. De onde estava podia enxergar o homem de corpo inteiro, apesar de vê-lo quase de costas.

À fala inicial, emitida em voz branda, sem o artifício dos alto-falantes, o crítico se deixou embalar pela extraordinária simpatia daquela melodiosa alocução:

— Que Deus nos abençoe, nesta gloriosa noite de reunião, auxiliando-nos com o envio de seus ilustres mensageiros, potentes para dominar os espíritos que irão ceder seus fluidos, com o fito de movimentar fisicamente os objetos ou oferecer outros fenômenos de natureza material. É preciso saber que tais sessões foram muito comuns na época de Allan Kardec e que exigem muita concentração do auditório, para o que eu peço que me acompanhem num pai-nosso apenas sussurrado.

De fato, quem estivesse no corredor da entrada mal poderia ouvir todo o povo recitando a prece, durante a qual o expositor, de cabeça abaixada, erguia a mão direita, como a manter o silêncio que se estabeleceria em seguida.

Edgar começou a sentir um certo mal-estar, como se a atmosfera se impregnasse do suave odor de alfazema.

O da toga ergueu a outra mão e, ainda com voz baixa, prosseguiu:

— Meus irmãos, estou sentindo a força de nossos guias. Pedem-me eles que lhes diga que estão transferindo para cá os perfumes mais doces que se possam produzir na face da Terra. Estão dizendo também que nem todos vão reconhecer o odor, porque para cada um haverá um aroma diferente.

Edgar concentrou a atenção no público e percebeu que a respiração de muitos crescera a ponto de provocar pequena perturbação auditiva. Mas isto durou pouco tempo. Logo estava o orador a explicar:

— Não se assustem mas muitas flores serão depositadas nos colos das senhoras, transportadas para cá mediunicamente.

Quando Edgar esticou o olhar por sobre a platéia, pôde ver que muitas senhoras, moças e até meninas tinham um botão de rosa ou outras flores na mão.

— Agora vou pedir aos dignos confrades que estão junto à mesa que apenas a toquem de leve com as mãos. Vamos ver se é possível elevá-la sem ponto de apoio.

Ato contínuo, todos puderam observar que o pesado móvel se erguia completamente, subindo cerca de meio metro ou mais.

— Vamos ver se os amigos conseguem sustentar a mesa nessa posição, porque pretendo pedir que se movimente conforme as respostas que os irmãos da espiritualidade derem às perguntas que vamos formular. Como sempre, uma batida no chão significa não e duas, sim. Estão os guias de acordo?

A mesa se inclinou a ponto de ser preciso segurar os copos e as jarras de água. Duas leves batidas no chão responderam.

— Existe nesta sala, caros protetores, alguém que esteja necessitado desta comprovação material?

Duas batidas.

— Está entre o público?

Uma batida.

— Está junto à mesa?

Duas batidas.

— Querem identificar a pessoa?

Uma batida.

— Entre os diretores do centro, alguém quer fazer uma pergunta?

Edgar pensou que era a pessoa e quis comprovar a suspeita:

— Quero saber se os amigos da espiritualidade se referiam a mim. Sim ou não?

A mesa permaneceu imóvel.

Edgar ficou mais do que intrigado e insistiu:

— Será que estou sendo indiscreto ou pretensioso?

Na mesma hora, a mesa se deslocou com violência, caindo com os quatro pés sobre o tablado, assustando a todos com o estrépito.

Fez-se um longo silêncio. Finalmente o convidado se manifestou:

— Não estou sentindo mais a presença dos meus guias. Acho que terminaremos a sessão, orando para que a misericórdia do Senhor alcance o coração de todos nós. Vamos concentrar-nos na figura de Jesus, como se estivesse entre nós, que nos reunimos em seu nome. Imaginem que ele esteja no alto, como um foco radioso de luz e de amor. Requeiro ao sonoplasta que volte a tocar a vitrola.

Precisou que o presidente da instituição repetisse a solicitação, indicando pelo nome quem era a figura que cuidava do som.

Edgar, coitado, se sentia pequenininho, a ponto de perder a concentração, olhando apalermado para o alto, como se estivesse mesmo vendo a figura do Senhor. Não estava. Estava pensando em que explicação dariam as pessoas à sua atitude. E o orador.

Mas o embevecimento da multidão pelos fenômenos espíritas também não é eterno, de sorte que era chegado o momento da despedida:

— Prezados amigos, lamento que tenhamos sido interrompidos em plena participação fluídica e moral. Quero crer que muitos, se não todos, estejam perguntando-se por que a partida dos amigos espirituais foi tão abrupta. Não tenho autorização a falar por eles, porém, acredito que todos nós tivemos nossa atenção chamada pelo companheiro que quis saber se era ele quem estava necessitando presenciar este tipo de manifestação mediúnica. Nesse momento, esquecemos que estávamos permitindo que utilizassem nossas vibrações para o equilíbrio fluídico da mesa e deixamos de contribuir para o ato, perdendo os irmãos da espiritualidade a força que empregavam para a sustentação no ar desta pesada mesa. Fique claro que não estou pondo culpa em ninguém, porque todos nós colaboramos para o efeito. Espero voltar em outra oportunidade para outras demonstrações do poder dos espíritos sobre a matéria. Fiquem com Deus!

Não deu tempo para que lhe agradecessem ou aplaudissem, saindo do mesmo modo que entrara.

Os diretores do centro ainda tiveram a parte dos comunicados oficiais. Quando procuraram pelo convidado, já havia partido. Foi quando receberam de Edgar um grave aviso:

— Como não estou preparado para enfrentar os vivos e os mortos, declaro-me ausente quanto à compreensão de tudo o que se passou esta noite.

Somente bem mais tarde, acordado no meio da madrugada, é que atinou com o fato de haver introduzido na sessão seu elevado e egoístico orgulho.



Quando o palestrante, dois anos depois, voltou ao centro, não encontrou Edgar, que se bandeara de mala e cuia para um terreiro de umbanda do outro lado da cidade. Se lhe perguntassem a razão disso, responderia que era para estudar e praticar os cultos mais próximos da realidade palpável das oferendas e bênçãos particulares. Diria também que estava meditando a respeito das descrições dos fenômenos mediúnicos contidas nas obras de Kardec. Está nisso até hoje. E se alguém se referisse às palavras finais do palestrante, ele simplesmente responderia que as ouvira perfeitamente, como se pronunciadas tivessem sido por seu próprio mentor espiritual.







10. DESCONFIANÇA SANADA



Revelava o médium Claudionor belíssima tendência para as obras de largo fôlego. Sempre que apanhava ditados no centro a que servia em todas as horas de folga, ficava o texto incompleto, como a pedir continuação.

Ora, o centro não lhe permitia ocupar o tempo necessário para realizar tal espécie de trabalho e ele não tinha como prosseguir em casa sem furtar as horas destinadas à missão voluntária em prol dos atendidos, quer do campo material, quer do espiritual.

— Claudionor, por que você, em sua casa, não dá passividade aos mensageiros para permitir-lhes desenvolver melhor os textos?

A essa questão levantada freqüentemente pelos colegas, respondia:

— Aqui eu tenho a certeza de que estou sob o amparo dos guias de superior moralidade. Em casa, desconfio que a minha pobre figura poderá receber a péssima influência de obsessores.

— Mas aí você traz as mensagens para serem analisadas por nós e logo a sua dúvida ficará esclarecida.

— Você está dizendo isso porque nunca se dispôs solitariamente a favorecer a psicografia. Eu, no começo, apanhava os ditados em casa, entretanto, nunca tive verdadeiramente momentos de sossego, de tranqüilidade, sempre molestado pelos filhos, pela mulher e até pela empregada.

— Ah!

Os interlocutores interjectivavam e deixavam de argumentar por total desconhecimento da realidade doméstica do parceiro.

Nesse meio tempo, como não obtivesse resposta aos apelos mentais no sentido de se explicar a razão de não se dar continuidade aos textos nas sessões subseqüentes, Claudionor escreveu na folha sobre que depositaria a mensagem:

“Por favor, queridos irmãozinhos, dêem-me o motivo pelo qual nenhum autor se interessou em completar as comunicações de caráter narrativo. Têm razão os meus companheiros em sugerir que eu trabalhe em casa, ainda que em detrimento dos meus horários no centro?”

Hesitou em deixar a folha sobre as demais, porém, no fim, achou que, se não lhe dessem resposta alguma, seria por que as coisas deveriam ficar como estavam.

Naquele dia, passou o tempo todo preocupado com a situação, não conseguindo concentrar-se para permitir que seus pensamentos refletissem os dos espíritos.

Argüido sobre o resultado da psicografia, revelou todo o drama que estava vivendo, deixando os demais médiuns apreensivos, já que, através deles, não se registrara nenhuma resposta.

Na reunião seguinte, a folha recebeu um pequeno acréscimo:

“Por que não houve aproveitamento de nenhum dos outros médiuns para a esclarecimento da questão? Será que eles também iriam ficar preocupados, deixando de trabalhar?”

Naquela noite, foram três os médiuns que não escreveram, além de Claudionor, é claro. Todavia, houve quem desenvolvesse uma espécie de resposta às questões.

Quando da leitura do texto, todos repararam que estava muito bem redigido, com palavreado raro, nada em comum com a pobre cultura do médium. Entre outras recomendações, dizia para que todos ali reservassem semanalmente um horário em seus lares, porque bem poderia suceder de serem visitados por espíritos de superior magnitude, gente absolutamente séria desejosa de transferir para os conhecimentos dos encarnados outros elementos concernentes à existência além-túmulo. Ressaltava o mensageiro que deveriam ser tomado cuidados especiais, para que o orgulho ou a vaidade dos trabalhadores não atraíssem espíritos ainda na faixa dos obsessores maldosos.

Mas havia outros itens, dentre os quais o seguinte:

“Quem estabelece os parâmetros dos ditados são os guias do centro. Em casa, o que de melhor pode acontecer é socorrer-se o chamado anjo guardião do escrevente de amigos convocados com o fito de se criar um cinturão energético para impedir a aproximação, durante o ato mediúnico, de qualquer ser que possa interferir negativamente no ânimo do encarnado ou dos próprios escritores, aquele quando consciente e participante, estes quando indefesos pela ingênua pretensão de que estão armados de boa vontade.”

Agora eram os da espiritualidade que o estimulavam para o trabalho em casa. Claudionor, então, deixou de comparecer à palestra da noite seguinte e, no horário em que estaria auxiliando no centro, arrumou-se no quartinho dos fundos, apetrechado de papel e lápis, e se dispôs a receber as mensagens.

Após a habitual prece do início das sessões, tendo feito a leitura de uma página de uma das obras de Kardec, concentrou-se e escreveu. Escreveu bastante, quase não tendo domínio sobre o assunto, grafando mal algumas palavras, para não perder o pique.

Duas horas depois, quase sem papel, esgotou-se-lhe de repente a inspiração.

Não teve tempo para juntar o texto narrativo a uma das mais de vinte introduções que arquivara, já que a esposa, preocupada, estava a bater-lhe à porta.

Na noite seguinte, também não compareceu ao centro para a distribuição das tarefas do final de semana, tendo registrado outro ditado ainda mais extenso, agora plenamente identificado com o do dia anterior.

Só voltou à companhia dos médiuns na semana seguinte, justamente na noite reservada à sessão de psicografia. Levava um bom calhamaço, cerca de quatro contos alentados, continuação de quatro mensagens antigas. Estava exultante.

Todos demonstraram bastante interesse, havendo quem se propusesse a copiar e imprimir.

Tanto bastou para Claudionor mudar de assunto:

— Como vocês se deram com a minha falta?

Teriam eles percebido o intento do gracejo? A verdade é que lhe disseram que muita coisa deixou de ser feita, porque somente ele estava a par do andamento dos negócios, e que ninguém mais soubera tornar mais fáceis os tratamentos aos atendidos.

Quando Claudionor se deparou diante da folha em que transcreveria a mensagem mediúnica, recebeu sucinta resposta à pergunta que previamente formulara:

Pergunta: “Qual é mais importante para os irmãos da espiritualidade: que eu atenda em casa aos que precisam terminar suas obras ou que venha ao centro para trabalhar em prol dos encarnados?”

Resposta: “Só volte a escrever em casa, quando a aposentadoria lhe propiciar tempo para tudo.”

E assim se fez.







11. A MORTE DO MÉDIUM



Pereira beirava os oitenta. Mas não queria morrer. Explicava:

— Tenho ainda muitos anos de lucidez para oferecer aos espíritos que desejam comunicar-se com os vivos.

De fato, todas as quintas-feiras, lá estava ele no centro, repetindo os pensamentos que lhe eram depositados na mente, seja em voz alta, seja por escrito.

Um dia, escreveu:

“Não venha para cá gagá. Aceite a sua sorte e disponha-se a enfrentar a viagem, sem ventanias.”

Como se tratasse de um texto curto, sem endereço certo, omitiu-o durante a leitura das mensagens, tentado deveras a fazê-lo desaparecer, já que remetê-lo a outro destinatário nem pensar!...

Em casa, pôs-se a refletir a respeito de passar desta para melhor, concluindo:

“É perfeitamente justificável que me observem a necessidade de chegar com a mente esclarecida e o coração confiante ao outro lado. Mas, do modo como o fizeram, dá a impressão de que conhecem dia e hora de meu trespasse. Então, para tirar qualquer dúvida, vou desejar que me escrevam, enquanto estiver inconsciente, durante a próxima sessão, a data exata ou aproximada da minha morte.”

Pensou em esquecer a reflexão, entretanto, durante toda a semana, martelou na cabeça a questão fundamental. Na quinta-feira seguinte, sentiu-se fortemente aliviado quando deixou de reconhecer o local e a hora, concentrando-se como sempre no trabalho mediúnico. Ao despertar, lá se consignava, em folha à parte, uma frase que, manifestamente, se referia à pergunta:

“Não sabemos e, se soubéssemos, não diríamos. Contudo, chegar aqui gagá irá provocar alguns meses de restabelecimento mental.”

Não querendo perder tempo, Pereira imediatamente interrogou, fazendo-o em voz alta, em plena reunião, quando um parceiro se ocupava com dizer a prece de encerramento:

— Que mal pode haver em auxiliar os irmãos, mesmo que isto nos custe alguns anos de padecimento?

A pergunta levantou séria celeuma, cada qual desejoso de dar conveniente explicação para o tema ou para a necessidade dele.

A verdade é que ninguém entendeu toda a extensão da demanda por lhes faltar o início do enredo. Nem Pereira estava muito inclinado a elucidar o ponto essencial. De fato, acabaram concordando em que o labor de tantos anos representava um padecimento para o corpo encarquilhado de alguém na casa dos oitenta.

Mas Pereira levou consigo a certeza de que valeria a pena sofrer no etéreo em troca da satisfação de ver legitimado um bem que nem todas as criaturas são capazes de exercer. Por isso, evitou novas consultas e continuou apanhando as mensagens até que seu relógio biológico assinalou o final de suas atividades lúcidas.

Ainda que insistisse, já não concatenava as idéias nem chegava a organizar um texto coerente que pudesse representar alívio para as dores morais dos consulentes. Chegou ao ponto de não poder refletir sobre o que ia fazer no centro, trocando as funções, sem reconhecer os parceiros.

Uma bela tarde de verão, em casa, sem pensar na vida ou na morte, abandonou a carcassa sobre o leito e se entregou aos guias que foram recebê-lo. Teria reconhecido de imediato sua condição de espírito errante? É bem pouco provável já que, toda quinta feira, se veste com o melhor trajo e se dirige ao centro espírita, agindo ainda como médium, recebendo comunicações que não lê porque todas dizem respeito à sua própria pessoa.

Agora, cinco anos depois, começa a atormentar-se com o fato de que deveria falecer, para subir ao patamar dos trabalhadores leais à doutrina espírita.







12. O AVIADOR



Aposentado, Lupércio voltou seus interesses para a descoberta da religião que representasse a verdade. Poderia começar por qualquer uma, contudo, por influência dos irmãos, foi primeiro a um centro espírita sob a égide de Allan Kardec.

Cientificado de que tinha de estudar nos livros para entender o sentido das atividades que ali se produziam, buscou ler as obras básicas o mais rápido que podia. Tinha tempo; fizesse-o logo, pois.

Realmente, pôs-se a devorar página a página O Livro dos Espíritos, atento para as definições, hipóteses e conclusões do Codificador. Antes, porém, de terminar, foi convocado para festiva reunião em que se comemorava o qüinquagésimo aniversário da instituição.

Lá foi Lupércio ciceroneado pelos irmãos, cheio de curiosidade, anotando mentalmente todas as inúmeras dúvidas que lhe surgiam de momento a momento. A principal dizia respeito à manifestação do patrono da casa, quando, através da mediunidade de um dos presentes, teceu elogios aos membros da diretoria, aos seareiros gratuitos daquela obra de caridade, estendendo os votos de progresso espiritual a todos os presentes, cuja harmonia fluídica facultava aos do plano da espiritualidade orientar de forma tão veemente o livre-arbítrio de cada um para o trabalho compensador do auxílio aos necessitados.

Josival, um dos irmãos, foi quem solicitou que Lupércio definisse exatamente o que não lhe parecera ainda correto na prática do espiritismo:

— Veja se você consegue caracterizar o ponto a ser esclarecido.

Lupércio franziu o cenho e observou:

— Em primeiro lugar, não quero que vocês vejam nenhuma restrição da minha parte aos belos termos em que foi vazado o discurso do protetor. O que eu desejo saber é se não existe nada mais importante para um espírito desencarnado há mais de cinqüenta anos fazer. Pela lei da evolução ou do progresso, que li em Kardec, deveria o tal guia estar agora em planeta mais adiantado que a Terra, em lugar de ficar assistindo ao regozijo de pessoas que estão totalmente compenetradas dos benefícios que praticam. Em suma, não era mais lógico que aquele que doou seu nome ao centro enviasse alguém cujo grau de adiantamento se equivalesse, mais ou menos, aos dos melhores dentre os encarnados?

Esperariam os interlocutores encontrar questão que aproveitasse tão precisamente o texto da obra? Em todo o caso, Sereno, o outro irmão, empenhou-se em dar uma resposta à altura:

— Notou você algum pensamento de extraordinária complexidade na fala da personagem espiritual? Não responda. Pois eu não senti nada de especial ou espetacular. Apenas consegui perceber que a entidade incorpórea incentivou a todos a prosseguir ajudando aos carentes. Isto não quer significar, necessariamente, que fosse o próprio protetor que estivesse presente, pois poderia estar representado por um enviado com a atribuição específica de dizer o que ele mesmo diria, mas de modo que todos os presentes entendessem. É preciso considerar que a hierarquia no campo espírita é sempre respeitada, o que provoca situações, às vezes, um tanto ou quanto ilógicas ou estranhas. De qualquer modo, como você não está criticando, devo deixar claro que os que se acostumam com este tipo de mensageiro sabem que o valor está nas palavras e nos pensamentos e não no nome com que se apresenta o comunicador. Se dissesse que se tratava de Kardec ou de Jesus, ficaria este ponto de vista ainda mais claro, porque era preciso analisar a mensagem em si, sabendo que tão luminosos espíritos possuem tantas atribuições importantes que seria incompreensível que gastassem seu tempo em festinhas de aniversário de centro espírita. Você não concorda comigo que houve forte comoção na platéia traduzida no silêncio com que se ouviu a peroração e na ênfase que foi dada à prece de encerramento? Não notou, meu caro irmão aviador, como estavam alegres as pessoas durante os comes e bebes que se seguiram à solenidade?

Lupércio aproveitou o gancho para comentar:

— Quero crer que o pessoal da diretoria é que pagou a conta. Caso contrário, deveríamos contribuir também para as reuniões festivas...

Josival não permitiu que avançasse:

— Ocorre que estou bem a par da origem dos recursos. Primeiro, os comerciantes forneceram sem cobrar as bebidas. Quanto às comidas, cada membro da diretoria confeccionou em casa um prato, totalmente sem ônus para o centro. Os enfeites, as flores, os copos e talheres de plástico vieram da casa do presidente. Amanhã ou depois de amanhã, estará afixado no quadro de avisos um balancete completo das despesas. Foi bom você ter tocado no assunto, porque muitos levam a suspeita do desperdício para casa, julgando de forma totalmente errônea que nós nos locupletamos com tais aplicações das verbas. Não sei se você se lembra, mas as nossas formaturas sempre redundaram em lucro para os professores e diretores. Não estou lamentando que eles se aproveitem dessas circunstâncias; estou apenas assinalando que sempre existem os que incentivam as turmas de formandos para que arrecadem... Você entendeu.

Em verdade, o piloto já divagava em busca de outro tema. Após alguns instantes, perguntou:

— Eu não senti nenhum estremecimento, nenhum arrepio na espinha... Vou dizer tudo: Eu não percebi a aproximação de nenhum espírito. Quer dizer que não tenho o dom da mediunidade?

Desta vez coube a Sereno colocar as coisas no lugar:

— Você está lendo o primeiro livro espírita, onde se encontra até a explicação, logo no início, de quais são as questões polêmicas e de como refutá-las. Então, fique sabendo, essa edição de O Livro dos Espíritos não foi aquela que saiu a público em primeiro lugar. Também O Livro dos Médiuns e O Evangelho Segundo o Espiritismo não constituem a primeira versão da obra. As três foram reescritas, tendo sido mudadas de forma bastante ampla e profunda, inclusive quanto aos títulos. O que estou querendo dizer-lhe é que o Espiritismo como ciência, como exercício e como auxiliar poderoso para a melhoria moral precisou da reflexão séria de um sábio. Ou você acha que Kardec, aliás Denizard Hippolyte-Léon Rivail, sempre esteve inteiramente satisfeito com as obras que elaborava?...

— Eu só perguntei se tenho ou não o dom da mediunidade.

— Todos os homens e mulheres possuem a faculdade de entrar em contato com o mundo espiritual. Contudo, para alguns, os fenômenos espíritas surgem de forma espontânea, quase necessária. Para outros, vêm de muito estudo e empenho na prática da concentração. Há quem jamais o consiga, muito embora fique a meditar honestamente sobre os quesitos pessoais a serem desenvolvidos para tanto. Lá no centro, existem muitos companheiros bem antigos que se conformam em trabalhar longe da mesa da desobsessão. No seu caso, você deve continuar lendo e observando as coisas que acontecem no centro.

— E devo esclarecer minhas dúvidas com vocês...

Josival foi quem pôs fim à conversa:

— Normalmente, depois das atividades no centro, nós vamos jantar em algum restaurante ou pizzaria. Como hoje já comemos, vamos deixar você em casa.

E assim fizeram.

Se não tivessem interrompido o comandante, talvez dele ouvissem outra manifestação de dúvida, esta muito mais emocionada e sensível:

“Se estou agora buscando a verdade da continuação existencial após a morte e estou achando que sem caridade não existe salvação, como ouvi da entidade que se comunicou, como será considerada a minha atuação na qualidade de aviador? Terei o privilégio de ter tido uma profissão naturalmente adaptada a tal máxima?”

Era o que iria descobrir dois anos depois, após leitura completa das obras básicas de Allan Kardec.







13. O CATIVEIRO



Meu nome é Eulálio. Tive uma vida regrada e feliz, todavia, dono de inteligência desenvolta e de razoável cultura livresca, não participei de nenhuma corrente de caridade, muito embora, dentro dos estreitos limites de minha pequena família, nada deixava faltar à segurança e bem-estar dos meus.

Quanto a ter religião, jogava sobre a sensibilidade alheia a responsabilidade de intervir espiritualmente para favorecer o crescimento ou melhoria das condições de vida do povo em geral. Falando claramente, julgava que os sacerdotes tinham por obrigação salvar as almas, orando em apoio dos que não se portavam direito, ofendendo e desfavorecendo os semelhantes, a quem eu afirmava amar como amava a Deus.

Penso haver caracterizado o forte egoísmo e o sentido de autodefesa dos benefícios que herdei dos parentes, genéticos e materiais.

Extraordinária foi a minha passagem do mundo dos viventes para o dos mortos. Adormeci sem planos para o dia seguinte. Acordei com o marulhar da água batendo nas laterais do barco que atravessava o Estige. Ergui a cabeça e divisei na popa gentil cavalheiro a quem logo chamei de Caronte. Estava absolutamente convencido de que morrera. Estranhei que não me pedira a moeda de bronze, o óbulo, e que não estava vestido de andrajos. Em todo o caso, deixei-me levar sem perguntas, julgando que, na situação em que estava, tudo se esclareceria a bom tempo.

O dia clareava e isso também não constava de minha recordação dos mitos gregos. Em breve, encostava o barco no cais e, sem sentir, me vi sobre a plataforma. Imediatamente, olhei para o barqueiro desejoso de agradecer-lhe o serviço gratuito, mas ele me abriu um sorriso amigo, mostrando-me a moeda, logo transformando-se num velho bastante horrendo, esfarrapado e sujo, que manobrou a embarcação e desapareceu no meio das escuras brumas que cobriam o rio.

No alto de um mastro, li o nome do lugar: Ilha dos Desencantos. Não me repercutiu na memória essa estranha região. Andei um bom pedaço, divisando ao longe muitas pessoas que caminhavam para todos os lados, sorrindo e cumprimentando-se efusivamente. Antes que as alcançasse, passei por uma tabuleta luminosa: Fonte das Boas Lembranças. De fato, ali brotava um fio d’água cristalina.

Fiquei muito esperançoso de saber como iam os meus parentes mortos e sorvi alguns goles do precioso líqüido.

A minha mente pareceu iluminar-se da mesma forma que aquela atmosfera translúcida que envolvia o local. Recordei-me de toda a vida, sem mácula que me ferisse as cordas do arrependimento ou do remorso. Digo isso agora, porque foi bem diferente a minha sensação, que era de plena felicidade.

Não demorou e logo me apareceram meus pais e meus avós, todos abraçando-me e fazendo votos para o mais rapidamente possível me restabelecer da viagem.

Respondi balbuciando algumas frases que costumava dizer aos sofredores, cujo sentido exato eu percebi e me deixou a primeira noção de que algo não estava bem comigo. O que era? Era o convencionalismo social mais frívolo e desapegado de sentimentos.

Quando ia afirmar-lhes que a minha euforia pela tranqüilidade da chegada me punha em condições de concluir que estava merecendo uma reclusão esplendorosa, já haviam desaparecido, sobrando longa fila de pessoas ansiosas por cumprimentar-me. Eram tios, primos, vizinhos, colegas de escola e de escritório, fornecedores, entregadores, jornaleiros que serviram em casa, criados e demais pessoas cujo contato na Terra houvera sido longo ou curto. No final de muitos apertos de mão, de beijos nas faces, de tapinhas nas costas, ainda compareceram alguns dentre os vivos, que julguei em transe mediúnico ou em sono profundo.

Sem exceção, me dirigiram apenas palavras de louvor e de agradecimento. Mas tudo o que disseram soou tão falso quanto aquelas mesmas palavras que critiquei acima.

Assim começou meu tormento.

Quando desejava ver os familiares, lembrava-me deles e logo estavam ali, seja para uma partida de futebol, que invariavelmente terminava com a vitória do meu esquadrão, seja para o carteado fraterno e gratuito, durante o qual repetíamos os mesmos temas a respeito dos sucessos de meu modo de viver.

Partiam como haviam vindo: ao meu primeiro suspirar pela liberdade dos longos passeios pelas praias.

Foi numa dessas caminhadas solitárias que percebi que a ilha não era tão grande, tendo em vista que cheguei a contorná-la por inteiro, voltando ao ponto de partida. No horizonte, muitas outras ilhotas, talvez desabitadas, talvez agasalhando algum vagabundo do tempo como eu. Vagabundo porque não construía nada, não avançava um passo no entendimento da existência, não compreendia a razão de estar sendo atendido em meus desejos de compartilhar a felicidade com as pessoas evocadas, sem dar-lhes a satisfação de uma palavra de incentivo ou de apoio aos empreendimentos.

Nenhum daqueles possíveis vizinhos comparecia ao meu chamamento. Desejei passar-lhe a notícia de minha presença e ateei fogo a uns gravetos que reuni com o intuito de levantar uma nuvem de fumaça. Logo descortinei nas ilhas ao derredor outros sinais de vida através da mensagem sutil enviada para a atmosfera. Essa diversão me entreteve por bom tempo, mas não alcancei comunicar-me através de algum código, primeiro porque não conhecia nenhuma linguagem cifrada, segundo porque não sabia o que significavam aqueles entrecortes na continuidade do rolo aéreo de fumo.

Com o tempo, veio-me a preocupação de estar ocupando um espaço absolutamente tranqüilo, porém, retirado, verdadeiro eremitério ou cativeiro, apesar de obter a companhia de tanta gente. No entanto, todos tinham para onde ir e eu me sentia prisioneiro do bem-estar de que não abria mão.

Muito teria para contar a respeito da agonia que se apossou de mim. O importante, todavia, haverá de ser o relato puro e simples da feição que dei ao isolamento. Em lugar de evocar a presença de meus pais e irmãos, cheguei a pretender trazer para diante de mim filósofos e santos. E eles vieram em grande número, cada qual conforme os chamava. E punham-se a comentar a fragilidade da personalidade humana, os defeitos morais, a linha determinante de sua sabedoria e de sua virtude, como se conversassem sozinhos, descrentes de que a minha inteligência pudesse acompanhar-lhes a genialidade.

Um dia, estando já há um bom tempo sozinho, tentando decifrar o mistério da dor como componente da vida, fator de desencadeamento da ação de caráter positivo, atracou aquela mesma embarcação, trazendo outra criatura. Ao invés de me alegrar por receber um companheiro a quem pudesse descrever as sensações desencontradas de felicidade e incômodo psíquico, roguei ao condutor que me levasse para algum lugar em que houvesse um regime disciplinar para a aquisição dos conhecimentos mais elementares para a convivência regrada pelas leis gerais dos relacionamentos.

Caronte, como o chamei, fez-me subir no bote e conduziu-me rio acima, sem esforço, até que fui convidado a desembarcar perto de um edifício bastante amplo, de vários andares, em cuja fachada se lia: Escolinha de Evangelização. Isto foi há dez anos. Hoje, portanto, estou apto a desejar aos leitores melhor sorte do que a minha.

Até mais ver!







14. A SERPENTE ENCANTADA



Raciocinemos sob a influência da impressão obtida a partir do título. Não é verdade que demos uma ligeira volta pela Índia, vimos os encantadores de serpentes, suas flautas e as najas erguendo-se de dentro dos cestos, acompanhando o movimento pendular dos faquires?

Pois eu juro que não pretendia sugerir nada disso, já que a intenção deste escrito é a de tornar a alma do leitor prevenida quanto às seduções dos gozos materiais e sua relação com os efeitos mais ou menos dolorosos das decepções que todos sofremos ao aportarmos na pátria espiritual.

Sei que a minha serpente está mais para a da história bíblica do pomo, de Adão e de Eva. No entanto, se valer a aproximação no campo mítico e também psíquico, que peque por excesso aquele que deduzir assim, já que não é de temer-se, num escrito simples e despojado, que as coisas não sejam tão perfeitas.

Pois bem, a nostalgia da vida material, que muitos aqui sentem, está relacionada ao fato de estarmos carentes de virtudes, uma vez que nenhum de nós tem capacidade suficiente para demonstrar autonomia intelectual ou, ao menos, alguma qualidade estilística de destaque.

Em todo o caso, esforçamo-nos e conseguimos alguns textos com recomendações comuns, onde o mais importante é a transmissão de nosso afeto, sem buscarmos cativar pelo encantamento das idéias originais ou da inteligência superior.

Escrito desta forma, apesar de não ser algo demasiado simples ou pueril, também não expressa superior discernimento, ainda mais porque nos empenhamos em dar ênfase à modéstia como qualidade dos espíritos de luz. Se, como é o caso, não deixarmos rastro no areal da sabedoria, ao menos que se deduza que estamos empenhados em dar de nós de forma bastante coerente e honesta.

Satisfaremos a ânsia dos leitores desejosos de esclarecimentos sutis? É muito pouco provável. O mais certo é que logremos deixar mensagem eivada de defeitos, embora nos digamos instigados pela melhor das intenções.

Se a nossa serpente não inocular na alma dos leitores o veneno da desconfiança ou da dúvida, ficaremos bastante felizes e agradeceremos ao Senhor pela oportunidade que desfrutamos nestas tardes de psicografia.

É o bastante.

Sebastião, pelo Grupo dos Felizes Folgazões.



Indaiatuba, de 24.06 a 02.10.02.

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